Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
979/16.0T8VRL.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: ACIDENTE IN ITINERE
CARACTERIZAÇÃO
LOCAL DO ACIDENTE
SEGURO GENÉRICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/10/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I. Para que um acidente de trabalho in itinere esteja coberto pelo seguro genérico para trabalhadores agrícolas é necessário que se prove que o trabalhador se sinistrou no trajecto, de ida ou de regresso, para as propriedades de risco seguras.
II. Ou que, embora noutro local, estava em execução de serviços destinados a uma das propriedades de risco seguras.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

A beneficiária M. G. intentou acção especial emergente de acidente de trabalho contra X Seguros - Companhia de Seguros de Ramos reais, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe : i) uma pensão anual e vitalícia de €5.670, correspondente a 30% da retribuição anual do sinistrado, devida desde 07/06/2016, e de €7.560, correspondente a 40% da referida retribuição anual, a partir da idade de reforma por velhice ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho; ii)subsídio por morte de €5.533,70; iii) subsídio por despesas de funeral de €1.844,57; e iv) indemnização por despesas de transporte/deslocação de €80; v) os inerentes juros moratórios.
CAUSA DE PEDIR: No dia 06/06/2016, cerca das 8h, em Murça, quando o sinistrado (falecido) se encontrava a desempenhar a actividade de trabalhador agrícola/rural, sob a direcção, fiscalização e orientação da sua empregadora J. G., sua filha, ao serviço e por conta dela, mais concretamente quando conduzia num caminho rural/agrícola um tractor agrícola, a fim de pulverizar uma vinha, esse veículo capotou, tendo o sinistrado ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões que lhe determinaram a morte. Auferia 45€ nos dias de trabalho efectivo. A referida empregadora, sua filha, tinha a respectiva responsabilidade infortunístico-laboral transferida para a ré seguradora através de contrato de seguro de agricultura, genérico titulado pela apólice nº 01354034, com base numa retribuição diária para trabalhadores de €45, pelo que a retribuição anual é de €18.900. A Autora é a única beneficiária do sinistrado na qualidade de cônjuge.
CONTESTAÇÃO DA RÉ SEGURADORA: aceita que o empregador havia transferido a sua responsabilidade infortunística, pelo salário anual de € 16.425,00; não aceita a caracterização do sinistro como sendo de trabalho, porquanto o falecido, J. A., não se encontrava a sulfatar as vinhas na propriedade da tomadora do seguro, denominada de " Vale ...", encontrando-se antes a prestar um favor a A. B., a título gratuito, indo com o seu trator aplicar sulfato numa vinha deste; o acidente não ocorreu em nenhum dos locais de risco, propriedades identificadas na proposta e na apólice, pelo que também por essa via não lhe pode ser assacada responsabilidade; acresce a circunstância do sinistrado ser pai da sua entidade empregadora/tomadora do seguro (... Agricultora) e este elemento não se encontrar expresso no contrato de seguro celebrado.
Fazendo uso do disposto no artigo 127º1/, CPT, foi proferido despacho mandando intervir na causa e citar a entidade empregadora, J. G., também filha da autora e do sinistrado, face à disparidade entre o valor da retribuição alegado e o aceite pela ré seguradora.
A empregadora contestou (articulado admitido após recurso do despacho que o considerou extemporâneo, e que julgou procedente a apelação). Em suma, alega desconhecer as circunstâncias em que ocorreu o acidente. Na altura, o sinistrado encontrava-se a desempenhar a actividade laboral de que se encontrava incumbido numa propriedade pertencente à demandada, denominada “Vale ...”. Aceita que o sinistrado, seu falecido pai, prestava a sua actividade nas suas propriedades agrícolas, auferindo a retribuição de 45,00 € diários por cada dia efectivo de trabalho, durante todo o ano. Essa actividade consista em sulfatar as vinhas. Conclui que devem ser os pedidos julgados de acordo com a prova a produzir quanto aos factos essenciais que constituem a causa de pedir, tal como estão descritos na petição inicial.
Elaborou-se despacho saneador onde se fixou a matéria assente e elaborou base instrutória.
Procedeu-se a julgamento e proferiu-se sentença.
DECISÃO RECORRIDA (DISPOSITIVO): decidiu-se do seguinte modo:
“Tudo visto e nos termos expostos, julga-se a presente acção parcialmente procedente por provada e em consequência, absolve-se a R. seguradora dos pedidos formulados pela A. e condena-se a R. empregadora a pagar à demandante as seguintes quantias:
- pensão anual e vitalícia no montante de € 5.670,00 (cinco mil seiscentos e setenta euros) devida desde 07/06/2016 (equivalente a 30% da retribuição anual auferida pelo sinistrado de € 18.900,00) e no valor de € 7.560,00 (sete mil quinhentos e sessenta euros) devida à demandante a partir da sua reforma por idade ou pela verificação de doença crónica que afecte sensivelmente a sua capacidade para o trabalho.
- subsídio por morte, previsto no art. 65º nºs 1 e 2 da LAT no valor equivalente a 1,1 IAS (de € 419,22 à data do óbito do sinistrado) e que ascende a € 5.533,70 (cinco mil quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos).
- subsídio por funeral que ascende a € 1.844,57 (mil oitocentos e quarenta e quatro euros e cinquenta e sete cêntimos), nos termos do disposto no art. 66º do mesmo diploma legal. Sobre estas quantias acrescem os respectivos juros de mora nos termos do art. 135º do C.P.T.
- a título de deslocações obrigatórias a este Tribunal, o valor de € 80,00 (oitenta euros), pelo qual a R. empregadora é igualmente responsável e sobre os quais incidem igualmente juros de mora – cfr. art. 135º do C.P.T. – desde a realização do auto de não conciliação (cfr. fls. 134) – 18/05/2018.
Custas pela R. entidade empregadora, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que lhe foi concedido.
Fixa-se aos autos o valor de € 84.746,04 – cfr. art. 120º do C.P.T.”

RECURSO – INTERPOSTO PELA RÉ EMPREGADORA J. G.: (i) suscita a nulidade da sentença e (ii) impugna a decisão de facto e de direito em consequência dessa alteração.
CONCLUSÕES:

1ª Entende a Recorrente que existe uma manifesta contradição entre os fundamentos de facto e a douta decisão.
2ª E tal contradição de harmonia com o preceituado na alínea c) do nº 1 do art. 615º do CPC, constitui causa de nulidade da Sentença.
3ª No ponto 5 dos Factos Assentes, consta que “no dia 06/06/2016, cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob a fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho rural um tractor agrícola de matrícula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou, tendo o sinistrado ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões”.
4ª Desta factualidade assente resulta que o sinistro ocorreu num caminho rural.
5ª Na motivação de facto da douta Sentença refere-se, e passamos a citar, “(…) que o sinistro ocorreu no prédio denominado “Vale ...”.
6ª Para de seguida se concluir na motivação de Direito “O que sucede no caso em apreço é que o prédio Vale ... em que se verificou o sinistro em análise, não consta do mapa de inventário anexo ao contrato de seguro em causa” e, portanto, não estando incluído nos locais de risco abrangidos pela apólice, tal determinou a exclusão da respectiva cobertura e a absolvição da Ré Seguradora.
7ª Ora, se da matéria de facto assente resulta que o sinistro ocorreu num caminho rural, não pode depois o douto Tribunal “a quo”, em sede de fundamentação, afirmar que o acidente ocorreu num prédio rústico denominado “Vale ...”.
8ª Pelo que existe uma manifesta contradição entre os fundamentos de facto e a douta decisão, sendo a mesma nula, nos termos do disposto na alínea c) do nº1 do artigo 615º do CPC, o que se invoca para os devidos e legais efeitos.
9ª Por outro lado, de acordo com a factualidade assente, temos de concluir que ocorreu um erro de julgamento porquanto in casu, ocorreu um acidente de trabalho uma vez que se verificou no local e no tempo de trabalho, quando o trabalhador J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob direcção e fiscalização da sua entidade empregadora, no seu trajecto habitual, ou seja, foi um acidente in itenere,
10ª E tendo a ora recorrente na qualidade de entidade patronal transferido a sua responsabilidade civil infortunística para a Ré Seguradora através de contrato de seguro de agricultura genérico titulado pela apólice com o nº01354034 e abrangendo esta os acidentes ocorridos no trajecto normal e no período habitual de trabalho como sucede neste caso, deverá a ora recorrente ser absolvida dos pedidos e ser a demandada Seguradora condenada nos pedidos formulados pela autora, o que também se requer.
Termos em que, atento o supra exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente, com as legais consequências.”

CONTRA-ALEGAÇÕES DA RÉ SEGURADORA - propugna pela improcedência do recurso e manutenção da decisão recorrida. Alega que não existe a contradição invocada. Que se provou que o acidente ocorreu no prédio rústico Vale ..., não incluído no contrato de seguro. Caso o tribunal entenda ser de suprir a nulidade deve ficar a constar do ponto 5 dos factos provados, a seguinte redação:
“No dia 06/06/2016 cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua atividade, por conta e sob a fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho rural denominado Vale ..., um tractor agrícola de matricula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou, tendo o sinistrado ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões”,
Independentemente desta clarificação, a decisão final será a mesma, sendo de manter a decisão recorrida, porque o local de sinistro não se encontra abrangido pelo seguro agrícola genérico, não constando do inventário das propriedades descritas.
CONTRA-ALEGAÇÕES DA AUTORA– adere, integralmente, ao teor das conclusões expendidas pela recorrente empregadora no respectivo recurso, devendo ser-lhe dado provimento. Ocorreu um acidente de trabalho, não no local de trabalho, mas sim no seu percurso (in itinere). Que dos factos provados resulta que o acidente foi num caminho rural, não se percebendo a alusão que se faz na sentença à propriedade “Vale ...”. A nulidade deve ser suprida com prolação de nova sentença, devendo a recorrida seguradora ser condenada a pagar integralmente as quantias elencadas na sentença, com a consequente absolvição da recorrente empregadora dos pedidos formulados na petição inicial.

DESPACHO DE SUPRIMENTO DE NULIDADE – 617º/2, CPC (foi proferido em 12-05-2010, o seguinte despacho):
No seu requerimento de interposição de recurso veio a aqui demandada entidade empregadora invocar a nulidade da decisão final, por em seu entender existir uma contradição insanável entre a factualidade dada como assente e a decisão proferida.
Esta contradição decorreria da circunstância de se ter dado como assente que o acidente ocorreu quando o sinistrado conduzia um tractor num caminho rural. Ora, o que se constatou, após a discussão da causa é que este caminho agrícola se inseria no prédio “Vale ...”, tal como decorre de todos os elementos probatórios consignados na motivação de factos da mesma decisão final.
Consente-se, no entanto, que a redacção dada à matéria de facto relativa ao local de ocorrência do sinistro terá ficado pouco clara neste ponto, dado que o Tribunal o deveria ter mencionado expressamente não só na motivação de direito, mas também no elenco dos factos assentes.
Assim, ao abrigo do disposto no art. 617º do C.P.C. entende-se ser de suprir esta deficiência consignando-se que a redacção a dar ao ponto 5º da factualidade assente ficará do seguinte modo: No dia 06/06/2016 cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob a fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho rural inserido no prédio “Vale ...”, um tractor agrícola de matrícula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou, tendo o sinistrado ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões.”.”

A EMPREGADORA RÉ J. G. ALARGOU O ÂMBITO DE RECURSO – 617º/3, CPC: em suma, impugna a nova redacção dado ao ponto 5 da matéria provada na sequência de despacho proferido a suprir a nulidade. Deve ficar provado que o sinistro ocorreu num caminho público rural sendo o acidente in itinere.
Acaba as alegações dizendo “Deste modo, abrangendo a apólice de seguro nº01354034 os acidentes ocorridos no trajecto normal e no período habitual de trabalho deverá, consequentemente, ser a demandada Seguradora condenada nos pedidos formulados pela Autora para quem a entidade patronal tinha transferido a sua responsabilidade infortunística através de contrato de seguro genérico, o que se requer”

São as seguintes as CONCLUSÕES:

1ª Por douto Despacho, o Tribunal “a quo” deu nova redacção ao ponto 5º da factualidade dada como provada que ficou redigido do seguinte modo:
“No dia 06/06/2016 cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho rural inserido no prédio “Vale ...”, um tractor agrícola de matrícula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou, tendo o sinistrado ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões” – negrito nosso.
2ª Salvo o devido respeito que é muito, não pode a recorrente concordar com parte do teor da nova redacção dada ao ponto 5º dos factos assente na parte em que se refere “(…) num caminho rural inserido no prédio “Vale ...” (…)”.
3ª Isto porque, tal caminho rural não está inserido no prédio rústico denominado “Vale ...”.
4ª Pelo contrário, tal caminho rural é um caminho público, senão vejamos:
5ª Da prova documental junta aos autos e não impugnada, mormente do auto de notícia elaborado pela GNR consta da página 3 (fls.35 a 38 dos autos), último parágrafo que “O acidente ter-se-á dado quando a vítima conduzia o mesmo num caminho agrícola de terra batida com cerca de 2.10 metros de largura (…)”.
6ª E, na página 4, 5º parágrafo do mesmo auto relata-se que “foi anexado ao presente auto um mapa de localização do local dos factos bem como o relatório fotográfico e na folha de suporte fotográfico nº1 consta a localização exacta onde ocorreu o acidente num caminho de acesso, público a vários prédios rústicos existentes naquele local denominado “Vale ...”.
7ª A testemunha arrolada pela Ré Seguradora, T. N.…….refere, em suma no seu depoimento o seguinte: 02m:37s: Com a J. G. avaliei o tractor que esteve envolvido neste acidente, bem como o reservatório de água que estava acoplado ao tractor, vi o local do acidente e procedi às medições da via onde ocorreu o acidente e ao registo fotográfico do local do acidente”.
8ª Acrescentando de seguida tal testemunha ao minuto 07:16s: “O acidente ocorreu a caminho da manga, um caminho público a caminho de uma manga de água pública que serve os vários proprietários daquela região”.
9ª A testemunha comum, A. B.….
…Resposta: … Sei, o que é que aconteceu nesse dia? Aconteceu que eu e mais duas pessoas iam trabalhar para mim, eram três no total e íamos trabalhar para um local que é a Serra e ao passarmos pelo caminho acima que dava acesso ao Vale ..., reparamos o tractor virado com as quatro rodas para cima e fomos ao local dele.
10ª A co-ré J. G.….,
Resposta: 09:00: Há lá um sítio onde as pessoas costumam ir buscar a água, perto, bastante perto, da minha propriedade, geralmente….É público, costumam ir lá as pessoas.
11ª Face à prova documental e testemunhal, necessário se torna concluir que o acidente ocorreu num caminho público.
12ª Caminho público de acesso a vários prédios rústicos ali existentes naquele local que é denominado “Vale ...”.
13ª Pelo que nesta matéria, se impõe – e imporá ao Venerando Tribunal – ter dado como provado no ponto 5º dos factos assente que: “(…) o acidente ocorreu num caminho público (…)” – o que se requer.
14ª Ficando a constar do mesmo ponto 5º a seguinte redacção: “No dia 06/06/2016 cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho público rural um tractor agrícola de matrícula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões” – o que se requer.
15ª Deste facto provado – com a redacção supra requerida deriva a imediata consideração que tal acidente não ocorreu, contudo, no local de trabalho, nem tão pouco no prédio Vale ..., tratando-se antes de um acidente in itenere – conforme dispõe o artigo 9º da Lei nº98/2009, de 04/09 – e abrangendo a apólice de seguro os acidentes ocorridos no trajecto normal e no período habitual de trabalho, deverá, consequentemente, ser a demandada, Ré Seguradora condenada nos pedidos formulados pela Autora.
16ª O que também se requer.

Termos em que V.Exªs concedendo provimento ao recurso e alterando a redacção do ponto 5º dos Factos Assentes nos termos pugnados nas presentes alegações farão inteira Justiça.”- fim.
RESPOSTAS AO ALARGAMENTO DO OBJECTO DO RECURSO- não foram apresentadas.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: a apelação deverá improceder dado que o trabalho executado - e a executar não fora o acidente - desenvolvia-se em prédio não abrangido pelo seguro agrícola genérico.
Não houve resposta ao parecer.
Foram colhidos os vistos dos adjuntos e o recurso foi apreciado em conferência – art.s 657º, 2, 659º, do CPC.

QUESTÃO A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): impugnação da matéria de facto quanto ao ponto 5 na parte referente ao local do sinistro e consequências daí decorrentes, mormente sua abrangência pelo seguro ( a nulidade arguida foi suprida, não sendo assim questão a decidir, conforme infra será mencionado).

I.I FUNDAMENTAÇÃO

A) FACTOS:
Na primeira instância foram julgados provados os seguintes factos :

· Em 2016 o sinistrado J. A., com 59 anos, exercia a actividade de trabalhador agrícola/rural por conta de outrem, auferindo como contrapartida a remuneração de € 45,00/dia.
· A aqui demandada J. G. é filha do sinistrado acima indicado.
· A demandada J. G. tinha a sua responsabilidade infortunística transferida para a R. seguradora através de contrato de seguro (de agricultura genérico) titulado pela apólice nº 01354034, com base numa retribuição diária de € 45,00, num valor anual de, pelo menos, € 16.425,00.
· A demandante é a única beneficiária do sinistrado estando à data do respectivo sinistro casada com o mesmo – cfr. doc. de fls. 111 a 112, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
· “No dia 06/06/2016 cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho público rural um tractor agrícola de matrícula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões” – rectificado em conformidade com o ponto II-B.
· Estas lesões determinaram, directa e necessariamente a morte do indicado sinistrado verificada no próprio dia (cfr. relatório de autópsia de fls. 94 a 97, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido).
· A sua entidade empregadora era igualmente a titular do referido veículo.
· Caso desempenhasse a sua actividade durante todo o ano o sinistrado auferiria a quantia de € 45,00 x 30 dias x 14 meses, equivalente a remuneração anual de € 18.900,00.
· Na proposta inicial relativa ao contrato de seguro celebrado entre as RR. está assinalado que a tomadora pretendeu segurar familiares remunerados., sem contudo os identificar.
· A A. suportou os custos com o funeral do sinistrado no montante de € 2.480,00 – cfr. doc. de fls. 157 cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
· A A. despendeu a quantia de € 80,00 com deslocações obrigatórias ao Tribunal em virtude da pendência dos presentes autos.
· O sinistrado que exercia a sua actividade por conta da sua filha J. G., vivia com a mesma, com a A. sua esposa e com o neto, tendo arrendado todas as suas propriedades à demandada J. G. para que esta se candidatasse como “... Agricultor”.

B) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO

Em sede de recurso, o único ponto controvertido da matéria de facto (parte do ponto 5) é apenas o de saber se o acidente ocorreu quando o sinistrado conduzia um tractor agrícola:

i) ou num caminho público rural, como propõe a recorrente empregadora, acompanhada pela autora que, nas contra-alegações, aderiu a esta formulação;
ii)ou num “caminho rural inserido no prédio “Vale ...” mantendo a redacção do ponto 5 dos factos provados, ou dando-lhe eventualmente outra.

Esta última foi a redação final do ponto 5, ora alvo de impugnação, após despacho de 12-05-2020, suprindo a nulidade da sentença invocada em sede de recurso, a qual, assim, se encontra ultrapassada. Segundo o artigo 617º/2/3, CPC, tendo o juiz a quo suprido a nulidade invocada (2), o recurso passa a ter por objecto a nova decisão e o alargamento que a recorrente lhe atribuiu.

É assim esta a redacção do ponto 5 que está em causa (a negrito a parte impugnada):

“No dia 06/06/2016 cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob a fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho rural inserido no prédio “Vale ...”, um tractor agrícola de matrícula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou, tendo o sinistrado ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões.”.
O tribunal deve alterar a decisão sobre a matéria de facto se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diferente – art. 662º do CPC.
Ora, esse é manifestamente o caso dos autos, porquanto nenhuma das testemunhas ouvidas confirmou que o acidente ocorreu na propriedade particular da ré empregadora denominado de “Vale ...”. Ao invés, as testemunhas, mormente as que estiveram no local, confirmaram que o tractor e o corpo do sinistrado se encontrava num caminho público que dava acesso a um ponto de água, onde muitos da aldeia também se abasteciam. Alvitraram até que provavelmente o sinistrado ali se teria dirigido para se abastecer e depois ir sulfatar.
A confirmação de que o sinistrado e o tractor se encontravam num caminho que não era da propriedade da ré J. G., denominada “Vale ...”, resultou dos depoimentos de:
A. B., que juntamente com outras duas testemunhas, alegadamente deslocando-se para irem trabalhar as suas terras, encontravam o sinistrado caído e o tractor tombado no caminho;
G. J., que acompanhava a outra testemunha e confirmou que a propriedade do Vale ... pertença da ré J. G. ficava perto do sítio onde o tractor “tombou”, mas não era ali;
M. C. que acompanhava as outras duas testemunhas que confirmou que se depararam com o sistrado no caminho e que o “Vale ...” ficava “mais cá para trás”;
J. S. e a esposa D. S. que andavam a trabalhar a cerca de 400m do local do acidente e que, ouvindo vozearia e gritos ao longe, para lá se deslocaram, encontrando o sinistrado num caminho de ida ou vinda para o Vale ..., tratando-se de um caminho onde se vai para a nascente e onde costumam ir buscar água, esclarecendo que a propriedade do Vale ... “é mais à frente do sitio” onde capotou o tractor. Este casal explicou particularmente bem que o Vale ... é toda uma região, mas o “bocado” (leia-se propriedade) da J. G. não era ali no local do acidente, que era caminho de todos para a ”nascente”. A própria ré, J. G., referiu que perto da sua propriedade existia um sítio público para abastecer água;
T. N., técnica superior de higiene e saúde no trabalho, que integrou a equipa de peritagem que presta serviços à ré seguradora, confirmou que o acidente ocorreu num caminho público para ir buscar água numa manga pública que serve vários proprietários da região e que aparentemente seria essa a intenção do sinistrado.
Finalmente, no relatório da autoridade para as condições de trabalho (citius 14-07-2017), consta no item local 7.3.6. tipo de local: “local público”.
Também do auto de notícia a GNR (citius 5-07-2016), resulta que o acidente não ocorreu na propriedade particular da ré J. G. denominada de Vale ..., mas num caminho de terra batida de 2,10 de largura, tendo aliás o tractor galgado o muro do caminho e capotado para um terreno alheio, pertença de C. S..

O ponto 5 passará a ter a seguinte redação, o que se determina ficando a constar em local próprio:
“No dia 06/06/2016 cerca das 08h00 horas em Murça, quando o sinistrado J. A. se encontrava a desempenhar a sua actividade, por conta e sob fiscalização e orientação da sua entidade empregadora J. G., ao conduzir num caminho público rural um tractor agrícola de matrícula EU afim de pulverizar vinha, este veículo capotou ficado debaixo do mesmo e sofrido lesões”

c) MATÉRIA DE DIREITO
A oposição da ré empregadora ao defender a sua absolvição alicerçava-se no entendimento de que a matéria de facto levaria necessariamente à alteração da matéria de direito.
Ora, pese embora a alteração da matéria lhe seja favorável, tal não aproveita à recorrente.
A ré seguradora foi totalmente absolvida do pedido porque se considerou que o acidente de trabalho não se encontra abrangido pelo seguro de acidentes de trabalho celebrado entre as demandadas. O que decorria do facto de ser “… um seguro genérico para trabalhadores agrícolas, em vigor desde 01/04/2013, rege-se pela condição especial 03 prevista na Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores por Conta de Outrem, publicada no DR, II Série de 30/11/1999, a qual determina que este seguro abrange os trabalhadores permanentes ou eventuais, empregues em actividades agrícolas por conta do tomador do seguro, indicando-se no mapa de inventário que faz parte integrante desta apólice as menções relativas ás áreas cultivadas e às culturas predominantes da unidade de exploração agrícola, as retribuições máximas de homens e mulheres, a relação do pessoal permanente se existir e o montante anual das retribuições.”
Continuando a decisão recorrida a explicar que neste tipo de seguro não se indicam em folhas de remunerações os nomes dos trabalhadores, porque a cobertura do contrato abrange aqueles que desenvolvem a actividade nas propriedades agrícolas (locais de risco) do segurado, que devem estar devidamente identificados nas condições particulares. Assim “O risco em vez de ser definido com referência predominantemente às retribuições auferidas pelos trabalhadores, como no seguro a prémio variável, é definido com referência, em especial, à área agricultável…”. Estabelecendo como critério de determinação do risco a área de laboração agrícola.
Fundamentação com a qual se concorda e, aliás, na verdade, nenhuma das partes discorda sobre o regime jurídico deste tipo de seguro.
Concluindo-se seguidamente na decisão recorrida que “... no caso em apreço é que o prédio rústico “Vale ...” em que se verificou o sinistro em análise não consta do mapa de inventário anexo ao contrato de seguro em causa, nem a demandada empregadora logrou demonstrar que este prédio estivesse incluído neste mesmo contrato.” Sendo que competia à autora (facto constitutivo), ou à empregadora (excepção) demonstrar que o acidente ocorreu em lugar de risco transferido para a seguradora
Com o deferimento do recurso da matéria de facto, alterou-se o local do acidente que se provou ter sido num caminho rural público e não na propriedade da ré empregadora do” Vale .... Não obstante, as referidas considerações jurídicas mantêm a sua pertinência. Na verdade, decorre do ponto provado nº 3 que os locais de risco identificados na apólice (doc. 2 da contestação) eram as propriedades de “Soalheira …, Vale de … e Vale da …”. Não se provou que o acidente tenha ocorrido em alguma delas.
Somente em sede de recurso a demandada empregadora veio colocar a tónica de acidente in itinere. Ora, a matéria de facto apurada não suporta tal factualidade, até porque ab initio não se orientou a acção nesse sentido.
Teria de se alegar e provar que aquele era o trajecto de ida ou de regresso para uma das propriedades de risco seguras acima identificados, de acordo com o disposto no artigo 9º/1/a, NLAT (Lei 98/2009, de 4-09).
Ou que o trabalhador estava em serviços determinados ou consentidos pelo empregador e destinados a uma das propriedades de risco seguras.
No caso só se sabe que conduzia um tractor agrícola num caminho rural público ao serviço da ré empregadora, nada mais se tendo apurado. Especulando-se até o que iria fazer, se iria ou não encher o depósito de água do tractor para sulfatar, e qual a propriedade a que o trabalho se destinaria. Ora, tal só prova o acidente de trabalho, mas não a sua cobertura pelo seguro.

Em suma, necessário se torna que, a autora ou a empregadora, provem que a condução do tractor agrícola que capotou e vitimou o trabalhador ocorreu:

(i) ou no local de trabalho stricto sensu, abrangido pelo seguro, ou seja, nos terrenos para o efeito descritos;
(ii) ou que a actividade que justificou a deslocação do autor ao local do sinistro se encontrava abrangido pelo seguro porque iria ser feita nos terrenos para o efeito descritos.

Ora, nenhum destes factos se provou. Aliás, do julgamento, sobressaiu que a propriedade/terreno da ré empregadora mais próxima do local do sinistro era o Vale .... O qual, nos termos supra ditos, não estava abrangida pelo seguro.
Assim sendo, do acervo da matéria provada resulta apenas que ocorreu um acidente ligado à actividade agrícola da ré empregadora, logo um acidente de trabalho, porque o sinistrado na altura conduzia um tractor agrícola no desempenho de tarefas por conta da ré J. G. (... Agricultora e filha do sinistrado). Factualidade esta aceite, em sede de recurso, por todas as partes envolvidas, pelo que está vedado ao tribunal nela imiscuir-se, face ao principio do dispositivo.
Mas, não resultando que o local do sinistro fosse abrangido pelo seguro. Competindo, consequentemente, à demandada empregadora responder pelas prestações infortunísticas, em face da sua não cobertura por seguro – 79º NLAT. Não obstante a autora em sede de recurso (3), aderindo aos termos do recurso da empregadora, querer apenas responsabilizar a seguradora e propugnar pela absolvição da ré empregadora (sua filha). Relembra-se a indisponibilidade destes direitos- 78º NLAT.

III. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º do CPT e 663º do CPC, acorda-se em alterar a matéria de facto nos termos supra ditos, mas sem influência na causa, e em julgar totalmente improcedente o recurso.
Custas a cargo da recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que goza.
Notifique.

10-09-2020

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
2. De contradição entre a fundamentação de facto no ponto 5 provando-se que o local do sinistro seria num caminho rural e a convicção e o direito da decisão, onde se fez alusão a local diferente que seria no prédio denominado “Vale do Carro”.
3. O que de resto já acontecia na petição inicial onde optou por não demandar a empregadora, a qual, não obstante, veio a ser chamada por intervenção da juiz a quo, fazendo uso do disposto no artigo 127º CPT.