Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
505/18.7GASEI.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: ARGUIDO PRESO
NOTIFICAÇÃO DE ACUSAÇÃO
NULIDADE DO ARTº 119ª
C) DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- As obrigações impostas ao arguido por força do disposto no nº 3 do artigo 196º do CPP – obrigação de comparecer, comunicar a alteração do local onde possa ser encontrado - pressupõe necessariamente que o arguido se encontra em liberdade.
II- Por isso, o nº 3 als. b) e c) do artigo 196º do CPP, nunca poderá ser interpretado no sentido de que impenda sobre o arguido a obrigação de comunicar que se encontra preso. Neste sentido discorda-se da posição daqueles que defendem que o arguido preso está obrigado a comunicar a alteração da morada, isto porque o arguido não alterou a sua morada, simplesmente foi preso.
III- A circunstância de o arguido ser posteriormente preso – à ordem dos próprios autos ou à ordem de outro processo, pois que a lei não distingue as duas situações - tem como consequência que o arguido passa a ser notificado, em qualquer caso, através do E.P. onde se encontre, em conformidade com o disposto no artigo 114º, nº 1 do CPP.
IV- Não tendo o arguido sido regularmente notificado da acusação deduzida pelo M.P., nem do despacho que a recebeu e designou data para realização de audiência de julgamento, foi cometida a nulidade do nº 1 al. c) do artigo 119º do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No processo comum singular nº 505/18.7GASEI, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Local Criminal de Viana do Castelo - J2, em que são arguidas M. T. e M. G., ambas com os demais sinais nos autos, por sentença de 21.01.2021, depositada na mesma data, foi decidido o seguinte [transcrição]:

a) Condenar a arguida M. G., pela prática em co-autoria material de um crime de burla, p. p. pelo art. 217.º, n.º 1 do C.Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o montante global de 600,00€ (seiscentos euros);
b) Condenar a arguida M. T., pela prática em co-autoria material de um crime de burla, p. p. pelo art. 217.º, n.º 1 do C.Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o montante global de 600,00€ (seiscentos euros);
c) Deferir o pedido formulado pelo Ministério Público e, nessa conformidade, declara perdido a favor do Estado o valor da vantagem patrimonial obtida pelas arguidas, no montante global 600,00 € (seiscentos euros) e, em consequência, condena as arguidas no pagamento deste montante ao Estado, sem prejuízo dos direitos da ofendida, ao abrigo do disposto no artigo 110.º, n.º 1, aliena b), e n.º 4, do C.Penal;

2. Não se conformando com tal decisão, dela interpôs recurso a arguida M. T., extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões [transcrição]:
A. Os factos apurados não são corroborados por prova fidedigna; sendo que o crime que lhe é imputado não está de todo bem sustentado e carece de fragilidade notória na prova, que se baseia unicamente no descrever da situação vivenciada pela “lesada” que apresentou uma descrição muito ténue e confusa do sucedido, sem consistência no depoimento prestado.
B. O Tribunal de primeira instância aceita, sem qualquer outra prova ou questão, os factos descritos na acusação que não foram demonstrados como verdadeiros, condenando, sem mais a Arguida. – Desconhecendo a sua detenção em Estabelecimento Prisional, não lhe facultando a possibilidade de defesa e apresentação de prova desde o momento da Dedução da Acusação que foi sempre do seu desconhecimento.
C. Ora, a recorrente não se conforma com a prova assumida, quando perante as diversas questões colocadas à lesada (que não se constituiu assistente nem formulou pedido de indemnização), as mesmas foram de resposta pouco consistente, aparentando não saber em concreto ao que estaria a responder; afirmando que “havia instaurado a acção contra desconhecidos sob orientação da gerente do seu banco; afirmando ter acedido ao anúncio via “Google” e não referindo o concreto anúncio no Jornal ...; declarou sempre que nunca falou com mulheres e que falou sempre com um e o mesmo homem a nível telefónico, que pessoalmente nunca esteve com ninguém”.
D. A convicção do Tribunal assenta, com todo o respeito, numa mescla de tentativas por parte do Ministério Público de vir a deduzir uma Contestação em todo ténue e sem factos concretos e devidamente comprováveis, tudo numa base de indícios e probabilidades, tentativas de relação de situações que não são concretizáveis e claras; - existe uma preocupação de construção de “história” mas não há prova produzida suficiente para que se faça demonstrar nexo de causalidade entre os actos e os benefícios ou lesões, não havendo um preenchimento do tipo legal de crime de que vinha acusada a Arguida, sendo “espanado o crime” de modo subtil, tentando com deduções lógicas, e que não passam de deduções, tentar enquadrar e justificar o crime em causa.
E. Toda a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto assenta na probabilidade / possibilidade, uma vez que a Prova produzida, como afirmado na sentença “foi apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, de acordo com o princípio ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal.”
“Diga-se, desde já, que no caso em concreto o tribunal viu-se forçado a recorrer à prova indiciária, aglutinando a pluralidade de dados indiciários credíveis que conduzem a uma ilação que se nos afigura idónea a afastar qualquer dúvida razoável sobre a identidade dos autores dos factos.”
O que não corresponde à verdade, pois há uma dualidade de avaliação e os factos provados parecem colados ad hoc.
F. a Arguida, aqui recorrente estava impossibilitada de comparecer à Audiência de Julgamento, pois encontrava-se e encontra-se, desde 30 de Junho de 2020, detida preventivamente no Estabelecimento Prisional Feminino de ….
G. Ora, assim, a Arguida M. T. não foi notificada; pois à data de 16/11/2020, quando sai a notificação para a sua última morada, para a Audiência de julgamento (nos termos do Art. 313.º e Art. 315.º do CPP), a Arguida se encontrava detida há mais de 4 meses.
H. Aliás quando foi feita a notificação da Acusação (nos termos do art. 64.º n.º 3 / art. 283.º n.º 5 e 287.º - para possibilidade de Abertura de Instrução), - carta enviada a 04/09/2020, estava a Arguida detida mais de 2 meses; não tendo por isso conhecimento da mesma.
I. Apesar de ter sido constituída Arguida, ter sido feito interrogatório e ter prestado TIR na esquadra da PSP de ... (Vila Nova de Gaia) a 20/05/2020, certo é que a Arguida foi detida Preventivamente a .. de Junho de 2020, e sem estar à espera da situação em que se via envolvida, não levando consigo elementos que lhe permitissem informar o ainda Inquérito da sua Detenção, de modo a poder ser notificada para o estabelecimento Prisional, e também não conta com visitas que pudessem aceder a esses elementos.
J. Quanto ao Depoimento da queixosa, esta nunca abordou o nome da Arguida M. T., nem indicou qualquer contacto com qualquer mulher, disse que “foi sempre um homem (que não sabe identificar), (…) e que foi sempre o mesmo que a atendeu telefonicamente”.
K. Nunca referiu. Ao invés do que menciona a sentença contacto com as arguidas; uma vez que foi sempre o mesmo homem que a atendeu, lhe pediu os cheques pré datados e que lhe disse que com a entrega destes lhe concedia o crédito”.
L. o Processo é constituído por um conjunto de incertezas e dúvidas, em que a única saída seria invocar o princípio “in dúbio pro reo” e absolver a Arguida aqui Recorrente.
M. Não se fez prova em Sede de Audiência de Julgamento que leve a crer ou sequer indiciar que as arguidas foram as autoras dos factos e actuaram em conjugação de esforços e vontades.

