Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3584/20.3T8VCT-A.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: INVENTÁRIO
REGIME DE SEPARAÇÃO DE BENS
ÓNUS DE OPOSIÇÃO E IMPUGNAÇÃO
PRECLUSÃO DO DIREITO
CASO JULGADO FORMAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/30/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O art. 30º da Lei nº23/2013, de 05/03 tem que ser interpretada no sentido de consagrar (tal como actualmente sucede no art. 1104º do C.P.Civil de 2013, na redacção dada pela Lei nº117/2019), no anterior regime do inventário, um concreto e efectivo ónus de oposição e impugnação, e não uma mera faculdade, já que o decurso do prazo de 20 dias determina efeitos preclusivos quanto às questões elencadas nas alíneas do seu nº1, já que a não impugnação dos respectivos elementos factuais e documentais vertidos no requerimento inicial, e/ou nas declarações do cabeça-de-casal, produz os efeitos previstos nos arts. 566º, 567º e 574º (ex vi art. 549º/1) do C.P.Civil de 2013, uma vez que o art. 82º da Lei nº23/2013 determina a aplicação deste Código «em tudo o que não esteja especialmente regulado na presente lei» (e nesta matéria, a Lei nº23/2013 nada prevê).
II - Não tendo dado cumprimento ao ónus de oposição e impugnação (no respectivo prazo legal) consagrado no art. 30º da Lei nº23/2013, precludiu o correspondente direito, e, por via disso, o Requerido ficou legalmente impedido de, nomeadamente, vir a juízo deduzir qualquer fundamento de oposição à admissibilidade do inventário e/ou suscitar quaisquer excepções dilatórias, com ressalva da verificação da situação de superveniência prevista no art. 588º do C.P.Civil de 2013 (aplicável ex vi do art. 82º da Lei nº23/2013, quando o processo estava pendente no cartório notarial, ou aplicável ex vi do art. 549º/1 do C.P.Civil de 2013, quando o processo foi remetido a Tribunal).
III - O caso julgado só se forma relativamente a questões concretamente apreciadas, não se esgotando o poder jurisdicional relativamente a questões sobre as quais o julgador não se pronunciou expressamente.
IV - Na interposição de recurso relativamente a uma decisão judicial do Tribunal a quo não é legalmente admissível impugnar uma anterior decisão judicial (proferida pelo mesmo Tribunal a quo) e que constitui caso julgado formal no mesmo processo judicial.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO
1.1. Da Decisão Impugnada

Na data de 23/05/2016, na qualidade de ex-cônjuge, AA requereu no Cartório Notarial ..., em ..., inventário para partilha por divórcio entre si e o ex-cônjuge BB, indicado que existem bens a partilhar e que o regime de bens era o da comunhão de adquiridos.
Na data de 11/09/2017, a Requerente/Cabeça-de-casal prestou o compromisso de honra e as declarações de cabeça-de-casal, no âmbito das quais se consignou que «o presente inventário se destina à partilha dos bens comuns do casal dissolvido, AA e BB, e casados que foram entre si no regime da comunhão de adquiridos», que «os interessados são a Requerente/Cabeça-de-casal AA e o Requerido BB», e que «da constância do casamento, existem bens a partilhar».
Na mesma data, a Requerente/Cabeça-de-casal apresentou relação de bens, que foi corrigida, através do requerimento de 21/09/2017, da qual consta apenas «ACTIVO», integrado por uma verba relativa a um direito de crédito e treze verbas relativas a bens móveis.
Na data de 18/01/2018, o Requerido foi citado «na qualidade de interessado(a) directo(a) na partilha em consequência de divórcio, e ex-cônjuge da requerente, para os termos do processo de inventário acima identificado, podendo nele intervir como parte principal, em todos os seus actos e termos (…) Mais informo, que caso o pretenda, poderá nos termos do n°1 artigo 30° do RJPI, e dentro do prazo de 20 dias, contados da data da assinatura do aviso de recepção: deduzir oposição ao inventário, impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros, impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações, ou invocar quaisquer excepções dilatórias (…) pode, no mesmo prazo, reclamar contra a relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, da qual se junta cópia, acusando a falta de bens que devam ser relacionados, requerendo a exclusão de bens indevidamente relacionados, por não fazerem parte do acervo a dividir; ou arguindo qualquer inexactidão na descrição dos bens que releve para a partilha (…)».
Através de requerimento apresentado em juízo na data de 08/02/2018, o Requerido reclamou contra a relação de bens, alegando, essencialmente, que: «não existem os bem relacionados nas verbas n.ºs 4, 10 e 14 da relação de bens; falta relacionar o produto da venda do bem imóvel que era do casal, no valor de € 122.000,00 na posse da cabeça de casal; falta relacionar o prédio rústico, com o valor patrimonial atribuído de € 62,38; falta relacionar o prédio rústico, com o valor patrimonial atribuído de € 13,03; falta relacionar uma dívida do património comum ao interessado, ora reclamante, pelo pagamento deste, a expensas exclusivamente suas e com dinheiro próprio, do IMI relativo aos bens que integram o património comum, desde o ano de 2006 e até ao ano de 2017, no valor total de € 1.520,91: e os bens relacionados estão super avaliados».
Na data de 06/11/2020, foi proferido despacho, no qual se decidiu (para além do mais) «Uma vez que foi requerido a remessa dos presentes autos para o tribunal, que tal requerimento está subscrito por interessado, que a outra parte, notificada para o efeito, nenhuma objecção levantou e que efectivamente estava cumprido à data do requerimento, o pressuposto da alinea b) do nº2 do art. 12º, defere-se o requerido e determino nos termos do nº 1 do art. 13º da Lei 117/2019 de 13 de Setembro, a remessa dos presentes autos para o tribunal competente em razão da matéria, nos termos do nº2 do art. 122° da Lei 62/2013 de 26 de Agosto, o Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo de Família e Menores».
O processo passou a correr os seus termos no Juiz ... do Juízo de Família e Menores ....
Por decisão proferida em 21/01/2021, foi julgada «parcialmente improcedente a reclamação» deduzida pelo Requerido.
Por despacho de 09/09/2021, foi designada data para a realização da conferência de interessados.

Na data de 04/10/2021, o Requerido apresentou requerimento com o seguinte teor:
“vem dizer e requerer o seguinte:
Requerente e Requerido celebraram casamento civil em ..., conforme assento de casamento que se junta.
Sucede que, no casamento celebrado no estrangeiro por dois portugueses, caso não seja precedido de processo preliminar de casamento perante autoridades dos serviços de registo civil nacionais, impera o regime da separação de bens, nos termos do artigo 1720.º, n.º1, al. a) do Código Civil.
Ora, é, aparentemente, esse o caso de Requerente e Requerido, pelo que estavam os ex-cônjuges casados no regime imperativo de separação de bens, não havendo assim comunhão de património por efeito do casamento.
Assim, o processo próprio para se apreciar a eventual divisão das benfeitorias que a Requerente alega serem também suas, o que não se concede, é o processo de divisão de coisa comum.
Perece, portanto, o presente processo de Inventário, pois a finalidade última deste processo é a partilha, devendo ser extinta a instância, o que se requer.
Mais se requer que se notifique o Consulado de Geral de Portugal em ... (6-8, Rue ... ...), para que este certifique a eventual realização ou não do processo preliminar de casamento junto, designadamente, do Consulado de Portugal em ..., em ...”.  
Por requerimento apresentado na data de 11/10/2021, a Requerente/Cabeça-de-casal pugnou pelo indeferimento da pretensão do Requerido formulada naquele requerimento de 04/10/2021.

Na data de 13/10/2021, o Requerido apresentou novo requerimento com o seguinte teor:
“1. Como afirmado no precedente requerimento, no casamento celebrado no estrangeiro por dois portugueses, caso não seja precedido de processo preliminar de casamento perante autoridades dos serviços de registo civil nacionais, impera o regime da separação de bens, nos termos do artigo 1720.º,
n.º1, al. a) do Código Civil.
2. Ora, como transparece do requerimento da Cabeça-de-Casal, essa não ignorava tal circunstância.
3. Aliás, talvez por lapso, não foi junto aquando das suas declarações de cabeça de casal o assento de casamento e comprovativo de procedimento preliminar de casamento, o que lhe competia, ao abrigo dos artigos 23.º e 24.º da Lei 23/2013, de 05 de março.
4. Assim, tendo-se confiado nas declarações do cabeça-de-casal, não se colocou em causa o teor e rigor das mesmas.
5. Na verdade incumbia a esta, que é a própria requerente do Inventário para partilha por divórcio, um cuidado no teor das suas declarações atento o previsto no artigo 1097.º do CPC, juntando aos autos o assento de casamento e declarando com rigor o regime de casamento, o que não sucedeu.
6. Mais incumbe à cabeça de casal, no termos do artigo 1097.º do CPC, cumprir de forma honrosa e fiel as suas funções, o que lhe exige especial cuidado, dever de verdade e colaboração.
7. Porém, contrariamente à Requerente, não consideramos que esta tenha agido de má-fé nem nos escandalizamos, aceitando que se tenha tratado de um erro por desconhecimento do direito, que os próprios quatro mandatários até presente intervenientes no processo também não viram.
8. Todavia, verificado o erro ou lapso, cumpre corrigi-lo sob pena de decidir contra o direito.
9. Por outro lado, se a Cabeça-de-Casal tem conhecimento da circunstância do seu regime de casamento deve aportar essa informação aos autos, caso contrário, estará agora sim, a agir de má-fé”.

Na data de 15/10/2021, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
 “O R.do vem solicitar a recolha de informação junto do consulado em ... a fim de se apurar a existência de processo preliminar, propondo a extinção do presente inventário. O casamento em ... é conhecido e a decisão de dissolução foi proferida igualmente em .... Ao invés do que teme o R.do, a celebração no estrangeiro não implica nem potencia a ausência da observância do dito processo preliminar. Este existe para efeitos do artigo 1610º CC e conclui-se com a licença para casar. Não há o mínimo indício que A e R tenham celebrado perante o oficial francês sem a apresentação da documentação pertinente e sem as publicações prévias. Acresce que aquando da transcrição nenhuma desconformidade foi encontrada. Recorda-se que, tivesse existido situação de urgência justificativa da omissão do processo preliminar, decorreria este oficiosamente a posteriori e seria concluído com decisão homologatória (art. 1720º e 1622º ss CC). Não é sustentado o receio do R.do, sendo, todavia, este livre de, falhando a respectiva memória, recolher a documentação que entenda. Só após, e caso confirmasse a sua hipótese, estaria em condições de se pronunciar sobre eventuais enfermidades relativas à celebração. Até lá, estará a laborar sobre hipóteses meramente académicas, sem qualquer sustento na realidade, caindo o douto requerimento na categoria de actividade inútil e indesejada para a causa (art. 130º CPC). Recorda-se o R.do tem já anos de intervenção nos autos sem que lhe ocorresse questionar a existência de património comum,
pelo contrário, afirmou-o, nunca levantando a questão de eventual regime de separação forçada, assinando inclusive procuração no mesmo consulado declarando-se casado em comunhão de adquiridos, tal como fez por ocasião da compra da Bouça Grande e em contrato promessa de venda de casa. Indeferimos a pretendida recolha de informação junto do consulado e a requerida extinção da instância (…)”.
Na data de 19/10/2021, foi realizada conferência de interessados, no âmbito da qual foi proferido despacho a determinar a realização de avaliação da verba nº1 da relação de bens.
Na data de 22/01/2022, foi junto aos autos o relatório pericial da aludida avaliação, tendo a Requerente/Cabeça-de-casal e o Requerido sido notificados do mesmo.
Na data de 31/02/2022, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: “O tribunal é competente e nada obsta à apreciação da causa. Notifique para indicação da forma à partilha”.
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1.2. Da Recurso do Requerido

Inconformado com a referida decisão, o Requerido interpôs recurso de apelação, pedindo que «seja dado provimento ao recurso», e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

“1- Vem o presente recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães, a processar como de Apelação, a subir imediatamente e em separado, com efeito devolutivo (artigos 638.º, 639.º, 644º n.º2, al. b) e h), 645º e 646º NCPC).
2- Sucede que, Apelante e Apelada, ambos de nacionalidade portuguesa, residentes em ..., celebraram em .../.../1973, na CC, em ..., casamento
civil perante autoridade estrangeira (Cfr. Requerimento Ref. Citius de 04/01/2022 - ...72), e sem terem procedido a processo preliminar para casamento.
3- Ora, a ausência de processo preliminar para casamento resulta da correspondência remetida pelo Consulado de ..., cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido e foi junto com o requerimento indicado na conclusão precedente.
4- Em .../.../1976, foi requerido a promoção da transcrição do redito casamento, junto do Consulado de ..., em ... (Cfr. Requerimento Ref. Citius de 23/05/2016 - ...18).
5- Como pelo Apelante afirmado e provado nos autos, o casamento celebrado no estrangeiro por dois portugueses, caso não seja precedido de processo preliminar de casamento perante autoridades dos serviços de registo civil nacionais, impera o regime da separação de bens, nos termos do artigo 1720.º, n.º1, al. a) do Código Civil.
6- Todavia, certamente por lapso da Cabeça de Casal, não foi junto aquando das suas declarações de cabeça-de-casal o assento de casamento e comprovativo de procedimento preliminar de casamento, o que lhe competia, ao abrigo dos artigos 23.º e 24.º da Lei 23/2013, de 05 de março.
7- Ora, o objectivo primordial do inventário na sequência do divórcio é a partilha de bens
consequente à extinção da comunhão de bens entre os cônjuges.
8- Como alegado e provado, o regime que vigorava na constância do casamento de Apelante e Apelado é o da separação imperativa de bens, não havendo, consequentemente, lugar ao
inventário porquanto não há bens comuns a partilhar.
9- Destarte, mesmo que no regime de bens da separação possam ter sido adquiridos bens com dinheiro de ambos os cônjuges, bens de que ambos os cônjuges sejam comproprietários, nessas circunstâncias, a divisão não tem lugar em processo de inventário, não havendo que proceder a este, mas sim à divisão de coisa comum.
10-Na verdade, o douto proferido fez uma errada apreciação do direito, mormente do artigo
1720.º, n.º1, al. a), decidindo contra o direito.
11-Aliás, atentos os elementos documentais coligidos para o processo e que aqui se dão por
integralmente por reproduzidos (Cfr. Requerimento Ref. Citius de 04/01/2022 - ...72),
mormente o email enviado pelo Consulado de Portugal em ..., e não impugnados, deveria aquele Tribunal, ter, pelo menos, ordenado, a remessa dos autos para o tribunal competente, para que fossem apreciados segundo a forma de processo própria, que é a divisão de coisa comum.
12-A não se entender assim, o que não se concede, fica vedado às partes a prova do investimento feito na aquisição do bem e proporção desse investimento.
13-Caso assim não se proceda ao exercício do contraditório e da prova, corremos o risco de redundar numa justiça “ad hoc”, locupletando o património de um dos cônjuges de forma
injusta.
14-Deste modo foram violadas as disposições legais citadas devendo a apelação ser julgada procedente e no sentido das conclusões, revogando-se nesse sentido o douto despacho recorrido e, consequentemente, porque a exceção dilatória de incompetência absoluta obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, se dê lugar à absolvição da instância (artigos 96.º, 97.º, 99.º, 576.º e 577.º, al. a) do Código de Processo Civil)”.
A Requerente/Cabeça-de-casal contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir de imediato, em separado e com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).
Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pelo Requerido/Recorrente é uma questão a apreciar por este Tribunal ad quem: se deve ser mantido o despacho recorrido ou se, ao invés, deve ser declarada a excepção dilatória da incompetência absoluta do Tribunal.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que revelam para a presente decisão são os que se encontram descritos no relatório que antecede.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Importa, desde já, expressar que o presente recurso não contém um único fundamento legal, tempestivo e válido para impugnar o despacho concretamente recorrido, sendo certo que, através da parte do mesmo, ainda que por via indirecta, até se pretende alterar uma anterior decisão do Tribunal a quo que constitui caso julgado. 

Concretizando.
Os presentes autos dizem respeito a um processo de inventário subsequente ao divórcio que dissolveu o casamento contraído entre a Requerente (Cabeça-de-casal) e o Requerido (ora Recorrente).
A Lei nº117/2019, de 13/09, para além do mais, alterou o C.P.Civil de 2013, revogando o regime jurídico do processo de inventário aprovado pela Lei nº23/2013, de 05/03, e dando nova redacção aos arts. 1082º a 1135º daquele Código, preceitos estes que passaram a regular os processos de inventário instaurados nos tribunais judiciais a partir de 01/01/2020 (cfr. arts. 11º/1, 1ªparte, e 15º da referida Lei nº117/2019).
Porém, como resulta do disposto na 2ªparte do art. 11º da  Lei nº117/2019, a nova redacção daqueles arts. 1082º a 1135º é também aplicável aos processos que, estando pendentes nos cartórios notariais naquela mesma data (01/01/2020), viessem (e venham) a ser remetidos ao Tribunal Judicial, ao abrigo dos arts. 12º e 13º da mesma Lei nº117/2019 (ainda que com sujeição a medidas de gestão processual e de adequação formal previstas no nº4 deste art. 13º).
Como se decidiu no Ac. desta RG de 19/05/2022[3], “1- Os processos de inventário instaurados no domínio de vigência da Lei n.º 23/2013, de 05/03 (RJPI) que se encontrem pendentes em 01/01/2020 (data da entrada em vigor da Lei n.º 117/2019, de 13/09), ficam sujeitos ao regime transitório previsto nos arts. 11º, 12º e 13º da Lei n.º 117/2019, resultando desse regime transitório que: a) há processos de inventário que são de remessa obrigatória e oficiosa pelo notário a tribunal por, na sequência da Lei n.º 117/2019, terem passado a ser da competência material exclusiva dos tribunais (art. 12º, n.º 1 da Lei n.º 117/2019); b) há processos de inventário que não sendo da competência exclusiva dos tribunais, são remetidos a tribunal a requerimento do interessado ou interessados diretos na partilha (art. 12º, n.ºs 2 e 3 da Lei n.º 117/2019); e c) há processos de inventário que permanecem no cartório notarial, onde continuam a ser tramitados de acordo com o regime jurídico do RJPI, à exceção do disposto no n.º 3 do art. 11º da Lei 117/2019 (…) 3- Os processos de inventário instaurados no domínio da RJPI que se encontrem pendentes em 01/01/2020 e que transitem para o tribunal, são remetidos no estado em que se encontrarem, sendo aplicável à tramitação subsequente o regime dos arts. 1082º a 1135º do CPC, introduzido pela Lei n.º 117/2019, cumprindo ao juiz, uma vez ouvidas as partes, fazendo uso dos poderes de gestão processual e de adequação formal, conciliar essa tramitação subsequente com a realizada anteriormente à remessa do processo para o tribunal, a qual seguiu o regime jurídico do RJPI”.
O presente processo de inventário foi instaurado em cartório notarial na data de 23/05/2016, estando pendente à data da entrada em vigor da Lei nº117/2019 (01/01/2020) e foi remetido para Tribunal ao abrigo do disposto nos arts. 12º/2b) e 13º/1 da referida Lei (cfr. despacho proferido em 06/11/2020), pelo que lhe são aplicáveis os arts. 1082º a 1135º do C.P.Civil de 2013, na redacção que lhes foi dada pela Lei nº117/2019.
No que concerne às alterações mais significativas introduzidas por este novo regime, referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa[4]: “para além do recuo na experiência de desjudicialização que foi adoptada pela Lei nº23/13, importa sublinhar a vontade de alteração do paradigma a que obedecia o processo de inventário judicial quando era regulado segundo as normas inscritas no CPC de 1961. É este o verdadeiro contraponto do novo regime legal, sendo de notar que recebe os contributos das regras gerais do processo e da acção declarativa, o que especialmente se evidencia pelo que se dispõe acerca da concentração e da preclusão dos actos respeitantes a cada fase processual, como forma de potenciar a celeridade e a eficácia da tramitação. Assim, fixada a pessoa que irá desempenhar o cargo de cabeça de casal, por designação do juiz ou por confirmação judicial quem se arrogue tal qualidade, e juntos aos autos os elementos essenciais atinentes à abertura da herança, identificação dos interessados e acervo patrimonial hereditário, é estabelecido um verdadeiro contraditório, recaindo sobre cada interessado que venha a ser convocado o ónus de deduzir todos os meios de defesa e de alegar tudo o que se revele pertinente para a tutela dos seus interesses e para o objectivo final do inventário… É nesta primeira fase (fase dos articulados, que engloba a fase inicial e da oposições e verificação do passivo), em face do requerimento inicial e dos actos e documentos apresentados pelo requerente (arts. 1097º e l099º) ou pelo cabeça de casal judicialmente designado ou confirmado (art. 1100º, nº1, al. b)), que deve ser concentrada a discussão de todos os aspectos essenciais relevantes. Sem embargo das excepções salvaguardadas por regras gerais de processo (Vg. meios de defesa supervenientes) ou por regras específicas do inventario que permitem o diferimento (v.g. avaliação dos bens, incidente de inoficiosidade), cada interessado tem o ónus de suscitar nesta ocasião, com efeitos preclusivos, as questões pertinentes para o objetivo final do inventário (art. 1104º), designadamente tudo quanto respeite à sua admissibilidade, identificação e convocação dos interessados, relacionamento e identificação dos bens a partilhar, dividas e encargos da herança e outras questões atinentes à divisão do acervo patrimonial…” (os sublinhados são nossos).
Sucede que, no caso em apreço, a “fase inicial” do processo de inventário (requerimento inicial, declarações de cabeça-de-casal, citações/notificações, oposições e respostas) foi tramitada segundo as normas previstas na Lei nº23/2013, de 05/03 (em vigor ao tempo), mas afigura-se-nos que, com excepção do “incidente” da reclamação de bens, já no regime do Lei nº23/2013 estava legalmente imposto a cada interessado um ónus de suscitar nessa fase “inicial” as questões pertinentes para o objetivo final do inventário relativas à admissibilidade/inadmissibilidade do inventário, à determinação dos interessados e/ou à falta/ausência de pressupostos processuais.
Com efeito, apresentado o requerimento inicial, prestadas as declarações de cabeça-de-casal e apresentada a relação de bens, prescrevia o art. 30º da Lei nº23/2013 que “1 - Nos 20 dias a contar da citação, os interessados diretos na partilha e quem exerce as responsabilidades parentais, a tutela ou a curadoria, quando tenham sido citados, podem: a) Deduzir oposição ao inventário; b) Impugnar a legitimidade dos interessados citados ou alegar a existência de outros; c) Impugnar a competência do cabeça de casal ou as indicações constantes das suas declarações; ou d) Invocar quaisquer exceções dilatórias. 2 - As faculdades previstas no número anterior podem também ser exercidas pelo cabeça de casal e pelo requerente do inventário, contando-se o prazo para o seu exercício da notificação do despacho que ordena as citações (…)”. Este normativo corresponde no essencial ao actual art. 1104º do mesmo C.P.Civil de 2013 (na redacção dada pela Lei nº117/2019), com excepção do período do prazo (que agora é de 30 dias) e da reclamação contra a relação de bens (que agora é simultânea com as restantes oposições e impugnações, mas que na Lei nº23/2013 estava prevista, como incidente autónomo, no seu art. 32º).
Perante o seu concreto teor, temos que interpretar este art. 30º da Lei nº23/2013 no sentido de consagrar (tal como actualmente sucede no supra aludido art. 1104º) um concreto e efectivo ónus de oposição e impugnação, e não uma mera faculdade, já que o decurso do prazo de 20 dias determina efeitos preclusivos quanto às questões elencadas nas alíneas do seu nº1, já que a não impugnação dos respectivos elementos factuais e documentais vertidos no requerimento inicial, e/ou nas declarações do cabeça-de-casal, produz os efeitos previstos nos arts. 566º, 567º e 574º (ex vi art. 549º/1) do C.P.Civil de 2013, uma vez que o art. 82º da Lei nº23/2013 determina a aplicação deste Código «em tudo o que não esteja especialmente regulado na presente lei» (e nesta matéria, a Lei nº23/2013 nada prevê).

No caso em apreço, verifica-se que, no requerimento inicial, a Requerente/Cabeça-de-Casal alegou que o regime de bens (do dissolvido casamento) era o da comunhão de adquiridos, alegação que confirmou nas «declarações de cabeça-de-casal», e apresentou a relação dos bens comuns partilhar.
Citado em 18/01/2018 e com a expressa advertência (para além do mais) do disposto no nº1 do art. 30º da Lei nº23/2013, o Requerido não deduziu qualquer oposição ao inventário nem invocou qualquer excepção dilatória, e mais concretamente não impugnou o regime de bens indicado pela Requerente/Cabeça-de-Casal nem negou a existência de bens comuns, muito antes pelo contrário já que, limitando-se a apresentar reclamação contra a relação de bens, no âmbito da mesma impugnou a existência de três dos bens relacionados, reclamou a falta de relacionamento «do produto da venda do bem imóvel que era do casal» e de «dois prédios rústicos», o que tudo configura uma inequívoca admissão de que existência de bens comuns do ex-casal (e se mostra incompatível com a existência de um regime de separação de bens).
Daqui decorre que, não tendo dado cumprimento ao ónus de oposição e impugnação (no respectivo prazo legal) consagrado no art. 30º da Lei nº23/2013, precludiu o correspondente direito, e, por via disso, o Requerido ficou legalmente impedido de, nomeadamente, vir a juízo deduzir qualquer fundamento de oposição à admissibilidade do inventário e/ou suscitar quaisquer excepções dilatórias, com ressalva da verificação da situação de superveniência prevista no art. 588º do C.P.Civil de 2013 (aplicável ex vi do art. 82º da Lei nº23/2013, quando o processo estava pendente no cartório notarial, ou aplicável ex vi do art. 549º/1 do C.P.Civil de 2013, quando o processo foi remetido a Tribunal).  
Apesar disso, em momento temporal muito posterior (mais de 3 anos depois da citação), quando o processo já havia sido remetido a Tribunal e já depois de ter sido proferida decisão sobre incidente de reclamação de bens (em 21/01/2021) e ter sido designada data para a realização da conferência de interessados (por despacho de 09/09/20219), sem fundamentar qualquer superveniência (isto é, sem alegar que se trata de facto ocorrido posteriormente ao termo do prazo previsto no art. 30º da Lei nº23/2013, ou que se trata de facto anterior mas de que só teve conhecimento depois de findar esse prazo), em 04/10/2021, o Requerido apresentou requerimento nos autos, alegando que «aparentemente, Requerente e Requerido estavam casados no regime imperativo de separação de bens, não havendo assim comunhão de património por efeito do casamento, uma vez que não foi precedido de processo preliminar» e requerendo que «seja extinta a instância» e que «se notifique o Consulado de Geral de Portugal em ... (6-8, Rue ... ...), para que este certifique a eventual realização ou não do processo preliminar de casamento junto, designadamente, do Consulado de Portugal em ..., em ...». Apesar de ter apresentado novo requerimento na data 13/10/2021, analisando o seu teor, verifica-se que o mesmo se limita a reafirmar o requerimento anterior e que nem sequer contém a formulação de qualquer pretensão.
Tais requerimentos mais não configuram do que uma dedução de uma oposição inventário, alegando-se um fundamento que torna inadmissível a realização de inventário (inexistência bens comuns a partilhar porque o regime de bens era o separação) e peticionando-se extinção instância de inventário [frise-se que do art. 79º da Lei nº23/2013 decorria, inequivocamente, que inexiste direito dos cônjuges requererem o inventário quando o «regime de bens do casamento for o de separação», e mais se frise que o actual art. 1082º/d) estabelece claramente que a função do inventário é de partilhar bens comuns do casal].
Logo, consubstanciando dedução de uma oposição inventário, a pretensão do Requerido mostra-se absolutamente extemporânea, não só porque, como supra se explicou, estava precludido o respectivo direito (por estar decorrido o prazo previsto no art. 30º/1 da Lei nº23/2013), mas também porque o facto alegado não preenche, manifestamente, o conceito legal de superveniência consagrado no art. 588º/2 do C.P.Civil de 2013: o facto alegado relativamente à eventual falta de processo preliminar da casamento ocorreu, obviamente, muito antes do termo do prazo em causa (é um facto anterior ao próprio casamento, que ocorreu em 03/11/1973…) e, tratando-se de um facto pessoal do próprio Requerido, nunca o mesmo pode ter tido conhecimento apenas depois findar aquele prazo (teve, necessariamente, conhecimento dessa eventual falta de processo preliminar logo de imediato e em momento antecedente ao do casamento).
Apesar da tal extemporaneidade, o Tribunal a quo apreciou tal pretensão do Requerido, e, por despacho de 15/10/2021, indeferiu «a pretendida recolha de informação junto do consulado e a requerida extinção da instância».
Notificado oportunamente deste despacho (notificação expedida em 18/10/2021), o Requerido não interpôs qualquer recurso, apesar do mesmo ser imediatamente recorrível [mesmo que o requerimento em que foi formulada a pretensão de oposição ao inventário não seja entendido como um verdadeiro articulado superveniente, é certo e inequívoco que a pretendida informação se enquadra na apresentação de um meio de prova, o qual foi rejeitado, pelo que tal requerimento sempre se subsume ao âmbito de previsão dos arts. 1123º/1 e 644º/2d) do C.P.Civil de 2013], donde decorre que a mesma constitui caso julgado formal (conforme adiante melhor se explicará).
Após este despacho, os autos prosseguiram os seus termos, sendo que, na data de 19/10/2021, foi realizada conferência de interessados, no âmbito da qual foi proferido despacho a determinar a realização de avaliação da verba nº1 da relação de bens, e na data de 22/01/2022, foi junto aos autos o relatório pericial da aludida avaliação, sendo que, na data de 31/02/2022, foi então proferido o despacho agora impugnado: “O tribunal é competente e nada obsta à apreciação da causa. Notifique para indicação da forma à partilha”.
Não cabendo a este Tribunal ad quem pronunciar-se sobre a correcção da tramitação processual prosseguida antes do despacho recorrido (porque nenhuma impugnação foi deduzida pelas partes quanto à mesma), dúvidas não existem de que o despacho impugnado se enquadra no âmbito de previsão do disposto no art. 1110º/1b) do C.P.Civil de 2013 (na redacção posterior à Lei nº117/19): “1 - Depois de realizadas as diligências instrutórias necessárias, o juiz profere despacho de saneamento do processo em que: a) Resolve todas as questões suscetíveis de influir na partilha e na determinação dos bens a partilhar; b) Ordena a notificação dos interessados e do Ministério Público que tenha intervenção principal para, no prazo de 20 dias, proporem a forma da partilha”.
Em sede de recurso, a Requerida/Recorrente defende, essencialmente, que: «Apelante e Apelada, ambos de nacionalidade portuguesa, residentes em ..., celebraram em .../.../1973, em ..., casamento civil perante autoridade estrangeira, e sem terem procedido a processo preliminar para casamento, pelo que impera o regime da separação de bens, nos termos do artigo 1720.º, n.º1, al. a) do Código Civil; certamente por lapso da Cabeça de Casal, não foi junto aquando das suas declarações de cabeça-de-casal o assento de casamento e comprovativo de procedimento preliminar de casamento, o que lhe competia; como alegado e provado, o regime que vigorava na constância do casamento de Apelante e Apelado é o da separação imperativa de bens, não havendo, consequentemente, lugar ao inventário porquanto não há bens comuns a partilhar; mesmo que no regime de bens da separação possam ter sido adquiridos bens com dinheiro de ambos os cônjuges, bens de que ambos os cônjuges sejam comproprietários, nessas circunstâncias, a divisão não tem lugar em processo de inventário, não havendo que proceder a este, mas sim à divisão de coisa comum; atentos os elementos documentais coligidos para o processo, mormente o email enviado pelo Consulado de Portugal em ..., e não impugnados, deveria aquele Tribunal, ter, pelo menos, ordenado, a remessa dos autos para o tribunal competente, para que fossem apreciados segundo a forma de processo própria, que é a divisão de coisa comum; porque a exceção dilatória de incompetência absoluta obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, se dê lugar à absolvição da instância» - cfr. conclusões 2ª, 3ª, 5ª a 9ª, 11ª e 14ª.
Analisado o teor destas conclusões, é insofismável que o Requerido/Recorrente não deduz qualquer impugnação concreta e efectiva contra o despacho aqui efectivamente recorrido: com efeito, o único comando judicial que emana desta decisão é a determinação da notificação da Requerente/Cabeça-de-casal e do Requerido/Recorrente para indicarem a forma à partilha, já que a referência genérica a «o Tribunal é competente» e a «nada obsta à apreciação da causa» configuram meras afirmações genéricas, não contendo o conhecimento nem a decisão de qualquer questão concreta, até porque até esse momento não tinha sido suscitada qualquer questão (excepção dilatória) de incompetência do Tribunal, e não estava pendente qualquer questão que obstasse ao prosseguimento dos autos para a fase da forma à partilha e posterior conferência de interessados (o incidente de reclamação de bens há muito que estava decidido e mesmo a questão suscitada pelos requerimentos de 04/10/2021 e 13/10/2021 - relativamente ao regime de bens e pedido de informação -, também estava decidida pelo despacho de 15/10/2021). Ora, nas conclusões formuladas, o Requerido/Recorrente não concretiza qualquer o vício processual ou erro de julgamento relativamente à decisão do Tribunal a quo que se limita a determinar o cumprimento do disposto no citado art. 1110º/1b) do C.P.Civil de 2013. Logo, por esta razão, e apenas pela mesma, afigura-se-nos que o presente recurso carece em absoluto de fundamento legal.
Mas, admitindo que, ainda que por via indirecta, com os argumentos aduzidos se pretendia impugnar tal decisão judicial, isto é, que não podia ser ordenada notificação para tal (admissão que apenas se faz como mera hipótese de raciocínio), verifica-se que, efectivamente, as conclusões formuladas mais não configuram do que a repetição das alegações produzidas nos aludidos requerimentos de 04/10/2021 e 13/10/2021, voltando a configurar uma oposição ao inventário alicerçada na questão da inadmissibilidade do inventário por (alegadamente) o regime de bens ser o da separação porque não houve processo preliminar de casamento e, assim, inexistirem bens comuns a partilhar. E embora não se formule uma expressa pretensão de «extinção da instância», é isso mesmo que se pretende quando, nas conclusões 8ª e 9ª, se afirma expressamente que «não há lugar a inventário» e que «não havendo que proceder a este».
É certo que, numa «vã tentativa» de configurar de uma forma (aparentemente) diferente a sua pretensão, o Requerido/Recorrente invoca (agora e apenas agora em sede de recurso) a «excepção dilatória de incompetência absoluta». Para além da invocação desta excepção estar em total e absoluta contradição com a conclusão 11ª (ao alegar-se que «deveria aquele Tribunal, ter, pelo menos, ordenado, a remessa dos autos para o tribunal competente, para que fossem apreciados segundo a forma de processo própria, que é a divisão de coisa comum», está a invocar-se a excepção dilatória do erro da forma de processo, e não uma falta uma concreta falta de jurisdição do Tribunal), certo é que, perante os concretos fundamentos aduzidos, a questão jurídica que efectivamente está a ser suscitada é, como supra já se referiu, é uma oposição ao inventário em razão do mesmo ser inadmissível por inexistirem bens comuns do ex-casal que possam ser partilhados (relembre-se que, nos termos do art. 5º/3 do C.P.Civil de 2013, o Tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito). E sempre se esclarece que, mesmo que se tratasse da dedução de uma verdadeira excepção dilatória de incompetência (o que apenas se concebe como mera hipóteses de raciocínio), a mesma sempre se revelaria infundada já que, respeitando os presentes autos a um processo de inventário (e não uma acção de divisão da coisa comum), o Tribunal a quo (Juízo de Família e Menores ...) mostra-se absolutamente competente em razão da matéria (cfr. art. 122º/2 da LOSJ - Lei nº62/2013, de 26/08). Nestas circunstâncias, conclui-se, desde já, que se mostra absolutamente improcedente o fundamento de recurso consistente na invocação de tal excepção dilatória.
Ora, representando as conclusões formuladas no recurso a repetição das alegações produzidas nos aludidos requerimentos de 04/10/2021 e 13/10/2021, consubstanciam a formulação de uma oposição à admissibilidade do inventário que, para além de ser totalmente extemporânea (como supra se explicou, estava precludido o respectivo direito por estar decorrido o prazo previsto no art. 30º/1 da Lei nº23/2013, acrescendo que o facto alegado não preenche o conceito legal de superveniência consagrado no art. 588º/2 do C.P.Civil de 2013), oposição esta que já foi objecto de concreta apreciação e decisão pelo despacho não impugnado datado 15/10/2021, o qual configura caso julgado formal, pelo que as partes e o Tribunal estão vinculados a tal decisão anterior sobre esta questão.
Sobre o caso julgado importa ter presente que consiste na qualidade de imutabilidade da decisão judicial logo que não seja susceptível de recurso ou de reclamação (cfr. art. 628º do C.P.Civil de 2013), sendo que essa «qualidade de imutabilidade da decisão judicial» é uma garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, próprio do Estado de Direito (cfr. art. 2º da C.R.Portuguesa), à semelhança da regra do esgotamento do poder jurisdicional (cfr. art. 613º/1 do C.P.Civil de 2013).   
Atingida essa qualidade, como decorre do art. 620º/1 do C.P.Civil de 2013, a decisão judicial passa a ter «força obrigatória» dentro do próprio processo (com excepção dos despachos que não admitem recurso - cfr. nº2 do mesmo art. 620º, que remete para o art. 630º do mesmo diploma legal), e, como decorre do art. 619º do C.P.Civil de 2013, a decisão judicial passa a ter «força obrigatória» fora do próprio processo quando julgue de mérito. Como se refere no Ac. desta RG de 06/05/2021[5], “O caso julgado aporta à decisão um segundo nível estabilidade (de continuidade na emissão dos seus efeitos jurídicos) - constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, que se integra numa linha gradual de estabilização: do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613º do CPC), enquanto regra de proibição do livre arbítrio, resulta um primeiro nível de estabilidade da decisão judicial, ainda que interna ou restrita, relativa ao próprio autor da decisão; o trânsito em julgado permite à decisão alcançar um segundo nível de estabilidade alargada, vinculando o tribunal e as partes, dentro do processo (caso julgado formal - art. 602º do CPC), ou mesmo fora dele, perante outros tribunais (caso julgado material - art. 619º do CPC)”. A referida força obrigatória desdobra-se numa dupla eficácia, que corresponde ao efeito negativo do caso julgado e ao efeito positivo do caso julgado: “O efeito negativo do caso julgado consiste na proibição de repetição de nova decisão sobre a mesma pretensão, por via da excepção dilatória de caso julgado, regulada em especial nos arts. 577º al. I) segunda parte, 580º e 581º. Classicamente, corresponde-lhe o brocardo non bis in idem. O efeito positivo ou autoridade do caso consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior… Classicamente, corresponde-lhe o brocardo judicata pro veriate habetur. Enquanto o efeito negativo do caso julgado leva a que apenas uma decisão possa ser produzida sobre um mesmo objecto processual, mediante a exclusão do poder jurisdicional para a produção de uma segunda decisão, o efeito positivo admite a produção de decisões de mérito sobre objectos processuais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão”[6]. Como se dá nota no Ac. da RL de 15/02/2018[7], “os conceitos de «efeito de vinculação intraprocessual» e de «preclusão» - referidos ao âmbito intrínseco da actividade jurisdicional - querem significar que toda e qualquer decisão (incontestável ou tornada incontestável) tomada por um juiz, implica necessariamente tanto um efeito negativo, de precludir uma «reapreciação» (portanto uma proibição de «regressão»), como um efeito positivo, de vincular o juiz a que, no futuro (isto é, no decurso do processo), se conforme com a decisão anteriormente tomada (sob pena de, também aqui, «regredir» no procedimento)”.
Importa, no entanto, atentar que o caso julgado só se forma relativamente a questões concretamente apreciadas, não se esgotando o poder jurisdicional relativamente a questões sobre as quais o julgador não se pronunciou expressamente. Como se decidiu no Ac. desta RG de 01/07/2021[8], “O caso julgado só se forma relativamente a questões concretamente apreciadas pelo Tribunal, ou definitivamente prejudicadas por força de decisão posterior, não se esgotando o poder jurisdicional relativamente a questões sobre as quais o julgador não se pronunciou”. No mesmo sentido, ainda que sobre um caso julgado formal, pronunciou-se o Ac. da RP de 30/01/2017[9], “Em matéria processual, apenas se forma caso julgado formal relativamente às questões concretamente conhecidas e decididas”.
Portanto, exige-se que tenha existido uma decisão anterior que, com força vinculativa, tenha sido proferida sobre a matéria (processual ou substantiva) que agora se pretende discutir novamente. Como se refere no Ac. do STJ de 14/05/2019[10], “Para que se possa falar em ofensa do caso julgado, seja no figurino de exceção, seja no figurino de autoridade, é necessário que exista uma decisão judicial que se imponha por ter transitado em julgado”.
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que, no despacho datado de 15/10/2021, o Tribunal a quo pronunciou-se, concretamente, no sentido de que “Não há o mínimo indício que A e R tenham celebrado perante o oficial francês sem a apresentação da documentação pertinente e sem as publicações prévias. Acresce que aquando da transcrição nenhuma desconformidade foi encontrada (..) Recorda-se o R.do tem já anos de intervenção nos autos sem que lhe ocorresse questionar a existência de património comum, pelo contrário, afirmou-o, nunca levantando a questão de eventual regime de separação forçada, assinando inclusive procuração no mesmo consulado declarando-se casado em comunhão de adquiridos, tal como fez por ocasião da compra da Bouça Grande e em contrato promessa de venda de casa (os sublinhado são nossos), e decidiu, concretamente, indeferir “a requerida extinção da instância” que se fundava, precisamente, na inexistência de bens comuns por o regime de bens ser o da separação.
Assim sendo, quer porque é extemporânea, quer porque configura uma pretensão relativamente à qual já se formou (nos autos) caso julgado formal (e no sentido do seu indeferimento), o fundamento recursivo de que «não há lugar a inventário» e «não havendo que proceder a este», não tem cabimento legal e tem que, necessariamente, soçobrar. Frise-se que, na interposição de recurso relativamente a uma decisão judicial do Tribunal a quo não é legalmente admissível impugnar uma anterior decisão judicial (proferida pelo mesmo Tribunal a quo) que constitui caso julgado formal no mesmo processo judicial.
E cumpre ainda tecer as três notas finais.
A primeira no sentido de que não assiste qualquer razão ao Requerido/Recorrente quando alega que «como alegado e provado, o regime que vigorava na constância do casamento de Apelante e Apelado é o da separação imperativa de bens» e que «atentos os elementos documentais coligidos para o processo e que aqui se dão por integralmente por reproduzidos (Cfr. Requerimento Ref. Citius de 04/01/2022 - ...72), mormente o email enviado pelo Consulado de Portugal em ..., e não impugnados». Com efeito, no aludido requerimento que apresentou em juízo na data de 04/01/2022, limita-se a alegar que o documento que junta comprova ser o regime de bens de separação, mas não formulou qualquer pretensão para o Tribunal a quo conhecer e decidir, o que, por si só, retira qualquer efeito jurídico a tal requerimento. Acresce que o documento junto é insusceptível de comprovar tal realidade: na verdade, tal documento é constituído por uma troca de emails entre o mandatário do Requerido/Recorrente e uma suposta funcionária do Consulado, não constituindo um documento autêntico nem autenticado, sendo que a ausência de processo preliminar de casamento só pode ser provada por documento com essa natureza (cfr. arts. 369º e 371º do C.Civil). Mais acresce ainda que o único documento autêntico apresentado nos autos relativo ao casamento contraído entre a Requerente/Cabeça-de-casal e Requerido/Recorrente é a transcrição do assento de casamento (cfr. que consta dos autos principais, e que nestes autos apensos consta de fls. 19v/20), do qual resulta, inequivocamente, que as entidades do registo civil, aquando procederam à transcrição do casamento nos registos nacionais, não inseriram no mesmo qualquer menção relativa ao regime de bens aplicável (ou a respectiva base legal), nomeadamente, não consignaram no mesmo qualquer ausência de processo preliminar de casamento, sendo certo que nunca foi promovida (nomeadamente, pelos ex-cônjuges) qualquer posterior averbamento de que o regime de bens era o da separação. Deste modo, ao contrário da alegação «ligeira» que o Requerido/Recorrente produz no recurso, não está provado nos autos que o regime de casamento não seja o da comunhão de adquiridos, como sempre foi alegado e confirmado pela Requerente/Cabeça-de-casal (no requerimento inicial e nas respectivas declarações) e como sempre foi aceite pelo Requerido/Recorrente.
A segunda no sentido de que também não assiste qualquer razão ao Requerido/Recorrente quando alega que «certamente por lapso da Cabeça de Casal, não foi junto aquando das suas declarações de cabeça-de-casal o assento de casamento e comprovativo de procedimento preliminar de casamento, o que lhe competia, ao abrigo dos artigos 23.º e 24.º da Lei 23/2013, de 05 de março», já que, basta atentar no concreto teor destes normativos, para se concluir que inexiste qualquer obrigação legal do Requerente e/ou do Cabeça-de-casal juntarem ao processo de inventário «comprovativo de procedimento preliminar de casamento».
E a terceira no sentido de que são integralmente ininteligíveis as alegações/conclusões formuladas pelo Requerido/Recorrente no sentido de que «fica vedado às partes a prova do investimento feito na aquisição do bem e proporção desse investimento; caso assim não se proceda ao exercício do contraditório e da prova, corremos o risco de redundar numa justiça “ad hoc”, locupletando o património de um dos cônjuges de forma injusta» (cfr. conclusões 12ª e 13ª), não se vislumbrando sequer o concreto e efectivo alcance jurídico das mesmas.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que supra se expôs e concluiu, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que deve ser mantido o despacho recorrido, e, por via disso, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelo Requerido/Recorrente.
Improcedendo o recurso, uma vez que ficou vencido, as custas do presente recurso ficarão a cargo do Requerido/Recorrente - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
* *
5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo Requerido/Recorrente e, em consequência, mais decidem manter a decisão recorrida.
Custas do recurso pelo Requerido/Recorrente.
* * *
Guimarães, 30 de Março de 2023.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, proc. nº5443/20.0T8BTG-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[4]In Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ªedição, p. 553 e 554
[5]Juiz Desembargador Ramos Lopes, proc. nº311/09.0TBBGC-B.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.

[6]Rui Pinto, in Código Processo Civil Anotado, Volume II, 2018, Almedina, p. 185 e 186.
[7]Juíza Desembargadora Cristina Neves, proc. nº8465/06.0TBMTS-C.L1-6, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.
[8]Juíza Desembargadora Lígia Venade, proc. nº1478/16.6T8AMT.G2, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[9]Juiz Desembargador Carlos Gil, proc. nº881/13.8TYVNG-A.P1,  disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[10]Juiz Conselheiro José rainho, proc. nº241/09.5TYVNG-A.P2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.