Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
57/18.8GACMN.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
AUSÊNCIA DO ARGUIDO
DIREITO A PRESTAR DECLARAÇÕES
NULIDADE INSANÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Nos casos especiais em que a audiência de julgamento se encontra a decorrer na ausência do arguido, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 334.º do Código de Processo Penal, por iniciativa do Tribunal a presença daquele só pode ser ordenada se vier a ser considerada indispensável.
II - Contudo, mesmo nestas situações, o arguido mantém sempre o seu direito de intervir em qualquer momento da audiência, se e quando o entender, bastando para tal a ela comparecer ou comunicar validamente e em tempo essa sua pretensão, que não precisa sequer de justificar.
III - Esta pretensão, formulada pelo defensor, que na audiência de julgamento era quem representava o arguido para todos os efeitos possíveis, mais não é do que o exercício do direito à audição pessoal, que integra o conjunto de direitos que constituem o núcleo fundamental e irredutível dos direitos de defesa em processo penal, cujo modo de exercício só ao próprio cabe definir.
IV - Neste contexto processual, o despacho de indeferimento da audição pessoal do arguido está ferido de nulidade insanável, nos termos da al. c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, que como tal qualifica a ausência do arguido nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.
(Secção Penal)

I. RELATÓRIO

A. No processo comum singular nº 57/18.8GACMN.G1, do Juízo Local de Competência Genérica de Caminha, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana o Castelo, na sessão da audiência de julgamento realizada em 21 de fevereiro de 2022 foi indeferido o requerimento apresentado pelo arguido R. A. para visualização em audiência de julgamento de um vídeo alegadamente referente aos factos ocorridos a 8 de fevereiro de 2018, por despacho com o seguinte teor:
B.
«Nos termos previstos no n.º 4 do artigo 340º do C.P.P, os requerimentos de prova são indeferidos se for notório que as provas requeridas já podiam ter sido juntas com a acusação ou a contestação, exceto se o Tribunal entender que são indispensáveis para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
No caso concreto, atendendo ao objeto deste processo e considerando a prova produzida em audiência de julgamento, temos como claro que a visualização do vídeo não é indispensável para a descoberta da verdade e boa decisão da causa mesmo que a sua valoração tivesse suporte legal tal como oportunamente se fundamentará em sede de sentença.
Pelo exposto, indefiro o requerimento em análise.»