N. Eventualmente pode até ter sido (mas indícios) a Arguida M. G. a colocar o anúncio no JN; mas, isso não a relaciona directamente com a intervenção no crime de que vem acusada, e muito menos com a intervenção da Arguida M. T.; ou ainda, este facto não pode ser demonstrativo, por si, do conluio / conivência da Arguida M. T. com a Arguida M. G..
O. Eram sogra e nora, mas isso, ao contrário do que o Tribunal de Primeira Instância quer fazer crer, não significa que uma saiba da vida da outra (pois nem sabemos se ambas se relacionavam, quer bem ou mal. Aliás ambas tinham moradas diferentes, não viviam juntas.
P. Anão presença da Arguida M. T., aqui Recorrente foi justificada, e o Tribunal desse facto poderia ter tido conhecimento mais cedo, se assim tivesse diligenciado mais cedo (como por exemplo aquando da leitura de sentença em que houve adiamento pela não presença das arguidas).
Q. Aliás, a Arguida manifesta exactamente a necessidade que sente em ser ouvida no processo e poder apresentar defesa, o que não lhe foi permitido, pelo que requer a nulidade dos factos provados motivados pela sua ausência e requer ser ouvida em Primeira instância, podendo proceder à sua defesa que lhe foi vedada atenta a sua posição de detida preventivamente.
R. Devendo ser nulas as situações dadas como provadas pela simples ausência da Arguida, ou ainda por esta não ter exercido o contraditório, quando este não lhe foi possível em momento algum;
S. Pelo que deve o Processo baixar à Primeira Instância e repetir o Julgamento, na medida de ser possível à Arguida a informação sobre a acusação que decorreu contra si, sendo-lhe possível a sua defesa.
parece demasiado rebuscado o apoio sucessivo da prova em deduções, que não passam disso mesmo.
T. O Contacto telefónico usado e mencionado pela queixosa (D. R. M.) era um número pré-pago, não identificado, do qual a mesma afirma que foi sempre atendida por um homem, do qual não se recorda do nome, nem sabe identificar; nunca foi atendida por qualquer voz feminina.
U. o crime de Burla exige o preenchimento de elementos como é afirmado na sentença: “- Um comportamento astucioso do agente;
Que não se demonstrou relativamente à Arguida M. T..

- Do qual resulte o erro ou engano do sujeito passivo relativamente a certos factos;
Ora, a D. R. M. (queixosa) nem sabe se foi enganada, porque o seu discurso e entendimento da situação são muito escassos, e demonstra uma enorme dificuldade em se exprimir.
- Que o sujeito passivo, porque induzido em erro ou enganado quanto a certos factos, pratique determinados actos que, doutro modo, não praticaria, actos estes que lhe causam a si ou a terceiro prejuízo patrimonial.
A queixosa tenta demonstrar que foi enganada por ter entregue cheques pré-datados, não sabendo que poderiam ser usados antes. Mas, actualmente, na nossa sociedade é uma situação quase impossível de acolher, as pessoas não têm é outras formas de obter créditos e arriscam. E, mais não se demonstra que este engano tenha tido a colaboração da Arguida M. T..

