Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
35/18.7T8VRL-A.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: PROVA TESTEMUNHAL
ADVOGADO CONSTITUÍDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/16/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Com as alegações de recurso apenas é admissível a junção de documentos pelas partes em duas situações, quando se trate de documentos cuja apresentação não foi possível até àquele momento e no caso da junção de ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.

II- Em matéria processual, apenas se forma caso julgado formal relativamente às questões concretamente apreciadas.

III- O estatuto da testemunha em processo cível é incompatível com o estatuto da ordem dos advogados pelo que o advogado não pode ser testemunha num processo em que intervenha ou tenha intervindo nessa qualidade, nem num processo em que seja parte um seu cliente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

S. M., casado, residente na Rua … Amarante, instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma comum, contra M. L., residente no lugar da … Mondim de Basto, pedindo a declaração de nulidade do testamento outorgado por S. M. em 17/03/2014 ou, caso assim não se entenda, a declaração de anulabilidade, alegando que nesta data já o falecido não tinha capacidade para querer e entender o alcance do acto.
A ré apresentou contestação.
Foi dispensada a audiência prévia. Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto da acção, enunciados os temas da prova e foram admitidos os requerimentos probatórios.
*
Na sessão de julgamento de 25/09/2019, após ter o tribunal recorrido identificado a testemunha J. M., as partes pronunciaram-se acerca da sua inquirição tendo o autor defendido que poderia haver conflito de interesses e tendo a ré adoptado posição contrária.

Após, foi proferida a seguinte decisão:

“A testemunha indicada confirmou que usa o nome profissional J. M. sendo advogado.
Tendo estado a analisar os presentes autos verifico que corre termos uma acção declarativa sob a forma de processo comum no Juízo Central de Penafiel 1296/17.4T8AMT.
Nesse processo é autora a aqui ré e são réus o aqui autor e esposa (inquirida nestes autos na qualidade de testemunha).
Com a petição inicial oferecida nesses autos foi junta a procuração de fls. 38/vº mediante a qual foram conferidos poderes à aqui testemunha, bem como ao Ilustre Mandatário que subscreve a contestação no processo 35/18.7T8VRL.
É certo que com a contestação foi junta outra procuração (fls. 25) na qual consta como mandatário forense apenas o Srº Drº C. S., sendo outorgada com data posterior.
De notar ainda que não ocorreu, segundo se sabe, a revogação ou renúncia do mandato conferido à testemunha. Este circunstancialismo coloca-nos uma dificuldade que vai para além da questão de saber se o Srº Advogado está ou não impedido de depor em virtude do sigilo profissional.
O Srº Bastonário da Ordem dos Advogados A. C. na obra do Segredo Profissional da Advocacia pág. 82/83 escreveu o seguinte:
“Deverá deixar-se bem claro que é inaceitável autorizar a depor um Advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja constituído.
É que, embora não haja disposição expressa que o proíba, afigura-se-nos que isso seria completa subversão do próprio sistema processual, em que o Advogado, entre nós, se não pode nunca confundir com simultânea testemunha. E seria outrossim altamente desprestigiante para a Advocacia.
Quer isso, pois, dizer que ao Advogado incumbe ponderar e prever, antes de propor a acção, as principais condicionantes do seu decurso. Se o seu depoimento veio a tornar-se necessário, muito mal estruturou o seu trabalho e não pode já emendar a mão. A absoluta necessidade não pode resultar, nesse caso, do modo como foi proposta a acção e antes deve ser aferida objectivamente.
Isso também se aplica a outro tipo de situações que na essência não diferem da que analisámos. Referimo-nos a que não será lícito obter dispensa para depor ao Advogado que, tendo iniciado o processo com procuração aí junta, trata de substabelecer depois sem reserva para esse efeito. Seria incompreensível a todas as luzes que ele pudesse despir a toga, sair formalmente do processo e passar a sentar-se no banco das testemunhas em vez de na bancada prestigiada que em antes ocupara.
Igual solução merece o caso de a pretensão de depor incidir apenas em apenso da acção principal, ainda que iniciado só depois do substabelecimento (em providência cautelar, embargos, incidente da instância, etc.).”
No caso que nos traz aqui de facto não foi junta procuração forense a favor da testemunha, mas tratando-se de alguém que noutros processos contra o aqui autor representa a mesma parte não vejo razão para solução diversa, pois são válidas as mesmas restrições.
Temos mais de que um processo entre estas partes e não é pela circunstância de não ter sido junta procuração forense a favor da testemunha nestes autos que se pode ignorar que se trata de Mandatário da parte.
Não se trata aqui, a meu ver, de uma compressão desproporcionada do direito de defesa da ré, pois a questão radica a montante, devendo sim é questionar-se se o Srº advogado deve aceitar ser testemunha de um testamento, prevendo que mais tarde possa existir um conflito quanto a tal testamento que implique o exercício de um mandato forense.
Aliás, são recorrentes as situações em que a jurisprudência não tem admitido que um advogado possa em simultâneo representar um constituinte e ser testemunha nomeadamente no Acórdão de 30/01/2017 do Tribunal da Relação do Porto Relator Carlos Gil (processo 881/13.8TYVNG-A.P1) e nas decisões aí citadas.
Refira-se ainda que não existe qualquer problema de caso julgado formal, pois limitei-me a admitir o rol de testemunhas sem qualquer pronúncia específica acerca desta questão, e como se diz no Acórdão de 30/01/0 2017, apenas se forma caso julgado formal relativamente às questões concretamente conhecidas.
Termos em que, considerando o exposto, decido não admitir o depoimento da testemunha.
Notifique.”
*
Não se conformando com esta sentença veio a ré dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

