Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
80/18.2T8TMC.E. G1
Relator: ANTÓNIO BARROCA PENHA
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
DIFERENTES PARECERES
CONTRADITÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do Relator)

I- Surgindo pareceres coincidentes do administrador da insolvência e do Ministério Público, no sentido da qualificação da insolvência como furtuita, diversamente do requerido pelo credor interessado, que deu origem à abertura do respetivo incidente de qualificação de insolvência como culposa, antes de proferir decisão sobre a qualificação da insolvência, o juiz deverá ouvir aquele credor requerente para, querendo, exercer o princípio do contraditório (art. 3º, n.º 3, do C. P. Civil, ex vi do art. 17º, do CIRE), sendo certo que atualmente os pareceres coincidentes do administrador da insolvência e do Ministério Público no sentido da qualificação da insolvência como furtuita, não impedem o juiz de averiguar os factos, ao abrigo do disposto no art. 11º do CIRE, e de qualificar a insolvência como culposa, quando assim o entenda.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

Nos autos principais de insolvência apensos, relativos à sociedade (…), Lda., foi proferida a sentença declaratória de insolvência, ao abrigo das disposições do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Neste apenso E, (…), credor, requereu a abertura do incidente de qualificação de insolvência (com caráter pleno), indicando (…) E OUTROS como devendo ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa, com todas as demais consequências legais daí decorrentes.
Foi declarado aberto o incidente.
O Sr. Administrador da Insolvência apresentou o parecer de fls. 56 e seguintes e pugnou pela qualificação da insolvência como furtuita.
O Ministério Público pugnou igualmente pela qualificação da insolvência como furtuita, nos termos expressos no parecer de fls. 65 e segs.
Os mesmos pareceres não foram notificados ao credor requerente para, querendo, se pronunciar.

Assim, seguidamente, por sentença de 17.06.2019, foi proferida a seguinte decisão:

“Pelo exposto, nos termos do disposto no art. 188º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas qualifico como furtuita a insolvência de ..., Lda. (…).” (cfr. fls. 68 e 69).

Uma vez notificado de tal decisão, veio o requerente credor invocar que os pareceres do Sr. Administrador Judicial, assim como do Ministério Público, não foram notificados ao requerente, pelo que tal omissão deverá ser julgada como um ato nulo, anulando-se os demais atos processuais ulteriores.

Na sequência, foi proferido a 05.07.2019, o seguinte despacho:

Por via do requerimento que antecede, veio o credor e requerente, A. T., invocar a nulidade pela falta de notificação ao aqui requerente do Parecer do Sr. Administrador de Insolvência e da Promoção do Ministério Público ser julgado como um ato nulo, anulando-se os demais actos processuais ulteriores, porquanto refere não ter sido notificado do parecer do Sr.AI e bem assim, do parecer emitido pela MP, acerca da qualificação deste incidente, para este, no exercício do Seu direito ao contraditório previsto no artigo 3.º, n.º 3 do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE, sobre eles se poder pronunciar.
Alega, em síntese, que a falta de notificação ao requerente do teor do Parecer do Sr. Administrador de Insolvência e da promoção do Ministério Público e a falta de audição, por qualquer outro meio, da requerente quanto ao teor dos mesmos, constitui uma omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreve (n.º 3 do artigo 3.º do CPC), a qual, por influir diretamente no exame e decisão da causa, acarreta a sua nulidade nos termos do n.º 1 do artigo 195.º do CPC, nulidade que expressamente se invoca.

Ora, cumpre apreciar:

Desde logo e primeiramente se refuta os argumentos expendidos pela requerente no requerimento em crise, por não existir qualquer nulidade processual.

Dispõe o artigo 188º do CIRE, no seu nº. 3 que: “Declarado aberto o incidente, o administrador da insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta, no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa”.

O seu nº. 4 refere que “O parecer e as alegações referidos nos números anteriores vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias”.

Por seu turno, no seu nº.5 refere que “Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso” – sublinhado meu.

Como se depreende do teor dos normativos e porque em causa está um incidente de qualificação de insolvência deduzido pelo credor aqui requerente, foi junto aos autos o parecer do sr.AI e a promoção do MP, cujas posições se encontram coincidentes, no sentido de proporem a qualificação de insolvência como fortuita, tendo a aqui signatária, proferido decisão, no imediato (aliás, como ressalta da leitura do próprio artigo).

Não se impunha qualquer notificação ao requerente, dependente de contraditório (sendo, aliás, que sendo o processo tramitado obrigatoriamente de forma electrónica, basta a mera consulta dos autos por parte daquele para ter conhecimento do teor dos ditos pareceres e promoção).

Desta feita, não se vislumbra a existência da nulidade invocada.
Notifique.
Custas de incidente pela requerente – 527º do CPC. (cfr. fls. 73)

Inconformado com o assim decidido, veio o requerente credor A. T. interpor recurso de apelação, nele formulando as seguintes

CONCLUSÕES

a) O requerente do incidente de qualificação de insolvência ou outro qualquer credor tem o direito a exercer o contraditório, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do CPC, ex vi artigo 17.º do CIRE, em relação ao Parecer do Administrador de Insolvência e da Promoção do Magistrado do Ministério Público, antes de ser proferida a sentença, quando o Tribunal a quo é do prévio entendimento que, nos termos do disposto no n.º 5 do artigo 188.º do CIRE é de seguir a posição do Administrador de Insolvência e do Magistrado do Ministério Público de qualificar a insolvência como fortuita,
b) Sobremaneira quando os referidos Parecer e Promoção trazem ao processo elementos novos, que ainda não foram analisados para poderem ser contraditados pelo requerente do incidente de qualificação.
c) O nº 5 do mesmo artigo 188.º prevê que “Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como fortuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso”, não estando, portanto, obrigado a seguir a orientação daqueles.
d) Aliás, o tribunal a quo, também na qualificação da insolvência, deve atender a todos os elementos assentes no processo, ainda que não tenham sido alegados ou atendidos nos pareceres do Senhor Administrador da Insolvência e do Ministério Público - AC. Rel. Lx., de 27-11-2007, in CJ, V, pág 104, citado na anotação ao artigo 188º do CIRE, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Luís Carvalho Fernandes e João Labareda.
e) Tendo entendido que não devia realizar quaisquer diligências, face ao teor dos referidos pareceres, antes de proferir a sentença de qualificação, o Tribunal a quo deveria ter permitido à recorrente exercer o seu direito ao contraditório, uma vez que a sua decisão iria ser proferida com base em matéria constante dos ditos pareceres, que não tinham sido notificados à recorrente.
f) No CIRE inexiste qualquer norma a afastar a aplicação do princípio do contraditório e da notificação às partes das decisões judiciais, no âmbito do incidente de qualificação de insolvência previsto no n.º 3 do artº 3.º do C. P. Civil
g) O CIRE e o Código de Processo Civil não estatui qualquer obrigação à parte interessada na qualificação da insolvência de, diariamente, consultar o citius para apurar se o Parecer do Administrador de Insolvência e a Promoção do Ministério Público já foram emitidos e lançados na referida plataforma digital.
h) Ao entender que o Parecer do Administrador de Insolvência e a Promoção do Ministério Público não têm de ser previamente notificado à parte requerente do Incidente de Qualificação da Insolvência para esta poder exercer o contraditório, querendo, violou o Tribunal a quo o disposto nos artº. 3.º, n.º 3, 247.º, n.º 1, 248.º do Código de Processo Civil, ex vi artº.17º do CIRE e também o n.º 2 do artigo 9.º do CIRE.