V. Toda a prova é demasiado ténue, não se conseguindo encontrar qualquer nexo de causalidade e dolo; não havendo uma causalidade entre a identidade das senhoras e as quantias depositadas; não havendo uma ligação directa entre a pessoa que põe o anúncio, a pessoa que tem dinheiro depositado na conta, e a pessoa que atende os telefones; não há preenchimento do tipo legal de crime.

W. Portanto, a Arguida, aqui recorrente, não cometeu qualquer crime de Burla, e muito menos em co-autoria material e com dolo directo.

X. Não foi possível apurar da ilicitude da conduta das arguidas em causa, nem do seu dolo; a Arguida M. T. não faltou de ânimo leve à Diligência de Julgamento, não teve conhecimento da dedução da Acusação, porque já se encontrava detida preventivamente quando a mesma foi deduzida.

Y. A condenação numa pena de multa de 120 dias , correspondendo a cada dia o montante de €5 euros, no montante total de €600 (seiscentos euros) é demasiado para a Arguida que não tem qualquer rendimento, e não teve possibilidade de ser ouvida e proceder à sua defesa, por não ter conhecimento (sem culpa sua) da dedução da Acusação.
atento o facto de se ter apurado (na PSP de ...) que a arguida / recorrente não trabalhava, nem auferia qualquer rendimento; e, sabendo que a mesma está detida, é a pena elevada e injusta, pois não houve possibilidade de defesa.
É uma pena sem fundamento, sendo impossível à mesma liquidar o montante de €600,00; e, mais ainda, em pena acessória foi condenada ao pagamento ao Estado de mais €600,00 como perda de vantagens recebidas, as quais não se encontram provadas e mesmo que o fossem ´s descabido esse pagamento ao Estado, por falta de fundamento, pois a queixosa não é ressarcida, e também atenta a falta de condições económicas da Recorrente.
Z. A condenação da Arguida no Pagamento das taxas de justiça também não tem cabimento, porque a Arguida está detida quase há um ano, sem rendimentos.
AA. Além de que não foi notificada da Acusação, porque se o fosse teria (como foi por si dito na esquadra da PSP de ...) requerido a protecção jurídica junto da Segurança Social.
BB. Por não estar Notificada, encontrar-se Detida Preventivamente desde Junho de 2020; sendo que a Acusação foi deduzida em data bastante posterior; deve a Arguida poder ser julgada na sua presença e poder apresentar a sua versão e provas.

Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser revogada a sentença ora recorrida, devendo a Recorrente, ser Absolvida atenta a incongruência da Prova e a sua ténue consistência;
Ou, ser concedida à Arguida a Possibilidade de ser Julgada na sua presença e apresentar defesa, sendo nulas as situações de prova produzidas e as conclusões emitidas pelo Tribunal de Primeira Instância pela sua não participação e colaboração / defesa.
Se tal não se entender, que seja a medida concreta da pena adaptada à condição económica e social da aqui recorrente.
Com o disposto V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.

3. O M.P. respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, tendo concluído nos seguintes teros (transcrição):

1. A recorrente invoca que andou mal o tribunal a quo ao considerar, a matéria de facto. Sucede que, a factualidade dada como provada surge ancorada na prova produzida em audiência de discussão e julgamento, criticamente apreciada.
2. Com efeito, se atentarmos, em especial, no depoimento de R. M. que relatou de forma credível e coerente como ocorreram os factos, os quais surgem corroborados com a prova documental já junta – facilmente concluímos como fez o tribunal a quo.
3. Nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
4. A actuação da arguida é perfeitamente conforme às regras de experiência comum e do normal acontecer em contextos como o presente.
5. Assim, o processo lógico-racional impõe que se considerem provados os pontos impugnados da matéria de facto, como fez o tribunal a quo.
6. O tribunal apreciou, pois, a prova segundo as regras de experiência comum e sua livre convicção, inexistindo quaisquer vícios.
7. Criou-se no tribunal a inabalável convicção de que a arguida praticou os factos pelos quais foi condenada, motivo pelo qual inexistiu fundamento para aplicação do princípio in dubio pro reo.
8. Não existe qualquer invalidade no que concerne à notificação da recorrente.
9. Com efeito, a arguida prestou TIR, não comunicou qualquer morada e todas as notificações foram efectuadas para aquela morada.
10. Assim, mesmo tendo a arguida sido presa preventivamente à ordem de outro processo, entre a data em que prestou TIR e a data do julgamento, mantém-se a obrigação de comunicação ao processo da alteração da morada.
11. Deste modo, foi válida a notificação efectuada e o julgamento na ausência não está ferido de qualquer vício.
12. Pelo exposto, bem andou o tribunal a quo a dar como provada toda a factualidade supra descrita e a condenar a arguida.

Nestes termos e nos demais de direito, deverá o presente recurso ser julgado improcedente e, em consequência, manter-se a decisão recorrida, assim se fazendo JUSTIÇA!

4. Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador - Geral Adjunto emitiu parecer, aduzindo nova argumentação no sentido da sua concordância com a resposta ao recurso apresentada pelo M.P. na primeira instância, tendo concluído que o recurso deve ser rejeitado quanto à vertente de perda de vantagens e improceder relativamente aos demais segmentos.
5. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
6. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso (1) do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.

Assim, considerando o teor das conclusões do recurso interposto no sentido acabado de referir, o objeto do presente recurso centra-se nas seguintes questões:
- Nulidade do processado decorrente de a arguida /recorrente não ter sido regularmente notificada da acusação e do despacho que a recebeu, com indicação da data designada para julgamento pelo facto de se encontrar presa (em prisão preventiva à ordem de outro processo);
- Impugnação da matéria de facto provada em virtude de a prova ser meramente indiciária e insuficiente, tendo sido violado o princípio in dubio pro reo, não se mostrando preenchidos os elementos típicos do crime de burla pelo qual foi condenada;
- Medida da pena de multa, a qual, segundo a recorrente, é “demasiado” (sic);
- Falta de fundamento para a condenação da arguida /recorrente no pagamento a favor do Estado da perda das vantagens decorrente da prática do crime e em “taxas de justiça”.

2- A decisão recorrida
1. N sentença recorrida foram considerados como provados e não provados os seguintes factos, seguida da motivação da matéria de facto [transcrição]:

II. A. FACTOS PROVADOS

Da discussão e julgamento, resultou provado, com relevância para a decisão final, que:

1. A arguida M. T. era, no período em apreço, casada com P. J., filho da arguida M. G..
2. Em data não concretamente apurada, mas entre os anos de 2017 e 2018, as arguidas, em conjugação de esforços e vontades, engendraram um plano que consistia em colocarem um anúncio no jornal, publicitando a concessão de crédito fácil, denominado “crédito sobre cheques”, dando a entender que, caso os interessados lhes entregassem cheques pré-datados, no valor do crédito e juros, remeteriam a quantia acordada, com o fito de os enganar desta forma, pois ao invés de remeterem qualquer montante, fariam suas as quantias tituladas nos cheques que lhes seriam remetidos.
3. Assim, em execução do enunciado plano, em conjugação de esforços e vontades com a arguida M. T., a arguida M. G. deslocou-se ao Balcão “Galerias …” do Jornal ..., e contratou a publicação de um anúncio com os dizeres: “crédito sobre cheques - 1.050 = 10x 150€; 2.000 = 18x 150€; 3.000 = 27 x 150€; 5.000 = 45 x150€; tlm: 932 354 548, 913 516 782; TAEG desde 10% - crédito concedido por instituições bancárias autorizadas Rua … código postal …”, o qual foi publicado, entre outros, no dia 06.07.2017.
4. Em Outubro de 2018, R. M., tomou conhecimento de tal anúncio e ficou interessada.
5. Contactou as arguidas para o n.º ………, as quais lhe explicaram que lhe concederiam o crédito imediato de 1.050,00 € (mil e cinquenta euros), através de transferência bancária, caso lhes fossem remetidos dez cheques pré-datados, no valor de 150,00 € (cento e cinquenta euros) cada, cada um com data do último dia do mês.
6. R. M., acreditando que caso remetesse os dez cheques, ser-lhe-ia concedido o crédito no valor de 1.050,00€, acedeu ao proposto e emitiu os dez cheques, designadamente, os cheques n.º 4667262615, 4667262906, 4667263003, 4667263197, sacados sobre a sua conta n.º 45532254446, domiciliada no Banco..., em Viana do Castelo, no valor de 150,00 € (cento e cinquenta) cada, apôs a data de 30.11.2018 no primeiro e nos restantes, o último dia dos dez meses subsequentes;
7. Juntou, ainda, comprovativo do seu NIB a fim de ser creditada a quantia que julgava estar a mutuar;
8. E, aos 26.10.2018, remeteu via correio registado, a partir do posto de …, em …, Guarda, os cheques e documentos para M. G., com a morada – … Vila Nova de Gaia Apartado …, em V.N. de Gaia.
9. Sucede que, ao invés de efectuarem a transferência do montante acordado, as arguidas fizeram suas as quantias dos quatro cheques supra identificados, no montante global de 600,00 € (seiscentos euros), como aliás era o seu desígnio inicial.
10. As quantias foram depositadas na conta de depósitos n.º ..........000.0001, domiciliada no Banco …, titulada por M. T..
11. A denunciante ainda tentou falar com as arguidas, mas nunca mais as conseguiu contactar.
12. As arguidas agiram da supra forma descrita com o propósito concretizado de obter as quantias supra referidas, bem sabendo que a única forma de as conseguir seria criando a aparência, junto da denunciante, de que iriam efectuar a transferência da quantia acordado, caso esta remetesse os cheques valores indicados, com o fito de, desta forma, conseguir aumentar o seu património, não ignorando que podia causar como causaram a R. M. um prejuízo em montante equivalente, nunca inferior a 600,00 €.
13. Agiram livre, deliberada, concertada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e penalmente punida.