“1. A questão a decidir nesta apelação consiste apenas em saber se um advogado, com mandato num dado processo, está impedido de depor como testemunha num outro processo que não patrocina, mas onde figura como parte a sua constituinte, na primeira daquelas ações.
2. No despacho recorrido o Tribunal a quo decidiu não admitir o depoimento da testemunha J. M., oportunamente indicada pela Ré.
3. louvando-se nas razões invocadas pelo Sr. Bastonário da Ordem dos Advogados, A. C., em estudo onde se considera não ser de autorizar um Advogado a depor em processo no qual esteja constituído.
4. Em causa nestes autos está um testamento outorgado em 17 de março de 2014, onde aquele J. M., advogado de profissão, interveio como testemunha instrumentária
5. O testamento é um negócio jurídico unilateral e nele não teve intervenção a aqui ré.
6. Os factos sobre os quais iria incidir o depoimento recusado restringir-se-iam à perceção que o identificado causídico teve quanto ao estado de saúde mental e ao estado de lucidez e consciência do seu ex-constituinte.
7. Prudencialmente, exibiu uma autorização dada pela Ordem dos Advogados para o dispensar do sigilo profissional e poder depor como testemunha, onde se consigna que “os factos sobre que se pretende que o requerente preste depoimento não se referem, nem direta nem indiretamente, à relação de mandato estabelecida com o testador”.
8. Sucede que a identificada testemunha, na qualidade de advogado, tem procuração conjunta no processo n.º 35/18.7T8VRL, onde é autora a ora ré, e onde se discute a validade de uma doação, que em nada se conexiona com a matéria controvertida nos presentes autos.
9. Aqui se releva, no entanto, que no processo sub specie a testemunha indicada não tem, nem teve, mandato judicial, precisamente porque fora interveniente acidental no ato notarial acometido.
10. De facto, não lhe foi outorgada procuração nos autos, por vontade da ré e por disposição sua; e também não há qualquer “declaração verbal da parte [Ré] no auto de qualquer diligência” que se houvesse praticado no processo e que pudesse conferir mandato judicial, nos termos do disposto no artigo 43º, al. b), do Cód. Proc. Civil.
11. Inexiste, pois, o pressuposto da tese fundamentadora do despacho recorrido, assim “expressis verbis” formulada: “é inaceitável autorizar a depor um advogado para prestar depoimento em processo no qual esteja [ou tenha estado, por qualquer forma] constituído” (sublinhado nosso).
12. Neste conspecto, o despacho recorrido determina uma compressão injustificada do direito de defesa da ré;
13. E viola o preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 392º e 393º, n.º 3, do Código Civil, e o disposto no artigo 495º, n.os 1 e 2, do Cód. Proc. Civil.”