Finaliza, pugnando pela revogação do despacho em crise, devendo o mesmo ser substituído por outro que, julgando verificada a invocada falta de notificação ao recorrente, ordene a notificação do conteúdo do parecer do AI e do Ministério Público para, querendo, o recorrente se poder pronunciar.
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O Ministério Público apresentou requerimento, “aderindo ao expendido pelo tribunal a quo em sede de douto despacho proferido.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635º, n.º 4, 637º, n.º 2 e 639º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), não podendo o Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, n.º 2, in fine, ambos do C. P. Civil).

No seguimento desta orientação, cumpre fixar o objeto do presente recurso.

Neste âmbito, a única questão decidenda traduz-se na seguinte:

- Saber se cumpre proceder à revogação do despacho em crise, com a consequente anulação da decisão final proferida, por não haver sido respeitado o princípio do contraditório.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Factos Provados

Os acima consignados no Relatório.
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IV) FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Do cumprimento do princípio do contraditório

A principal questão que importa dirimir, em função das conclusões do recurso apresentadas, refere-se ao cumprimento do princípio do contraditório, porquanto o recorrente requerente defende que devia ter sido ouvido, na sequência dos referidos pareceres do administrador de insolvência e do Ministério Público, que haviam-se pronunciado pela qualificação da insolvência em causa por furtuita (contrariamente ao pretendido pelo requerente que defende a sua qualificação como culposa, afetando as pessoas indicadas).

Vejamos.

De acordo com o disposto no art. 3º, n.º 3, do C. P. Civil, “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
De acordo com Abílio Neto (1), “a proibição das “decisões surpresa” (art. 3º-3) constitui uma garantia cuja manifestação predominantemente se situa no âmbito das questões de conhecimento oficioso não levantadas no decurso do processo, das quais o tribunal se propõe conhecer no momento da decisão. Verificando-se em concreto uma situação deste tipo, deve o tribunal criar condições para o exercício do contraditório sobre o ponto em causa, relativamente a ambas as partes, em momento anterior à decisão e seja qual for a fase que o processo esteja a atravessar.”

O princípio do contraditório – que a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem considerado inserto no direito fundamental de acesso aos tribunais (art. 20º, n.º 1, da CRP) – envolve, desde logo, como vertente essencial, “a proibição da «indefesa» que consiste na privação ou limitação do direito de defesa do particular perante os órgãos judiciais, junto dos quais se discutem questões que lhe dizem respeito.” (2)

Como se reconhece, entre outros, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2000 (DR, II série, de 7 de Novembro de 2000): “A norma contida no artigo 3° n.º 3 do CPC resulta, assim, de uma imposição constitucional, conferindo às partes num processo o direito de se pronunciarem previamente sobre as questões – suscitadas pela parte contrária ou de conhecimento oficioso – que o tribunal vier a decidir.”

Por outro lado, o princípio do contraditório ou da contrariedade, conforme afirma J. Castro Mendes (3) “deriva de outro princípio processual: o da igualdade das partes, o qual resulta necessariamente da imparcialidade do órgão incumbido de compor o litígio. Perante este, tanto vale uma parte como a outra, ambas devem ter igual tratamento; e ambas devem ter por conseguinte iguais oportunidades de expor as suas razões, procurando convencer o tribunal a compor o litígio a seu favor. Até porque esta dialéctica, esta recíproca fiscalização de afirmações, é dos meios mais eficazes para assegurar a vitória da verdade e da justiça.” (4) (sublinhado nosso).
De facto, resulta do disposto no art. 4º do C. P. Civil, que “o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade, substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.” (sublinhámos)
Também José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (5), defendem que este princípio do contraditório, na vertente proibitiva da decisão-surpresa, encarado como um “direito à fiscalização reciproca das partes ao longo do processo, é hoje entendido como corolário duma conceção mais geral da contrariedade, como garantia da participação efetiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, em termos de, em plena igualdade, poderem influenciar todos os elementos (factos, provas, questões de direito) que se encontrem em ligação, direta ou indireta, com o objeto da causa e em qualquer fase do processo apareçam como potencialmente relevantes para a decisão.”
Conforme Ac. STJ de 04.05.1999, (6) “nenhuma decisão, deve, pois ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efetiva possibilidade, ao sujeito processual contra quem é dirigida, de a discutir, de a contestar, de a valorar.”

O princípio do contraditório trata-se, pois, de um dos princípios estruturantes do direito processual civil.

No entanto, conforme o defendido, entre outros, pelo Ac. RC de 13.11.2012, (7) “importa notar que este princípio, tal como todos os outros, não é de perspetivação e aplicação inelutável e absoluta. Podendo congeminar-se casos em que ele pode ser mitigado ou mesmo postergado, vg. em situações de atendível urgência ou, no próprio dizer da lei, de manifesta desnecessidade.
Há, ainda, que atender ao que resulta do princípio da auto-responsabilidade das partes.
De facto, são as partes que conduzem o processo a seu próprio risco, designadamente quer em termos de direito de ação quer de direito de defesa, consoante a posição processual que ocupam.

Nestes termos, sendo as partes que conduzem o processo, poderá ser dispensada a exigência da sua audição, sempre que estas, agindo com a diligência devida, devessem, por sua vez, ter-se espontaneamente pronunciado sobre determinada questão, por ser razoável, no plano técnico-jurídico, contar com o conhecimento da mesma ou com determinado enquadramento ou qualificação jurídica. (8)

No caso em apreço, o recorrente requerente entende que o tribunal a quo não lhe deu a oportunidade de se pronunciar sobre os aludidos pareceres do AI e do Ministério Publico, violando assim o princípio do contraditório.

Por seu turno, o tribunal recorrido entendeu não ter o dever de dar cumprimento ao princípio do contraditório no que se refere ao credor requerente, porquanto: “Não se impunha qualquer notificação ao requerente, dependente de contraditório (sendo, aliás, que sendo o processo tramitado obrigatoriamente de forma electrónica, basta a mera consulta dos autos por parte daquele para ter conhecimento do teor dos ditos pareceres e promoção).

Julgamos, porém, que assiste razão ao recorrente.
Vejamos porquê em traços gerais.
Nos termos do disposto no art. 188º, n.º 1, do CIRE, a lei atribui ao AI e, bem assim, a “qualquer interessado” a legitimidade para deduzir incidente de qualificação de insolvência como culposa, alegando, fundamentadamente, por escrito, o que tiver por conveniente para o efeito, indicando as pessoas que deverão ser afetadas por tal qualificação.

Na sequência, o juiz conhecendo dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declara aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes (art. 188º, n.º 1, in fine, do CIRE).

O administrador da insolvência, quando não a tenha proposto, apresenta o seu parecer, devidamente fundamentado e documentado, no prazo de 20 dias, se outro prazo mais longo não for fixado pelo juiz (art. 188º, n.º 3, do CIRE).

Este parecer do AI e as alegações formuladas inicialmente vão com vista ao Ministério Público, para que este se pronuncie, no prazo de 10 dias (art. 188º, n.º 4, do CIRE).

Seguidamente, estabelece o disposto no art. 188º, n.º 5, do CIRE, que: “Se tanto o administrador da insolvência como o Ministério Público propuserem a qualificação da insolvência como furtuita, o juiz pode proferir de imediato decisão nesse sentido, a qual é insuscetível de recurso.” (sublinhámos)

A este propósito, Carvalho Fernandes e João Labareda (9 escrevem que: “Relativamente à versão primitiva, o atual n.º 5 – caso paralelo do procedente n.º 4 – apresenta uma diferença de tomo. Antes, uma vez coincidentes os pareceres do administrador e do Ministério Público quanto á qualificação da insolvência como fortuita, estatuía-se o proferimento pelo juiz de decisão nesse mesmo sentido. Agora esse aparente imperativo foi convolado para uma simples faculdade.” (sublinhámos)

Também Luís Menezes Leitão (10) argumenta que: “Com a nova redação do n.º 5 ficou alterada a incorrecta solução do anterior n.º 4, que retirava injustificadamente o poder jurisdicional ao tribunal, obrigando-o a seguir a posição conjunta do Ministério Público e do administrador da insolvência.

(…) Fica agora claro que o juiz não é obrigado a seguir a posição conjunta do administrador da insolvência e do Ministério Público, pelo que só irá qualificar de imediato a insolvência como furtuita se for esse o seu próprio entendimento.” (11)

De igual modo, Catarina Serra (12), fazendo referência às críticas, acaba por aplaudir também a nova versão, por “agora” não haver “dúvidas de que os pareceres coincidentes do administrador da insolvência e do Ministério Público no sentido da qualificação como furtuita não impedem o juiz de averiguar os factos, ao abrigo do art. 11º, e de qualificar a insolvência como culposa, quando assim o entenda”, acrescentando: “Por maioria de razão, fica estabelecido que, na hipótese-limite de se configurar uma das situações descritas no n.º 2 do art. 186º, o juiz pode – e deve – fazê-lo.”

De facto, decorre do disposto no art. 11º do CIRE (sob a epígrafe “Princípio do inquisitório”), que no processo de insolvência, embargos e incidente de qualificação de insolvência, a decisão do juiz pode ser fundada em factos não alegados pelas partes, o que, significa que o juiz, por sua iniciativa pode investigar livremente esses factos, bem como, recolher provas que entender convenientes. Tudo isto, sem prejuízo de certos efeitos cominatórios fixados imperativamente na lei.

Por conseguinte, na qualificação da insolvência, o juiz deve atender a todos os elementos assentes no processo, ainda que não tenham sido alegados ou atendidos nos pareceres do administrador da insolvência e do Ministério Público. (13)

Pelo que fica dito, concluímos que a falta de notificação ao requerente credor, ora recorrente, do teor do parecer do AI e da promoção/parecer do Ministério Público, em sentido contrário ao proposto inicialmente pelo mesmo, traduz-se numa omissão de um ato suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, inquinando todo o processado ulterior, incluindo a sentença proferida, porquanto impediu o recorrente de refutar/contraditar, querendo, o conteúdo desses pareceres (mormente em cumprimento do disposto no art. 3º, n.º 3, do C. P. Civil), e na medida em que a eventual posição do recorrente sobre aqueles pareceres também não foi ponderada pelo juiz. (14)

Por último, como resulta dos factos processuais acima mencionados, o recorrente, requerente e parte processual do incidente de qualificação de insolvência em causa, sequer foi notificado através do AI (art. 221º, do C. P. Civil) ou oficiosamente pela secretaria (art. 220º, do C. P. Civil) dos pareceres apresentados, pelo que a sua audição se impunha através de despacho judicial fixado para o efeito, não relevando a argumentação de que o recorrente poderia visualizar esses mesmos pareceres via citius para, eventualmente em seguida, vir, em processado espontâneo e anómalo, apresentar a sua posição.

Em jeito de conclusão, dir-se-á que, surgindo pareceres coincidentes do AI e do Ministério Público, no sentido da qualificação da insolvência como furtuita, diversamente do requerido pelo credor interessado, que deu origem à abertura do respetivo incidente de qualificação de insolvência como culposa, antes de proferir decisão sobre a qualificação da insolvência, o juiz deverá ouvir aquele credor requerente para, querendo, exercer o princípio do contraditório (art. 3º, n.º 3, do C. P. Civil, ex vi do art. 17º, do CIRE), sendo certo que atualmente os pareceres coincidentes do administrador da insolvência e do Ministério Público no sentido da qualificação da insolvência como furtuita, não impedem o juiz de averiguar os factos, ao abrigo do disposto no art. 11º do CIRE, e de qualificar a insolvência como culposa, quando assim o entenda.

Por conseguinte, analisemos, pois, as consequências processuais advenientes da apontada omissão.

Quanto às regras gerais sobre a nulidade dos atos, dispõe o art. 195º, n.º 1, do C. P. Civil, que: “Fora dos casos previstos nos artigos anteriores, a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.

Neste caso, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário, no momento em que tal nulidade for cometida, podem ser arguidas enquanto o ato não terminar, sendo que, se não estiver presente, o prazo para arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. art. 199º, n.º 1, do C. P. Civil).
Daqui decorre, desde logo, que este tipo de nulidade, também designada por “nulidade secundária”, tem de ser arguida pela parte através de reclamação (cfr. art. 196º, parte final do C. P. Civil), no momento em que ocorrer a nulidade, se a parte estiver presente, por si ou por mandatário.
Caso não esteja presente, o prazo geral de arguição de dez dias conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum ato praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade o quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência (cfr. arts. 199º, n.º 1, in fine, e 149º, n.º 1, do C. P. Civil).
Na verdade, mantém-se a atualidade e pertinência do brocardo segundo o qual “dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.

Conforme explicava Alberto dos Reis (15), “a arguição da nulidade só é admissível quando a infração processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou a omissão do ato ou formalidade, o meio próprio para reagir, contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respetivo despacho pela interposição do recurso competente.
Assim, o que pode ser impugnado por via do recurso é a decisão que conhecer da reclamação por aquela nulidade – e não a nulidade ela mesma.
A perda do direito à impugnação por via da reclamação – caducidade, renúncia, etc. – importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário.
Isto só não será assim no tocante às nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal ad quem e no tocante às nulidades – exceções – que sejam oficiosamente cognoscíveis.
Também Miguel Teixeira de Sousa (16) afirma que “ (…) quando a reclamação for admissível, não o pode ser o recurso ordinário, ou seja, esses meios de impugnação não podem ser concorrentes; – se a reclamação for admissível e a parte não impugnar a decisão através dela, em regra está precludida a possibilidade de recorrer dessa mesma decisão. Possível é, no entanto, a impugnação da decisão através de reclamação e, perante a sua rejeição pelo tribunal, a continuação da impugnação através de recurso ordinário.”
Ainda na doutrina, Abrantes Geraldes (17), entende que: “As nulidades que não se reconduzam a alguma das situações previstas no art. 615º, n.º 1, als. b) a e), estão sujeitas a um regime de arguição que é incompatível com a sua invocação apenas no recurso a interpor da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar, ainda que condicionada, nos termos que estão previstos no n.º 2 do art. 630º, deve restringir-se às decisões que tenham sido proferidas sobre arguições oportunamente deduzidas com base na omissão de certo ato, na prática de outro que a lei não admitia ou na prática irregular de ato que a lei previa.”
Assim, a decisão proferida sobre a arguição de nulidade é que é suscetível de recurso mas – ainda assim – com limitações: desde que contenda com os princípios matriciais da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos ou com a admissibilidade de meios probatórios (cfr. art. 630º, n.º 2, do C. P. Civil).
Nesta medida, cabe ainda ao recorrente alegar que a nulidade relativa ocorrida – além de ser essencial por interferir no exame ou na decisão da causa – infringe pelo menos um dos referidos princípios ou contende com a admissibilidade de meios probatórios.
Dito de outra maneira, a sindicabilidade do despacho proferido sobre a arguição de uma “nulidade secundária” está condicionada à alegação da concreta violação de algum dos princípios ou regras enunciados no art. 630º, n.º 2 do C. P. Civil, sob cominação de indeferimento do requerimento de interposição de recurso por a decisão não admitir recurso (cfr. art. 641º, n.º 2, al. a), do C. P. Civil).

No caso em presença, o credor recorrente reclamou, atempadamente, arguindo a nulidade da referida sentença proferida a 17.06.2019 (cfr. fls. 68 e 69) e, na sequência, foi proferido despacho judicial a 05.07.2019 (cfr. fls. 73), do qual interpôs recurso, sendo que este contende claramente com o princípio do contraditório, respeitando-se assim o disposto no art. 630º, n.º 2, parte final, do C. P. Civil.
Considerando, pois, a importância do cumprimento do princípio do contraditório parece-nos evidente que a sua inobservância pelo tribunal constitui uma omissão suscetível de influir no exame ou decisão da causa.
Concluímos pois que a decisão final, proferida a 17.06.2019, está ferida de nulidade e, como tal, deverá ser anulada, bem como os termos processuais subsequentes daí advenientes (art. 195º, nºs 1 e 2, do C. P. Civil), tal como deverá ser revogado o despacho judicial recorrido (cfr. fls. 73), que indeferiu a nulidade invocada e confirmou aquela decisão final, a qual deverá ser substituída por outra que, desde logo, dê cumprimento ao disposto no art. 3º, n.º 3, do C. P. Civil, ouvindo-se mormente o recorrente, sobre os aludidos pareceres apresentados pelo AI e pelo Ministério Público, respetivamente, para, depois de estabelecido o exercício do contraditório, ser decidido em conformidade.
Conclui-se, assim, pela procedência da apelação apresentada pelo credor recorrente.
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V. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento ao recurso de apelação apresentado pelo credor recorrente e, consequentemente, anula-se a sentença proferida a 17.06.2019, bem como os termos processuais subsequentes daí advenientes, revogando-se o despacho recorrido que confirmou aquela decisão final, a qual deverá ser substituída por outra que, desde logo, dê cumprimento ao disposto no art. 3º, n.º 3, do C. P. Civil, ouvindo-se mormente o credor requerente do incidente em causa sobre os referidos pareceres apresentados pelo administrador da insolvência e pelo Ministério Público, respetivamente, para, depois de estabelecido o exercício do contraditório, ser decidido em conformidade.

Sem custas.
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Guimarães, 24.10.2019
Este acórdão contem a assinatura digital de:

Relator: António José Saúde Barroca Penha.
1º Adjunto: Desembargador José Manuel Alves Flores.
2º Adjunto: Desembargadora Sandra Maria Vieira Melo.


1. In Novo Código de Processo Civil Anotado, Ediforum, 3ª edição, págs. 24-25.
2. Cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 1993, pág. 164.
3. In Direito Processual Civil, 1º Vol., edição AAFDL, págs. 194 -195.
4. No mesmo sentido, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1999, págs. 46-47.
5. Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1º, 3ª edição, Coimbra Editora, pág. 7.
6. Proc. n.º 99A057, relator Pinto Monteiro, sumariado em www.dgsi.pt.
7. Proc. n.º 572/11.4TBCND.C1, relator José Avelino Gonçalves, acessível em www.dgsi.pt.
8. Neste sentido, vide J. Pereira Batista, Reforma do Processo Civil – Princípios Fundamentais, Lex, 1996, pág. 39.
9. In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª edição, Lisboa 2015, pág. 689.
10. In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 7ª edição, 2013, pág. 191.
11. Cfr. ainda a doutrina, aí mencionada pelo mesmo Autor, que criticava a solução legislativa anterior.
12. In O Regime Português da Insolvência, 5ª edição revista e atualizada à luz da Lei n.º 16/2002, de 20 de Abril e do Decreto-Lei n.º 178/2012, de 3 de Agosto, Almedina, 2012, págs. 142-143.
13. Neste sentido, cfr. Ac. RL de 27.11.2007, CJ, 2007, Tomo V, pág. 104.
14. Neste sentido. Cfr. Ac. RP de 22.03.2018, proc. n.º 7882/16.2T8VNG-B.P1, relatora Francisca Mota Vieira, acessível em www.dgsi.pt.
15. In Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 2º, Coimbra Editora, 1946, pág. 507.
16. Ob. cit., pág. 372.
17. In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 4ª edição, 2017, pág. 206.