Mais se provou:
14. A Arguida M. G. não tem antecedentes criminais.
15. A arguida M. T. já sofreu as seguintes condenações:
15.1. No Processo n.º 567/12.0TABRG, do 2.º Juízo Criminal do Tribunal de Braga, por decisão de 08.05.2013, transitada em julgado em 07.06.2013, foi condenada na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, pela prática em 24.01.2012 de um crime de injúria p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal;
15.2. No Processo n.º 8/14.9PTVNG, do Juízo Local Criminal de Vila Nova de Gaia – J3, por decisão de 15.06.2015, transitada em julgado em 15.07.2015, foi condenada na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, e na pena acessória de 4 meses de proibição de conduzir veículos motorizados, pela prática em 22.04.2014 de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigo 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

II. B. FACTOS NÃO PROVADOS Inexistem factos não provados.

II. C. FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

De acordo com o disposto no artigo 374.º, nº 2, do Código de Processo Penal, o Tribunal deve indicar as provas que serviram para fundamentar a sua convicção.
Neste contexto, começamos por salientar que a prova produzida foi apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, de acordo com o princípio ínsito no artigo 127.º do Código de Processo Penal. Significa este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
Diga-se, desde já, que no caso em concreto o tribunal viu-se forçado a recorrer à prova indiciária, aglutinando a pluralidade de dados indiciários credíveis que conduzem a uma ilação que se nos afigura idónea a afastar qualquer dúvida razoável sobre a identidade dos autores dos factos.

Vejamos então.

As arguidas não compareceram à audiência de julgamento.
Assim o tribunal atendeu desde logo ao depoimento da queixosa R. M., diga-se do mesmo genuíno, objectivo e credível, em conjugação com os documentos juntos aos autos, entre estes, o anúncio de fls. 34 e 35; documentação Banco ... (da queixosa) de fls. 29 e ss. e de fls. 90 e ss. ; fls. 30 – “contrato”; fls. 33 – comprovativo dos Correios; fls. 55 a 58 – informação … Notícias – ..., SA – (JN); informação Banco …, de fls. 97 e ss., e de fls. 124 e ss.; certidões de assento de nascimento de fls. 106 e 127.
A queixosa R. M. confirmou no essencial a factualidade vertida na acusação. Evidenciou um perfil típico das vítimas do tipo de conduta imputada às arguidas, pessoa com um léxico limitado e pouco informada, desconhecendo mesmo as consequências da emissão dos cheques naquelas circunstâncias, por ignorar que, ainda que a conta sacada não estivesse devidamente provionada, o pagamento dos valores titulados pelos cheques que emitiu seriam objecto de pagamento quando estes fossem apresentados para o efeito, em face do valor individualmente titulado por cada um, não superior a 150,00€, o que apenas não ocorreria se existissem sérios indícios de falsificação, endosso irregular, extravio, entre outras situações.
Referiu que num primeiro momento terá contactado as arguidas (pessoas que naturalmente desconhece), através dos contactos telefónicos indicados no anúncio, tendo procedido do modo que lhe foi indicado, remetendo por correio os cheques pré-datados e indicando os elementos para que o montante relativo ao crédito anunciado fosse depositado na sua conta. Mais tarde, quando se apercebeu do logro e tentou recuperar o dinheiro que teve de desembolsar por força do descoberto da sua conta, uma vez que quatro dos cheques emitidos foram apresentados a pagamento, terá sido uma pessoa do sexo masculino quem atendeu o telemóvel.
O seu depoimento encontra apoio na prova documental junto aos autos. O referido anúncio encontra-se junto a fls. 34 e 35 e os pagamentos efectuados por conta dos cheques que emitiu estão documentados a fls. 29 e 90 e seguintes nos extractos da conta corrente por si titulada Banco ... (da queixosa) de fls. 29 e ss. e de fls. 90 e ss.. Também a fls. 32 está documentado o modelo do pretenso “contrato de prestação de serviços ao cliente” utilizado para criar a aparência de uma realidade inexistente.
