Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5110/15.7T8VNF-A.G1
Relator: ISABEL SILVA
Descritores: PER
CREDOR
HIPOTECA
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL DAS REGRAS PROCEDIMENTAIS
INEFICÁCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/12/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: a) O PER é um mecanismo dirigido à recuperação da empresa e não uma forma de viabilizar o pagamento dos credores.
b) Portanto, é de entender que os beneficiários de garantias prestadas pela empresa revitalizanda a favor de terceiro, e não estando ainda verificadas as condições de acionamento dessas garantias, não são credores e não devem ser chamados para efeitos de PER, nos termos do nº 1 do art. 17º-D do CIRE.
c) Se ao beneficiário da garantia não é reconhecida a qualidade de credor, também não pode ser depois equacionada/contemplada no plano de recuperação essa hipoteca.
d) A constituição ou modificação/redução de hipoteca voluntária, quando recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública ou documento particular autenticado (art. 714º CC); só pode ser reduzida com o consentimento expresso de quem dela for beneficiário (art. 719º e 731º CC) e só produz efeitos, mesmo inter-partes, depois de registada (art. 688º CC).
e) As regras atrás enunciadas são imperativas, pela que a sua violação importa nulidade (art. 294º CC), vício que também acarreta a inobservância da forma legalmente prescrita (art. 220º CC).
f) A violação das normas imperativas atrás referidas não pode deixar de ser considerado “violação não negligenciável” de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação.
g) No quadro descrito, a sanção para a inserção num plano de recuperação de uma cláusula referente à hipoteca é a ineficácia da cláusula relativamente ao beneficiário da garantia.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - HISTÓRICO DO PROCESSO
1. B., SA (de futuro, apenas Requerente) apresentou-se a processo especial de revitalização (de futuro, apenas PER).
Um dos seus credores é o BANCO C., que reclamou um crédito no valor de € 64.933,95 e que foi reconhecido por esse valor.
Considerando a empresa viável, a Sr.ª Administradora apresentou uma proposta de plano de recuperação que, no que ao caso importa, continha as seguintes medidas: «B.2) Créditos da Banca
1. Pagamento de 100% (cem por cento) do capital em 15 anos, em prestações trimestrais, iguais e sucessivas, com exceção da última prestação que será no montante de 25% (bullet de 25%), a primeira com vencimento no final do trimestre seguinte ao de término do período de carência.
2. Um período de carência de 24 meses após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação.
3. Perdão total dos juros vencidos, bem como de quaisquer outros encargos financeiros, taxas, comissões e despesas bancárias.
4. Juros vincendos à taxa anual de 1%.
5. Pagamento dos juros postecipado, sendo anual durante o período de carência e trimestral durante o período de amortização. O primeiro vencimento de juros ocorrerá um ano após a data do despacho de homologação do plano de recuperação.
6. Manutenção das demais cláusulas dos contratos e garantias existentes.
(…)
B.3) Créditos por Execução de Hipotecas Constituídas
A empresa tem constituída hipoteca do seu prédio misto sito no Lugar …, a favor do Banco C, para garantia de responsabilidades a assumir pela empresa “…, Lda”.
Caso se venha a confirmar o incumprimento por parte dos devedores dessa operação de crédito que resulte na prossecução da execução da hipoteca, a requerente liquidará ao credor hipotecário o montante correspondente à soma dos Valores Patrimoniais Tributários de cada um dos ditos prédios, conforme o evidenciado na inscrição matricial reportada à data do trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação, nas seguintes condições:
1. Pagamento de 100% (cem por cento) desse capital, correspondente ao Valor Patrimonial Tributário, em 10 anos, em prestações trimestrais, a primeira com vencimento no final do trimestre seguinte ao de término do período de carência.
2. Um período de carência de 24 meses após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação.
3. Juros vincendos à taxa anual de 1%.
4. Pagamento dos juros postecipado, sendo anual durante o período de carência e trimestral durante o período de amortização. O primeiro vencimento de juros ocorrerá um ano após a data do despacho de homologação do plano de recuperação.
Este imóvel possuiu um interesse estratégico para a empresa e por conseguinte para a execução do Plano de Recuperação aqui apresentado, na medida em que, e para além do reforço patrimonial que significa a propriedade sobre esse imóvel, o mesmo irradia para os clientes e fornecedores um sinal de credibilidade no futuro da sociedade, o que permitirá e até facilitará o incremento da actividade de intermediação imobiliária a que mais afincadamente a mesma se dedicará.
Estima-se que os cash flows para fazer face a este encargo resultem do exercício do direito de regresso que a empresa terá sobre o devedor originário e outros garantes da referida operação de crédito.»
O Banco C requereu a não homologação do plano apresentado, considerando ilegal o ponto “B.3)”.
O M.mº Juiz proferiu a seguinte decisão: «Como decorre da decisão proferida a fls. 196, o crédito do Banco C foi reconhecido apenas no que respeita ao valor de 64.933, 95 euros, pelo que a invocação de uma redução da sua garantia ao valor de 530.916,10 euros não é aceitável, nem válida no cenário existente.
Assim, não se pode concluir que a aprovação do plano o coloque numa situação menos favorável, e como tal, não é de aplicar o disposto no art.º 215 e 216 CIRE, por força do n.º 5 do art.º 17 F do mesmo diploma legal.
Tendo tal presente, nestes autos de processo especial de revitalização de B., SA, considerando o teor do plano de fls. 218 e ss. e o resultado da votação do mesmo, considero o mesmo aprovado, e decido homologar, nos termos do disposto nos artigos 17.º-F, n.º 5, 215º e 216º, todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o plano de recuperação apresentado nestes autos.»

2. Inconformado, vem o Banco C apelar para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«Primeira: Nos termos do disposto no artigo 215º do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano de insolvência aprovado em assembleia de credores no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza (…).
Segunda: O referido artigo 215º do CIRE é aplicável, com as necessárias adaptações, ao processo especial de revitalização, previsto nos artigos 17º-A a 17º-I do CIRE, como expressamente decorre, aliás, do nº 5 do artigo 17º-F do mesmo CIRE.
Terceira: Para efeitos da não homologação oficiosa do plano de recuperação, ao abrigo daquele artigo 215º do CIRE, deve-se entender como “não negligenciáveis” todas as violações de normas imperativas que acarretam a produção de um resultado que a lei não autoriza, assim como todas as violações de normas que interfiram com a justa salvaguarda dos interesses/posições dos credores.
Quarta: Nos termos do nº 2 do artigo 192º do CIRE o plano só pode afectar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal se ache expressamente autorizado naquele CIRE, ou se ocorrer o consentimento dos interessados.
Quinta: A devedora e requerente do presente processo especial de revitalização, B., S.A., ao constituir, no ano de 2008 e através de competente escritura pública, hipoteca sobre um seu imóvel, a favor do Banco aqui recorrente, para garantir o pagamento pontual de responsabilidades assumidas e a assumir pela sociedade comercial por quotas …, Lda até ao montante, em termos de capital, de € 900.000,00, com o acréscimo dos respectivos juros e demais encargos e despesas, tudo no montante máximo de € 1.218.744,00, fez nascer na esfera jurídica do Banco aqui recorrente o correspondente direito real de garantia que aquela hipoteca representa, o qual só poderá ser reduzido ou extinto nos termos da lei, designadamente através da extinção da obrigação a que serve de garantia ou através de renúncia do credor.
Sexta: O Banco aqui recorrente votou contra ou desfavoravelmente o plano de recuperação apresentado, e não se comprova que a obrigação a que a hipoteca constituída serve de garantia tenha sido extinta por algum modo, ou reduzida seja em que medida for.
Sétima: A medida do plano de recuperação apresentado pela requerente B., constante do Ponto B.3) (Créditos por Execução de Hipotecas constituída), ao prever que a requerente pagará ao Banco aqui recorrente “o montante correspondente à soma dos valores patrimoniais Tributários” dos prédios hipotecados, que é o de € 10.805,82, no prazo de 10 anos e demais condições ali previstas e, bem assim, ao prever, no seu Ponto V, alínea b), que “as acções judiciais em curso, especiais, executivas ou comuns, instauradas contra a sociedade para cobrança dos créditos contra a mesma reclamados, extinguem-se assim que for aprovado e homologado o Plano de Revitalização” , é uma medida que viola o disposto no nº 2 do artigo 192º do CIRE, e, assim, deveria de ter sido motivo para a recusa, oficiosa, por parte do Juiz, na homologação do plano de recuperação ou revitalização.
Oitava: Se é certo que a criação pelo legislador do processo especial de revitalização pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, teve como intuito criar um processo direcionado para a verdadeira recuperação das empresas, em vez do processo “puro” de insolvência, que visa em primeira mão, a satisfação dos direitos dos credores pela liquidação do património da devedora, manteve no entanto aplicável àquele processo especial de revitalização as limitações resultantes do Título IX do CIRE e, em especial, as normas dos já referidos artigos 192º, nº 2, 215º e 216º, nº 1 do mesmo CIRE, por forma a assegurar, pelo juiz, o controlo da legalidade dos actos processuais e/ou a prevenção de situações que possam acarretar a restrição de direitos de algum credor ou interessado, sem o seu consentimento ou autorização.
Nona: Exactamente por a ideia do legislador não ter sido, de todo, obter-se um “Plano a todo o custo” – até porque tal poderia derivar da característica do PER assente na “negociação extrajudicial do devedor com os seus credores” - é que o mesmo legislador manteve o Tribunal com o papel de guardião da legalidade, sindicando o cumprimento da Lei e recusando, de modo oficioso, a homologação de um plano que, designadamente, afecte, de forma ilegal a esfera jurídica dos interessados, ou interfira com os seus direitos, sem o seu consentimento.
Décima: A medida do plano de recuperação apresentado pela requerente B., constante do Ponto B.3) (Créditos por Execução de Hipotecas constituída), implica na prática a redução de um direito real de garantia, sob a forma de hipoteca, existente na esfera jurídica do Banco aqui recorrente, bem como a imposição unilateral da modificação e modo do correspondente direito de acção/execução, sendo que a tudo isso o aqui recorrente não está obrigado a dar o seu consentimento.
Décima Primeira: Ao contrário do que parece transparecer da decisão recorrida, a questão que se coloca não tem a ver com o facto de não ter sido ao Banco aqui recorrente reconhecido ser o mesmo credor da requerente do presente PER pelas quantias ou responsabilidades/créditos que a garantia real de hipoteca abrange e para cujo cumprimento pontual foi garantido, mas antes coma efectiva redução e modificação do âmbito da mesma garantia, sendo aquela questão do reconhecimento ou não do respectivo crédito se deve considerar irrelevante, dado que o nº 2 do artigo 192º fala de “interessados” e de “terceiros”, o que naturalmente significa que o legislador pretendeu estender a correspondente previsão normativa a outras entidades que não meramente os credores do devedor.
Décima segunda: Pelo exposto, deveria ter sido, de forma oficiosa, recusada a homologação judicial do plano de recuperação apresentado pela requerente. Porém e ainda que assim não se entenda:
Décima terceira: Existe igualmente justificação para a recusa de homologação do plano apresentado pela requerente B., S.A., com base no requerimento feito pelo Banco aqui recorrente nos termos e ao abrigo do nº 1 do artigo 216º, porquanto a medida em causa, a ser homologada no âmbito do plano de recuperação apresentado, coloca o Banco aqui recorrente numa situação muito menos favorável do que aquela que derivaria da inexistência dessa medida noutro plano possível , ou numa situação de insolvência e liquidação da aqui devedora e requerente.
Décima Quarta: Na verdade, cifrando-se a dívida que a hipoteca garante em valor superior a seis centenas de milhares de euros, a homologar-se a medida em causa, contida no plano de recuperação apresentado, aquela hipoteca quanto muito funcionará relativamente à quantia de pouco mais de uma dezena de milhares de euros e, ainda assim, dilatando-se no tempo – 12 anos! – o integral pagamento respectivo.
Décima quinta: Ao que acresce que, a ser homologado o Plano em causa e como este prevê que, com essa homologação, extinguir-se-á a acção executiva em que a referida garantia de hipoteca se encontra a ser reclamada para satisfação do seu crédito, vem forçosamente a concluir-se que essa extinção fará também e eventualmente fazer extinguir a hipoteca constituída, e, ainda por cima, sem que haja qualquer garantia especial e idónea para a obrigação de pagamento prevista na medida apresentada pela aqui requerente.
Décima sexta: Pelo que, em tal cenário, ocorre o perigo de não só se esvaziar por completo o direito real de garantia constituído a favor do Banco aqui recorrente, como este não vir sequer a beneficiar dessa hipoteca ou garantia idêntica que assegure o pagamento das quantias que a requerente se propõe pagar com a medida apresentada no seu plano de recuperação.
Décima sétima: Já no cenário de vir a ocorrer a insolvência da requerente e posterior liquidação do seu património, o Banco aqui recorrente sempre concorreria em tal liquidação como credor privilegiado, pelo que, mesmo sabendo-se e tendo-se consciência que os bens – designadamente , os imóveis – vendidos em execução ou processo de insolvência são-no, geralmente, por valor inferior ao real, certo é que resulta dos elementos já carreados para os autos – atendendo especialmente às áreas dos mesmos, quer totais, quer de construção – que muito dificilmente tais imóveis seriam vendidos por preço aproximado do seu valor patrimonial tributável, antes e seguramente por um valor bem superior.
Décima oitava: Torna-se assim claro, evidente e, até, notório que a homologação do plano de recuperação em presença, ao conter a medida em causa com os inerentes reflexos na esfera jurídica do Banco aqui recorrente, colocará este numa situação, altamente previsível e até elevadamente provável, bem mais desfavorável do que aquela que lhe permita reivindicar em liquidação ou execução do imóvel dado em hipoteca, a satisfação do seu direito de crédito.
Décima Nona: Pelo que, igualmente por força do disposto na alínea b) do nº 1 do artigo 216º do CIRE, impõe-se a não homologação do plano de recuperação apresentado pela requerente neste processo especial de revitalização.
Nestes termos – e nos mais de Direito que V.Exªs mui doutamente suprirão – deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, proferir-se Acórdão que, revogando a decisão recorrida, decida pela recusa da homologação do plano de recuperação ou de revitalização da sociedade requerente do presente processo especial de revitalização, com todas as demais consequências legais, No que farão V.Exªs a sempre Inteira e Costumada JUSTIÇA!»

3. A Requerente contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
4. Em termos FACTUAIS releva aqui o atrás referido no relatório.

5. O MÉRITO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art. 608º nº 2, ex vi do art. 663º nº 2, do Código de Processo Civil (de futuro, apenas CPC).
A questão a decidir cifra-se em saber se deve ser recusada a homologação do plano de recuperação por violadora de regras legais.
Antes, porém, há que atentar na especialidade da situação da Apelante que, no que ao caso importa, é mera beneficiário de uma hipoteca que a Requerente do PER constituiu a seu favor para garantir dívida alheia.
Incumbe, assim, abordar os institutos jurídicos em jogo para dar resposta à questão.

A) - A primeira questão que se suscita é a de saber se o Recorrente Banco C é credor da Requerente para esse efeito, seja porque ao PER apenas interessa o devedor e respetivos credores, seja porque apenas os credores têm legitimidade para impugnar e requerer a não homologação do PER: nº 1 do art. 17º-A, nº 3 do 17º- D e nº 1 do art. 216º, este ex vi do nº 5 do art. 17º-F, todos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (de futuro, apenas CIRE).
Sendo a “obrigação o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação” (art. 397º do CC), credor será o titular do direito a essa prestação.
Por seu turno, as garantias especiais, como é o caso da hipoteca, destinam-se a reforçar «a consistência económico-jurídica do vínculo obrigacional» e, porque dum reforço se trata, destinam-se a «ser executadas no caso de não cumprimento da obrigação» (1)
A função da garantia é, pois, a de estar ao serviço do crédito, é acessória dele e só existe na medida em que existir a obrigação garantida, extinguindo-se com esta: art. 730º al. a) do CPC.
Por regra, a hipoteca é constituída sobre bens do próprio devedor, mas pode sê-lo também sobre os imóveis de um terceiro, estranho à relação obrigacional primária, que se disponha a garantir que a obrigação do devedor será satisfeita.
Assim, quando a garantia é constituída por terceiro, a hipoteca, de per si, não transforma desde logo o seu beneficiário em credor; ou, dito de outra forma, o terceiro beneficiário é credor da obrigação de garantia, mas não credor da obrigação principal, cujo cumprimento compete ao devedor.
Daqui decorre que, para que o beneficiário de uma hipoteca constituída a favor dum terceiro só pode acionar a sua garantia depois de demonstrado o incumprimento do devedor e a interpelação do garante para cumprir.
Só então ele adquire a qualidade de credor do garante.
Da mesma feita, a partir do momento em que cumpre, o garante fica credor do garantido, na medida do cumprimento que efetuou.
No caso, e segundo os dados dos autos, não está demonstrada esta dupla condição.
Portanto, entendido no sentido estrito, o BCP não é credor da Requerente do PER (o crédito do BANCO C é sobre a …), mas apenas beneficiário de uma garantia por si prestada.

B) - Dirigido a empresas viáveis, mas que lutam com dificuldades económicas e em cumprir pontualmente os seus compromissos, o PER constitui um mecanismo de reestruturação, negociado extrajudicialmente entre o devedor e os seus credores, pretendendo-se que as suas dificuldades sejam ultrapassadas e a empresa possa manter-se em atividade.
Assim se consegue a “redução de perdas dos credores”, se evitam “os efeitos sociais e económicos negativos que advêm da liquidação de uma empresa” e se almeja “uma maior eficiência e celeridade do sistema judicial” – pode ler-se na Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25.10. (2)
Assim, o PER é um mecanismo dirigido à recuperação da empresa e não uma forma de viabilizar o pagamento dos credores.
Portanto, é de entender que os beneficiários de garantias prestadas pela empresa revitalizanda a favor de terceiro, e não estando ainda verificadas as condições de acionamento dessas garantias, não são credores e não devem ser chamados para efeitos de PER, nos termos do nº 1 do art. 17º-D do CIRE.

C) – Resulta dos autos que o Banco C tem um crédito sobre a Requerente no valor de € 64.933,95, o qual lhe foi integralmente reconhecido e que, atendendo à sua natureza de entidade bancária, irá ficar sujeito à medida prevista para os demais “Créditos da Banca” insertos no ponto “B.2” da proposta.
Neste particular, o Banco C. é efetivamente credor da revitalizanda.
Quanto a este crédito, o Banco C nada diz, e nem o poderia pois está em absoluta igualdade de circunstâncias com os demais.

D) – Porém, o Banco C é titular de outra relação jurídica com a revitalizanda.
Na verdade, o Banco C é credor da “…” pelo montante € 633.090,93 e, para garantia do cumprimento desse crédito, a Requerente do PER constituiu a favor Banco C uma hipoteca sobre um imóvel de sua propriedade, até um montante máximo de € 1.218.744,00.
A discordância do Recorrente Banco C refere-se a esta garantia prestada pela Requerente do PER, constante da medida do plano sob o ponto “B.3)”.

Pelo já atrás referido, não se tendo demonstrado que a “…” haja entrado em incumprimento perante o Banco C e que este haja acionado a hipoteca perante a empresa revitalizanda, bem se andou em não reconhecer a sua qualidade de credor para esse efeito e que não se tenha reconhecido o seu “crédito de € 633.090,93”. (3)
Com estes contornos, o Banco C é beneficiário da hipoteca constituída pela empresa Requerente do PER, mas não é, ainda, seu credor.
Não se duvida da importância estratégica de a hipoteca ter sido contemplada e prevenida no plano de recuperação, bastando atentar que, lutando já a revitalizanda com dificuldades económico-financeiras, o acionamento da garantia (que versa sobre o imóvel que é a sua sede e atento o seu elevado montante) certamente porá em causa a sua viabilidade e os objetivos do plano de recuperação.
Porém, já vimos que o PER, e o consequente plano de recuperação, respeita apenas aos credores e que, neste âmbito da hipoteca (e consequente “crédito de € 633.090,93”), não lhe foi reconhecida essa qualidade.
Assim, se para este efeito não lhe foi reconhecida a qualidade de credor, também não pode ser depois equacionada/contemplada no plano de recuperação a garantia de hipoteca!

E) – De acordo com o art. 714º do CC, a constituição ou modificação da hipoteca voluntária, quando recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública ou documento particular autenticado.
Nos termos do art. 719º e 731º do CC, a hipoteca só pode ser reduzida com o consentimento expresso de quem dela for beneficiário, consentimento este a efetuar pela forma exigida para a sua constituição.
A redução da hipoteca, tal como a sua constituição, só produz efeitos, mesmo inter-partes, depois de registada: art. 688º do CC.
Nas medidas expressas no ponto B.3) do plano de recuperação, estatui-se que “a requerente liquidará ao credor hipotecário o montante correspondente à soma dos Valores Patrimoniais Tributários de cada um dos ditos prédios, conforme o evidenciado na inscrição matricial reportada à data do trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação, nas seguintes condições:
1. Pagamento de 100% (cem por cento) desse capital, correspondente ao Valor Patrimonial Tributário, em 10 anos, em prestações trimestrais, a primeira com vencimento no final do trimestre seguinte ao de término do período de carência.
2. Um período de carência de 24 meses após a data de trânsito em julgado do despacho de homologação do plano de recuperação.
3. Juros vincendos à taxa anual de 1%.”
Sabido que o crédito garantido é de € 633.090,93, que a hipoteca está registada por um montante máximo de € 1.218.744,00 e que o valor patrimonial de ambos os prédios soma € 10.796,71, pretender-se agora que a empresa garante apenas viesse a “liquidar” apenas o valor equivalente ao valor patrimonial dos prédios significa uma redução da hipoteca.
Nessa medida, sempre seria necessário o consentimento do beneficiário da garantia, o acordo do BCP, que não foi dado.
As regras atrás enunciadas são imperativas, pela que a sua violação importa nulidade (art. 294º do CC), vício que também acarreta a inobservância da forma legalmente prescrita (art. 220º do CC).

De acordo com o art. 215º do CIRE, ex vi do nº 5 do art. 17º-F, o juiz recusa oficiosamente a homologação do plano aprovado no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza.
A violação das normas imperativas atrás referidas não pode deixar de ser considerado “violação não negligenciável” de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação aqui em causa. (4)

F) - Com esse fundamento, peticiona a Apelante a não homologação do plano.
Será essa a sanção a aplicar? A nulidade da “medida”/cláusula comunica-se a todo o plano, impondo a sua desconsideração total?
O plano de recuperação envolve necessariamente a articulação de um conjunto de fatores e deve ser visto como um todo.
Ele não pode ser visto como uma mera soma de medidas de sustentabilidade da empresa; certamente também muito importante à votação dos credores é o equilíbrio e a interconexão que vêm no tratamento das suas posições relativas. A falha de uma das soluções pode repercutir-se noutras e impedir o sucesso do plano na sua globalidade.
Nessa medida, o plano não pode ser homologado só parcialmente (ao jeito da redução dos negócios jurídicos, art. 292º do CC), por exemplo com a desafetação de um dos seus credores ou dele expurgando apenas as cláusulas nulas.
Como regra, a homologação, ou não homologação, deve ser in totum.
Todavia, as circunstâncias do caso presente aconselham outra solução, que não a recusa de homologação por “violação não negligenciável” de normas imperativas.
Desde logo, porque as condições que o plano contempla relativamente à hipoteca do BCP não passam de meras hipóteses (“caso se venha a confirmar o incumprimento por parte dos devedores dessa operação de crédito que resulte na prossecução da execução da hipoteca…”).
Depois, porque a justificação apresentada para a redução da hipoteca — Este imóvel possuiu um interesse estratégico para a empresa e por conseguinte para a execução do Plano de Recuperação aqui apresentado, na medida em que, e para além do reforço patrimonial que significa a propriedade sobre esse imóvel, o mesmo irradia para os clientes e fornecedores um sinal de credibilidade no futuro da sociedade, o que permitirá e até facilitará o incremento da actividade de intermediação imobiliária a que mais afincadamente a mesma se dedicará. Estima-se que os cash flows para fazer face a este encargo resultem do exercício do direito de regresso que a empresa terá sobre o devedor originário e outros garantes da referida operação de crédito.» — não é de molde a sustentar com seriedade que a inexistência dessa cláusula ponha em risco a viabilização da empresa.
Na verdade, a existência da hipoteca não põe em causa, de modo direto, a “propriedade do imóvel”, o que só acontecerá se a hipoteca for acionada e a empresa não pagar; o “reforço patrimonial”, a existir, redundará no património geral da empresa e não no imóvel propriamente dito; por norma, os clientes e fornecedores de uma empresa nem sequer sabem quais os imóveis que constituem o seu património, e muito menos quais as garantias que os oneram; também não se vê em que medida a redução da hipoteca possa incrementar o exercício da “atividade de intermediação imobiliária”.
Também resulta da experiência que, quando uma hipoteca é acionada e executada, tal significa que o devedor originário já não tem capacidade para saldar a sua dívida, pelo que carece de credibilidade a medida que estima que os cash flows para fazer face ao encargo de pagamento da quantia subjacente à hipoteca advenham do exercício do direito de regresso que a empresa terá sobre o devedor originário.
Mas essencialmente, o argumento maior, porque como se viu, no que toca à hipoteca, o BCP nem sequer pode ainda ser considerado credor da empresa revitalizanda, antes devendo ser considerado um terceiro.
«O negócio jurídico é ineficaz quando por qualquer motivo legal não produz todos ou parte dos efeitos que, segundo o conteúdo das declarações de vontade que o integram, tenderia a produzir. (…)
Abrange todas as hipóteses em que, por qualquer motivo, interno ou externo, o negócio jurídico não deva produzir os efeitos a que se dirigia. (…)
Diz-se absoluta a ineficácia erga omnes, a que pode ser invocada por qualquer interessado e opera ipso iure. Ineficácia relativa é a ineficácia apenas em relação a cartas pessoas, em favor das quais foi estabelecida, e só estas poderão invocá-la. Idêntica, ou em todo o caso muito próxima desta última, é a figura da inoponibilidade.» (5)
Daqui decorre que ao caso cabe antes a figura da ineficácia da medida pugnada para o Apelante, solução que, sem deixar de acautelar a sua posição de terceiro, também não deixa de manter homologado um plano de recuperação em que os efetivos credores da revitalizanda acreditaram, posto que o votaram favoravelmente e dos autos não resulta qualquer indício (designadamente contra-alegações) de que o não votariam sem essa cláusula.
«O plano de insolvência, assente numa ampla liberdade de estipulação pelos credores do insolvente, constitui um negócio atípico, sendo-lhe aplicável o regime jurídico da ineficácia, por isso o Plano de Recuperação da empresa que for aprovado, não é oponível ao credor ou credores que não anuíram à redução ou à modificação lato sensu dos seus créditos. (…)
«A nulidade, a mais drástica sanção, abreviará em regra – art. 17º-G do CIRE – o caminho para a insolvência nos termos do nºs 2 e 3. Já se for considerada a ineficácia relativa, a devedora pré-insolvente não entra em estado de insolvência.» (6)

6. SUMARIANDO (art. 663º nº 7 do CPC)
a) O PER é um mecanismo dirigido à recuperação da empresa e não uma forma de viabilizar o pagamento dos credores.
b) Portanto, é de entender que os beneficiários de garantias prestadas pela empresa revitalizanda a favor de terceiro, e não estando ainda verificadas as condições de acionamento dessas garantias, não são credores e não devem ser chamados para efeitos de PER, nos termos do nº 1 do art. 17º-D do CIRE.
c) Se ao beneficiário da garantia não é reconhecida a qualidade de credor, também não pode ser depois equacionada/contemplada no plano de recuperação essa hipoteca.
d) A constituição ou modificação/redução de hipoteca voluntária, quando recaia sobre bens imóveis, deve constar de escritura pública ou documento particular autenticado (art. 714º CC); só pode ser reduzida com o consentimento expresso de quem dela for beneficiário (art. 719º e 731º CC) e só produz efeitos, mesmo inter-partes, depois de registada (art. 688º CC).
e) As regras atrás enunciadas são imperativas, pela que a sua violação importa nulidade (art. 294º CC), vício que também acarreta a inobservância da forma legalmente prescrita (art. 220º CC).
f) A violação das normas imperativas atrás referidas não pode deixar de ser considerado “violação não negligenciável” de normas aplicáveis ao conteúdo do plano de recuperação.
g) No quadro descrito, a sanção para a inserção num plano de recuperação de uma cláusula referente à hipoteca é a ineficácia da cláusula relativamente ao beneficiário da garantia.

III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação de Guimarães em julgar procedente a apelação, decidindo-se que a decisão que homologou o plano de revitalização é ineficaz em relação ao Recorrente Banco C no tocante ao clausulado no seu ponto “B.3) Créditos por Execução de Hipoteca Constituída”.
Sem custas.
Guimarães, 12.07.2016

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(Relatora, Isabel Silva)

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(1ª Adjunto, Heitor Gonçalves)

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(2º Adjunto, Amílcar Andrade)
(1) Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, Almedina, pág. 420.
(2) Disponível em http://www.iapmei.pt/iapmei-leg-03.php?lei=7980
(3) Foi efetuada impugnação deste crédito, a qual foi considerada procedente, e essa decisão não foi impugnada, nem então, nem agora.
(4) Neste sentido, de violação de “nulidades tipificadas na lei”, Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Quid Juris, 2008, anotação 5, in fine, pág. 714.
Em termos jurisprudenciais, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), de 09.07.2014 (processo 3525/12.1TBPTM-A.E1.S1, Relator Fernandes do Vale); do Tribunal da Relação de Coimbra (TRC), acórdão de 16.03.2016 (processo 112/16.9T8LRA-A.C1, Relatora Maria Domingas Simões) e do Tribunal da Relação do Porto (TRP), de 08.07.2015 (processo 261/14.8TYVNG.P1, Relator Manuel Domingos Fernandes), todos disponíveis em www.gde.mj.pt, sítio a considerar nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
(5) Manuel de Andrade, “Teoria Geral da Relação Jurídica”, vol. II, Coimbra, 1983, pág. 411-412.
(6) Acórdão do STJ de 18.02.2014 (processo 1786/12.5TBTNV.C2.S1, Relator Fonseca Ramos).
No mesmo sentido, e do mesmo STJ, acórdão de 24.03.2015 (processo 664/10.7TYVNG.P1.S1, Relatora Ana Paula Boularot), de 13.11.2014 (processo 217/11.2TBBGC-R.P1.S1, Relator Fonseca Ramos) e de 01.04.2014 (processo 185/13.6TBCHV-A.P1.S1, Relator Fernandes do Vale).
Já optando pela nulidade parcial, das cláusulas violadoras de normas imperativas, o acórdão de 13.11.2014 (processo 3970/12.2TJVNF-A.P1.S1, Relator Salreta Pereira).