Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
24255/18.5YIPRT.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
DECLARAÇÃO UNILATERAL
DECLARAÇÃO TÁCITA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A declaração unilateral de reconhecimento de dívida não cria a obrigação mas apenas faz presumir a existência da mesma, cuja fonte será outro ato ou facto.
II- Para se presumir a existência da relação fundamental, a declaração de reconhecimento de dívida deve constar, pelo menos, de documento escrito.
III- Para valer como declaração tácita o comportamento que a revela tem de ser inequívoco e concludente.
IV- O envio de duas cartas com dinheiro no seu interior, desprovidas da emissão de declaração, não consubstanciam qualquer declaração escrita de reconhecimento de dívida.
V- Litiga de má-fé a parte que declara desconhecer três cartas e que não as enviou nem nelas apôs qualquer escrito, quando se veio a demonstrar que as enviou e que continham dizeres da sua autoria.
VI- O pedido de condenação da parte litigante de má-fé em indemnização à parte contrária deve ser formulado ao tribunal perante o qual foi assumido o comportamento da parte que litigou de má-fé, para ser apreciado na sentença ou, não havendo elementos para fixar logo a indemnização, em ato subsequente após audição das partes.
VII- Não tendo o comportamento que constitui litigância de má-fé sido praticado no âmbito do recurso, mas sim no decurso da ação, não é admissível nas alegações do recurso formular pedido de condenação da parte que litigou de má-fé no pagamento de indemnização à parte contrária.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. J. S. intentou procedimento de injunção, posteriormente convolado para acção de processo especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra M. N., pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 4.750,00 (quatro mil setecentos e cinquenta euros), acrescida de juros de mora contados desde 26.09.2014 e até integral pagamento, tendo computado os vencidos, até à data da entrada do requerimento de injunção, em € 1.141,05, e da taxa de justiça por si paga, no valor de € 102,00.
Para fundamentar a sua pretensão o Autor alegou que, enquanto comerciante e dono do estabelecimento denominado Fruta ..., vendeu desde 2008 vários tipos de fruta à Ré, tendo ficado em dívida a quantia de € 4.750,00, após um último pagamento de € 100,00 efectuado por carta de 11.07.2014.
A Ré deduziu oposição, alegando, por excepção, a ineptidão do requerimento injuntivo e, por impugnação, que nada deve ao Autor, uma vez que não lhe comprou fruta no período que se iniciou em 2008 e que nunca reconheceu a existência de qualquer dívida nem efectuou qualquer pagamento referente ao período indicado pelo Autor.
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1.2. Julgada improcedente a excepção de ineptidão do requerimento de injunção, foi realizada a audiência final, durante a qual, em virtude da junção de documentos por parte do Autor, cuja autoria imputava à Ré, e perante a negação desta do seu conhecimento e da sua autoria, foi determinada a realização de prova pericial à letra da Ré, após o que se proferiu sentença a julgar a acção improcedente e a absolver a Ré do pedido.
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1.3. Inconformado, o Autor interpôs recurso de apelação da sentença, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«I. O Tribunal a quo andou mal em não incluir na matéria de facto dada como provada a seguinte factualidade: Na mesma data (06-03-2013) a Ré emitiu um cheque a favor de R. C., no montante de 100,00€.
II. Tal matéria resulta claramente da prova documental junta aos autos pelo Recorrente, nomeadamente do cheque constante de fls. 39 dos autos, na medida em que tal documento consubstancia um cheque sacado da conta da Recorrida junto do Banco ..., a favor da esposa do Recorrente, no montante de cem euros, emitido no dia 06-03-2013 (data em que a Recorrida remeteu à esposa do Recorrente a carta que consta do ponto 5 dos factos provados).
III. Por outro lado, entende o Recorrente que o Tribunal a quo andou mal ao considerar não provado o facto d) “Na sequência da carta referida em 4., a ré reconheceu ao autor que lhe devia 5.200,00”, na medida em que, tendo considerado provados os factos 5 e 6, teria o Tribunal a quo forçosamente de considerar provado o facto d), uma vez que o mesmo é uma consequência direta dos referidos factos provados, porquanto os mesmos importam inequivocamente o reconhecimento da dívida reclamada pelo Recorrente, uma vez que a Recorrida, na sequência da interpelação efetuada pelo Recorrente, tendo pedido desculpa por não ter enviado o que tinha combinado (referindo-se, como concluiu e bem o Tribunal a quo, a dinheiro), comprometendo-se, nos meses seguintes a não falhar e tendo ainda efetuado diversos pagamentos, por cheque e em numerário, é manifestamente evidente que ao fazê-lo reconheceu expressa (por via da carta que remete) e tacitamente (em virtude dos pagamentos efetuados) a dívida reclamada como existente e como sendo sua – isto de acordo com a conjugação dos art. 217.º e 458.º do CC.
IV. Assim, em face do exposto, deverá o facto não provado d) “Na sequência da carta referida em 4., a ré reconheceu ao autor que lhe devia 5.200,00” ser considerado provado, e consequentemente aditado à FP.

Do Direito

V. Tal como resulta da sentença, o Tribunal a quo deu como provado que a seguinte factualidade:
5. Em 06/03/2013, a ré enviou a R. C. uma carta do seguinte teor: “Desculpe-me por não ter mandado o prometido, mas foi por motivo de doença, mas agora começa a ser certo todos os meses até ao dia 15 de cada mês e talvez mesmo este mês te mande mais até ao fim do mês”;
6. Em 04/09/2013 e 13/11/2013, a ré enviou cartas a R. C. contendo quantias em dinheiro, de montante não concretamente apurado;