Se nenhuma incerteza existe no sentido de que os factos ocorreram, de resto nos exactos termos constantes da acusação pública, perante a restante prova indiciária, entendemos que também dúvidas não se levantam quanto aos seus autores, tão-pouco que convoque o princípio do in dubio pro reo constitui, enquanto imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa. A prova produzida nos autos permite concluirmos que foram as arguidas as autoras dos factos e actuaram em conjugação de esforços e vontades.
Com efeito, foi a arguida M. G. quem diligenciou pela colocação do anúncio no jornal, tal como resulta da informação prestada a fls. 55 pela …-Notícias – ..., S.A., proprietária do título de imprensa diária “Jornal ...”, sendo que a mesma arguida surge na informação também identificada com o seu número de contribuinte, o qual coincide com o constante do seu cartão de cidadão a fls. 56.
Acresce que era esta (arguida) a titular do apartado para o qual, em seu nome, a queixosa remeteu os cheques pré-datados, sendo que pelo menos quatro dos quais foram apresentados e obtiveram pagamento. Ora, o apartado é uma caixa postal identificada com um número (número de apartado) que se encontra em estações ou postos de correios e em concreto aparenta ter sido utilizado com a finalidade de não ser revelado o endereço da morada da autora dos factos.
Outrossim, os cheques foram depositados na conta bancária n.º ..........000.001, titulada pela arguida M. T. (cfr. fls. 97).
As arguidas têm uma relação de parenteso, pois M. T. era (e ainda será) casada com P. J., filho da arguida M. G.. Se estes factos por si só são indiciadores da cooperação entre ambas, temos ainda a circunstância de não lhes ser conhecida a mesma morada à data dos factos, nem presentemente, o que evidencia que terão levado a cabo o esforço necessário a permitir que o anúncio fosse publicado por uma das arguidas, a qual também terá recepcionado os cheques, que por sua vez foram depositados na conta da outra (M. T.), inexistindo qualquer elemento de prova que aponte no sentido de que alguma destas induziu a outra em erro, levando-a a participar num estratagema que desconhecia e que visava obter lucro através do engano de terceiros.
Acresce dizer que às arguidas não foi coarctada a possibilidade de apresentarem a sua versão dos factos, caso fosse divergente daquela que resultou provada, mas não compareceram à audiência de julgamento, não tendo também elas logrado infirmar os indícios vindos de elencar e que apontam para participação de ambas nos factos, numa conjugação de esforços e vontades.
Adita-se ainda que a indicação de dois contactos telefónicos no anúncio, em face da natureza dos factos, indicia a participação de pelo menos duas pessoas, a quem as potenciais vítimas poderiam contactar. É certo que não foi possível apurarmos em concreto a quem correspondiam os números de telemóveis em causa, por corresponderem a serviços pré-pagos e que não prevêem a possibilidade de efectuar pagamento por multibancos (cfr. fls. 60 e 61) - o que também é usual nestas situações – mas isso não invalida a conclusão supra, pois não se vislumbra qualquer necessidade de uma só pessoa utilizar dois telemóveis para levar a cabo o esquema fraudulento evidenciado nos autos.
É certo que a queixosa referiu que nas diligências infrutíferas que efectuou para reaver o dinheiro terá sido um indivíduo do sexo masculino quem atendeu o telemóvel. Sucede que, a nosso ver, essa circunstância não introduz qualquer dúvida sobre a autoria dos factos, apenas aponta para a eventual comparticipação de um terceiro cuja identidade não se apurou ou, pura e simplesmente, que terá sido alguém próximo das arguidas quem naquele momento se encarregou de atender a chamada telefónica.
Em suma, com base na prova produzida o tribunal formou a sua convicção relativamente aos factos e respectiva, nos termos em que resultaram provados.
Prosseguindo.
O elemento subjectivo extrai-se dos factos objectivamente provados, consabido que é do conhecimento da generalidade dos cidadãos que tais condutas são proibidas e punidas por lei, nada tendo resultado que aponte no sentido de que as arguidas agiram afectadas na sua liberdade de decisão e/ou de acção.
Quanto às condições pessoais das arguidas, na sua ausência, nada se apurou.
A matéria dos antecedentes criminais, extrai-se dos respectivos certificados de registo criminal junto aos autos a fls. 153 e ss..