Pugna pela revogação do despacho recorrido e consequente admissão da testemunha recusada a depor.
*
Foram apresentadas contra-alegações e juntos 10 documentos, sendo que a maioria já se encontravam juntos aos autos.
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
*
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) A admissibilidade da junção de documentos com as contra-alegações;
B) Saber se a decisão recorrida viola o caso julgado;
C) Por fim, se é de admitir o depoimento da testemunha arrolada pela ré, J. M., advogado desta noutros processos.
*
II – Fundamentação

Em face dos documentos juntos aos autos consideram-se provados os seguintes factos:

1.Em 17/03/2014 S. M. outorgou testamento através do qual instituiu herdeira da quota disponível a sua mulher M. L. e do qual foram testemunhas A. T. e J. M., ambos com domicilio profissional na R. …, em Celorico de Basto.
2. Nestes autos, entrados em 05/01/2018, em que é autor S. M. (filho de S. M.) e ré M. L. (viúva de S. M.) pede-se a declaração de nulidade ou anulabilidade do testamento referido em 1 com fundamento que este, nesta data, já não tinha capacidade de querer e entender o alcance do acto.
3. A aqui ré M. L. apresentou contestação subscrita pelo Dr. A. C. S., com domicílio profissional na R. … Celorico de Basto e juntou procuração por si outorgada a favor deste advogado datada de 12/01/2018.
4. A ré apresentou como testemunha, entre outras, “J. M., residente na Rua …, freguesia de …, concelho de Celorico de Basto (…)”.
5. Os róis de testemunhas foram admitidos por despacho de 17/03/2018.
5. Na sessão de audiência final de 25/09/2019 a testemunha J. M. identificou-se como advogado e apresentou autorização da Ordem dos Advogados a dispensá-lo do sigilo profissional.
7. O tribunal não admitiu o depoimento desta testemunha cfr. decisão recorrida.
-
8. Corre termos o Proc. nº 1296/17.4T8AMT, entrado em 18/09/2017, em que é autora M. L. e réus S. M. e mulher M. M., e em que é pedida a declaração de nulidade da doação datada de 16/03/2010 outorgada no Cartório Notarial de Amarante a cargo da Dra. O. S. nos termos da qual S. M. doou ao filho o prédio urbano sito no Lugar da …, Amarante, descrito na C.R.P. de Amarante com o nº …, alegando que o doador, desacompanhado da sua mulher, carecia de legitimidade para fazer tal doação.
9. A aqui autora M. L. apresentou petição subscrita pelo Dr. J. M., com domicílio profissional na R. … Celorico de Basto, e juntou procuração datada de 16/05/2017 por si outorgada a favor de “Dr. A. C. S., Dr. L. O. e Dr. J. M., sócios de A. C. S. e Associados – Sociedade de Advogados SP RL, com sede na Rua ..., em Celorico de Basto”.
-
10. No Cartório Notarial de Mondim de Basto, em que é Notária A. M., corre termos o processo de inventário nº 4690/17 por óbito de S. M. e mulher, M. H., requerido por M. L., que aí desempenha funções de cabeça de casal, e em que são interessados esta e S. M..
11. O Dr. L. O., com domicílio profissional na Rua …, Celorico de Basto, acompanhou a cabeça de casal, M. L., designadamente no auto de compromisso de honra e declarações de cabeça de casal.
*
A) Junção de documentos pelo Recorrido

Antes de mais, importa analisar a questão prévia referente ao facto do Recorrido ter junto 10 documentos com as suas contra alegações, sendo que um já se encontrava junto aos autos (petição inicial do Proc. nº 1296/17.4T8AMT) e parte de outro também já se encontrava no processo (compromisso de honra e declarações do cabeça de casal no processo de inventário a correr termos no Cartório Notarial de A. M., em Mondim de Basto.
Refere o Recorrido que os documentos são cruciais para conhecer a questão de forma completa e apenas são juntos nesse momento porque a referida questão só foi suscitada depois de findos os articulados.

Quid iuris?
Nos termos do art. 652º nº 1 e) do C.P.C. incumbe ao Relator Autorizar ou recusar a junção de documentos e pareceres. Quando a parte se considere prejudicada por qualquer despacho do Relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão devendo, nesse caso, o Relator submeter o caso à conferência depois de ouvida a parte contrária (art. 652º nº 3 do C.P.C.).
Uma vez que foi assegurado o cumprimento do princípio do contraditório e tendo em atenção razões de economia processual, presentes em todas as fases processuais, incluindo a fase recursória, entendemos que os preceitos supra referidos não obstam a que se conheça da admissão ou rejeição dos documentos juntos com as alegações no próprio acórdão que conhece o objecto do recurso.

Dispõe o art. 651º do C.P.C., sob a epígrafe “Junção de documentos e de pareceres”:

1.As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o art. 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
(…).

Assim, apenas é admissível a junção de documentos pelas partes com as alegações de recurso caso seja alegado e provado uma de duas situações:

- quando se trate de documentos cuja apresentação não foi possível até àquele momento (superveniência, objectiva ou subjectiva do documentos face ao momento do julgamento em 1ª instância);
- e no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância (pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso).

No caso em apreço, a questão da inadmissibilidade do depoimento da testemunha J. M. foi suscitada apenas na sessão de audiência final do dia 25/09/2019 pela mandatária do autor após aquela testemunha se ter identificado perante o tribunal. Igualmente segundo a acta dessa sessão de julgamento aquela mandatária não requereu nesse momento a junção aos autos de quaisquer documentos.
Verificamos que os documentos apresentados com as contra-alegações de recurso que ainda não constavam destes autos têm data anterior a 25/09/2019 sendo que o apelado não alegou sequer que nesta data não sabia da sua existência. A data que releva para apurar a superveniência objectiva ou subjectiva dos documentos é a data da decisão recorrida.
Por outro lado, inexiste qualquer novidade da questão decisória que justifique a junção de tais documentos neste momento.
Pelo exposto, não se admite a junção dos documentos que acompanham as contra-alegações que não se encontravam previamente nos autos.
*
B) Caso julgado

Uma vez que a testemunha em causa consta do rol de testemunhas apresentado pela ré com a contestação e que tal rol foi admitido pelo tribunal poder-se-ia colocar a questão da decisão recorrida violar o caso julgado. Mas, não.
Nos termos do art. 620º nº 1 do C.P.C. As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo, i.e., produzem caso julgado formal (tais decisões não podem ser revogadas ou alteradas no âmbito do mesmo processo).
Contudo, é jurisprudência e doutrina unânime que o caso julgado formal apenas se forma no que respeita às questões concretamente apreciadas.
Assim sendo, dado que o despacho proferido apenas aferiu da tempestividade e admissibilidade geral do rol de testemunhas, e não se pronunciou em concreto acerca da admissibilidade do depoimento da testemunha L. M. enquanto advogado de profissão e alegado mandatário da ré (nem podia uma vez que esta testemunha aí não foi sequer identificada como advogado, nem pelo seu nome profissional), inexiste caso julgado formal acerca desta questão e nada obsta a que decisão recorrida tenha conhecido esta questão.
*
C) Admissibilidade de depoimento da testemunha L. M.

Inexistindo norma expressa, no Código de Processo Civil e/ou no Estatuto da Ordem dos Advogados, que regule o depoimento por parte de advogado a resposta à questão suscitada deverá ser dada depois da análise do estatuto jurídico-processual-civil da testemunha, do estatuto jurídico do advogado e da compatibilidade de um com o outro.
Vejamos.

No que concerne ao estatuto da testemunha resultante do C.P.C. verificamos o seguinte:

Nos termos do art. 495º nº 1 do C.P.C. Têm capacidade para depor como testemunhas todos aqueles que, não estando interditos por anomalia psíquica, tiverem aptidão física e mental para depor sobre os factos que constituam objeto da prova.
Incumbe ao juiz exigir que a testemunha preste juramento, proceder à sua identificação e perguntar-lhe se é parente, amigo ou inimigo de qualquer das partes, se está com elas nalguma relação de dependência e se tem interesse, directo ou indirecto, na causa (art. 513º nº 1 do C.P.C.).
Este diploma não permite que determinados intervenientes processuais deponham como testemunhas.
Desde logo, as partes não podem depor como testemunhas (art. 496º do C.P.C.).
Caso o juiz da causa seja indicado como testemunha e declare sob juramento no processo que tem conhecimento de factos que possam influir na decisão é o mesmo declarado impedido (art. 499º e 115º nº 1 h) do C.P.C.).
E é aplicável ao perito o regime de impedimentos e suspeições que vigora para os juízes com as necessárias adaptações (art. 470º nº 1 do C.P.C.).
No que diz respeito ao estatuto dos advogados verificamos que a Lei nº 145/2015 de 9 de Setembro, que aprovou o Estatuto da Ordem dos Advogados (E.O.A.), tem um extenso conjunto de normas que regulam o exercício desta profissão (art. 66º a 87º) e a deontologia profissional (art. 88º a 113º).
Em sede de deontologia o advogado deve ser uma pessoa íntegra e deve cumprir pontual e escrupulosamente os deveres previstos, designadamente no estatuto e na lei (art. 88º). O mesmo tem deveres para com a comunidade (90º) e para com a Ordem dos Advogados (90º). É obrigado a guardar segredo profissional quanto aos factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, haja ou não representação judicial, deva ou não ser remunerado, haja ou não aceitado e desempenhado o serviço, podendo ser dispensado em certos casos (92º). A relação entre o advogado e o cliente deve pautar-se na confiança recíproca e deve o primeiro agir na defesa dos interesses legítimos do cliente, mas cumprindo a lei e a deontologia (97º).
Dispõe o art. 99º nº 1 do E.O.A.: O advogado deve recusar o patrocínio de uma questão em que já tenha intervindo em qualquer outra qualidade ou seja conexa com outra em que represente, ou tenha representado a parte contrária. E o nº 6: Sempre que o advogado exerça a sua actividade em associação, sob a forma de sociedade ou não, o disposto nos números anteriores aplica-se quer à associação quer a cada um dos seus membros.
Tendo em atenção o supra referido podemos concluir que o advogado, enquanto sujeito processual, não pode ser testemunha num processo em que intervenha ou tenha intervindo naquela qualidade. Com efeito, além de não poder sentar-se simultaneamente na cadeira das testemunhas e na bancada dos advogados, também não pode como testemunha jurar dizer a verdade e depois escusar-se a depor, ou depor violando o dever de sigilo profissional ou violando o dever de defesa dos interesses legítimos do cliente.
Pelas mesmas razões não pode o advogado ser testemunha em processo em que seja parte um seu cliente ainda que ele aí não represente o cliente. Acresce que, no caso de ser mandatário com poderes de representação, o advogado obriga-se a praticar actos de jurídicos por conta e em nome do cliente pelo que os efeitos de tais actos produzem-se na esfera jurídica do cliente (art. 1157º, 1178º, 258º do C.C.).
A este propósito lê-se no Ac. da R.P. de 07/02/2007 (Maria Leonor Esteves), in C.J. XXXII, T. I/2007, p. 207: “Muito embora em nenhum dos preceitos legais que regulam a matéria da prova testemunhal se vislumbre a referência textual a qualquer impedimento que obste a que o advogado de uma das partes do processo preste depoimento durante a vigência da relação processual que o liga àquela, a inadmissibilidade de tal depoimento decorre não só do princípio da não promiscuidade dos intervenientes, princípio geral do processo, mas também de interesses de ordem pública. As razões justificativas que obstam à acumulação das qualidades processuais - seja de julgador com a de parte, seja desta com a de testemunha ou de perito -, que vários preceitos legais procuram prevenir, têm igual cabimento relativamente a actuações que possam produzir efeitos na esfera jurídica de qualquer dos interessados, como sucede com a do mandatário que, em termos jurídicos, se identifica com a do mandante. Por outro lado, a função da testemunha no processo, com o inerente dever de comunicar ao tribunal, de forma isenta, objectiva e verdadeira, todos os factos acerca dos quais seja inquirida (cfr. al. d) do n° 1 do art. 132°), não se coaduna com a do advogado que, não obstante participe na realização da Justiça, se encontra sempre condicionado pelo interesse da parte que representa e ao qual em muitos casos tem de dar prevalência. Nessa medida, os deveres processuais do advogado - que não raro implicam o dever de reservar factos de que tenha conhecimento quando esteja em causa o interesse do seu constituinte, não lhe permitem desempenhar as funções de testemunha de acordo com o figurino traçado na lei para quem ocupa esta posição processual.”