Inconformado, o arguido R. A. interpôs recurso deste despacho intercalar, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente Recurso interposto do Douto Despacho de fls. (de~21/02/2022), o qual indeferiu o requerimento de prova do Arguido, consubstanciado na junção de um vídeo (já constante dos autos) e na sua reprodução/visualização em Audiência de Julgamento.
II. Vídeo/Gravação indispensável à demonstração das contradições os factos ocorridos e a versão trazida aos autos pelo assistente/Arguido S. C. e pelas testemunhas I. P. e J. G..
III. A CRP consagra no seu art. 32º as “Garantias do processo criminal”: «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso»;
«todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa»; «o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».
IV. «Em “todas as garantias de defesa” engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas». – Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, Vol. I, página 516.
V. O art. 340º do CPP prescreve que «o Tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa», que «(…) os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova ou o respectivo meio forem legalmente inadmissíveis» e que «os requerimentos de prova são ainda indeferidos se for notório que: a) as provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; b) o meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa; ou c) o requerimento tem finalidade meramente dilatória».
VI. No douto Despacho recorrido o Tribunal indeferiu o requerimento de prova do Arguido com o fundamento de que «considerando a prova produzida em audiência de julgamento, temos como claro que a visualização do vídeo não é indispensável para a descoberta da verdade e boa decisão da causa mesmo que a sua valoração tivesse suporte legal».
VII. Com o devido respeito por diferente entendimento, o art. 340º circunscreve a possibilidade de indeferimento do requerimento de prova à verificação de alguma das circunstâncias aí previstas: inadmissibilidade legal, irrelevância da prova, inadequação do meio de prova, finalidade dilatória do requerimento.
VIII. «(…) O Tribunal ordena a produção da prova tida por: necessária, legalmente admissível, adequada, de obtenção possível ou, pelo menos, não muito duvidosa e consentânea com o normal devir do processo». [Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/07/2011, no qual foi Relator o Sr. Juiz Desembargador Dr. Paulo Fernandes da Silva.]
IX. A gravação cuja visualização se requereu é a reprodução mais fiel do que realmente ocorreu nesse dia 08 de fevereiro de 2018.
X. De acordo com a Jurisprudência mais recente, citada no requerimento ditado para a acta, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, essa gravação não configura meio proibido de prova.
XI. Essa gravação (bem como a sua reprodução em Audiência de Julgamento) é imprescindível à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, é legalmente admissível, obtenível e não protelaria o normal andamento dos autos.
XII. Ao indeferir a junção da gravação (em abono da verdade, já constante a fls. dos autos), bem como a sua visualização em sede de audiência de julgamento, impediu o Tribunal a defesa de produzir prova (legal, obtenível, essencial), a qual permitiria abalar a credibilidade do Assistente S. C. e das Testemunhas por ele arroladas.
XIII. Tal indeferimento não encontra, com o devido respeito, sustentação no art. 340º do CPP.
XIV. É certo que o Julgador, decorridas já várias sessões da Audiência de Julgamento, poderá já ter formado a sua convicção. Todavia, é igualmente certo que essa convicção pode vir a ser abalada e alterada (como a defesa entende que será) com a junção das certidões requeridas.
XV. O Arguido presume-se inocente, sendo à Acusação que compete carrear para os autos os elementos de prova que demonstrem a sua culpabilidade. Porém, o Arguido pode e deve colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade, auxiliando-o.
XVI. O Douto Despacho de que se recorre, ao indeferir um requerimento de produção de prova apresentado pelo Arguido, cerceia as suas garantias de defesa e ofende a CRP.
XVII. Violou o Douto Despacho recorrido as normas dos art. 127º, 164º, 165º e 340º, todos do Código de Processo Penal, e ainda do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.»

O recurso foi admitido, com efeito meramente devolutivo e subida diferida, com o recurso da decisão que puser termo à causa.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu, pugnando pela procedência deste recurso, com fundamento no disposto no artigo 340º do Código e Processo Penal.
*
B. Na mesma sessão da audiência de julgamento realizada em 21 de fevereiro de 2022, foi indeferido o requerimento apresentado pelo arguido R. A. no sentido de ser designada data para que pudesse prestar declarações, por despacho com o seguinte teor:

«No que respeita a esta matéria, prevê o nº. 3 do art.º 334º do C.P.P que, nos casos previstos no nº. 1 e nº. 2, desse mesmo artigo, se o tribunal vier a considerar absolutamente indispensável a presença do arguido, ordena-a, interrompendo ou adiando a audiência, se isso for necessário.
No caso concreto, a audiência de julgamento vem-se realizando em várias sessões na ausência do arguido que, nos termos do disposto pelo nº. 2 da referida norma legal solicitou ou consentiu que a audiência tivesse lugar na sua ausência, sem que para tal tenha requerido ser ouvido ou estar presente, nem se tenha apresentado em nenhuma das sessões em que se desdobrou a audiência de discussão e julgamento. No presente momento em que está encerrada a produção da prova, tal como o tribunal se pronunciou no que respeita ao anterior requerimento, entende-se que a presença desse arguido, em face da prova produzida, não se nos afigura absolutamente indispensável para o esclarecimento dos factos e para a boa decisão da causa, sendo certo que, igualmente, nada foi alegado, relativamente a esse pressuposto legal pelo seu ilustre defensor oficioso. Assim sendo, decide-se indeferir esse requerimento com a fundamentação já expendida.»

Inconformado, o arguido R. A. interpôs também recurso este despacho intercalar, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente Recurso interposto do Douto Despacho de fls. (de 21/02/2022), o qual indeferiu a tomada de declarações ao Arguido.
II. A CRP consagra no seu art. 32º as “Garantias do processo criminal”: «o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso»; «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa»; «o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório».
III. «Em “todas as garantias de defesa” engloba-se indubitavelmente todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Dada a radical desigualdade material de partida entre a acusação (normalmente apoiada no poder institucional do Estado) e a defesa, só a compensação desta, mediante específicas garantias, pode atenuar essa desigualdade de armas». – Cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, Vol. I, página 516.
IV. O art.361º do CPP prescreve que «findas as alegações, o presidente pergunta ao arguido se tem mais alguma coisa a alegar em sua defesa, ouvindo-o em tudo o que declarar a bem dela».
V. Em 02/12/2021, o Arguido/Recorrente requereu a dispensa de comparência nas sessões da Audiência de Julgamento, esclarecendo que a sua ausência se devia a um «convite para trabalhar como soldador na empresa L. C., em Espanha» e que «prestou declarações, procurando contribuir para a descoberta da verdade, pretendendo ainda, se tal se afigurar necessário, ou se o Tribunal reputar de essencial a sua presença, prestar novamente declarações, designadamente, finda a produção de prova». Esse pedido foi deferido.
VI. Em 21/02/2022, finda a produção da prova testemunhal, o Arguido/Recorrente R. F. requereu a sua audição, mais requerendo fosse designada nova data para o efeito. Esse requerimento não mereceu a oposição do Ministério Público, nem do Il. Defensor do co-Arguido.

VII. O Tribunal proferiu Despacho de indeferimento, do seguinte teor:
«No presente momento em que está encerrada a produção da prova, tal como o tribunal se pronunciou no que respeita ao anterior requerimento, entende-se que a presença desse arguido, em face da prova produzida, não se nos afigura absolutamente indispensável para o esclarecimento dos factos e para a boa decisão da causa, sendo certo que, igualmente, nada foi alegado, relativamente a esse pressuposto legal pelo seu ilustre defensor oficioso. Assim sendo, decide-se indeferir esse requerimento com a fundamentação já expendida.»
VIII. Vem o presente Recurso interposto desse Douto Despacho de fls. (Cf. Acta de Audiência de Julgamento de 21/02/2022), o qual indeferiu o requerimento do Arguido, consubstanciado na designação de data para prestar declarações adicionais, finda a produção da prova testemunhal.
IX. Assiste ao Arguido o direito de ser ouvido após as Alegações. Tendo requerido expressamente essa audição, entende o Arguido que não poderia o Tribunal indeferi-la, nomeadamente, considerando que se encontrava a trabalhar em Espanha, depois de um largo período em que esteve desempregado, e que a Audiência de Julgamento foi sucessivamente adiada (pelo menos, seis vezes), pelo que não seria um novo agendamento que protelaria significativamente o andamento dos autos.
X. Ao indeferir a sua audição, obstaculizou o Tribunal a defesa do Arguido/Recorrente. Tal indeferimento não encontra, com o devido respeito, sustentação no CPP, pelo contrário, o art. 361º deste diploma consagra essa possibilidade.
XI. É certo que o Julgador, decorridas já várias sessões da Audiência de Julgamento, poderá já ter formado a sua convicção. Todavia, é igualmente certo que essa convicção pode vir a ser abalada e alterada (como a defesa entende que será) com o contributo do Arguido. Audição que, reitera-se, tem expressa consagração legal no art. 361º do CPP.
XII. O Douto Despacho de que se recorre, ao indeferir o requerimento de audição do Arguido, cerceia as suas garantias de defesa e ofende a CRP.
XIII. O art. 119º do CPP enumera as “nulidades insanáveis”, que «devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento». Entre essas nulidades, na alínea c), prevê-se a «ausência do arguido (…) nos casos em que a lei exigir a respectiva comparência». O Tribunal, ao recusar designar nova data para a sua audição, incorreu na nulidade insanável consagrada na citada alínea c) do art. 119º do CPP. Nulidade que deverá ser declarada, com as legais consequências.
XIV. Devendo, em face do que supra se escreveu, ser revogado o douto Despacho recorrido e substituído por outro que admita a audição do Arguido.
XV. «I - Ocorre uma compressão ou limitação desproporcionada do núcleo essencial dos direitos de audição, de defesa e de contraditório, garantidos no artigo 32º, nºs 1, 2, 5, e 6 da Constituição e no artigo 11º, n.º 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, se o tribunal recusa a designação de nova data para audição do arguido em sede de julgamento, após ter considerado justificada a falta deste na 2.ª data designada para a realização do julgamento, a que este devia comparecer para ser ouvido. II – Assim, ao indeferir-se a pretensão do arguido de ser ouvido em data posterior à agendada, por aquele estar impossibilitado de a esta comparecer, foi cometida a nulidade insanável prevista na al. c) do artigo 119.º do CPP.». – Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 22/11/2018, no qual foi Relatora a Exma. Sra. Juíza Desembargadora Dra. Laura Maurício.
XVI. O Douto Despacho de que se recorre, ao indeferir o requerimento de apresentado pelo Arguido, no qual este requer a sua audição, cerceia as suas garantias de defesa e ofende a CRP.
XVII. Violou o Douto Despacho recorrido as normas dos art. 61º, 119º, 164º, 332º, 333º, 334º e 361º, todos do Código de Processo Penal, e ainda do art. 32º da Constituição da República Portuguesa.»

O recurso foi admitido, com efeito meramente devolutivo e subida diferida, com o recurso da decisão que puser termo à causa.
A Digna Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido respondeu, pugnando pela procedência deste recurso.
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C. Posteriormente, terminado o julgamento a que foram submetidos os arguidos S. C., A. C. e R. A., foi proferida sentença, lida e depositada em 11 de março de 2022, com o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, decido julgar procedente a acusação formulada pelo Ministério Público e, consequentemente:
1- Condeno S. C. pela prática, em autoria material, de um crime de coação agravada, na sua forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 154º nº 1 e 155º nº 1 alínea a), todos do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 dias de multa, à taxa diária de €7,00, perfazendo a quantia de €630,00 (seiscentos e tinta euros).
2- Condeno A. C. pela prática, em coautoria, de um crime de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º nº 1 do Código Penal, na pena de 150 dias de multa, à taxa diária de €5,50, perfazendo €825,00 (oitocentos e vinte e cinco euros);
3- Condeno R. A. pela prática, em coautoria, de um crime de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º nº 1 do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €5,50, perfazendo €1100,00 (mil e cem euros);
4- Condeno S. C. a pagar a J. P. a indemnização para ressarcimento dos danos não patrimoniais, com o valor de €650,00 (seiscentos e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora vencidos após a prolação desta sentença, calculados à taxa supletiva legal prevista para as dívidas civis (4%).
5- Condeno S. C., A. C. e R. A. nas custas criminais, taxa de justiça e encargos, fixando-se a taxa de justiça individual em 2 UC, de acordo com a Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Judiciais, para os “Processos comuns singulares, com condenação em 1ª instância”, nos termos previstos no nº. 9, do artigo 8º, do referido Regulamento e artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal.
6- Absolvo S. C. do demais peticionado pelo demandante civil J. P..
7- As custas do pedido de indemnização civil serão suportadas na proporção dos decaimentos, nos termos previstos no artigo 527º nº 1 e nº 2 do Código de Processo Civil ex vi artigo 523º do Código de Processo Penal.
Notifique.
Deposite.»

Inconformado, o arguido R. A. interpôs recurso da sentença, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«I. Vem o presente Recurso interposto da Douta Sentença, a qual condenou o Arguido/Recorrente pela prática “de um crime de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º nº 1 do Código Penal, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de €5,50, perfazendo €1100,00 (mil e cem euros).
II. Declara o Arguido que mantém interesse nos recursos interpostos dos Doutos Despachos de fls. da sessão de audiência de julgamento do dia 21/02/2022, com as referências Citius 3528013 e 3529382 (Art. 412º, nº5, CPP).
III. Entende o Arguido/Recorrente que a Douta Sentença padece de Erro de Julgamento, porquanto os factos incluídos nos Pontos 11. a 20., em face da prova produzida, deveriam ter sido considerados não provados.
IV. A prova produzida em audiência de julgamento, impunha decisão diversa da constante da Douta Sentença Recorrida, como se procurará demonstrar.
V. As declarações do arguido R. F., na perspectiva da defesa, foram espontâneas, coerentes e devem merecer toda a credibilidade.
Note-se que ambos os Arguidos decidiram prestar declarações e, assim, contribuir para a descoberta da verdade. E são claros quando afirmam que o R. F. apenas exerceu legítima defesa sobre o S. C., em resposta ao murro que este lhe deu. (Cf. transcrição dos depoimentos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas).
VI. Tivesse a gravação dos sucessos sido admitida e visualizada (neste concernente, aguarda-se a Douta Decisão do recurso oportunamente interposto, o qual subirá com este), e não resultariam dúvidas de que o Arguido S. C. agrediu o Arguido R. A. e de este se defendeu…
VII. Também no mesmo sentido, de que o Arguido R. A. se defendeu, as declarações do ofendido/assistente J. P. que, apesar de não ter visto o murro do R. A. ao S. C. (porque já estava em queda e em posição que não o permitia ver), é categórico quando afirma que o S. C. agrediu o R. A. com um murro na cabeça, julgando até que esse murro era dirigido a si. (Cf. transcrição do depoimento, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
VIII. As declarações do Arguido S. C., por seu lado, são contraditórias, incoerentes, não tendo clarificado se levou primeiro um murro ou um pontapé. Aliás, não sabendo sequer se levou um pontapé, afirmando "foi o que lhe disseram" [sic]… Essas declarações não são mais do que uma tentativa de vitimização, eivadas de inverdades, devendo ser, por essa razão, desconsideradas. (Cf. transcrição do depoimento, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
IX. O depoimento da Testemunha I. P., não merece qualquer credibilidade, pelas razões que sucintamente se exporão. Esta Testemunha menciona que os factos foram praticados no Verão, quando, na verdade, datam do dia 8 de Fevereiro. Diz perentoriamente que ocorreram de tarde e eles ocorreram às 10h00 da manhã.
X. Acrescenta essa Testemunha que o Arguido A. C. agarrou, agrediu e empurrou o Arguido S. C. e que o Arguido R. F. lhe deu pontapés na cabeça. Porém, compulsados todas as declarações, constata-se que ninguém relatou os factos desta maneira, nem mesmo o aqui arguido e ofendido S. C.. (Cf. transcrição do depoimento, que aqui se dá por integralmente reproduzida).
XI. A verdade dos factos, no que aqui importa é a seguinte: o J. P. foi à quinta da Aveleira com dois homens para o ajudarem a retirar umas pedras de uma mina de água. Lá chegados, foram recebidos em gritos e com agressões por parte do S. C., que deu um murro na cabeça ao Arguido R. A.. Este, obviamente, defendeu-se.
(Cf. transcrição dos depoimentos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas).
XII. Salienta-se que o arguido R. A. agiu em legítima defesa e apenas ripostou na sequência uma agressão perpetrada pelo Arguido S. C..
A maioria das declarações, seja de Testemunhas, seja dos próprios Arguidos, de forma clara, confirmam o murro do Arguido S. C. ao Arguido R. A. e a reacção/defesa imediata deste. (Cf. transcrição dos depoimentos, que aqui se dão por integralmente reproduzidas).
XIII. As declarações do Arguido S. C., nas quais menciona que não agrediu ninguém, quando sabe que existe uma gravação que as infirma, são bem demonstrativas da sua postura de obstaculização da descoberta da verdade material. As declarações da Testemunha I. P. não deverão sequer ser consideradas, uma vez que padece de incongruências e falhas demasiado graves. Incongruências e inconsistências que abalam a credibilidade das Testemunhas nas quais o Tribunal sustentou a sua Decisão.
XIV. De tudo o narrado, resulta que o Tribunal não poderia ter dado como provados os factos constantes de 11.a 20. Esta condenação é, na perspectiva da Arguido, incompreensível.
XV. A actuação do Arguido foi em legítima defesa, na sequência de uma agressão do Arguido S. C.. Estão preenchidos todos os pressupostos dessa causa de justificação. A agressão ao Arguido R. A. por parte do Arguido S. C. foi actual e ilícita (foi até gravada!). Os meios de defesa utilizados pelo Arguido R. A. foram idóneos, os menos gravosos, adequados e proporcionais à situação concreta.
XVI. Analisada conjugadamente toda a prova, admitindo-se o recurso respeitante à gravação, devem os aludidos factos (de 11. a 20.) ser considerados não provados. Devendo o Arguido ser absolvido da prática do crime de ofensa à integridade física pelo foi condenado, em face da exclusão da ilicitude, decorrente da sua actuação em legítima defesa.

Sem conceder,
XVII. Considera o Arguido que em face dos factos provados (após a requerida reapreciação da prova), a pena que lhe foi aplicada é demasiado excessiva e, em consequência, violadora da Lei.
XVIII. A pena aplicada não reflecte adequadamente os factos que depõem contra e a favor do Recorrente, designadamente os respeitantes à legítima defesa (eventualmente, excesso de legítima defesa).
XIX. Na eventualidade de se considerar que o Arguido agiu com excesso de legítima defesa (hipótese que se considera apenas por cautela de patrocínio), deverá a pena ser especialmente atenuada, tal como dispõe o art. 33º do CP. Devendo a pena aplicada ser reformulada, de acordo com os critérios da alínea c) do art. 73º do CP (pena de multa de dez a duzentos e quarenta dias).
XX. Condenando-se o Arguido numa pena não superior a 90 (noventa) dias de multa, à taxa fixada de €5,50.
XXI. Violou a Douta Sentença Recorrida as normas dos art. 31º, 32º, 33º, 47º, 71º, 73º, 143º, todos do Código Penal.

Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Ex.ªs, deve o presente recurso ser admitido, julgado procedente, e, em consequência, ser a Douta Sentença Recorrida ser revogada e substituída por Douta Decisão que:

1. Reapreciando a prova produzida, considere não provados os factos constantes dos artigos 11. a 20.;
2. Absolva o Arguido R. F. do crime pelo qual foi condenado;
Assim não se entendendo, subsidiariamente, 3. Reformulando a pena aplicada, de acordo com os art. 33º e 73º, ambos do CP, condene o Arguido numa pena não superior a noventa dias, à taxa diária de cinco euros e cinquenta cêntimos.»

O recurso da sentença foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito adequados.
Com este recurso tendo subido os dois recursos intercalares supra mencionados em A. e B.
A Digna Magistrada do Ministério Público, sem prejuízo da posição assumida a respeito dos recursos intercalares, pronunciou-se pela improcedência do recurso da sentença.
*
Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador Geral-adjunto emitiu douto e fundamentado parecer, no sentido que os recursos do arguido não deverão obter provimento, à exceção do recurso intercalar interposto sobre o despacho que indeferiu a sua audição.

Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na sequência do que o arguido R. A. veio responder, reafirmando o alegado nos seus recursos.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
- Questões a decidir -

A. No primeiro recurso intercalar, interposto do despacho proferido na sessão da audiência e 21.02.2022, que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido R. A. para visualização em audiência de julgamento de um vídeo alegadamente referente aos factos ocorridos a 8 de fevereiro de 2018:
- Saber se a diligência requerida era essencial à descoberta da verdade e consequências do respetivo indeferimento.

B. No segundo recurso intercalar, interposto do despacho proferido na sessão da audiência e 21.02.2022, que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido R. A. no sentido de ser designada data para que pudesse prestar declarações:
Saber se era legalmente admissível o indeferimento da tomada de declarações ao arguido.

C. Recurso da sentença:

- impugnação da decisão sobre determinados a matéria de facto provada, por erro de julgamento;
- medida concreta da pena.
*
APRECIAÇÃO DOS RECURSOS

Por uma questão de precedência lógica, começaremos pela apreciação do segundo recurso intercalar, interposto do despacho proferido na sessão da audiência e 21.02.2022, que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido R. A. no sentido de ser designada data para que pudesse prestar declarações.

Na sessão de julgamento do dia 21.02.2022, finda a produção da prova, o defensor do arguido R. A. – que não se encontrava presente por ter sido autorizada a realização da audiência na sua ausência, ao abrigo do nº 2 do art.º 334º – requereu a audição desse arguido, em data a designar, o que foi indeferido pelo Tribunal, com fundamento na circunstância de o arguido ter solicitado que a audiência tivesse lugar na sua ausência, e que, em face da prova produzida, a sua presença não se afigurava «absolutamente indispensável para o esclarecimento dos factos e para a boa decisão da causa».
É contra este despacho que o recorrente se insurge, defendendo, no essencial, que o direito do arguido prestar declarações em audiência está consagrado no âmbito das garantias do processo criminal elencadas na Constituição da República Portuguesa e, ao recusar designar nova data para esse efeito, o Tribunal violou o disposto nos artigos 61.º, 119.º, 164.º, 332.º, 333.º, 334.º e 361.º do Código de Processo Penal e artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, incorrendo na nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea c) do Código de Processo Penal.
Vejamos.
A garantia de um processo penal equitativo, no âmbito do qual seja assegurada a possibilidade efetiva do exercício do direito de defesa, encontra-se entre nós consagrada ao mais alto nível da hierarquia legal, nos artigos 20.º, n.º 4, e 32.º, nºs 1 e 5, ambos da Constituição da República Portuguesa; assim como no artigo 10.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (2).
Uma das materializações de tais garantias é precisamente o direito do arguido estar presente a todos os atos processuais que lhe digam respeito, nos termos do artigo 61.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal; no qual se insere o direito de prestar declarações em qualquer momento da audiência de julgamento, como prevê o artigo 343.º, nº 1, igualmente do Código de Processo Penal (e em especial, no início e no final - artigos 341.º, alínea a) e 361.º, do mesmo diploma legal).
A regra é, pois, a da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento (artigo 332.º, n.º 1 do Código de Processo Penal); tendo a dispensa da sua presença sempre um caráter excecional, com vista a estabelecer uma concordância prática entre as garantias de defesa com a realização da justiça penal através dos Tribunais.

No caso em apreço, a audiência de julgamento encontrava-se a decorrer na ausência do arguido R. A., ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 334.º do Código de Processo Penal (cf. despacho de 09.12.2021, com a referência citius 47872728), como aliás o próprio havia requerido com fundamento no exercício de atividade profissional em Espanha (cf. requerimento de 02.12.2021, com a referência citius 3391213).
Tal situação processual configura um caso especial de realização da audiência na ausência do arguido, e em que, por iniciativa do Tribunal, a sua presença só pode ser ordenada se vier a ser considerada indispensável (cf. nº 2 do artigo 334.º do Código de Processo Penal).
Contudo, mesmo nestas situações, o arguido mantém sempre o seu direito de intervir em qualquer momento da audiência, se e quando o entender, bastando para tal a ela comparecer ou comunicar validamente e em tempo essa sua pretensão, que não precisa sequer de justificar. O que é, aliás, um direito irrenunciável, (o arguido pode requerer ao Tribunal que a audiência se realize na sua ausência, mas mesmo que tal seja autorizado, não pode renunciar ao direito de estar presente na audiência e de nela prestar declarações, caso entretanto venha a alterar a sua posição sobre o assunto).
Foi o que aconteceu nos autos, em que, no decurso da audiência de julgamento, mais precisamente no final da produção de prova e ainda antes das alegações, o defensor do arguido R. A. (que o representava para todos os efeitos possíveis, como estabelece nestas situações o nº 4 do artigo 334.º do Código de Processo Penal), transmitiu ao Tribunal a vontade do arguido prestar declarações, para o que naturalmente requereu a marcação de nova sessão para o efeito, uma vez que aquele não se encontrava ali presente.
Esta pretensão, tempestiva e formulada por quem naquele ato representava o arguido para todos os efeitos possíveis, mais não é do que o exercício do direito à audição pessoal, que integra o conjunto de direitos que constituem o núcleo fundamental e irredutível dos direitos de defesa do arguido em processo penal, cujo modo de exercício só ao próprio cabe definir.
Neste contexto processual, o despacho recorrido, de indeferimento da audição pessoal do arguido R. A., está ferido de nulidade insanável, nos termos da al. c) do artigo 119.º do Código de Processo Penal, que como tal qualifica a ausência do arguido nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
Por conseguinte, nos termos do artigo 122.º, n.º 1, do mesmo diploma, importa declarar essa nulidade (3), que torna inválida a audiência de julgamento a partir do momento em que, na sessão de 21.02.2022 foi indeferida a requerida audição pessoal do arguido R. A., bem os atos que dela dependem, nos quais se inclui a prolação da sentença.
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Fica em consequência prejudicada:

- a apreciação do primeiro recurso intercalar, interposto do despacho proferido na sessão da audiência de julgamento de 21.02.2022, que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido R. A. para junção e visualização em audiência de um vídeo era alegadamente referente aos factos ocorridos a 8 de fevereiro de 2018.
É que o indeferimento dessa diligência de prova configuraria sempre, e apenas, uma nulidade processual relativa (sanável) prevista no artigo 120.º, nº2, alínea d), do Código de Processo Penal (“…omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade…»), a arguir «antes que o ato esteja terminado» (artigo 120º, n.º3, al. a)), que servirá de eventual fundamento de recurso (cf. artigo 410º, n.º3 do Código de Processo Penal) (4).
Ora, por força da invalidação da audiência de julgamento a partir do momento em que, na sessão de 21.02.2022 foi indeferida a requerida audição pessoal do arguido R. A. (já decidida supra), não se encontra ainda terminado o ato em que a diligência de prova em causa foi requerida, o que torna prematura a apreciação do respetivo recurso.

- Fica igualmente prejudicada a apreciação do recurso da sentença, que foi inclusive declarada inválida, em consequência da nulidade insanável.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido R. A. do despacho proferido na sessão da audiência e 21.02.2022, que indeferiu o requerimento apresentado no sentido da sua audição pessoal, declarando a verificação da nulidade insanável do artigo 119.º, al. c) do Código de Processo Penal, que torna inválida a audiência de julgamento a partir do momento em que, na sessão de 21.02.2022 foi proferido aquele despacho, bem os atos que dela dependem, nos quais se inclui a prolação da sentença.
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Fica em consequência prejudicada:
-a apreciação do primeiro recurso intercalar, interposto do despacho proferido na sessão da audiência de julgamento de 21.02.2022, que indeferiu o requerimento apresentado pelo arguido R. A. para junção e visualização em audiência de um vídeo era alegadamente referente aos factos ocorridos a 8 de fevereiro de 2018.
- a apreciação do recurso da sentença.
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Sem tributação.
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Guimarães, 7 de novembro de 2022
(Revisto pela relatora)

Fátima Furtado (Relatora)
Armando Azevedo (1º Adjunto)
Cândida Martinho (2ª Adjunta)



1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Que também é direito interno, por força do artigo 8º da Constituição da República.
3. Que foi arguida pelo recorrente, mas pode ser oficiosamente declarada em qualquer fase do procedimento, conforme disposto no n.º 1 do artigo 120.º do Código de Processo Penal.
4. Neste sentido, cf., entre outros, o acórdão do TRG de 27.04.2009, proferido no Proc. nº 12/03.2TAFAF.G1, relatado por Cruz Bucho, disponível em www.dgsi.pt/jtrg.