3. Apreciação do recurso

3.1. A recorrente alega não ter sido notificada da acusação deduzida pelo M.P. e da data designada para julgamento, não tendo comparecido na audiência de julgamento, por se encontrar em prisão preventiva, desde junho de 2020, à ordem de outro processo. E que, para além disso, não lhe foi possível informar os autos da sua detenção de forma a ser notificada no estabelecimento prisional, sendo que também não conta com visitas que pudessem aceder a esses elementos.
De facto, na sequência da realização de diligências no sentido de notificar pessoalmente a recorrente da sentença proferida nos presentes autos, apurou-se que, no âmbito do processo nº 1174/16.4PAVNG, do Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia – J2, a recorrente se encontrava detida, sendo que esteve detida desde 20.06.2020 até 16.06.2021, data em que foi colocada em liberdade por ter sido suspensa a execução da pena de 4 anos de prisão em que foi condenada.

Acresce que os presentes autos evidenciam que:
1- Em 20.05.2020, na 5ª Esquadra de Investigação Criminal da PSP de …, a arguida /recorrente prestou TIR (cfr. 114).
2- Em 03.09.2020, foi deduzida acusação pelo M.P. contra a arguida, tendo esta sido notificada na morada indicada no TIR (cfr. fls. 141).
3- A ilustre defensora da arguida foi também notificada da sobredita acusação (cfr. fls. 143).
4- Em 12.11.2020 foi proferido o despacho a que se refere o artigo 311º do CPP, do qual a arguida foi notificada na mora indicada no TIR (cfr. fls. 156).
5- A audiência de julgamento decorreu sem a presença da arguida, não tendo a sua presença sido considerada indispensável (cfr. fls. 164 e segs.)..
6- Na sequência de informação prestada pela PSP, segundo a qual arguida se encontrava em prisão preventiva no EP do Porto, a arguida foi notificada, no referido estabelecimento prisional, da sentença proferida nos presentes autos em 04.02.2021 (cfr. fls. 181 a 184).
7- A arguida, por si, ou através da sua defensora, não comunicou aos presentes autos a sua situação de reclusão no âmbito do processo 1174/16.4PAVNG, do Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia – J2.
3.2- Assim, no caso vertente, como decorre do acima exposto, a recorrente foi notificada da acusação e do despacho a que se refere o artigo 311º do CPP por via postal simples na morada por ela indicada no TIR.
A notificação da arguida dos mencionados atos processuais por via postal simples para a morada indicada no TIR, em lugar da notificação através de contacto pessoal, decorre da conjugação do disposto nos artigos 113º, nº 1 al. c) e nº 3 , 196º, 283º, nº 6 e 313º, nº 3 do CPP.
A notificação nos sobreditos termos resulta das alterações introduzidas ao Código de Processo Penal pelo DL nº 320- C/2000, de 15.12, tendo sido propósito do legislador, como resulta do preâmbulo deste diploma, o combate à morosidade processual, tendo-se aí salientado que «A aplicação das normas do Código de processo Penal revela que ainda persistem algumas causas de morosidade processual que comprometem a eficácia do direito penal e o direito do arguido “ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa», nos termos do nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa, tornando-se imperioso efetuar algumas alterações do processo penal de forma a alcançar tais objetivos”.
Acerca da conformidade com a Constituição das referidas normas, ou o mesmo é dizer da constitucionalidade da notificação do arguido por via postal simples, o Tribunal Constitucional pronunciou-se em sentido afirmativo, cfr. Ac. TC nº 17/2010 Diário da República n.º 36/2010, Série II de 2010-02-22 e Ac. TC 109/2012, Diário da República n.º 72/2012, Série II de 2012-04-11. Porém, o TC teve o cuidado de salientar que aludido quadro normativo não gera uma presunção inilidível de notificação, podendo o interessado ilidir a presunção de notificação, mostrando que não tomou conhecimento da comunicação.
Do referido regime jurídico decorre que a lei, para além de obrigar o arguido a comunicar a alteração do local da sua residência ou do lugar onde possa ser encontrado, estabelece ser a notificação do arguido – que deixou de ser pessoal – efetuada por via postal simples na morada indicada pelo arguido no TIR, exceto se ele comunicar outra.
Sucede que, as obrigações impostas ao arguido por força do disposto no nº 3 do artigo 196º do CPP – obrigação de comparecer, comunicar a alteração do local onde possa ser encontrado - pressupõe necessariamente que o arguido se encontra em liberdade.
Por isso, o nº 3 als. b) e c) do artigo 196º do CPP, nunca poderá ser interpretado no sentido de que impenda sobre o arguido a obrigação de comunicar que se encontra preso. Neste sentido discorda-se da posição daqueles que defendem que o arguido preso está obrigado a comunicar a alteração da morada (2), isto porque o arguido não alterou a sua morada, simplesmente foi preso.
Aliás, não poderia ser de outro modo, uma vez que o arguido preso, para além das restrições de movimentos que decorre naturalmente da prisão, por regra, deixa de ter acesso a todo um conjunto de contactos e de informações.
A circunstância de o arguido ser posteriormente preso – à ordem dos próprios autos ou à ordem de outro processo, pois que a lei não distingue as duas situações - tem como consequência que o arguido passa a ser notificado, em qualquer caso, através do E.P. onde se encontre, em conformidade com o disposto no artigo 114º, nº 1 do CPP.
O que quer dizer que é o sistema de justiça que se encarrega, ele próprio, de proceder à notificação por contacto pessoal do arguido preso, que se encontra à sua “guarda”, em todos os casos e não apenas dos atos mais relevantes, como é o caso da notificação da sentença. Esta forma de notificação, encontrando-se o arguido preso, é de resto a que melhor compatibiliza as garantias de defesa do arguido e o interesse no combate à morosidade processual, desideratos que, como vimos, o legislador procurou otimizar.

No caso em apreço, tendo-se posteriormente apurado que, aquando da notificação da arguida da acusação e do despacho que a recebeu e designou dia para julgamento - notificação efetuada através da via postal simples para a morada indicada no TIR, em conformidade com o disposto no artigo 113º, nº 1 al. c) e nº 3 do CPP - a arguida encontrava-se presa à ordem de outro processo, decorre que a notificação não se encontra regularmente efetuada, por não ter sido cumprido o disposto no artigo 114º, nº 1 do CPP., e que, como quer que seja, mostra-se ilidida a presunção de notificação daqueles atos. Neste sentido, vide Ac. RG de 18.12.2012, proc. 706/08.6GAFLG.G1, in www.dgsi.pt.
Todavia, poderá dizer-se que o M.P. e o tribunal, quando decidiram notificar a arguida por via postal simples para a morada indicada no TIR, desconheciam que ela se encontrava presa à ordem de outro processo. Porém, esta questão é irrelevante para a decisão da questão em apreço.
Na verdade, independentemente da questão de haver ou não culpa do órgão do Estado que ordena a notificação, importa que o sistema de justiça esteja dotado de mecanismos legais que permita que esse órgão tenha efetivo conhecimento que o arguido está preso.
Efetivamente, a propósito desta questão, como se refere no Ac. RC de 09.02.2011,processo nº 522/01.6TACBR.C1, disponível em wwwdgsi.pt, “É certo que o tribunal não tinha conhecimento desta conjuntura quando enviou a notificação, mas isso em nada altera a situação, uma vez que foi o próprio Estado que, emaranhado nas teias da burocracia que ele próprio desenvolve, não criou as condições para que esse conhecimento estivesse ao alcance do Órgão Tribunal, que era a entidade competente para levar a cabo a mesma. E disso não tem o arguido culpa”.
No mesmo sentido, relativamente à situação de arguido detido à ordem de outro processo, vide Ac. RC de 29.05.2013, processo 336/09.5PBCVL.C1, disponível em wwwdgsi.pt, segundo o qual “…a ausência do arguido não é voluntária, não dependeu de ato de vontade do arguido. Ao invés, trata-se de uma ausência imposta pelo Estado português, aos cuidados de quem o arguido está ….
Assim sendo não é aceitável que se trate esta situação como se de ausência voluntária se tratasse, se onere o arguido com a obrigação de comunicação da ausência da residência e, mais, se tenha o arguido como validamente notificado quer da acusação, quer do despacho que designou dia para julgamento.
É que estando o arguido aos cuidados do Estado (…) o razoável é que o próprio Estado que o deteve informasse os demais serviços públicos da situação daquele cidadão.”
Acresce que, como bem se refere no Ac. RP de 04.07.2012, processo 765/09.4PRPRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt “A realização de audiência de julgamento sem a presença do arguido regulamentada no art. 333.º cinge-se apenas a duas situações: i) uma por iniciativa do tribunal, em virtude de ausência voluntária do arguido, que tanto pode ser injustificada como justificada, por estar impossibilitado de comparecer (n.º 1); ii) outra por iniciativa e com o consentimento do arguido (n.º 4). O mesmo já não se passa se se tratar de uma ausência forçada do arguido, não lhe sendo imputável qualquer falta relevante de diligência, que conforme posicionamento desta Relação corresponde a uma nulidade insanável, ainda que o arguido tenha prestado TIR e sido expedida notificação para a sua residência (119.º, al. c). Tal sucede “No caso de o arguido se encontrar preso e sendo essa situação do conhecimento do Tribunal, …, sendo irregular qualquer comunicação efectuada para uma das residências indicadas no TIR, enquanto perdurar essa prisão” [Ac. TRP 2007/Jan./01] ou então se “…. o arguido se encontrar preso, depois de ter sido notificado da data da audiência de julgamento, sendo por essa razão que não comparece a esta” [Ac. TRP de 2009/Out./21]”.
No caso vertente, para além do mais, a recorrente faltou à audiência de julgamento por se encontrar em situação de prisão preventiva à ordem de outro processo, sem que o tribunal tivesse providenciado pela sua comparência. É claro que também a defesa da arguida não esboçou qualquer tentativa de fazer a arguida comparecer em audiência. Contudo, até pela diferença de meios, o tribunal estava em melhores condições de o fazer e não fez.
Em suma, a falta à audiência de julgamento não decorre de uma decisão voluntária da arguida. Acresce que a recorrente refere ter a necessidade de ser ouvida e poder apresentar a sua defesa. Por isso, julgamos não terem sido asseguradas todas as garantias de defesa da arguida, designadamente o direito de estar presente em audiência de julgamento, tendo sido posto em causa o direito a um processo justo e equitativo, o qual é assegurado pela CRP nos seus artigos 32º, nºs 1, 2 e 6 e 20º, nº 4 e pela CEDH no seu artigo 6º.
Por conseguinte, não tendo a recorrente sido regularmente notificada da acusação deduzida pelo M.P., nem do despacho que a recebeu e designou data para realização de audiência de julgamento, foi cometida a nulidade do nº 1 al. c) do artigo 119º do CPP.
Na verdade, a ausência do arguido a que se refere o nº 1 al. c) do artigo 119º do CPP reporta-se não apenas à ausência física, mas também ausência do ato ou de diligência – no caso, a notificação -, que não permita ao arguido exercer o direito que lhe assiste de intervir no processo. Nesse sentido, vide v.g. Ac. RG de 18.09.2006, processo 1055/06-1, Ac. RP de 19.04.2006, processo 0545429, Ac. STJ de 19.04.2006, processo 06P2048, Ac. RC de 29.05.2013, processo 336/09.5PBCVL.C1, Ac. RP de 21.02.2018, processo 33/14.0TELSB.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt, e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 2ª edição, pág. 303
Em consequência da nulidade cometida, relativamente à recorrente, impõe-se anular todo o processado a partir da dedução da acusação deduzida pelo M.P, em conformidade com o disposto no artigo 122º do CPP.
Assim, mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no presente recurso.

III- DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso e, em consequência, quanto à recorrente M. T., anula-se todo o processado posterior à dedução da acusação do M.P., a qual deve ser notificada à recorrente, nos termos legais, retomando-se, depois, os ulteriores trâmites processuais.
Sem custas.
Guimarães, 25.10.2021
Texto elaborado pelo relator, revisto e assinado eletronicamente por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Mário Fernando Teixeira Lopes da Silva - Adjunto)



1. De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P..
2. Cfr. Ac. RL de 06.04.2015, processo 3/03.3IELSB.L1-9, posição posteriormente reafirmada no Ac. RL de 31.03.2016, processo 482/14.3PZLSB.L1-9, ambos do mesmo relator e disponíveis em www.dgsi.pt.