VI. Tendo, na motivação da decisão, referido a este propósito que:
- factos 5. e 6. – resulta da análise da carta e escritos constantes de fls. 122 e 125 e 126, respetivamente. Pese embora a ré tenha, de forma interessada e nervosa, negado conhecer tais documentos e, por conseguinte, a sua autoria, resulta do relatório pericial junto aos autos a fls. 226 e ss. ser muito provável que a ré seja a autora desses escritos. Assim, sendo certo que a força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo Tribunal – artigos 389º, do Código Civil -, certo é também que inexistem motivos para divergir do juízo técnico plasmado no referido relatório, o qual se mostra claro e não nos suscitou dúvidas, tanto mais que, sobre a matéria sobre a qual recai, não foi produzida qualquer prova objetiva adicional e que fosse suscetível de infirmar o juízo técnico formulado com base nos especiais conhecimentos da matéria que os Srs. Peritos demonstram e que o tribunal não possui.
Uma vez que no relatório se afirma não se poder concluir que os números aí apostos sejam da autoria da ré, considerando-se ainda que a testemunha R. C. referiu ter escrito nos sobrescritos as quantias que os mesmos continham, ao mesmo tempo que referiu já não ter a certeza dos valores, o tribunal não se convenceu dos exatos montantes de dinheiro que seguiram dentro dos envelopes. Não obstante, convenceu-se que os mesmos teriam dinheiro, conjugando o que resulta do facto provado 4., com o que resultou do depoimento de R. C. – que, pese embora interessado no desfecho da causa por ser cônjuge do autor, se mostrou um depoimento sério, objetivo, claro e sem qualquer intenção persecutória da ré – e com as regras da experiência comum (se se responde à interpelação para pagamento de uma dívida com um escrito em que se promete enviar todos os meses, seguir-se-á, natural e logicamente, o envio de quantias em dinheiro);
VII. No entanto, entendeu o Tribunal a quo que tais factos não importavam um reconhecimento tácito da dívida reclamada pelo Recorrente.
VIII. Ora, salvo o devido respeito, não pode o Recorrente concordar com esta conclusão, uma vez que resulta manifestamente evidente da factualidade provada que a Recorrida reconheceu a existência da dívida.
IX. Desde logo, na medida em que, após ter sido interpelada pelo Recorrente, a Recorrida, não só lhe remeteu uma carta na qual pediu desculpa por não ter mandado o prometido, como atestou que a partir daquela data passaria a “mandar” todos os meses, tendo ainda remetido ao Recorrente, simultaneamente, um cheque e, pelo menos por duas ocasiões, pagamentos em dinheiro.
X. Ora, uma pessoa que em sede de resposta a uma interpelação para o pagamento de uma dívida, pede desculpa por não ter enviado o que tinha combinado (referindo-se, como concluiu e bem o Tribunal a quo, a dinheiro), comprometendo-se, nos meses seguintes a não falhar e ainda efetua diversos pagamentos, por cheque e em numerário, é manifestamente evidente que ao fazê-lo está a reconhecer expressa (por via da carta que remete) e tacitamente (em virtude dos pagamentos efetuados) a dívida reclamada como existente e como sendo sua – isto de acordo com a conjugação dos art. 217.º e 458.º do CC.
XI. De facto, é por demais evidente que alguém que não concorde com uma dívida que lhe está a ser imputada, refere-o expressamente. Pelo que, também por este motivo é por demais evidente que a Recorrida reconheceu a dívida como sendo sua e comprometeu-se a efetuar o seu pagamento, já que nunca a Recorrida impugnou os valores que sucessivamente foram sendo reclamados pelo Recorrente, os quais constam da diversa documentação junta aos autos.
XII. Ora, assim sendo, nos termos do artigo 458.º e em face do reconhecimento da dívida, estava o Recorrente dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, prova essa que a Recorrida não fez.
XIII. Face ao exposto deverá ser revogada a sentença recorrida, e, consequentemente, substituída por Acórdão que, julgando procedente o presente recurso, condene a Recorrida no pagamento da quantia peticionada.
XIV. Tal como foi comprovado pela perícia realizada, a Recorrida faltou flagrantemente à verdade quando afirmou que os escritos constantes dos autos, não tinham sido realizados por si.
XV. Isto no intuito de enganar e ludibriar o Tribunal, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo, faltando flagrantemente à verdade, procurando impedir a sua descoberta.
XVI. O que resulta, por um lado, do próprio resultado da perícia realizada, que concluiu “…como muito provável que a escrita suspeita do Grupo I6 formado em Nota seja da autoria de M. N.” e por outro, das considerações feitas constar no mesmo relatório pelos Srs. Peritos que sentiram a necessidade de mencionar que “O traçado, variável, irregular, trémulo, pouco espontâneo, indiciando disfarce, dos autógrafos de M. N. limitaram as análise comparativas com as escritas suspeitas do Grupo I”.
XVII. Pelo que, da análise do comportamento processual da Recorrida, à luz do regime jurídico da litigância de má-fé acima referido, não restam dúvidas de que a mesma preteriu os sobreditos deveres adjetivos que sobre si impendiam, devendo por isso ser condenada como litigante de má-fé nos termos dos artigos 542.º e 543.º do CPC.
XVIII. Face ao exposto, a douta sentença recorrida violou, pois, o disposto nos arts. 5º, 410º, 411º e 413º do CPC, 217.º e 458.º do Código Civil e ainda o disposto nos artigos 542.º e 543.º do CPC.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência:
- ser alterada a matéria de facto dada como provada, nos termos acima indicados; e
- revogada a sentença recorrida.
Condenando-se a Ré/Recorrida no peticionado, como é de Direito e Justiça!».
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A Recorrida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

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1.4. Questões a decidir

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são questões a decidir:
i) – Verificar se existiu erro no julgamento da matéria de facto, no que respeita ao ponto d) dos factos não provados e à não inclusão na factualidade apurada do seguinte facto, cujo aditamento o Recorrente pretende: «Na mesma data (06-03-2013) a Ré emitiu um cheque a favor de R. C., no montante de 100,00€»;
ii) – Quanto à matéria de direito, em consonância com a modificação da matéria de facto proposta pelo Recorrente, saber se a acção deve ser julgada procedente e se a Recorrida litigou de má-fé.
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II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto
2.1.1. Na decisão recorrida consideraram-se provados os seguintes factos:

«1. O autor exerce, juntamente com a sua cônjuge, R. C., a atividade de comerciante de fruta;
2. A ré exerceu, em nome próprio e individual, a atividade de comerciante até, pelo menos, 31/12/2000, explorando uma mercearia;
3. No âmbito das atividades referidas em 1. e 2., o autor forneceu à ré semanalmente, durante período de tempo não concretamente apurado, fruta para que esta a vendesse na sua mercearia;
4. Por carta datada de 28/02/2013, registada e enviada com aviso de receção, o autor, por via de mandatário, comunicou à ré a existência de uma dívida relativa à venda de produtos, e solicitou-lhe a sua comparência no dia 05/03/2013, pelas 10h00m no escritório do referido mandatário;
5. Em 06/03/2013, a ré enviou a R. C. uma carta do seguinte teor: “Desculpe-me por não ter mandado o prometido, mas foi por motivo de doença, mas agora começa a ser certo todos os meses até ao dia 15 de cada mês e talvez mesmo este mês te mande mais até ao fim do mês”;
6. Em 04/09/2013 e 13/11/2013, a ré enviou cartas a R. C. contendo quantias em dinheiro, de montante não concretamente apurado;
7. Em 11/07/2014, R. C. enviou à ré carta, registada com aviso de receção, do seguinte teor: “Venho por este meio, (…) relativamente à dívida que a Sr.ª mantém com a loja “Fruta ...”, comunicar-lhe que (…) lhe concedo o último prazo de 8 dias, a contar da presente carta, para liquidar a totalidade da dívida existente. Da quantia total em dívida de € 5.300,00 V. Ex.ª pagou até ao momento 100,00 € no mês de Dezembro de 2012, 100,00 € no mês de Março de 2013, 50,00 € no mês de Maio de 2013, 100,00 € no mês de Setembro de 2013 e 100,00 € no mês de Novembro de 2013, restando ainda em dívida 4.850,00 €.”;
8. Em 17/09/2014, R. C. enviou à ré carta – junta aos autos a fls. 55, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido -, registada com aviso de receção, do seguinte teor: “Venho por este meio, em resposta à sua carta de 25/07/2014, comunicar a V. Exª o seguinte: 1. Não entendo os dados que refere na sua carta nem muito menos entendo as contas que V. Exª tem feito. (…), a Senhora enviou 100,00€, por carta registada no dia 1/08/2014, tendo ficado a dever o remanescente, no montante de 4.750,00€. Em 11 de Setembro de 2014 enviou-me uma carta contendo um papel castanho no interior, sem qualquer quantia em dinheiro e/ou cheque. Deste modo e porque esta situação já ultrapassou todos os limites informo V. Ex.ª que se no prazo máximo de 8 dias, contados desde a data desta carta, não proceder ao pagamento da dívida, no montante de € 4.750,00, irei dar entrada do processo judicial adequado a obter a cobrança do débito.”».
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2.1.2. Factos não provados:

O Tribunal a quo considerou que «não se provaram quaisquer outros factos dos alegados com interesse para a decisão da causa, designadamente que:

a) (Para além do descrito em 3.), desde 2008 que a ré se deslocou ao estabelecimento comercial do autor e comprou vários tipos de fruta, tendo estabelecido uma conta-corrente com autor;
b) Sempre que a ré comparecia no estabelecimento comercial do autor para comprar mais fruta, o autor solicitava-lhe que pagasse o que estava em dívida;
c) O autor entregou à ré fruta no valor de, pelo menos, € 5.200,00;
d) Na sequência da carta referida em 4., a ré reconheceu ao autor que lhe devia € 5.200,00;
e) Em maio de 2013, a ré enviou carta a R. C. contendo € 50,00.
Consigna-se que a consideração do facto provado 3. se faz ao abrigo do disposto no artigo 5º, nº 2, alínea b), do C.P.C.».
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2.2. Do objecto do recurso

2.2.1. Da impugnação da decisão da matéria de facto

2.2.1.1. Em sede de recurso, o Recorrente impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

Estão efectivamente atribuídos à Relação poderes de reapreciação da matéria de facto no âmbito de recurso interposto, que a transformam num tribunal de instância que também julga a matéria de facto, garantindo um duplo grau de jurisdição.

Para que a Relação possa conhecer da apelação da decisão de facto é necessário que se verifiquem os requisitos previstos no artigo 640º do CPC, que dispõe assim:

«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3. O disposto nos nºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do nº 2 do artigo 636º».

No fundo, recai sobre o recorrente o ónus de demonstrar o concreto erro de julgamento ocorrido, apontando claramente os pontos da matéria de facto incorrectamente julgados, especificando os meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e indicando a decisão que, no seu entender, deverá ser proferida sobre a factualidade impugnada.

Delimitado pela negativa, segundo Abrantes Geraldes (2), o recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto será, total ou parcialmente, rejeitado no caso de se verificar «alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b);
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a);
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
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2.2.1.2. Por referência às suas conclusões, extrai-se que o Recorrente considera incorrectamente julgados:

a) O ponto de facto – não incluído nem nos factos provados nem nos factos não provados – consistente em «Na mesma data (06-03-2013) a Ré emitiu um cheque a favor de R. C., no montante de 100,00€» (conclusão I);
b) O ponto de facto constante da alínea d) dos factos não provados, ou seja, «Na sequência da carta referida em 4., a ré reconheceu ao autor que lhe devia 5.200,00» (conclusão III).

O Recorrente pretende que:

i) Seja incluído nos factos provados o primeiro ponto de facto atrás referido («Na mesma data (06-03-2013) a Ré emitiu um cheque a favor de R. C., no montante de 100,00€»).
ii) O ponto d) dos factos não provados seja considerado provado.
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2.2.1.3. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à análise dos documentos juntos aos autos e do relatório pericial, e à audição integral da gravação do depoimento de parte da Ré e dos depoimentos das testemunhas R. C. (mulher do Autor), S. S. (filha do Autor), A. L. (marido da Ré), M. A. (nora da Ré).
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2.2.1.4. Da emissão do cheque

Entende o Recorrente que o Tribunal a quo errou ao «não incluir na matéria de facto dada como provada a seguinte factualidade: Na mesma data (06-03-2013) a Ré emitiu um cheque a favor de R. C., no montante de 100,00€».
Argumenta que «tal matéria resulta claramente da prova documental junta aos autos pelo Recorrente, nomeadamente do cheque constante de fls. 39 dos autos, na medida em que tal documento consubstancia um cheque sacado da conta da Recorrida junto do Banco ..., a favor da esposa do Recorrente, no montante de cem euros, emitido no dia 06-03-2013 (data em que a Recorrida remeteu à esposa do Recorrente a carta que consta do ponto 5 dos factos provados)».
Vejamos se esse ponto de facto deve ser aditado à factualidade assente, logo a seguir ao ponto 5 dos factos provados, como preconiza o Recorrente na motivação das suas alegações.
Em primeiro lugar, verifica-se que o Autor não alegou o aludido facto.
O que o Autor alegou no artigo 7º da petição foi que a «requerida reconheceu que devia ao requerente tal montante e pagou 100,00 € em Março de 2013, 100,00 € em Maio de 2013, 50,00 € em Setembro de 2013 e 100,00 € em Novembro de 2013».
Em segundo lugar, a cópia do cheque foi junta pelo Autor, em 17.12.2018 (na primeira sessão da audiência final), como documento nº 11. A Ré, por requerimento de 09.01.2019 (referência 31170899), pronunciou-se dizendo que «quanto ao documento 11, não se lembra a Ré a razão de ser do mesmo, podendo no entanto respeitar a qualquer acerto realizado entre a sua nora, dona do estabelecimento desde 2000 e a Autora, não tendo o condão de realizar qualquer prova nos termos alegados pela Autora».
Nesse requerimento a Ré não assumiu ter emitido tal cheque e “alvitrou” que o mesmo pudesse respeitar a um acerto de contas entre a sua nora e o Autor.
Em terceiro lugar, como o Recorrente não indica qualquer outra prova complementar, mas apenas o próprio documento («cheque constante de fls. 39 dos autos»), verifica-se que a perícia realizada foi inconclusiva «sobre as reproduções constantes do Grupo IV», ou seja, sobre «as escritas suspeitas de dizeres apostos no cheque em fotocópia (fls. 123)», sendo que, conforme foi esclarecido pelo Tribunal no seu despacho de 17.02.2020 (referência 167143718), «o Grupo IV referido no relatório refere os escritos constantes do cheque de fls. 39 referido no objeto fixado da perícia».
Portanto, com base exclusivamente na própria cópia do cheque junta aos autos não é possível dar como demonstrado que a Ré “emitiu” tal cheque, pois a perícia é inconclusiva sobre a atribuição da autoria dos dizeres que constam do aludido documento.
Por isso, improcede a impugnação relativamente a este ponto de facto.
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2.2.1.5. Da alínea d) dos factos não provados
O Tribunal a quo deu como não provado que «na sequência da carta referida em 4., a ré reconheceu ao autor que lhe devia € 5.200,00».
Alega o Recorrente que «tendo considerado provados os factos 5 e 6, teria o Tribunal a quo forçosamente de considerar provado o facto d), uma vez que o mesmo é uma consequência direta dos referidos factos provados, porquanto os mesmos importam inequivocamente o reconhecimento da dívida reclamada pelo Recorrente, uma vez que a Recorrida, na sequência da interpelação efetuada pelo Recorrente, tendo pedido desculpa por não ter enviado o que tinha combinado (referindo-se, como concluiu e bem o Tribunal a quo, a dinheiro), comprometendo-se, nos meses seguintes a não falhar e tendo ainda efetuado diversos pagamentos, por cheque e em numerário, é manifestamente evidente que ao fazê-lo reconheceu expressa (por via da carta que remete) e tacitamente (em virtude dos pagamentos efetuados) a dívida reclamada como existente e como sendo sua – isto de acordo com a conjugação dos art. 217.º e 458.º do CC».

Está demonstrado, sob o nº 4 da factualidade assente, que «por carta datada de 28/02/2013, registada e enviada com aviso de receção, o autor, por via de mandatário, comunicou à ré a existência de uma dívida relativa à venda de produtos, e solicitou-lhe a sua comparência no dia 05/03/2013, pelas 10h00m no escritório do referido mandatário».
Portanto, é inequívoco que o Autor comunicou à Ré a existência de uma dívida relativa à venda de produtos.
A questão reside em saber se a Ré, posteriormente a essa comunicação do Autor por carta de 28.02.2013, «reconheceu ao autor que lhe devia € 5.200,00», pois é isso que pretende que seja dado como provado.
“Reconhecer ao Autor”, no seu significado corrente, é “reconhecer perante o Autor” ou, pelo menos, “reconhecer a um terceiro que deve ao Autor”.
Para fundamentar a impugnação da decisão sobre este ponto da matéria de facto, o Autor invoca apenas os factos provados sob os nºs 5 e 6, argumentando que o ponto d) «é uma consequência direta dos referidos factos provados».
Ora, lidos os pontos de facto nºs 5 e 6 de uma forma objectiva e textual, verifica-se que em nenhum deles se alude sequer ao Autor.
No ponto 5 alude-se a uma carta de 06.03.2013, enviada pela Ré a R. C., onde pede desculpa a esta «por não ter mandado o prometido», invocando uma situação de doença e que «agora começa a ser certo todos os meses até ao dia 15 de cada mês e talvez mesmo este mês te mande mais até ao fim do mês». Objectivamente, depreende-se da carta que a Ré tinha anteriormente prometido algo, cujos termos e âmbito se desconhece, a R. C. e não ao Autor. Com base no que consta da carta é possível afirmar que a Ré prometeu a R. C. e que não cumpriu com o que se tinha comprometido. Da referida carta não resulta o reconhecimento de qualquer dívida ao Autor, em especial da concreta dívida em causa nestes autos. É interpelada pelo Autor, mas não responde a este ou ao seu mandatário, antes envia uma carta a uma terceira pessoa, a aludir a uma promessa que fez a esta.
No ponto 6 consta que em 04.09.2013 e 13.11.2013, a Ré enviou cartas a R. C. contendo quantias em dinheiro. Mais uma vez não são cartas enviadas ao Autor e nelas não consta qualquer declaração de reconhecimento de uma dívida ao Autor.

Por outro lado, nestes autos não está em causa uma dívida genérica, mas sim uma dívida por fornecimentos de fruta efectuados a partir de 2008, pelo Autor à Ré. Foi isso que se alegou no artigo 3º da petição: «Desde 2008 a requerida no exercício da sua actividade como comerciante deslocou-se ao estabelecimento comercial Fruta ... e comprou ao requerente vários tipos de fruta, tendo estabelecido uma conta corrente com o requerente».
Portanto, a causa de pedir está concretamente especificada e respeita a factos ocorridos a partir de 2008, período durante o qual eventualmente foram realizados os fornecimentos cuja dívida é reclamada nestes autos.
Atenta a delimitação da causa de pedir, é absolutamente irrelevante para estes autos a existência de fornecimentos de fruta em qualquer data anterior a 2008, bem como as eventuais dívidas subsistentes relativamente aos mesmos.
Convém recordar que, nos termos do artigo 260º do CPC, «citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei». No caso, nenhuma dessas modificações foi operada nos autos.
Portanto, o Tribunal está vinculado a apreciar os factos essenciais que constituem a causa de pedir tal como configurada na petição que o Autor apresentou e não qualquer outra, designadamente a relativa a fornecimentos e correspondente dívida anteriores a 2008.
Ora, essa concreta dívida, por fornecimentos efectuados a partir de 2008, não está demonstrada, como a Exma. Juiz demonstrou exemplarmente na sentença.
O que o Recorrente pede, ao fim e ao cabo, é que o Tribunal estabeleça uma sucessão de presunções (3), sem que os factos conhecidos (factos presuntivos de base) permitam deduzir o facto desconhecido (o facto a que a presunção conduz – facto presumido). Não se trata apenas de presumir que a Ré na sua carta de 06.03.2013 (ou com o envio de envelopes com quantias em numerário) quer referir-se (quando fala em “prometido” e “mande mais”) à dívida mencionada na carta do mandatário do Autor; trata-se ainda de presumir que a dívida mencionada na carta do mandatário do Autor (onde não consta qualquer referência aos fornecimentos que a geraram (4)) é aquela que se reclama nestes autos, exclusivamente relativa a fornecimentos posteriores a 2008 (inclusive), sendo que esta última é contrariada pelos meios de prova produzidos, desde logo pelos documentos juntos aos autos, começando até pelos apresentados pelo Autor, vários deles respeitantes a factos anteriores a 2008 (sendo certo que está demonstrado por documento que a Ré no ano 2000 alterou a sua actividade para efeitos fiscais, com a consequente cessação da actividade relativa à sua mercearia e que em 28.12.2000, mediante o contrato de comodato documentado nos autos, o estabelecimento passou a ser explorado pela nora da Ré – v. depoimentos de A. L. de M. A.; a própria mulher do Autor – R. C. – admitiu que a dívida que reclamou da Ré era também por fornecimentos anteriores a 2008 e que – v. gravação aos 42m30s – no início da relação só fornecia à Ré, mas que depois «mais para o fim» fornecia à nora, sendo que as facturas «que passava era em nome da nora» – 42m26s – e que «porque passou para o nome da nora não sabe» - 42m45s, mas que a Ré, apesar disso, «sempre estava lá» - 42m40s; mais declarou não saber desde quando estava em dívida e que «é possível que ainda deva de 1999», sendo dívidas acumuladas de 30 anos (5)).
Mais, não tendo ficado demonstrada a dívida emergente da relação substantiva, pretende-se agora, em sede factual (impugnação da decisão sobre a matéria de facto), que se presuma a existência da mesma, ou seja, uma dívida ficta, suposta. Salvo o devido respeito, isso representaria uma verdadeira desconstrução do conceito de justiça material, sobretudo num caso em que se discutiu exaustivamente a substância e a decisão da matéria de facto está em inteira consonância com o resultado obtido com a produção dos meios de prova, os quais também revimos neste acto.

No nosso entender, é inteiramente esclarecedora a convicção expressa na decisão da matéria de facto no que respeita ao ponto constante da alínea d) dos factos não provados:

«A não prova dos factos a), a d), resulta da absoluta falta de prova produzida inequivocamente nesse sentido. Assim, pese embora o tribunal tenha conferido credibilidade ao depoimento de R. C., pelas razões expostas supra, do mesmo não resultou o descrito nos factos em referência. Vejamos.
A testemunha R. C. referiu que o cumprimento do contrato de fornecimento de fruta era feito de forma muito informal, descrevendo, em traços largos, que fazia as entregas na mercearia da ré e que os pagamentos eram feitos de forma muito irregular. Referiu também que, por vezes, era a própria ré que ligava a encomendar a fruta e a ir buscar, sendo certo que também o autor lhe fazia entregas. Quanto ao método de pagamento e cobrança, referiu que não era uniforme, variando conforme a altura e os intervenientes. Esclareceu que facilitava os pagamentos e que não era comum passar faturas e recibos, que tinha um método de entrega de talão original quando a mercadoria entregue era paga e, quando não era, guardava o original e a ré assinava o duplicado, mas nem sempre assim acontecia. Referia que os livros de registo de entregas eram todos diferentes e que o autor, quando fazia as entregas, às vezes entregava os talões originais. Mais referiu que fazia as contas semanalmente, sozinha, nunca tendo exigido assinaturas dos recebimentos da fruta por parte da ré. Esclareceu que nunca foi feita uma conta-corrente, mas que a quantia cujo pagamento pede à ré se refere a uma dívida acumulada de fornecimento de fruta durante 30 anos, não sabendo, contudo, especificar os períodos temporais das entregas e pagamentos. Finalmente, referiu não saber dizer quanto está em dívida e que se tinha de ver pelos papéis juntos aos autos.
Em face do exposto, a primeira conclusão que se impõe é que é impossível ao tribunal, pela mera análise dos “talões”, “papéis”, “faturas”, “recibos” juntos aos autos a fls. 128 a 196, concluir quais as quantidades de fruta entregues à ré que estão por pagar.
Na verdade, atenta a falta de suporte documental rigoroso que traduza as entregas, as quantidades, os preços e os pagamentos efetuados, ao que acresce o informalismo e falta de método convencionado entre as partes referido pela testemunha R. C., torna-se tarefa impossível formular qualquer raciocínio contabilístico que traduza, com o mínimo de certeza, rigor e segurança exigidos para a prova de um facto, qual o valor de fruta entregue à ré.
Assim, não tendo sido produzida qualquer prova adicional quanto a tal, o tribunal não se pôde convencer do descrito nos factos a) a d), por os mesmos não resultarem, nem direta nem reflexamente, da prova testemunhal e documental junta aos autos».
Esta apreciação efectuada pelo Tribunal recorrido, em especial na parte em que se refere que a prova do ponto de facto descrito em d) não resulta directa ou reflexamente da prova testemunhal ou documental junta aos autos, merece-nos a nossa integral adesão, dada a judiciosa ponderação feita em conformidade com os elementos probatórios produzidos nos autos e as regras da experiência comum.
Por todo o exposto, concordando-se integralmente com o Tribunal recorrido, o ponto de facto em causa não pode ser considerado provado.
Termos em que se julga improcedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
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2.2.2. Reapreciação de Direito

2.2.2.1. Do reconhecimento de dívida - conclusões V a XVI

Sustenta o Recorrente que os pontos de facto nºs 5 e 6 importam o reconhecimento tácito da dívida reclamada, pelo que, «nos termos do artigo 458.º [do Código Civil] e em face do reconhecimento da dívida, estava o Recorrente dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário, prova essa que a Recorrida não fez».

Dispõe o artigo 458º, nº 1, do Código Civil:

«Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário».
A declaração unilateral de reconhecimento de dívida não cria a obrigação mas apenas faz presumir a existência da mesma, cuja fonte será outro acto ou facto.
Como salienta Inocêncio Galvão Teles (6), «presume-se no entanto que a dívida realmente existe; que há uma causa que a justifica, ou seja, uma relação fundamental em que se integra o acto ou facto que a gerou. Inverte-se o ónus da prova. Aquele que se arroga a posição de credor não precisa de provar a causa da dívida, visto beneficiar da presunção decorrente da declaração feita. À outra parte é que competirá provar, se para isso dispuser dos elementos necessários, que afinal não é devedor».
Portanto, o que se estabelece no apontado artigo é apenas a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental (7).

No caso dos autos, inexiste declaração expressa da Ré a reconhecer qualquer dívida para com o Autor. Em lado algum a Ré declarou dever ao Autor a quantia de € 5.200,00.
Uma declaração negocial é sempre composta por dois elementos: vontade e declaração. Não há declaração se não existir vontade de a emitir.
A declaração tácita é a que se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (cfr. artigo 217º, nº 1, do Código Civil). É, portanto, necessário que tenha características de inequivocidade e de concludência.
Em suma, para valer como declaração tácita o comportamento que a revela tem de ser inequívoco e concludente.
Os comportamentos que podem servir de suporte à declaração tácita integram matéria de facto. Se eles integram ou não uma declaração tácita é questão de direito, a resolver em sede de interpretação, segundo os critérios acolhidos pelo artigo 236º do Código Civil (8).
Portanto, para haver declaração unilateral tácita de reconhecimento de dívida é indispensável que o comportamento assumido pela parte só possa ser interpretado como implicando o reconhecimento da correspondente obrigação.

Importa verificar se os factos invocados pelo Recorrente constituem uma «declaração unilateral tácita de reconhecimento de dívida».

Segundo o indicado nas conclusões V e VII a XI da apelação, tais factos são os seguintes:

5. Em 06/03/2013, a ré enviou a R. C. uma carta do seguinte teor: “Desculpe-me por não ter mandado o prometido, mas foi por motivo de doença, mas agora começa a ser certo todos os meses até ao dia 15 de cada mês e talvez mesmo este mês te mande mais até ao fim do mês”;
6. Em 04/09/2013 e 13/11/2013, a ré enviou cartas a R. C. contendo quantias em dinheiro, de montante não concretamente apurado.

Em primeiro lugar, embora o Recorrente alegue na conclusão X que ocorreu um reconhecimento expresso da dívida («está a reconhecer expressa[mente]») «por via da carta que remete», como já referimos atrás, não consta da aludida carta de 06.03.2013 qualquer declaração expressa da Ré a reconhecer uma dívida para com o Autor, uma vez que aquela não declarou dever-lhe certa quantia, designadamente € 5.200,00.
Em segundo lugar, é desde logo de afastar a relevância do ponto de facto nº 6, pois, face ao disposto no artigo 458º, nº 2, do Código Civil, na parte em que impõe que «a promessa ou reconhecimento deve, porém constar de documento escrito». O envio de duas cartas com dinheiro no seu interior, desprovidas da emissão de declaração, não consubstanciam qualquer declaração escrita de reconhecimento de dívida. Remeter, sem mais, uma carta contendo dinheiro não representa um documento contendo por escrito o reconhecimento da dívida, que é isso que se exige na mencionada norma.
Em terceiro lugar, exigindo o artigo 458º, nº 1, do Código Civil que o reconhecimento de dívida resulte de “declaração unilateral”, a qual, nos termos do seu nº 2, só vale se for feita por escrito, ou seja, que depende de um facto positivo praticado pelo declarante (e não de uma abstenção ou conformação), é difícil de conceber que uma declaração com tais características consiga ser produzida tacitamente.
Em todo o caso, dando de barato como adquirida tal possibilidade, importa verificar se o exarado na carta serve de suporte bastante a uma declaração tácita de reconhecimento da dívida de € 5.200,00.
Desde logo, o Recorrente alega que a carta da Ré de 06.03.2013 é uma «resposta a uma interpelação para o pagamento de uma dívida», mas não é isso que consta da carta.
A interpelação a que alude o Recorrente é a que consta do ponto nº 4 dos factos provados: «Por carta datada de 28/02/2013, registada e enviada com aviso de receção, o autor, por via de mandatário, comunicou à ré a existência de uma dívida relativa à venda de produtos, e solicitou-lhe a sua comparência no dia 05/03/2013, pelas 10h00m no escritório do referido mandatário».
Em face dos termos que constam dessa comunicação recebida pela Ré em 04.03.2013, o Autor era o credor e a Ré a devedora. Eram esses os sujeitos da relação substantiva tal como configurada pelo Autor na carta enviada pelo mandatário deste.
Ora, a carta de 06.03.2013 não foi enviada ao Autor ou ao seu representante, mas sim a R. C..
Além disso, a carta da Ré não faz qualquer referência, directa ou indirecta, à carta do mandatário do Autor datada de 28.02.2013.
Sendo assim, a carta da Ré não é uma resposta à carta do mandatário do Autor.
Depois, da carta referida no ponto 5 dos factos provados não resulta um reconhecimento da dívida cuja existência tinha sido comunicada pelo representante do Autor à Ré. Isto porque na sua carta a Ré apenas admitiu «não ter mandado o prometido» a R. C. por ter estado doente, pede-lhe desculpa por esse facto e comunica-lhe que «agora começa a ser certo todos os meses até ao dia 15 de cada mês e talvez mesmo este mês te mande mais até ao fim do mês».
Nessa carta, a Ré configura uma relação substantiva estabelecida com R. C. e não com o Autor. Os sujeitos dessa relação, segundo o declarado na carta, são a Ré e R. C.. Por isso, não é possível da mera assunção de existência de uma promessa (v. o emprego da expressão «prometido») anterior feita a R. C., cujos termos se desconhecem, deduzir a declaração tácita de reconhecimento da dívida reclamada pelo mandatário do Autor. O que consta do escrito não é inequívoco e concludente sobre o reconhecimento da dívida alegada pelo Autor.
Por isso, inexiste reconhecimento de dívida nos termos previstos no artigo 458º do CPC, pelo que, não se verificando a inversão do ónus da prova da existência da relação fundamental, recaía sobre o Autor o ónus de demonstrar os factos constitutivos da sua pretensão, o que não logrou fazer, tal como correctamente se concluiu na sentença recorrida.
Nesta conformidade, improcedem as conclusões formuladas sobre esta questão, pois inexiste fundamento para condenar a Recorrida no pagamento da quantia peticionada na acção pelo ora Recorrente.
Pelo exposto, nesta parte, a sentença deve ser confirmada, soçobrando as conclusões do Recorrente.
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2.2.2.2. Da litigância de má-fé – conclusões XIV a XVII

O Recorrente alega que «a Recorrida faltou flagrantemente à verdade quando afirmou que os escritos constantes dos autos, não tinham sido realizados por si (…) no intuito de enganar e ludibriar o Tribunal, fazendo um uso manifestamente reprovável do processo».
Conclui que, «da análise do comportamento processual da Recorrida, à luz do regime jurídico da litigância de má-fé acima referido, não restam dúvidas de que a mesma preteriu os sobreditos deveres adjetivos que sobre si impendiam, devendo por isso ser condenada como litigante de má-fé nos termos dos artigos 542.º e 543.º do CPC».

Cumpre apreciar.

Na sentença considerou-se que, atentos os factos os factos provados nºs 5 a 8, a Ré deduziu oposição ousada, mas que «dos autos não se retira, sem margem para dúvida, que tenha litigado de má-fé». Fez-se constar da sentença que «a ré vincou na sua oposição não ter comprado fruta ao autor no período de 2008 em diante e nunca ter reconhecido a existência de qualquer dívida ao autor nem ter efetuado qualquer pagamento referente ao período indicado pelo autor. E o certo é que o contrário desta alegação não resultou provado nos autos. Ademais, perante a incerteza do valor que poderia estar em dívida, considerando ainda os motivos que ditam a improcedência da ação, não pode o tribunal concluir, com a certeza e prudência exigidas no julgamento da litigância de má-fé, que a ré tenha, dolosamente, deduzido oposição em que omita ou altere a verdade dos factos».
Salvo o devido respeito (que é devido e merecido face à forma exemplar como foi conduzido o processo e todos os seus trâmites, designadamente a audiência de julgamento), a questão da litigância de má-fé não se coloca relativamente aos termos em que foi deduzida a oposição, vertente relativamente à qual concordamos integralmente com o Tribunal recorrido, mas sim na posição que a Ré expressou quando foi confrontada com documentos cuja autoria lhe era imputada.

Por um lado, no seu requerimento de 09.01.2019, com a referência 31170899, confrontada com os documentos entretanto juntos pelo Autor na sessão de 17.12.2018 da audiência final, a Ré afirmou:

«f/ Quanto aos documentos 1, 2, 5, 6, 7 e 9 tratam-se dos documentos totalmente desconhecidos da Ré, que nunca os subscreveu ou enviou, pelo que se impugnam para todos os efeitos legais, sendo certo que nenhum conteúdo têm, pelo que se desconhece a razão da sua existência, não tendo o condão de realizar qualquer prova nos termos alegados pela Autora».

Por outro lado, aquando da prestação do seu depoimento de parte, em 22.01.2019, a Ré afirmou peremptoriamente:
a) Desconhecer, além do mais, as cartas datadas de 06.03.2013, 04.09.2013 e de 13.11.2013;
b) Na parte aqui relevante, não ter enviado as cartas datadas de 06.03.2013, 04.09.2013 e 13.11.2013;
c) Ainda na parte aqui relevante, não serem seus todos os dizeres constantes das aludidas cartas datadas de 06.03.2013, 04.09.2013 e 13.11.2013.

Devido a essa posição, foi ordenada perícia à letra da Ré, tendo os escritos que lhe eram imputados integrado, além do mais, o denominado “Grupo I («escritas suspeitas dos dizeres em envelopes e fragmentos de papel (juntos a fls. 121, 122 e 125 a 127) exceto os algarismos e carácter 10,0,00 em envelopes de fls. 121, “4740”, em envelopes de fls. 122, “100€” e “10.04” em envelope a fls. 126»).
No relatório pericial elaborado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária concluiu-se «como muito provável que a escrita suspeita do grupo I formado em Nota seja da autoria de M. N.».

Na sentença considerou-se provado que:
«5. Em 06/03/2013, a ré enviou a R. C. uma carta do seguinte teor: “Desculpe-me por não ter mandado o prometido, mas foi por motivo de doença, mas agora começa a ser certo todos os meses até ao dia 15 de cada mês e talvez mesmo este mês te mande mais até ao fim do mês”;
6. Em 04/09/2013 e 13/11/2013, a ré enviou cartas a R. C. contendo quantias em dinheiro, de montante não concretamente apurado».

Ao negar conhecer cartas (de 06.03.2013, 04.09.2013 e 13.11.2013) que enviou e que continham dizeres da sua autoria, bem como ao afirmar que todos os dizeres constantes dessas cartas não eram seus quando efectivamente continham escritos da sua autoria, impugnando dessa forma esses documentos, a Ré litigou de má-fé, em conformidade com o disposto no artigo 542º, nº 2, al. b), do CPC. Alterou, com dolo, a verdade dos factos. O dolo é manifesto na medida em que o envio das três cartas, assim como a aposição nas mesmas de escritos feitos pela própria, são factos pessoais. Uma parte não pode, sem consequências, negar num processo conhecer três cartas que enviou e nas quais apôs dizeres, sendo que na de 06.03.2013 fez constar, pelo seu próprio punho: «Desculpe-me por não ter mandado o prometido, mas foi por motivo de doença, mas agora começa a ser certo todos os meses até ao dia 15 de cada mês e talvez mesmo este mês te mande mais até ao fim do mês».
Pior: fê-lo por requerimento que juntou aos autos em 09.01.2019 («tratam-se dos documentos totalmente desconhecidos da Ré, que nunca os subscreveu ou enviou, pelo que se impugnam para todos os efeitos legais») e repetiu-o no acto de prestação do depoimento de parte.
O artigo 20º da Constituição da República Portuguesa garante a todos o acesso ao direito e à tutela judicial efectiva. Em contraposição, tem de haver limites à forma como se exercem os direitos no âmbito do processo civil ou noutros ramos de direito adjectivo. Nem tudo pode ser tolerado no processo, pois o exercício de um direito deve ser compatibilizado com os direitos dos outros. Quem desrespeita os direitos dos outros ou viola deveres que impendem sobre si deve ser responsabilizado pela sua actuação.
Para assegurar o aludido desiderato e um correcto uso dos direitos processuais surge, a par de outros (9), o instituto da litigância de má-fé.
Partindo de um fundamento ético que deve presidir à exercitação dos direitos, a litigância de má-fé tem subjacente o interesse público na correcta administração da justiça. A actuação abusiva dos direitos processuais representa uma instrumentalização do direito processual.
É possível descortinar no seu recorte normativo uma vertente sancionatória (v. art. 542º, nº 1, do CPC e art. 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais) e outra tendencialmente indemnizatória ou reparadora (v. art. 543º do CPC).
Enquanto instituto sancionatório, de âmbito limitado e objectivos práticos, visa não só reprimir um concreto comportamento processual nefasto, como exercer uma função dissuasora da sua ocorrência futura. A multa aplicada pelo juiz a quem tiver litigado de má-fé é, atentos os bens jurídicos tutelados e a finalidade prosseguida, uma sanção.
Neste contexto, tendo presente a moldura do artigo 27º, nº 3, do Regulamento das Custas Processuais, entende-se que a Ré deverá ser condenada como litigante de má-fé numa multa de 4 (quatro) UC.
O Recorrente não peticionou oportunamente na primeira instância que a Recorrida fosse condenada em indemnização a seu favor. Só o fez no âmbito do recurso. Como o comportamento que constitui litigância de má-fé não foi praticado no âmbito do recurso, mas sim no decurso da acção, a questão da fixação da indemnização, tal como resulta do disposto no nº 3 do artigo 543º do Código Civil, tinha que ser objecto de apreciação na primeira instância (na sentença ou, não havendo elementos para a fixar logo, em acto subsequente após audição das partes) (10).
Consequentemente, a falta de formulação, perante o Tribunal recorrido, de pedido de condenação da Ré no pagamento de uma indemnização implica que se considere precludido o exercício de tal direito, pretensão essa que ao ser deduzida pela primeira vez perante a Relação se configura como uma questão nova, que exorbita do objecto lícito do recurso.
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2.3. Sumário

1 – A declaração unilateral de reconhecimento de dívida não cria a obrigação mas apenas faz presumir a existência da mesma, cuja fonte será outro acto ou facto.
2 – Para se presumir a existência da relação fundamental, a declaração de reconhecimento de dívida deve constar, pelo menos, de documento escrito.
3 – Para valer como declaração tácita o comportamento que a revela tem de ser inequívoco e concludente.
4 – O envio de duas cartas com dinheiro no seu interior, desprovidas da emissão de declaração, não consubstanciam qualquer declaração escrita de reconhecimento de dívida.
5 – Litiga de má-fé a parte que declara desconhecer três cartas e que não as enviou nem nelas apôs qualquer escrito, quando se veio a demonstrar que as enviou e que continham dizeres da sua autoria.
6 – O pedido de condenação da parte litigante de má-fé em indemnização à parte contrária deve ser formulado ao tribunal perante o qual foi assumido o comportamento da parte que litigou de má-fé, para ser apreciado na sentença ou, não havendo elementos para fixar logo a indemnização, em acto subsequente após audição das partes.
7 – Não tendo o comportamento que constitui litigância de má-fé sido praticado no âmbito do recurso, mas sim no decurso da acção, não é admissível nas alegações do recurso formular pedido de condenação da parte que litigou de má-fé no pagamento de indemnização à parte contrária.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em conceder parcial provimento à apelação e, em consequência, decide-se:
a) Condenar a Ré, ora Recorrida, como litigante de má-fé, em multa que se fixa em quatro UC;
b) Confirmar no mais a sentença recorrida.
Custas a suportar por Recorrente e Recorrida, na proporção de 4/5 para o primeiro e de 1/5 para a segunda.
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Guimarães, 11.02.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, págs. 168 e 169.
3. Terminando com a “presunção” de que a dívida efectivamente existe.
4. O que ainda conduziria a uma questão não menor, que é a de saber que dívida a Ré teria reconhecido. Se nenhum elemento consta da carta do mandatário do Autor que permita identificar a dívida – pois só alude a elementos que tem em seu poder mas que não indica – dificilmente se pode considerar que houve declaração tácita de aceitação de algo cuja origem não se especifica. Em todo o caso, o que a Ré admitiu foi estar em falta ao “prometido” a R. C..
5. Quando confrontada com a circunstância de nestes autos se pedir o pagamento do preço de fornecimentos efectuados a partir de 2008, disse que «deve haver aí confusão»; esclareceu que comprou uma casa «há 11 ou 12 anos» e que nessa altura pediu à Ré o dinheiro em dívida mas esta não lho deu, continuando em dívida.
6. Direito das Obrigações, 5ª edição, Coimbra Editora, pág. 141.
7. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, pág. 439.
8. Ac. do STJ de 24.05.2007, processo 07A988, acessível em www.dgsi.pt.
9. Por exemplo, o abuso do direito de acção.
10. Neste sentido, veja-se Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, 3ª edição, Almedina, pág. 458. Em idêntico sentido pronuncia-se Paula Costa e Silva, na obra A litigância de má-fé, 2008, sendo que a págs. 598-612, sobre a questão do momento em que o pedido de indemnização deve ser deduzido, afirma que a resolução da questão parte da «necessidade de a apreciação do comportamento da parte ser realizada pelo tribunal perante o qual esta litigou de má-fé».