Este aresto baseou-se no Parecer n° E/950, aprovado em sessão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados de 22 de Setembro de 1995 (publicado em www.oa.pt) que, em processo penal, concluiu o seguinte:

“1 - O Advogado que desempenhou, mas já não desempenha, o patrocínio judicial de qualquer das partes só pode depor como testemunha nesse caso, desde que sobre factos que não afectem as regras do segredo profissional, e somente se tal for absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes e obtiver a autorização do presidente do conselho distrital respectivo da Ordem dos Advogados.
2 - O Advogado que ainda não patrocinou ou não teve como cliente alguma das partes do processo pode depor como testemunha, mas depois de depor não pode assumir o patrocínio de qualquer delas, porque a isso está impedido pelo seu estatuto profissional.
3 - Não pode depor como testemunha porque tal contraria um princípio fundamental do direito processual, o advogado que mantém em vigor a relação jurídico-profissional com alguma das partes do processo”.
Não obstante do acórdão referido ter sido proferido em processo penal os seus ensinamentos são transponíveis para o processo cível.
No sentido de não poder depor como testemunha o advogado constituído vide ainda, entre outros, Ac. da R.P. de 07/10/2009 (Castela Rio), de 30/01/2017 (Carlos Gil), da R.L. de 07/03/2013 (Cristina Branco), 15/02/2018 (Cristina Neves), todos in www.dgsi.pt.
Revertendo ao caso em apreço, embora se estranhe que num testamento intervenham como testemunhas dois cidadãos que exercem a profissão de advogados (e que aí fornecem o domicilio profissional), pois talvez fosse mais curial que interviessem como testemunhas pessoas da família do testador, amigos, vizinhos ou até cuidadores da Santa Casa da Misericórdia onde o testador se encontrava no momento da outorga do testamento, nada o impede. Igualmente não estão, em princípio, tais cidadãos impedidos de depor como testemunhas em processo como o presente em que se discuta a capacidade de querer e entender do testador no momento da outorga do testamento.
Contudo, o Dr. J. M., arrolado como testemunha pela ré M. L. nestes autos, passou a ser advogado desta pelo que deixou de poder depor como testemunha em acções como a presente em que aquela seja parte sendo indiferente que aqui não aja como advogado.
Vejamos.
Em 16/05/2017 a ré concedeu poderes forenses gerais sem especificar qualquer matéria ou processo ao Dr. J. M., bem como a outros dois advogados, todos sócios de determinada sociedade de advogados. Munido desta procuração o Dr. J. M. subscreveu petição inicial e com a mesma instaurou acção com vista a pedir a declaração de nulidade da doação feita por S. M. datada de 16/03/2010, que deu origem ao Proc. 1296/17.4T8AMT.
Sendo advogado da ré está o mesmo vinculado, além do mais, a guardar sigilo profissional e a defender intransigentemente os interesses legítimos da sua cliente, o que não é, ou pode não ser, compatível com um depoimento isento, objectivo e verdadeiro que lhe é exigido como testemunha.
Por outro lado, como refere o acima referido parecer da Ordem dos Advogados, existe um princípio geral do processo, a saber, o da não promiscuidade dos intervenientes, principio este que não admite a acumulação de duas qualidades. No caso de advogado com poderes de representação, em que a sua actuação produz efeitos na esfera jurídica do mandante, aquele confunde-se com o representado pelo que também não pode cumular a qualidade de advogado (neste ou noutro processo) e de testemunha do representado.
Acresce que, tendo o Dr. J. M. sido advogado do falecido e como tal ter aceitado ser testemunha do testamento – como admite nas suas alegações e segundo refere consta do pedido de dispensa de sigilo por si apresentado junto da Ordem dos Advogados -, afigura-se-nos que deveria (bem como os seus colegas de escritório) ter ponderado não aceitar a ré como cliente em processos que se reconduzem, directa ou indirectamente, ao apuramento da herança daquele atento o conflito de interesses.
Por todo o exposto, improcede a apelação.
*
Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I – Com as alegações de recurso apenas é admissível a junção de documentos pelas partes em duas situações, quando se trate de documentos cuja apresentação não foi possível até àquele momento e no caso da junção de ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.
II – Em matéria processual, apenas se forma caso julgado formal relativamente às questões concretamente apreciadas.
III – O estatuto da testemunha em processo cível é incompatível com o estatuto da ordem dos advogados pelo que o advogado não pode ser testemunha num processo em que intervenha ou tenha intervindo nessa qualidade, nem num processo em que seja parte um seu cliente.
*
III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e consequentemente confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
**
Guimarães,16/01/2020

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade