Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
568/18.5Y3BRG.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ERRO NA FORMA DO PROCESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário (elaborado pela Relatora):

A prolação duma sentença prevista legalmente para pôr termo à fase contenciosa do processo de acidente de trabalho, no caso de esta não ter sequer se iniciado, por estar dependente da apresentação de petição inicial, traduz inobservância da forma processual adequada e acarreta a anulação do processado subsequente ao decurso do prazo a que alude o n.º 1 do art. 119.º do Código de Processo do Trabalho, designadamente daquela sentença, bem como a declaração da suspensão da instância nos termos do n.º 4 da mesma norma, tudo conforme dispõe o art. 193.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

Os presentes autos de acção declarativa de condenação, com processo especial emergente de acidente de trabalho, em que é sinistrado A. S. e responsável X - Companhia de Seguros, S.A., referem-se a um acidente de trabalho de que aquele foi vítima, ocorrido em 16/10/2018, quando prestava a sua actividade de trolha de 2.ª, mediante a retribuição anual ilíquida de 9.706,12 €, em função da qual se encontrava transferida para a seguradora a responsabilidade infortunística do empregador.
Na fase conciliatória, o perito médico foi de parecer que o sinistrado ficou afectado de ITA entre 17/10/2018 e 2/11/2018 e de IPP de 1% desde a data da alta em 2/11/2018.

Na tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, em 13/02/2020, as partes declararam:
- o sinistrado:
«Não aceita o resultado do exame médico, quer a IPP, quer a data da alta quer os períodos de IT`s, pelo que irá requerer exame por junta médica.
(…)
Reclama despesas médicas, medicamentosas e de transportes a liquidar na acção.»
- a seguradora:
«Considerando a informação clinica de que dispõe conclui que a lesão (gonalgia residual) não resultou do acidente de trabalho participado, configurando uma patologia pré existente.
Não aceita o resultado do exame médico efectuado no G.M.L..
Assim, não aceita pagar ao sinistrado qualquer quantia seja a que título for.»

Em face de tais declarações, pelo Ministério Público foi proferido o seguinte despacho:
«Sendo as partes capazes e legal o acordo dou as partes por não conciliadas e este acto por findo.
Aguardem os autos nos termos e para os efeitos do n.º 1 do art. 119º do C.P.T., estando o sinistrado representado por mandatária.»

Sem que algo mais tenha sido requerido pelas partes, em 12/03/2020, invocando o art. 140.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho, pelo Mmo. Juiz a quo foi proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, decido:
1. Condenar a seguradora a pagar ao autor a pensão anual e vitalícia de € 67,94, acrescida de juros de mora a calcular à taxa legal supletiva desde o dia seguinte ao da alta até integral pagamento;
2. Esta quantia é devida desde o dia seguinte ao da alta e obrigatoriamente remida no correspondente capital de remição.
*
Nos termos do art. 120º nº1 do Cód. de Processo do Trabalho, fixo à causa o valor de € 941,04.
*
Custas a cargo da seguradora.»

O sinistrado, inconformado, veio interpor recurso, formulando conclusões nos seguintes termos, que se transcrevem:

«1. O recorrente interpõe recurso da douta sentença proferida pelo Tribunal a quo por entender que, face ao teor da tentativa de conciliação, não poderia, a fase contenciosa, iniciar-se mediante a tramitação simplificada a que alude a alínea b) do artigo 117º do CPT, mas sim, através da apresentação da petição inicial a que se reporta a alínea a) do mesmo normativo e, como isso ainda não tinha acontecido, sempre deveria ter sido proferido despacho de suspensão da instância e, não decisão a apreciar o mérito da acção, como aconteceu.
2. Na tentativa de conciliação as partes não chegaram a acordo.
3. Isto porque e, conforme resulta do “Auto de Tentativa de Conciliação”, o sinistrado não aceitou o resultado do exame médico, nomeadamente, quanto aos períodos de incapacidade temporária que lhe foram fixados, a data da alta e grau de IPP fixado, bem como, reclamou despesas médicas, medicamentosas e de transportes (que se propôs liquidar na acção que iria interpor) gastas no seu tratamento após a alta dada pelos serviços clínicos da seguradora - em 2 de Novembro de 2018 -, cujo pagamento foi declinado pela seguradora.
4. Por sua vez, a demandada seguradora, apesar de aceitar o acidente como de trabalho e o salário reclamado pelo sinistrado, não aceitou o resultado do exame médico; que a lesão (gonalgia residual) tenha resultado do acidente de trabalho participado, configurando uma patologia pré existente, o que equivale a dizer que não aceitou o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente; pagar ao sinistrado qualquer quantia seja a que título for e a responsabilidade pelas consequências do acidente.
5. Daqui resulta à saciedade que a divergência das partes vai muito além da mera discordância quanto à questão da incapacidade do sinistrado.
6. Na verdade, a demandada seguradora põe em causa o nexo de causalidade entre o evento – o acidente – e as lesões que o sinistrado diz terem resultado do acidente, que, por sua vez, lhe determinaram uma determinada incapacidade para o trabalho, elemento fundamental para a respectiva responsabilização pelo acidente, para além de não aceitar o pagamento das despesas gastas pelo sinistrado no seu tratamento após alta clínica dos seus serviços clínicos.
7. Ora, estando em causa um dos elementos caracterizadores do acidente de trabalho, a questão não pode ser resolvida sem a propositura da respectiva petição inicial,
8. onde o sinistrado alegue os factos concretos referentes ao nexo de causalidade entre o acidente e as lesões/sequelas apresentadas,
9. os factos atinentes ao ser percurso clínico e que permitam fixar uma data de alta médica diferenciada da que foi fixada, quer pela demandada seguradora, quer pelo INML
10. e, finalmente os factos que suportem o pedido de pagamento de todas as prestações a que tenha direito, sejam em espécie, sejam em dinheiro, em consequência do acidente sofrido;
11. tanto mais que, só realizou a cirurgia ao joelho afectado no acidente que se discute nos autos, em 07 de Janeiro de 2020, encontrando-se, ainda em tratamento médico, desconhecendo quando lhe irá ser dada alta por consolidação médico-legal das suas lesões e as respectivas sequelas.
12. E, se assim é, só através do mecanismo previsto no artigo 117º, nº 1, alínea a) do CPT, a questão pode ser resolvida. Mecanismo esse, cujo impulso processual, como vimos, apenas pode ser desencadeado pelo sinistrado.
13. É verdade que nada impede que a junta médica se pronuncie sobre a existência ou não do nexo causal, mas isso não implica que a acção não tenha de ter o seu início mediante a apresentação da petição inicial prevista no artigo 117º, nº 1, al. a), do CPP, expondo o recorrendo a pertinente e necessária fundamentação de facto e de direito, à qual se seguirá a tramitação prescrita no CPT, designadamente, para além da abertura de oportuno apenso para fixação da incapacidade, a observância do contraditório (contestação), saneamento, instrução e julgamento.
14. Assim, devendo a fase contenciosa ter o seu início mediante a apresentação da petição inicial e não por simples requerimento a solicitar exame por junta médica,
15. e tendo decorrido o prazo a que alude o nº 1 do artigo 119º do CPT, sem que aquela tenha sido apresentada, a instância tem de ser suspensa ao abrigo do nº 4 do artigo 119º do CPT, anulando-se a decisão recorrida que conheceu de mérito,
16. uma vez que ao ser proferida foram praticados actos que a lei não admitia e simultaneamente omitidos outros que a lei impunha, podendo as irregularidades assim cometidas, influir no exame e decisão da causa (cfr. artigos 193º, 195º, 196º do CPC).
17. Face ao exposto deve ser dado provimento ao presente recurso e ser revogada a douta sentença proferida por violação do disposto nos artigos 117º, nº 1, a), 118º, 126º e 138,nº 2º do CPT.»

A seguradora não apresentou resposta ao recurso.
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Ministério Público foi emitido parecer no sentido da procedência do recurso.
Vistos os autos pelas Exmas. Adjuntas, cumpre decidir.

2. Objecto do recurso

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil –, a questão que se coloca a este Tribunal é a de saber se, atento o estado dos autos e a forma do processo, podia ter sido proferida sentença.

3. Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a decisão são os que resultam do Relatório supra.

4. Apreciação do recurso

No que respeita à tramitação do processo emergente de acidente de trabalho, o Código de Processo do Trabalho estabelece, além do mais:

- o processo inicia-se por uma fase conciliatória dirigida pelo Ministério Público e tem por base a participação do acidente (art. 99.º, n.º 1);
- no caso de ter resultado do acidente incapacidade permanente, o Ministério Público solicita aos serviços médico-legais a realização de perícia médica, seguida de tentativa de conciliação (art. 101.º, n.º 1);
- à tentativa de conciliação são chamadas, além do sinistrado ou dos seus beneficiários legais, as entidades empregadoras ou seguradoras, conforme os elementos constantes da participação (art. 108.º, n.º 1);
- na tentativa de conciliação, o Ministério Público promove o acordo de harmonia com os direitos consignados na lei, tomando por base os elementos fornecidos pelo processo, designadamente o resultado da perícia médica e as circunstâncias que possam influir na capacidade geral de ganho do sinistrado (art. 109.º);
- se se frustrar a tentativa de conciliação, no respectivo auto são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída (art. 112.º, n.º 1):
- seguidamente, o processo pode entrar na fase contenciosa, por duas vias alternativas, a accionar no prazo de 20 dias:
a) através de requerimento de perícia por junta médica, pelo interessado que não se conformar com a perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da natureza e grau de incapacidade (arts. 117.º, n.º 1, al. b), 119.º, n.º 1 e 138,º, n.º 2);
b) através de petição inicial, se houver discordância quanto a quaisquer outras questões, como sejam a existência e caracterização do acidente, o nexo de causalidade entre as lesões e o acidente, o montante da retribuição atendível, a determinação da entidade responsável, a existência e ressarcibilidade de prestações em espécie, etc. (arts. 117.º, n.º 1, al. a), 119.º, n.º 1, 126.º e ss. e 138.º, n.º 1);
- se, devendo ser apresentado apenas requerimento de perícia por junta médica, o mesmo não for apresentado dentro do aludido prazo, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º (art. 138.º, n.º 2, parte final);
- se, devendo ser apresentada petição inicial, a mesma não for apresentada dentro do aludido prazo, ou da sua prorrogação, o processo é concluso ao juiz, que declara suspensa a instância, sem prejuízo de o Ministério Público dever apresentar a petição logo que tenha reunido os elementos necessários (art. 119.º, n.º 4).

No caso em apreço, não chegou a entrar-se na fase contenciosa do processo, uma vez que, frustrada a tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, não foi prosseguida nenhuma das mencionadas vias alternativas, isto é, nem foi apresentada petição inicial, nem foi apresentado requerimento de perícia por junta médica, com a consequente inexistência das respectivas tramitações subsequentes.
Por tal razão, carece de fundamento a invocação, na sentença, do disposto no art. 140.º, n.º 1, o qual pressupõe a realização de perícia por junta médica e de eventuais exames e pareceres complementares ou pareceres técnicos, que, obviamente, nas circunstâncias referidas, não foram nem podiam ter sido realizados.
Acresce que também não poderia ter-se proferido sentença a coberto do citado art. 138.º, n.º 2, parte final, ou seja, por falta de apresentação de requerimento de perícia por junta médica dentro do prazo legal, uma vez que não se trata de situação em que a fase contenciosa pudesse iniciar-se por tal via, já que na tentativa de conciliação a discordância entre as partes não se limitou à questão da incapacidade.
Com efeito, enquanto o sinistrado manifestou discordância quanto ao resultado do exame médico, quer quanto aos períodos de IT, quer quanto à IPP, quer quanto à data da alta, a seguradora deixou expressa idêntica discordância quanto ao resultado do exame médico e ainda sobre o nexo de causalidade entre as sequelas e o acidente, ao referir que, «considerando a informação clínica de que dispõe conclui que a lesão (gonalgia residual) não resultou do acidente de trabalho participado, configurando uma patologia pré-existente.»
Para além disso, as partes divergiram ainda na tentativa de conciliação quanto ao pagamento de despesas médicas, medicamentosas e de transportes, reclamado pelo sinistrado e «(…) a liquidar na acção», como o mesmo referiu, já que a seguradora declarou, no seguimento da sua posição quanto ao nexo de causalidade, que «não aceita pagar ao sinistrado qualquer quantia seja a que título for».
Em face do exposto, a fase contenciosa tinha de iniciar-se através de petição inicial apresentada no prazo de 20 dias, pelo que, não tendo tal sucedido, e tendo o processo sido concluso ao juiz, este devia ter declarado a suspensão da instância, nos termos do citado art. 119.º, n.º 4, em vez de proferir a sentença recorrida.
Ora, a prolação duma sentença prevista legalmente para pôr termo à fase contenciosa do processo, que ainda não se iniciara sequer, traduz inobservância da forma processual adequada e acarreta a anulação do processado subsequente ao decurso do prazo a que alude o n.º 1 do art. 119.º, designadamente daquela sentença, bem como a declaração da suspensão da instância nos termos do n.º 4 da mesma norma, tudo conforme dispõe o art. 193.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Procede, pois, o recurso do sinistrado.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar procedente a apelação, e, em consequência, anula-se a sentença recorrida e declara-se a suspensão da instância nos termos do art. 119.º, n.º 4 do Código de Processo do Trabalho.
Sem custas.
Em 10 de Setembro de 2020

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso