Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1502/07-2
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
UNIÃO EUROPEIA
REGULAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/12/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: I - Estando as partes domiciliadas em Estados-Membros da União Europeia, há que atentar obrigatoriamente aos ditames do Regulamento (CE) Nº 44/2001 do Conselho Relativo à Competência Judiciária em Matéria Cível e Comercial, quando a causa de pedir seja um contrato. II- Os ditames deste Regulamento sobrepõem-se aos do artº 65º do CPC. II - A regra no Regulamento é a da competência dever recair sobre os tribunais do Estado-Membro onde está domiciliada a pessoa demandada. III- Mas há excepções, reportando-se uma delas à demanda em matéria contratual, pois que neste caso podem ser actuados os tribunais do Estado-Membro onde a obrigação foi ou deva ser cumprida.
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na Relação de Guimarães:

A domiciliada em Portugal, requereu, pela Secretaria do Tribunal Judicial da Comarca de Guimarães, procedimento de injunção contra B, domiciliada na Alemanha, alegando ter vendido a esta produtos do seu comércio, cujo preço a compradora não pagou. Juntou subsequentemente as facturas atinentes à alegada venda.
Notificada a requerida, deduziu esta a incompetência internacional do tribunal, pois que, a seu ver, o pedido de pagamento em causa teria que ser apresentado perante os tribunais alemães. Alegou, por outro lado, que a requerente não lhe vendeu nem a requerida comprou os produtos a que alude a primeira, de sorte que pagamento algum é devido. Impugnou as facturas juntas pela requerente, que qualificou de falsas.
Os autos vieram a ser distribuídos, seguindo seus termos processuais.
Foi levada a cabo uma audiência preliminar, na qual a requerente respondeu à excepção da incompetência, sendo depois, atinentemente, proferida a seguinte decisão: “O tribunal é internacionalmente competente, atento o disposto no artº 65º, nº 1, alínea c) do CPC”. Foi dada sequência aos autos, sendo organizada base instrutória, que teve por objecto os factos controvertidos tendentes a saber se entre as partes foi ou não celebrado o contrato de compra e venda aludido pela requerente.

Inconformada com o decidido quanto à arguida incompetência internacional, agrava a ré.

Da respectiva alegação extrai as seguintes conclusões:

1ª - Tendo sido posta em causa a própria existência de qualquer contrato entre a Autora e a Ré não podia o Mmo. Juiz pronunciar-se sobre a competência do Tribunal antes de ser feita a prova.
2ª - Por isso mesmo o Mmo. Juiz quesitou a factualidade sobre a existência ou não do contrato (quesitos 1° a 3° e 5° da Base Instrutória)
3ª - Houve assim conhecimento da competência do Tribunal antes de ser feita a prova, o que constitui a nulidade da alínea d) 28 parte do nº 1 do Artigo 668° do C.P.C., que aqui se argúi.
4ª - O Mmo. Juiz ignorou a existência das normas de competência comunitária do Regulamento CE 44/2001 e aplicou erradamente ao caso o Artigo 65° n.01 c) do C.P.C.
5ª - Este facto além de violar a disposição expressa do Artigo 3° do Regulamento referido, violou também o Artigo 8° da Constituição da República Portuguesa.
6ª - O devedor, neste caso, deveria ter sido demandado no seu domicílio em Mainhausen na Alemanha, por força do Artigo 2° do Regulamento CE 44/2001, já que é inaplicável ao caso dos autos (uma vez que se negou a existência do contrato) qualquer outra disposição do Regulamento nomeadamente o Artigo 5°.
Sem prescindir,
7ª - Muito menos disse o Mmo. Juiz que factos da causa de pedir ocorreram em Portugal, pois faz apenas uma referência ao Artigo 65° nº 1 c) do C.P.C. sem indicar na sua fundamentação a razão dessa aplicação.
8ª - Houve falta de fundamentação desse despacho, o que o torna nulo nos termos do artigo 668 nº 1 alínea b) do C.P.C. o que aqui se argúi.
9ª - O douto despacho recorrido ao considerar competente o Tribunal português ao abrigo do Artigo 65° nº 1 c) do C.P.C., aplicou erradamente o Artigo 65° nº 1 c) do C.P.C., violou o disposto no Artigo 510° nº 1 a) do C.P.C. e nos Artigos 2° e 3° do Regulamento CE 44/2001 bem como o Artigo 8° da Constituição da República Portuguesa.

Termina dizendo que deve “o presente Recurso de Agravo ser julgado procedente, declarando-se o Tribunal Português internacionalmente incompetente nos termos acima referidos”.

+

Não foi oferecida contra-alegação.

Foi proferido despacho de sustentação.

+

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

+

Quanto à matéria da nulidade da decisão recorrida (conclusões 3ª, 7ª e 8ª):

Diz aqui a agravante que a decisão recorrida padece de nulidade, nos termos das alíneas b) e c) do nº 1 do artº 668º do CPC.
Carece de razão.
Só padece da nulidade prevenida na alínea b) a decisão que omite por completo os fundamentos em que assenta, e não a decisão meramente ineficiente ou medíocre (v. Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 698). Não é o caso, visto que o despacho recorrido indica as normas legais em que se apoia (alíneas b) e c) do nº 1 do artº 65º do CPC) e, implicitamente, as razões de facto que lhe servem de fundamento (ou seja, as razões factuais identificáveis nas normas citadas).
Também a decisão recorrida não padece da nulidade prevenida na alínea c), visto que conheceu de matéria que podia conhecer. Apenas acontece que, como a seguir se dirá, conheceu mal. Mas o erro de decisão (error in judicando) nada tem a ver com as nulidades de decisão (error in procedendo).
Improcedem pois as conclusões nesta parte.


Quanto à matéria das demais conclusões:

A decisão recorrida não é de subscrever.
A demandada é uma entidade estrangeira, domiciliada no estrangeiro.
O que, desde logo, obriga a procurar saber se os tribunais portugueses, em atenção a estas variáveis influenciadoras da competência, detêm competência internacional para conhecer da causa, sendo em todo o caso certo que a ora agravante suscitou a questão.
Estando as partes domiciliadas em Estados-Membros da União Europeia – Portugal e Alemanha – há que atentar obrigatoriamente aos ditames do Regulamento (CE) Nº 44/2001 do Conselho Relativo à Competência Judiciária (e ao Reconhecimento e à Execução de Decisões) em Matéria Cível e Comercial. Tais ditames sobrepõem-se aos do artº 65º do CPC, como aliás está implícito no nº 1 desta mesma norma, bem como decorre quer do artº 8º da CRP, quer do nº 2 do artº 3º do citado Regulamente (conjugado com o anexo I ao mesmo Regulamento), quer do (actual) artº 249º do Tratado que instituiu a Comunidade Europeia (Tratado de Roma). Os tribunais portugueses devem obediência quer à lei interna, quer à lei comunitária. Todavia, na articulação entre a ordem jurídica interna e a ordem jurídica comunitária, foi criado, sobretudo a partir da jurisprudência do TJCE, o princípio do primado do direito comunitário. V. Fausto de Quadros, Direito das Comunidades Europeias, pág. 93; João Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, pág. 367 e sgts; Paula Quintas, Da Problemática do Efeito Directo nas Directivas Comunitárias, pág. 35 e sgts; Miguel Gorjão-Henriques, Direito Comunitário, pág. 225 e 226.. Como assim, desde que as normas de direito comunitário sejam directamente aplicáveis na ordem interna – é o caso dos regulamentos -, os tribunais não podem deixar de aplicar estas e desaplicar normas de direito interno na medida em que conflituem entre si.
Ora, a regra no falado Regulamento é a da competência dever recair sobre os tribunais do Estado-Membro onde está domiciliada a pessoa demandada (artº 2º, nº 1). Mas há excepções. Uma delas reporta-se à demanda em matéria contratual, pois que neste caso podem ser actuados os tribunais do Estado-Membro onde a obrigação foi ou deva ser cumprida (tratando-se de compra e venda o lugar do cumprimento da obrigação será aquele onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues), conforme o estabelecido no artº 5º, nº 1 a) e b) do Regulamento.
Perante o que fica dito, bem se vê que a decisão recorrida, ao apontar para o artº 65º do CPC, está errada. Aliás, mesmo que não existisse ou não fosse aplicável o apontado Regulamento, sempre a decisão recorrida estaria errada, pois que haveria então que atender ao disposto nas convenções de Bruxelas e de Lugano, ratificadas por Portugal e pela Alemanha, que imporiam a obrigação de desaplicar o artº 65º do CPC.
Conforme decorre dos autos, está em causa uma relação contratual de compara e venda. Está controvertido se o contrato foi celebrado entre partes. Está também controvertido, em estrita decorrência disto, se a obrigação da autora (a entrega da mercadoria) foi cumprida em Portugal (das facturas juntas, a serem verdadeiras, decorre que o local de entrega foi no Porto, em regime de free on board [cláusula FOB], facturas essas que completam o requerimento inicial. Os documentos juntos com a petição inicial (ou, como foi o caso, juntos em decorrência do alegado na petição inicial) devem ter-se como parte integrante desse articulado, e suprem as suas omissões ou ineficiências (v. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, 2º, pág. 204). Portanto, considera-se que a requerente alegou que a entrega da coisa vendida foi feita no Porto.). Se assim for, isto é, se o contrato foi efectivamente celebrado e o local da entrega foi no Porto, os tribunais portugueses (rectius, o tribunal ora recorrido) terão competência internacional. Se assim não for, não terão.
Não há, portanto, elementos de facto que permitam definir desde já se os tribunais portugueses têm ou não competência internacional. Somente a final (artº 660º, nº 1 do CPC), produzida a prova necessária, poderá ser a questão decidida.
Portanto, tem assim razão a agravante, no que diz nas conclusões 1ª, 2ª, 4ª, 5ª e 9ª.
Carece todavia de razão no que diz na conclusão 6ª, pois que, conforme o que acaba de ser referido, não está afastada a possibilidade do tribunal ora recorrido possuir competência internacional. O que significa que, adversamente ao pretendido pela agravante (aliás contraditoriamente com o que diz na conclusão 1ª), não há que desde já, em sede do presente recurso, declarar o tribunal português internacionalmente incompetente.


+

Decisão:


Pelo exposto, acordam os juízes nesta Relação em conceder parcial provimento aos fundamentos do agravo e, em consequência, revogam o despacho recorrido e relegam para a sentença o conhecimento da excepção da incompetência internacional do tribunal.




Regime de Custas:

Custas de recurso pela agravada.

**


Guimarães, 12 de Julho de 2007

Manso Rainho
Rosa Tching
Espinheira Baltar