Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
150/19.JABRG.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: REQUERIMENTO ABERTURA INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
REALIZAÇÃO DILIGÊNCIAS
COMPETÊNCIA DO MP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Ainda que instrução possa ser requerida contra quem no inquérito não tenha assumido o estatuto processual de arguido - outro não pode ser o entendimento em face do estatuído no artigo 57º,nº1, do C.P.P., ao determinar a assunção automática da qualidade de arguido de todo aquele contra quem for requerida a instrução num processo penal – é pressuposto da sua admissibilidade que a responsabilidade criminal das pessoas visadas com a instrução tenha sido objecto de ponderação no despacho de arquivamento em face das diligências levadas a efeito.
II) Para haver inquérito contra determinada pessoa não basta dar formalmente início ao inquérito com a respectiva autuação dos autos e levar a efeito determinadas probatórias, antes se exigindo que tais diligências probatórias sejam dirigidas contra alguém com a finalidade de comprovar a imputação do facto ilícito a essa pessoa.
III) A admitir-se a instrução estar-se-ia a prescindir do inquérito e, simultaneamente, a atribuir a uma entidade diferente a titularidade da acção penal, no caso ao Juiz de instrução, quando o Ministério Público é que tem a titularidade e direção do inquérito, o que seria atentório do princípio do acusatório e dos direitos de defesa que estão atribuídos a qualquer cidadão e contemplados no artigo 32º da nossa Lei Fundamental.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira.

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
Nos presentes autos de instrução com nº150/19.0JABRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo de Instrução Criminal de Viana do Castelo, foi proferido despacho pelo Mmo Juiz de Instrução, em 3/9/2020, nos termos do qual foi decidido rejeitar o requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente I. S., por inadmissibilidade legal.

2.
Não se conformando com o decidido, veio a assistente I. S. interpor recurso, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

«1- Vai o presente recurso interposto do despacho que rejeitou o requerimento de abertura de instrução formulado pela ora Recorrente, na parte em que requereu a pronúncia de P. B., F. F. L. R. e J. V..
2- Entendeu o tribunal “a quo” que era legalmente inadmissível requerer a abertura de instrução contra aqueles em virtude de os mesmos não terem sido constituídos arguidos na fase de inquérito.
3 - Não pode a Recorrente conformar-se com tal entendimento, o qual significa negar às vítimas de um crime o direito de sindicarem judicialmente a decisão de arquivar o inquérito e de não deduzir acusação contra quem existem indícios da prática de um crime.

Vejamos:
4 - Na sequência da morte por soterramento de M. A. - filho da Recorrente - iniciou-se o inquérito contra “desconhecidos” com vista a apurar da existência de crime e qual ou quais os seus responsáveis.
Para o efeito, foram inquiridas várias pessoas, designadamente o P. B., F. F., L. R. e J. V., contra quem a instrução foi agora requerida.
5 - Findas as diligências de inquérito, entendeu o Ministério Público arquivar o processo sem constituir qualquer arguido por considerar que não foi possível estabelecer um nexo causal entre a conduta dos trabalhadores inquiridos e a morte do M. A..
6 - Foi essa decisão que pretendeu a ora Recorrente impugnar ao requerer a abertura de instrução.
7 - A instrução é o meio legítimo e legal de reagir contra o despacho de arquivamento (art. 286º, n.º1 do C. P. Penal), apenas podendo ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução (art°287°, n.º 3 do Cód. Proc. Penal),
8 - O facto de não ter havido constituição de arguido na fase de inquérito não pode obstar a que seja requerida a abertura de instrução no sentido de ser constituído arguido e proferido despacho de pronúncia contra quem exista prova indiciária da prática do crime
9 - A ser perfilhado o entendimento do Mmo Juiz “a quo”, nunca haveria hipótese de um assistente impugnar urna decisão de arquivamento contra quem entendesse existirem indícios da prática de um crime, num processo que se tivesse iniciado contra incertos e onde o Ministério Público não o tivesse chegado a constituir arguido.
Um potencial criminoso que tivesse a sorte de o Ministério Público entender não o constituir arguido nem contra ele deduzir acusação, estaria definitivamente “safo”, sem apelo nem agravo, estando arredada toda e qualquer hipótese de as vítimas reagirem contra tal injustiça.
10 - Estaria, pois, vedado o direito ao recurso de urna decisão, pilar essencial do sistema judicial e judiciário moderno.
11 - O entendimento perfilhado pelo Mm° Juiz “a quo” no despacho de que se recorre atenta contra as garantias constitucionais de um processo que assegure uma tutela jurisdicional efetiva do direito da vítima, mormente num caso tao relevante como este em que se discute a violação do direito à vida.
12 - Nessa medida, o despacho recorrido é violador das disposições dos art. 20º, n.º 4 e 5 e art. 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como dos art. 6° e art°. 13° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
13 - Ao contrário do que entende o tribunal recorrido, as pessoas contra as quais se requereu a abertura de instrução foram “visadas na investigação” tendo sido inquiridas, para apuramento da existência do crime e dos seus responsáveis
14 - O que aconteceu foi que o Ministério Público - erradamente, na óptica da Recorrente - entendeu não existirem indícios de que os mesmos tenham praticado o Crime de homicídio por negligência, não os tendo constituído arguidos nem deduzido acusação contra eles, sendo precisamente essa a decisão que se pretendeu e pretende impugnar com o requerimento de abertura de instrução.
15 - O tribunal recorrido fez errada interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, violando, entre outras, as disposições dos art°s 286°, n° 1 e art°. 287°, n° 1, al. a), n° 2 e n° 3 do Cód. Proc. Penal, art°20°, n° 4 e 5 e art°. 32°, n° 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como os art°4 60 e 130 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
16 - Pelo que deve essa decisão ser revogada e, em sua substituição, ser proferido douto acórdão que determine a abertura de instrução nos presentes autos contra P. B., F. F., L. R. e J. V., ordenando a remessa ao Tribunal de Instrução Criminal com vista à sindicância da decisão do Ministério Público de arquivar os presentes autos.

Termos em que deve ser dado provimento o presente recurso, revogando-se o despacho recorrido e proferindo-se, em sua substituição, douto acórdão em conformidade com as conclusões supra-formuladas.
Com o que se fará JUSTIÇA!»

3.
O Exmo Procurador da República na primeira instância, em resposta ao recurso, concluiu pela sua improcedência, o que fez assentar no facto da investigação nunca ter sido dirigida contra os ora visados pela instrução, pois foram tratados e ouvidos como testemunhas, razão pela qual a instrução requerida é legalmente inadmissível.
A sustentar a sua posição, invocou o acórdão desta Relação de 27/4/2020, proferido no processo 2920/17.4T9VCT-A.G1.

4.
Neste Tribunal da Relação, a Exma Procuradora – Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo pela improcedência do recurso.

5.
Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., a assistente não veio apresentar qualquer resposta ao parecer.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
O objecto do processo define-se então pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).
No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pela assistente, a questão a decidir passará por saber se deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, no qual pretendia a pronúncia de pessoas que não foram visadas na investigação levada a efeito nos presentes autos de inquérito.

B) Da decisão recorrida

Para a apreciação do presente recurso, importa ter presente o seguinte teor do despacho recorrido.
«(…)
Cumpre proferir despacho liminar.
Estabelece o art.° 287.°, n.° 3, do Código de Processo Penal que “O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução”.
O tribunal é o competente - cfr. o art.° 19.° do Código de Processo Penal.
A requerente tem a qualidade de assistente nos autos, conforme teor do despacho proferido a fis. 100, pelo que tem legitimidade para requerer a Instrução - cfr. o art.° 287.°, n° 1, al.a b), do Código de Processo Penal.
A requerente procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida - cfr. o art.° 8.°, n.° 2, do Regulamento das Custas Processuais e fis. 295 e 300 a 302.
O requerimento formulado é tempestivo - cfr. o art.° 287.°, n.° 1, do Código de Processo Penal, as notificações efetuadas a lis. 237, 238 e 244 e a data do fax de fis. 247.
No tocante à questão da inadmissibilidade legal:
O requerimento formulado não é legalmente admissível e por duas ordens de razões:
Na parte em que requer a pronúncia de B. B., Lda. pela prática do crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.°, n° 1, do Código Penal:
Estabelece o artigo 11º, n.° 1, do Código Penal: “Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal”.
Passando ao n.°2 do mesmo normativo, prevê-se aí a possibilidade de as pessoas coletivas serem penalmente responsabilizadas, quando estejam em causa certos tipos de crime.
No caso dos autos o assistente pugna pela prolação de despacho de pronúncia da pessoa coletiva mencionada, como vimos, pela prática do “crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137.°, n.° 1, do Código Penal”.
Este específico crime não faz parte do elenco de crimes pelos quais o legislador prevê a responsabilização criminal das pessoas coletivas, não podendo a sociedade B. B., Lda. ser criminalmente perseguida pela prática respetiva, o que significa que a Instrução (tal como o Inquérito e o Julgamento) é legalmente inadmissível.

II.
Na parte em que requer a pronúncia de P. B., F. F., L. R. e J. V.:
O procedimento nos presentes autos iniciou-se com a comunicação do crime efetuada pela Polícia Judiciária, dando conta de uma morte ocorrida, o que - a haver crime - revestiria natureza pública, assim se tendo dado início ao Inquérito, realizando-se as diligências tidas por convenientes pelo Ministério Público, desde inquirição de testemunhas, tomada de declarações ã assistente, junção de prova documental e produção de prova pericial.
Nos autos não foram constituídos arguidos.
Aliás, três das pessoas por cuja pronúncia a assistente pugna, tiveram a qualidade de testemunhas nos autos; assim sucedeu com J. V., F. F. e L. R., os quais foram inquiridos na qualidade de testemunhas no Inquérito, conforme, respetivamente, fls. 147 a 150, 155 a 157 e 158 a 160; P. B. nunca foi tido e nem achado ao longo dos autos.
Se assim é, a questão que se suscita é a de aferir se quatro pessoas que nunca foram arguidas e nem sequer denunciadas, três das quais inclusive foram meras testemunhas na fase de Inquérito podem, na fase de Instrução, transformar-se em arguidos.
Entendemos que não e, de resto, no mesmo sentido, vai a jurisprudência nesta matéria.
Efetivamente, conforme Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora de 08-09-2015, in www.dgsi.pt/jtre: “1 - A obrigatoriedade do inquérito em processo comum implica, na sua dimensão garantística, que ninguém pode ser acusado, pronunciado ou julgado, sem que tenha sido objeto de inquérito pela prática de factos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, pelo que a abertura da instrução a requerimento do assistente com vista à pronúncia de alguém não acusado, apenas pode ter lugar se, relativamente a ele, foi suscitada, em inquérito, a possibilidade de o mesmo ser autor ou comparticipante de factos ilícitos que fundamentem a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança. II- Assegura-se, deste modo, que ninguém será pronunciado ou julgado sem que a sua responsabilidade penal por crime público ou semipúblico tenha sido equacionada e decidida pelo Ministério Público, titular da ação penal, e sem que possa fazer valer os seus direitos de participação e defesa em duas fases preliminares (inquérito e instrução) de teleologia e titularidade bem distintas.”
No mesmo sentido, veja-se do Tribunal da Relação de Guimarães, que tem alçada sobre esta comarca, o Acórdão datado de 11-07-2013, in www.dgsi.pUjtrg, onde se pode ler: “1 — Deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento do assistente para a abertura de instrução em que se pretende a pronúncia de pessoas que não foram visadas na investigação levada a cabo no inquérito.”
Igualmente do Tribunal da Relação de Guimarães, o Acórdão de 27-04-2020, proferido no âmbito de um recurso de um igual despacho proferido por este tribunal — processo n.° 2920/17.4T9VCT-A.G1, onde pode ler-se: “Com efeito, a abertura de instrução só será admissível «[contra a(s) pessoa(s) em relação à(s) qual(aís) a investigação tenha sido conduzida e cuja eventual responsabilidade criminal, em virtude dos factos investiga dos, haja sido ponderada no despacho de arquivamento, mesmo que a pessoa em causa não tenha sido formalmente constituída arguida», citando-se Jorge Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in RPCC, ano 19, n.°4, Outubro - Dezembro de 2009, págs. 643 a 668, e acrescentando que se a pessoa contra quem foi requerida a abertura de Instrução “não foi efetivamente visado e objeto de investigação, nem quanto a ele houve ponderação pelo titular da ação penal de uma hipotética responsabilização criminal, inexistindo, pois, em relação ao mesmo, uma decisão de arquivamento que possa ser objeto de comprovação judicial. Assim, se tal pessoa nunca foi visada pela investigação desenvolvida, a instrução que contra ela foi requerida é legalmente inadmissível, sob pena de se operar uma substituição do Ministério Público pelo Juiz de Instrução, incumbindo-o de agora realizar a totalidade do inquérito contra o (novo) visado pela instrução, o que não é aceitável.”
Entendimento contrário levaria a que pessoas que nunca foram alvo de Inquérito, se vissem, de repente, transformadas em arguidas na Instrução, com a primeira fase processual a ser-lhes subtraída, num evidente cercear do respetivo direito de defesa, que nem sequer teve a oportunidade de se defender como arguido, com os seus direitos próprios (cfr., designadamente, o artigo 61.°, do Código de Processo Penal), pelo contrário, três destas pessoas mencionadas pela assistente, foram, até, “obrigadas a colaborar” como testemunhas, em face dos deveres que tal qualidade lhes impõem, para além de que lhes “corta” uma fase processual, que até poderia eventualmente ser de arquivamento fundamentado ou de acusação à qual sempre poderia reagir, mas que, no toca a esta última hipótese, no seguimento do processado pela assistente, se tivesse ocorrido, nem sequer poderia requerer a abertura de Instrução.
Serve o exposto pois para concluir pela inadmissibilidade legal da Instrução nos termos do artigo 287.°, n.°3, do Código de Processo Penal, relativamente aos “arguidos” J. V., F. F. e L. R.”, rejeitando, o tribunal, nesta parte e com tal fundamento, o requerimento de abertura de Instrução formulado pela assistente I. S..
Em conformidade com todo o exposto e ao abrigo das normas legais supra citadas,

O TRIBUNAL DECIDE:
REJEITAR O REQUERIMENTO DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO formulado pela assistente I. S., por inadmissibilidade legal.
Notifique.
Oportunamente, remetam-se os autos aos serviços do Ministério Público».

C) Apreciação do Recurso

Como supra se referiu, a única questão a decidir passará por saber se deve ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela assistente, no qual pretendia a pronúncia de P. B., F. F., L. R. e J. V., não visados na investigação levada a efeito nos presentes autos de inquérito.
Adiantando a nossa conclusão, bem andou o Mmo Juiz ao decidir no sentido da inadmissibilidade legal do requerimento em apreço, nos termos do artigo 287,nº3 do C.P.P., na senda do que vem sendo seguido pela jurisprudência nesta matéria, apoiando-se em vários acórdãos que citou a tal propósito, dois deles proferidos por este Tribunal da Relação de Guimarães.
De acordo com o disposto no artigo 286º, do C.P.P., a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
Daqui se extrai que por via da instrução, não só a posição assumida pelo Ministério Público no fim do inquérito é objecto de controlo judicial, mas também que a abertura da instrução pressupõe necessariamente uma decisão do Ministério Público de acusação ou de arquivamento do inquérito.
Por sua vez, resulta do disposto no artigo 287ºdo C.P.P. que a instrução pode ser requerida, desde logo, a requerimento do assistente se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (art. 287.º, n.º 1, alínea b), do CPP), consagrando-se, deste modo, uma das formas mais relevantes de intervenção do ofendido no processo, à luz do art. 32.º, n.º 7, da Constituição da República Portuguesa (CRP), que se constitui nessa qualidade (art. 68.º, n.º 1, do CPP), para fazer valer os direitos que entenda afectados pela anterior decisão de arquivamento (art. 69.º, n.º 1, alínea a) do CPP).
No caso vertente, os autos de inquérito iniciaram-se com uma comunicação efetuada pela Polícia Judiciária, dando conta da morte de M. A., filho da assistente, tendo prosseguido para averiguação de um eventual crime de homicídio por negligência.
Na sequência da abertura do inquérito foram levadas a cabo várias diligências, as quais passaram, para além de outras, devidamente documentadas nos autos, pela inquirição de várias pessoas, na qualidade de testemunhas, entre as quais três dos visados no requerimento de abertura de instrução, trabalhadores da empresa, porquanto um deles não chegou sequer a ser inquirido.
Porém, se é certo que, das diligências efectuadas, pode o Ministério Público concluir que o mencionado M. A. faleceu em virtude das lesões traumáticas, de natureza contundente, resultantes da demolição da edificação no interior da qual se encontrava, a verdade é, como referiu o Exmo Magistrado do Ministério Público no seu despacho, não logrou estabelecer a existência de um nexo de causalidade entre a conduta dos trabalhadores/direcção da obra e a morte daquele, razão pela também considerou prejudicado ponderar a possibilidade de uma atuação negligente por parte de quem quer que fosse, designadamente de trabalhadores da obra.
E assim sendo, não tendo o titular do inquérito vislumbrado outras diligências úteis com vista à recolha de provas ou indícios, entendeu arquivar os autos de inquérito nos termos do artigo 277,nº2, do C.P.P..
Compulsados os factos vertidos no requerimento de abertura da instrução e com base nos quais a assistente pretende pronúncia dos mencionados P. B., F. F., L. R. e J. V. pela prática de um crime de homicídio por negligência, constata-se que os mesmos não foram, de forma alguma, objecto de investigação.
Com efeito, em momento algum, o Ministério Público, titular da ação penal, equacionou/direccionou o inquérito que decidiu abrir, na sequência do óbito comunicado, para qualquer pessoa em concreto, designadamente para qualquer uma das pessoas visadas na instrução.
Pese embora tenha inquirido como testemunhas três dos visados (um deles nem sequer foi ouvido), nunca admitiu como possível – pois as diligências que decidiu efetuar como titular do inquérito não lhe permitiram chegar a tal – que algum deles ou todos pudessem ser responsabilizados pela prática de um facto ilícito, mais concretamente de um homicídio negligente.
Ainda que instrução possa ser requerida contra quem no inquérito não tenha assumido o estatuto processual de arguido - outro não pode ser o entendimento em face do estatuído no artigo 57º,nº1, do C.P.P., ao determinar a assunção automática da qualidade de arguido de todo aquele contra quem for requerida a instrução num processo penal – é pressuposto da sua admissibilidade que a responsabilidade criminal das pessoas visadas com a instrução tenha sido objecto de ponderação no despacho de arquivamento em face das diligências levadas a efeito.
Defende a recorrente que tendo as pessoas contra as quais requereu a instrução sido inquiridas como testemunhas foram “visadas” na investigação.
Não lhe assiste razão.
E isto porque em relação aos visados na instrução não ocorreu inquérito.
Para haver inquérito contra determinada pessoa, não basta dar formalmente início ao inquérito com a respectiva autuação dos autos e levar a efeito determinadas probatórias, antes se exigindo que tais diligências probatórias sejam dirigidas contra alguém com a finalidade de comprovar a imputação do facto ilícito a essa pessoa.
Como se refere no acórdão da Relação do Porto de 9/5/2007, in dgsi.pt “Correr inquérito contra determinada pessoa tem um preciso significado: a existência de fortes indícios da prática do crime pelo imputado, dos quais resulta consequentemente a realização de um conjunto de diligências probatórias a que se refere o artigo 262º do C.P.P., dirigidas contra essa pessoa concreta, determinada, enquanto tenham por finalidade comprovar a imputação do crime a essa pessoa”.
Não tendo existido inquérito em relação aos visados na instrução, inexistiu também uma decisão de arquivamento susceptível de comprovação judicial.
A admitir-se a instrução estar-se-ia a prescindir do inquérito e, simultaneamente, a atribuir a uma entidade diferente a titularidade da acção penal, no caso ao Juiz de instrução, quando o Ministério Público é que tem a titularidade e direção do inquérito.
Alega a recorrente que a ser perfilhado o entendimento do Mmo Juiz a quo nunca haveria hipótese de um assistente impugnar uma decisão de arquivamento contra quem entendesse existirem indícios da prática de um crime, ficando vedado o direito ao recurso de uma decisão, pilar essencial do sistema judiciário.
Mais alega que o entendimento perfilhado pelo Mmo Juiz é atentório das garantias constitucionais de um processo que assegure uma tutela jurisdicional efetiva do direito à vítima.
Do que temos vindo a referir, claro está que não assiste qualquer razão à recorrente.
Tais considerandos apenas se admitem no pressuposto de que partiu a recorrente de que existiu inquérito relativamente às pessoas contra quem requereu a abertura da instrução.
Mas, como referimos, tal não ocorreu.
A admitir-se a instrução, como pretende a assistente, tal seria sim atentório do princípio do acusatório e dos direitos de defesa que estão atribuídos a qualquer cidadão e contemplados no artigo 32º da nossa Lei Fundamental.
Como resulta do artigo 32º,nº5, da nossa Lei Fundamental, “o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório”.
Como referem, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Anotada, Vol.I, 4ºed.revista, pág.522, "O princípio acusatório (n.º 5, 1.ª parte) é um dos princípios estruturantes da constituição processual penal. Essencialmente, ele significa que só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento. Trata-se de uma garantia essencial do julgamento independente e imparcial. Cabe ao tribunal julgar os factos constantes da acusação e não conduzir oficiosamente a investigação da responsabilidade penal do arguido (princípio do inquisitório).
A «densificação» semântica da estrutura acusatória faz-se através da articulação de uma dimensão material (fases do processo) com uma dimensão orgânico-subjectiva (entidades competentes). Estrutura acusatória significa, no plano material, a distinção entre instrução, acusação e julgamento; no plano subjectivo, significa a diferenciação entre juiz de instrução (órgão de instrução) e juiz julgador (órgão julgador) e entre ambos e órgão acusador. (…) Logicamente, o princípio acusatório impõe a separação entre o juiz que controla a acusação e o juiz de julgamento (cf. Acs TC n.ºs 219/89 e 124/90)."
No desenvolvimento deste princípio, a lei ordinária processual penal conferiu a um órgão do Estado, o Ministério Público, a competência para a promoção do processo penal – artigo 48º - ainda que em determinadas situações e por razões de política criminal tenha condicionado esse exercício da ação penal à verificação de determinadas condições de procedibilidade.
E sendo o Ministério Público o competente para o exercício da ação penal - o titular do inquérito - a lei conferiu a órgãos diferentes a competência para a instrução - o Juiz de Instrução - e para o julgamento – o Juiz do Julgamento.
Segundo o modelo de autonomia que em sede de exercício da ação penal foi desenhado para a atividade do Ministério Público, a titularidade e a direção do inquérito pertencem-lhe, sendo este livre, dentro do quadro legal e estatutário em que se move e a que deve estrita obediência (arts. 53º e 267º), de promover as diligências que entender necessárias ou convenientes com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou arquivar, com exceção dos atos de prática obrigatória no decurso do inquérito.
Apesar dos poderes que lhe são conferidos, e porque compete a direcção do inquérito ao Ministério Público, “não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais. A direcção do inquérito pertence ao Ministério Público e só a ele compete decidir quais os actos que entende dever levar a cabo para realizar as finalidades do inquérito” - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal III, 2.ª edição, págs. 80.
Ou seja, pese embora a intervenção do Juiz de instrução na fase do inquérito quando a mesma é obrigatória, a apreciação da necessidade de realização dessas diligências com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito é da competência exclusiva do Ministério Público, sem prejuízo das formas de reacção previstas nos art.s 278º e 279º.

No caso vertente, a assistente não suscitou, como podia, a intervenção do superior hierárquico do Magistrado que dirigiu o inquérito, tudo nos termos do citado artigo 278º, requerendo, por exemplo, o prosseguimento da investigação e suscitando outras diligências probatórias.
Ao invés, optou pela via da instrução para suprir a falta de inquérito, que, claro está, nunca podia ser suprido, porque obrigatório, sob pena de violação do princípio do acusatório e dos direitos de participação e defesa do arguido.
Como bem referiu o Mmo Juiz no despacho recorrido: “Entendimento contrário levaria a que pessoas que nunca foram alvo de Inquérito, se vissem, de repente, transformadas em arguidas na Instrução, com a primeira fase processual a ser-lhes subtraída, num evidente cercear do respetivo direito de defesa, que nem sequer teve a oportunidade de se defender como arguido, com os seus direitos próprios (cfr., designadamente, o artigo 61.°, do Código de Processo Penal), pelo contrário, três destas pessoas mencionadas pela assistente, foram, até, “obrigadas a colaborar” como testemunhas, em face dos deveres que tal qualidade lhes impõem, para além de que lhes “corta” uma fase processual, que até poderia eventualmente ser de arquivamento fundamentado ou de acusação à qual sempre poderia reagir, mas que, no toca a esta última hipótese, no seguimento do processado pela assistente, se tivesse ocorrido, nem sequer poderia requerer a abertura de Instrução.
Por tudo o exposto, sem necessidade de quaisquer outras considerações, bem andou o Mmo Juiz ao rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura da instrução formulado pela assistente, ora recorrente.


III – Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pela assistente I. S., mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Guimarães, 8 de fevereiro de 2021