Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
367/17.1T8BRG.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO LABORAL
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
NEGLIGÊNCIA
PRESUNÇÃO DE CULPA
ILISÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/16/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I – Em caso de contra-ordenação, existindo um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art. 9.º do mesmo diploma, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.

II – A presunção de culpa e modo de a ilidir, a que se refere o art. 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30/08, evidenciam que a ordem jurídica pressupõe que uma empresa diligente é aquela que organiza o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir os preceitos legais aí mencionados, o que passa, antes de mais, pela preocupação e cuidado em se informar devidamente sobre os mesmos.

III – Tendo se provado que, atendendo a que a sua actividade profissional não era o transporte de mercadorias, mas a construção civil, o gerente da empresa arguida desconhecia a obrigação legal de preenchimento da declaração de actividade ou de qualquer outro documento idêntico e estava convencido que bastava, para efeitos legais, a apresentação das folhas de registo do tacógrafo nos dias em que o veículo circulava, a falta de consciência da ilicitude é censurável porque, ao levar a cabo a exploração duma actividade lucrativa em que fazia uso da utilização de um veículo pesado de mercadorias com tacógrafo, devia ter-se informado previamente de todas as obrigações legais a que por tal facto estava adstrito, de modo a organizar o trabalho em termos de o condutor poder cumprir a mencionada obrigação.

IV – Assim, tendo a arguida actuado sem consciência da ilicitude do facto por erro censurável, mostra-se adequada a sua punição a título de negligência.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães:

1. Relatório

O presente recurso foi interposto pelo Ministério Público, por não se conformar com a sentença que julgou procedente a impugnação judicial e absolveu a arguida Sociedade de Construção SM, Lda. da prática duma contra-ordenação ao disposto no art. 15.º, n.º 7 do Regulamento (CEE) 3821/85, de 20/12, alterado pelo Regulamento (CE) 561/2006, de 15/03, em conjugação com o art. 25.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 27/2010, de 30/08, verificada pela GNR no dia 26/01/2016, na E.N. n.º 101, em Trandeiros, Braga, sendo a viatura conduzida pelo sócio-gerente da arguida.

Formula as seguintes conclusões:

«1- A sentença recorrida violou o disposto no art. 9º nº 1 do Regime Geral das Contra Ordenações e Coimas e art. 15º nº 7 do Reg. (CEE) 3821/85 de 20.12, alterado pelo Reg. (CE) 561/2006 de 15.3, ao julgar procedente o recurso interposto pela arguida.
2- Uma vez que considerou que a arguida actuou com erro não censurável de falta de consciência da ilicitude
3- Da factualidade dada como não provada não consta que a falta de esclarecimento e de conhecimento se ficou a dever a uma qualquer qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade da arguida, a uma indiferença perante o bem jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível.
4- A factualidade dada como provada não permitia que o Mmo Juizo motivasse a decisão de moldes a concluir que não era censurável o erro sobre a ilicitude.
5- Incorrendo também a decisão no vicio do erro notório na apreciação da prova que se caracteriza como sendo a ignorância ou falsa representação de uma realidade, e de tal modo evidente que não passaria despercebido à generalidade das pessoas ou seria facilmente detectado por uma pessoa comum, de modo que, se na posição do juiz, o detectaria sem qualquer esforço.
6 - O comportamento da arguida se não assume carácter doloso – pelo menos disso não foi acusada - revela inequivocamente grande desleixo e falta de cuidado na observância das normas jurídicas violadas, que bem conhecia ou devia conhecer atentas as caracteristicas do veículo que utilizava, a frequência da sua utilização e o facto de estar equipado com tacógrafo e ser o sócio gerente da arguida o seu único condutor.
7 - A sentença recorrida, tendo feito incorrecto enquadramento jurídico da matéria de facto provada e violando as disposições legais atrás referidas deve ser substituída por outra que mantenha, nos seus precisos termos, a decisão proferida pela autoridade administrativa, não devendo beneficiar de atenuação especial, pese embora a pretensão da arguida na sua impugnação uma vez que é reincidente.»
A arguida não apresentou resposta ao recurso.
Admitido o recurso pelo tribunal recorrido, com efeito meramente devolutivo, subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

2. Objecto do recurso

De acordo com o art. 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, aplicável ex vi art. 50.º, n.º 4, do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, as questões a decidir são:
- erro notório na apreciação da prova e outros vícios da matéria de facto;
- se a arguida agiu com falta de consciência da ilicitude não censurável.

3. Fundamentação de facto

Os factos relevantes para a decisão da causa são os seguintes:

1. A arguida dedica-se à construção de edifícios residenciais e não residenciais.
2. No dia 26 de Janeiro de 2016, o veículo pesado de mercadorias com a matrícula QT foi sujeito a uma inspecção pela autoridade policial.
3. Este veículo era propriedade da arguida.
4. Na altura da inspecção, este veículo era conduzido por A. O., o qual era sócio e gerente da arguida.
5. O sócio e gerente da arguida apenas apresentou à autoridade policial as folhas de registo do tacógrafo relativas ao dia 29 de Dezembro de 2015 e aos dias 19, 20, 21 e 26 de Janeiro de 2016.
6. O gerente da arguida não apresentou as restantes as folhas de registo do tacógrafo relativamente aos vinte e oito dias anteriores e também não apresentou a declaração de actividade ou qualquer outro documento comprovativo que permitisse justificar a sua não presentação.
7. O veículo com a matrícula QT era o único veículo pesado de que arguida era proprietária.
8. Este veículo era utilizado pela arguida apenas para transportar materiais do seu estaleiro para as obras que realizava.
9. (eliminado nos termos do ponto 4.1.)
10. (eliminado nos termos do ponto 4.1.)
11. O gerente da arguida trabalhava nas obras que esta realizava juntamente com os restantes trabalhadores, na qualidade de operário da construção civil.
12. O gerente da arguida não conduziu e o veículo não circulou nos dias em que não foram apresentadas as folhas de registo do tacógrafo, tendo permanecido no estaleiro.
13. Atendendo a que a sua actividade profissional não era o transporte de mercadorias, mas a construção civil, o gerente da arguida desconhecia a obrigação legal de preenchimento da declaração de actividade ou de qualquer outro documento idêntico e estava convencido que bastava, para efeitos legais, a apresentação das folhas de registo do tacógrafo nos dias em que o veículo circulava, tal como fez quando ocorreu a fiscalização. (alterado nos termos do ponto 4.1.)

4. Apreciação do recurso

4.1. Conforme se disse, a primeira questão suscitada pelo Recorrente nas conclusões do seu recurso prende-se com o erro notório na apreciação da prova.
Dispõe o art. 51.º, n.º 1 do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, aprovado pela Lei n.º 107/2009, de 14 de Setembro, que, se o contrário não resultar de tal lei, a segunda instância apenas conhece da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.
Ou seja, como diz António Santos Abrantes Geraldes(1), “[o] recurso em matéria de facto está limitado às situações referidas no art. 410.º, n.º 2, do CPP, pelo que, em regra, a Relação apenas aprecia matéria de direito, funcionando, na prática, como tribunal de revista.”
Na verdade, uma vez que o tribunal do trabalho funciona, no âmbito da sua competência em matéria de contra-ordenações laborais e de segurança social, como instância de recurso, e para mais reapreciando a decisão da autoridade administrativa com a maior das amplitudes, quer de facto, quer de direito, o tribunal da relação, em conformidade, funciona essencialmente como instância de revista, e, consequentemente, em termos limitados, quer quanto às decisões judiciais que admitem recurso (art. 49.º do diploma mencionado), quer quanto ao âmbito e efeitos do recurso (art. 51.º, n.º 1 do mesmo).
Nessa mesma ordem de razões, não há lugar ao registo da prova, nos termos do art. 66.º do regime geral das contra-ordenações (DL n.º 433/82, de 27 de Outubro), aplicável ex vi art. 60.º do acima indicado regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social.
Ora, nos termos do n.º 2 do art. 410.º do Código de Processo Penal, aplicável por força dos arts. 41.º, n.º 1 e 74.º, n.º 4 do citado regime geral das contra-ordenações, por sua vez aplicáveis ex vi art. 60.º do regime processual das contra-ordenações laborais e de segurança social, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; ou c) erro notório na apreciação da prova.
Isto é, para além da sua tipicidade, “[t]êm tais vícios da matéria de facto, deste modo, de resultar do texto da decisão recorrida e sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos (v. Ac. do STJ de 31/1/90, BMJ-393º, pag. 333; Ac. do STJ de 20/6/90, Col. STJ, 1990, T. 3, pag. 22; Ac. do STJ de 11/6/92, BMJ-418º, pag. 478; Ac. do STJ de 8/1/97, BMJ-463º, pag. 189; Ac. do STJ de 5/3/97, BMJ-465º, pag. 407; Ac. do STJ de 9/4/97, BMJ-466º, pag. 392; Ac. do STJ de 17/12/97, BMJ-472º, pag. 407; Ac. do STJ de 27/1/98, BMJ-473º, pag. 148; Ac. do STJ de 10/2/98, BMJ-474º, pag. 351; e Ac. do STJ de 9/12/98, BMJ-482º, pag. 68), não sendo admissível, designadamente, o recurso a declarações ou depoimentos exarados no processo (v. Ac. do STJ de 19/12/90, BMJ-402º, pag. 232) e não podendo basear-se em documentos juntos ao processo (v. Ac. Rel. de Coimbra de 5/2/97, BMJ-464º, pag. 627).
Os vícios da matéria de facto em referência não podem, designadamente, ser confundidos com uma divergência entre a convicção alcançada pelo recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela convicção que, nos termos do art. 127º do CPP e com respeito, designadamente, pelo disposto no art. 125º do CPP, o Tribunal a quo alcançou sobre os factos” (2).
Por seu turno, conforme ensina o Prof. Germano Marques da Silva (3), no que respeita à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, "[é] necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida"; no que ao erro notório na apreciação da prova concerne, "é o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta"; já quanto à contradição insanável da fundamentação, ou entre a fundamentação e a decisão, "distingue-se antes de mais da falta de fundamentação” e pode existir "não só entre os factos dados como provados mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto".
Retornando ao caso dos autos, constata-se que o tribunal recorrido fundamentou a decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos:
«O tribunal fundou a sua convicção no depoimento das testemunhas ouvidas e nos documentos juntos aos autos.
A testemunha A. O., sócio e gerente da arguida, começou por afirmar que esta era uma pequena empresa que se dedicava à construção de edifícios residenciais e não residências e que, como acontece com muitas empresas deste sector, desde há vários anos apenas tinha uma actividade muito diminuta. Além disso, confirmou integralmente a matéria de facto considerada provada, o que fez por forma que se afigurou sincera e isenta. No essencial, esta testemunha esclareceu, tal como foi considerado provado, que atendendo a que o veículo pesado de mercadorias de que a arguida era proprietária apenas era utilizado cerca de duas vezes por mês e a que a sua actividade profissional não era o transporte de mercadorias, mas a construção civil, desconhecia a obrigação legal de preenchimento da declaração de actividade ou de qualquer outro documento idêntico e estava convencido que bastava, para efeitos legais, a apresentação das folhas de registo do tacógrafo nos dias em que o veículo circulava, tal como fez quando ocorreu a fiscalização, tendo cumprido integralmente a sua obrigação nesta parte.
As testemunhas J. O. e P. P., funcionários da arguida, confirmaram integralmente esta versão, o que fizeram também por forma que se afigurou sincera e isenta. O genuíno convencimento do gerente da arguida quanto à licitude da sua conduta foi claramente demonstrado por estas testemunhas quando afirmaram que ‘na empresa não existia qualquer motorista e o veículo era conduzido pelo patrão’, o qual, no seu entendimento, era operário da construção civil e não um motorista de veículos pesados.»
Ora, salvo o devido respeito, verifica-se efectivamente erro notório na apreciação da prova e ainda contradição nos fundamentos de facto e entre estes e a respectiva motivação (vício também invocado pelo Recorrente nas alegações do recurso, embora não mencionado expressamente nas conclusões), em termos de revestirem relevância legal, de acordo com o entendimento acima explicitado.
Com efeito, estando assente, sem controvérsia, que o sócio e gerente da arguida apresentou à autoridade policial as folhas de registo do tacógrafo relativas ao dia 29 de Dezembro de 2015 e aos dias 19, 20, 21 e 26 de Janeiro de 2016 (ponto 5.), não tendo conduzido o veículo em causa nos restantes dias (ponto 12.), o que significa que em menos de um mês o conduziu pelo menos cinco vezes, existe contradição com a factualidade constante dos pontos 9., 10. e primeira parte do 13., ao se considerar como provado que a arguida apenas utilizava o veículo esporadicamente, cerca de duas vezes por mês, o que por seu turno adveio de erro notório na apreciação da prova, ao se valorarem os depoimentos prestados em termos que geraram a aludida contradição com a factualidade dos pontos 5. e 12. e respectivos meios de prova.
Trata-se, pois, de um erro ostensivo para o comum dos observadores no que respeita à ponderação e avaliação dos meios de prova produzidos, em termos de, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum, impor por razões de ordem lógica uma decisão diferente, e, mais precisamente, a de dar como não provada a factualidade afectada pelos vícios cometidos (alterações introduzidas supra no local próprio).
4.2. Posto isto, importa apreciar e decidir se a arguida agiu com falta de consciência da ilicitude não censurável, como se entendeu na sentença recorrida, sendo que o Recorrente discorda, sustentando que a factualidade dada como provada não permitia que o Mmo. Juiz a quo retirasse tal conclusão.
Vejamos.
Estabelece o art. 15.º, n.º 7 do Regulamento (CEE) 3821/85 do Conselho, de 20 de Dezembro, com a redacção que lhe foi dada pelo Regulamento (CE) 561/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março:
a) Sempre que o condutor conduza um veículo equipado com um aparelho de controlo em conformidade com o anexo I, deve poder apresentar, a pedido dos agentes encarregados do controlo:
i) as folhas de registo da semana em curso e as utilizadas pelo condutor nos 15 dias anteriores;
ii) o cartão de condutor, se o possuir; e
iii) qualquer registo manual e impressão efectuados durante a semana em curso e nos 15 dias anteriores, tal como previsto no presente regulamento e no Regulamento (CE) n.º 561/2006.
No entanto, após 1 de Janeiro de 2008, os períodos referidos nas subalíneas i) e iii) abrangerão o dia em curso e os 28 dias anteriores;
b) Sempre que o condutor conduza um veículo equipado com um aparelho de controlo de acordo com o anexo 1 B, deve poder apresentar, a pedido dos agentes encarregados do controlo:
i) o cartão de condutor de que for titular,
ii) qualquer registo manual e impressão efectuados durante a semana em curso e nos 15 dias anteriores, tal como previsto no presente regulamento e no Regulamento (CE) n.º 561/2006, e
iii) as folhas de registo correspondentes ao período referido na alínea anterior, no caso de ter conduzido um veículo equipado com um aparelho de controlo de acordo com o anexo I.
No entanto, após 1 de Janeiro de 2008, os períodos referidos na subalínea ii) devem abranger o dia em curso e os 28 dias anteriores;
c) Os agentes autorizados para o efeito podem verificar o cumprimento do Regulamento (CE) n.º 561/2006 através da análise das folhas de registo ou dos dados, visualizados ou impressos, registados pelo aparelho de controlo ou pelo cartão de condutor ou, na falta destes meios, através da análise de qualquer outro documento comprovativo que permita justificar o incumprimento de qualquer disposição, como as previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo 16.º
Por seu turno, estabelece o art. 25.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 27/2010, de 30 de Agosto, que constitui contra-ordenação muito grave a não apresentação, quando solicitada por agente encarregado da fiscalização, de cartão de condutor, das folhas de registo utilizadas e de qualquer registo manual e impressão efectuados, que o condutor esteja obrigado a apresentar.
No caso em apreço, provou-se que, no dia 26 de Janeiro de 2016, o veículo pesado de mercadorias com a matrícula QT, propriedade da arguida, era conduzido por A. O., seu sócio e gerente, o qual ao ser fiscalizado apenas apresentou à autoridade policial as folhas de registo do tacógrafo relativas ao dia 29 de Dezembro de 2015 e aos dias 19, 20, 21 e 26 de Janeiro de 2016, não tendo apresentado as restantes as folhas de registo do tacógrafo relativamente aos vinte e oito dias anteriores, nem a declaração de actividade ou qualquer outro documento comprovativo que permitisse justificar a sua não presentação.
Assim, ocorrendo a violação ao disposto na alínea a), sem que tenha sido apresentada justificação nos termos da alínea c), ambas do art. 15.º, n.º 7 do mencionado Regulamento (CEE) 3821/85, conclui-se pela verificação objectiva da contra-ordenação prevista no art. 25.º, n.º 1, al. b) da referida Lei n.º 27/2010,
Como resulta inequivocamente das disposições normativas acima indicadas, é no acto de fiscalização pelas autoridades policiais que o condutor deve poder apresentar às mesmas as folhas de registo, ou, se não existirem, qualquer documento comprovativo que justifique a omissão.
Ainda com interesse para esta questão, dispõe o art. 13.º da aludida Lei n.º 27/2010, com a epígrafe «Responsabilidade pelas contra-ordenações»:
1 - A empresa é responsável por qualquer infracção cometida pelo condutor, ainda que fora do território nacional.
2 - A responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, do Conselho, de 20 de Dezembro, e no capítulo ii do Regulamento (CE) n.º 561/2006, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de Março.
3 - O condutor é responsável pela infracção na situação a que se refere o número anterior ou quando esteja em causa a violação do disposto no artigo 22.º.
4 - A responsabilidade de outros intervenientes na actividade de transporte, nomeadamente expedidores, transitários ou operadores turísticos, pela prática da infracção é punida a título de comparticipação, nos termos do regime geral das contra-ordenações.
Isto é, enquanto o art. 15.º, n.º 7 do Regulamento (CEE) 3821/85 se refere ao elemento objectivo da infracção, o art. 13.º da Lei n.º 27/2010 reporta-se ao elemento subjectivo da infracção, ou seja, esta segunda norma define as condições em que a infracção verificada objectivamente nos termos daquela primeira norma deve ser imputada em função da culpa (ainda que presumida) à empresa ou ao condutor e a terceiro.
Assim, como decorre do mencionado art. 13.º da Lei n.º 27/2010, a responsabilidade da empresa é excluída se esta demonstrar que organizou o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir o disposto no Regulamento (CEE) n.º 3821/85, ou seja, no caso dos autos, de modo a que o motorista pudesse apresentar os documentos mencionados nas alíneas a) e b) do n.º 7 do art. 15.º, ou, na sua falta, os mencionados na alínea c).
Trata-se duma situação de imputação subjectiva à empresa da infracção praticada e não justificada pelo condutor, nos termos das alíneas a) ou b) e c) do n.º 7 do art. 15.º do Regulamento (CEE) n.º 3821/85, que, mesmo assentando numa mera presunção legal de culpa, é constitucionalmente admissível na medida em que ela pode ilidir a culpa que a lei presume, demonstrando que organizou o trabalho de modo a que o condutor pudesse cumprir o ali disposto (4).
Ora, na sentença recorrida entendeu-se absolver a empresa arguida da infracção que lhe estava imputada sob invocação do art. 9.º, n.º 1 do Regime Geral das Contra-Ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10, segundo o qual age sem culpa quem actua sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não for censurável (5).
Não obstante, dificilmente se concebe que numa situação como a dos autos se invoque com sucesso a falta de consciência da ilicitude por erro não censurável, uma vez que a presunção de culpa e modo de a ilidir evidenciam que a ordem jurídica pressupõe que uma empresa diligente é aquela que organiza o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir os preceitos em análise, o que passa, antes de mais, pela preocupação e cuidado em se informar devidamente sobre os mesmos.
Retornando ao caso em apreço, provou-se que o veículo com a matrícula QT era o único veículo pesado de que arguida era proprietária e era utilizado apenas para transportar materiais do seu estaleiro para as obras que realizava. Mais se provou que, atendendo a que a sua actividade profissional não era o transporte de mercadorias, mas a construção civil, o gerente da arguida desconhecia a obrigação legal de preenchimento da declaração de actividade ou de qualquer outro documento idêntico e estava convencido que bastava, para efeitos legais, a apresentação das folhas de registo do tacógrafo nos dias em que o veículo circulava, tal como fez quando ocorreu a fiscalização.
Ora, estando em causa o desconhecimento duma obrigação legal, existe antes de mais um erro sobre a proibição, que exclui o dolo, nos termos do art. 8.º, n.º 2, do citado Regime Geral das Contra-Ordenações, ficando, todavia, ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais, por força do n.º 3.
Com efeito, como refere Cavaleiro de Ferreira, “(…) o conhecimento da proibição (norma incriminadora) não é necessário relativamente aos crimes, para se verificar a consciência da ilicitude, quando não seja razoavelmente indispensável para esse conhecimento, e é de considerar sempre indispensável quanto a contra-ordenações. É a consequência de uma incriminação menos natural, e por isso não é de presumir que o agente tenha conhecimento da anti-socialidade ou ilegalidade do facto que comete, sem conhecimento da própria lei.” (6)
Assim, estando em causa uma contra-ordenação, existindo um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art. 9.º, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.
Ora, na sequência das considerações já expendidas, afigura-se que, não obstante a arguida não ter consciência da ilicitude do facto cometido, a falta é censurável: ao levar a cabo a exploração duma actividade lucrativa em que fazia uso da utilização de um veículo pesado de mercadorias com tacógrafo, devia ter-se informado previamente de todas as obrigações legais a que por tal facto estava adstrita, para além da apresentação de registos do tacógrafo nos dias de condução.
Isto é, se, como se diz na sentença recorrida, o erro sobre a ilicitude é censurável, ou não, consoante ele próprio seja, ou não, revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o dever-ser jurídico-penal, no caso de uma mera contra-ordenação, como na situação em apreço, aplicando mutatis mutandis aquela asserção, é de concluir pela afirmativa, na medida em que uma empresa diligente é a que organiza o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir as disposições legais em causa nos autos, o que pressupõe a prévia indagação e esclarecimento sobre o sentido e extensão das mesmas.
Diz-se ainda na sentença recorrida que «(…) a exigência da declaração de actividade ou de qualquer outro documento idêntico é precisamente um daqueles aspectos que mais frequentemente escapa às pessoas que não estão familiarizadas com o regime relativo aos tempos de condução, pausas e tempos de repouso dos motoristas e ao controlo da utilização de tacógrafos, sendo compreensível que estas pessoas considerem que basta a utilização correcta do aparelho de tacógrafo quando conduzem, nada mais lhes sendo exigido relativamente aos dias em que não conduzem e os veículos pesados não circulam.»
Todavia, como é bom de ver, esta argumentação não pode proceder relativamente a empresas que têm o dever ético-jurídico de diligenciar por colmatar as lacunas de conhecimento, informando-se e esclarecendo-se em matéria de deveres inerentes à utilização de veículos pesados de mercadorias com tacógrafo, atendendo à actividade empresarial ou profissional que desenvolvem.
Em face do exposto, verifica-se que o erro da arguida é censurável, e, assim, se mostra adequada a sua punição a título de negligência, como se entendera na decisão administrativa.
Por outro lado, compulsadas as conclusões do recurso de impugnação judicial da decisão administrativa apresentado pela arguida, verifica-se que a única questão que suscitou foi a da falta de consciência da ilicitude por erro não censurável, pugnando pela sua absolvição, sendo certo que objectivamente não se verificam circunstâncias que justifiquem a atenuação especial da coima nos termos do n.º 2 do art. 9.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, tanto mais que a mesma foi fixada no limite mínimo da respectiva moldura.
Deste modo, sendo de concluir que não procede a pretensão da arguida, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, pelas razões acabadas de expor, mostra-se adequado manter a coima de € 2.719,32 nos termos constantes da decisão administrativa.
Termos em que procede o recurso do Ministério Público.

5. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso, e, em consequência, em revogar a sentença recorrida e condenar a arguida na coima de € 2.719,32, pela prática duma contra-ordenação ao disposto no art. 15.º, n.º 7 do Regulamento (CEE) 3821/85, de 20/12, alterado pelo Regulamento (CE) 561/2006, de 15/03, em conjugação com o art. 25.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 27/2010, de 30/08.
Custas pela arguida.
Guimarães, 16 de Novembro de 2017

(Alda Martins)
(Eduardo Azevedo)

Sumário (elaborado pela Relatora):

I – Em caso de contra-ordenação, existindo um erro sobre a proibição, nos termos do art.º 8.º do regime geral das contra-ordenações, aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27/10, existe necessariamente falta de consciência da ilicitude do facto, nos termos do art. 9.º do mesmo diploma, mas, se a conduta for punível a título de negligência, como ressalvado no n.º 3 daquela primeira norma, a mesma só se tem por excluída se o erro não for censurável, nos termos do n.º 1 da segunda norma.

II – A presunção de culpa e modo de a ilidir, a que se refere o art. 13.º da Lei n.º 27/2010, de 30/08, evidenciam que a ordem jurídica pressupõe que uma empresa diligente é aquela que organiza o trabalho de modo a que o condutor possa cumprir os preceitos legais aí mencionados, o que passa, antes de mais, pela preocupação e cuidado em se informar devidamente sobre os mesmos.

III – Tendo se provado que, atendendo a que a sua actividade profissional não era o transporte de mercadorias, mas a construção civil, o gerente da empresa arguida desconhecia a obrigação legal de preenchimento da declaração de actividade ou de qualquer outro documento idêntico e estava convencido que bastava, para efeitos legais, a apresentação das folhas de registo do tacógrafo nos dias em que o veículo circulava, a falta de consciência da ilicitude é censurável porque, ao levar a cabo a exploração duma actividade lucrativa em que fazia uso da utilização de um veículo pesado de mercadorias com tacógrafo, devia ter-se informado previamente de todas as obrigações legais a que por tal facto estava adstrito, de modo a organizar o trabalho em termos de o condutor poder cumprir a mencionada obrigação.
IV – Assim, tendo a arguida actuado sem consciência da ilicitude do facto por erro censurável, mostra-se adequada a sua punição a título de negligência.

(Alda Martins)


1. Recursos no Processo do Trabalho, Coimbra, 2010, pág. 169.
2. Ac. da Relação de Lisboa de 23 de Fevereiro de 2005, in www.dgsi.pt.
3. Curso de Processo Penal, ed. Verbo, 2000, III Vol, pp. 339-342.
4. Neste sentido, cfr. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 514/2014, de 26 de Junho, no qual se considerou que “(…) se uma construção deste tipo pode ser problemática no domínio do direito penal, já em sede de direito de mera ordenação social, em que apenas está em jogo a aplicação de coimas, não suscita qualquer reserva, tanto mais que, neste caso, se permite que a entidade patronal afaste a sua responsabilidade contra-ordenacional, demonstrando que organizou o serviço de transporte rodoviário de modo a que o seu condutor pudesse ter cumprido a norma que inobservou, ilidindo, assim, aquela presunção”.
5. Acrescentando o n.º 2 que, se o erro lhe for censurável, a coima pode ser especialmente atenuada.
6. Lições de Direito Penal, Parte Geral, Editorial Verbo, 1992, p. 123.