Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2195/19.0JABRG.G1
Relator: PAULO CUNHA
Descritores: ARGUIDO PRESO
JULGAMENTO
NOTIFICAÇÃO
NULIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/26/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A convocação do arguido para intervir em julgamento quando realizada mediante notificação assegurada por via postal simples apenas tem eficácia se o arguido estiver e permanecer livre na sua pessoa.
2. O arguido que se encontra na situação de reclusão noutro Estado Membro da União Europeia não pode ser convocado para o julgamento mediante notificação remetida por via postal simples para a morada que indicara no termo de identidade e residência antes de ser preso.
3. A realização do julgamento, incluindo a leitura da sentença, na ausência do arguido preso e notificado daquela forma viola o respectivo direito de defesa e constitui nulidade insanável nos termos da al. c) do art. 119.º do Código de Processo Penal.
4. Se a situação de reclusão do arguido for comunicada nos autos antes do encerramento da discussão e da leitura da sentença, o tribunal deve esclarecer a situação e adoptar as medidas necessárias e legalmente admissíveis para assegurar a comparência do arguido na audiência de julgamento, incluindo a intervenção à distância.
Decisão Texto Integral:
Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisão recorrida

No âmbito do processo n.º 2195/19...., que corre os seus termos no Juízo Local Criminal ..., mediante sentença proferida em 15 de Junho de 2022, o arguido AA foi condenado,:

a) na pena de 5 meses de prisão, pela prática de um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1, do Código Penal;
b) a pagar a importância de € 300,00 ao demandante BB a título de indemnização dos danos patrimoniais sofridos com a prática do crime dos autos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data de notificação do pedido de indemnização civil até integral pagamento;
c) e a pagar a importância de € 150,00 ao referido demandante a título de indemnização dos danos não patrimoniais sofridos com a prática do crime dos autos, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da condenação até integral pagamento

2. Recurso

Inconformado com a referida sentença, o arguido recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
(…)
2)- A audiência de julgamento pode iniciar-se, decorrer e terminar na ausência do arguido, mas tudo isto desde que o mesmo esteja notificado das datas de cada uma das sessões, nos termos do n.º 10 do artigo 113.º do Cód. Proc. Penal, em respeito pelos princípios da audiência e presença, consignados na lei.
3)- Em consequência, por não ter sido determinada a notificação do arguido para as sessões da audiência de julgamento, verifica-se a nulidade do artigo 119.º, n.º 1, al. c), do Cód. Proc. Penal, a qual determina a anulação de todos os actos subsequentes, nos termos do art.º 122.º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Penal.
4)- A notificação do arguido para a audiência de julgamento e leitura da sentença é obrigatória, nos termos dos artigos 61º, nº 1, al. a), e 113º, nº 10, do Cód. Proc. Penal;
5)- A omissão desta notificação constitui nulidade insanável, do artigo 119º, al. c), do Cód. Proc. Penal;
6)- No caso não foi feita esta notificação, quer para as sessões de julgamento de 27.05.2022; 06.06.2022 quer para a leitura de sentença de 15.06.2022;
7)- Esta nulidade determina a invalidade da audiência de julgamento e audiência de leitura da sentença realizada e da própria sentença, por depender de acto nulo;
8)- Deverá ser ordenada a repetição da audiência de julgamento e leitura da sentença depois das diligências de notificação do arguido para comparecimento;
9)- A sentença recorrida é nula, por violação do disposto nos artigos 61º, nº 1, alínea a) 113º, nº 10 e 119º, alínea c), do Cód. Proc. Penal.
(…)”.

3. Respostas ao recurso

3.1. Após a admissão do referido recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu ao mesmo nos seguintes termos, com omissão das pertinentes conclusões (transcrição):
“(…)
Com a revisão do Código do Processo Penal, operada com o Decreto-Lei nº 320- C/2000, de 15 de Dezembro, o legislador evidenciou a preocupação de ultrapassar o bloqueio provocado pela regra da obrigatoriedade absoluta da presença do arguido na audiência, procurando conciliar o interesse público da administração célere e eficiente da justiça, com a necessária salvaguarda dos interesses da defesa no caso de o arguido estar ausente do julgamento.
Tendo o arguido prestado termo de identidade e residência, a fls. 29, foi por aquele indicada a morada que pretendeu para efeito de notificações, e do qual consta, entre o mais, “c) De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada no n.º 2, excepto se o arguido comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento; d) De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º.”, nos termos do disposto no artigo 196.º, n.º 3, alíneas c) e d) do Código de Processo Penal, (tendo nós por certo que aquele compreendeu as suas implicações, atentas as suas onze anteriores condenações).
Não obstante a morada fornecida pelo arguido não dispor de receptáculo, acresce ainda que aquele dela se ausentou e não comunicou tal facto aos autos, como estava obrigado, e bem sabendo que as ulteriores notificações seriam feitas para aquela mesma morada, ficando assim legitimada a sua representação por defensor em todos os actos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e a realização da audiência na sua ausência.
Pelo que, o incumprimento da obrigação da medida de coacção Termo de Identidade e Residência, por falta de informação ao Tribunal da alteração de morada, tem como consequência a representação do arguido pelo defensor e a realização da audiência de julgamento na sua ausência.
Isto posto, a fls. 171 encontra-se o arguido notificado, pessoalmente, das datas de audiência de julgamento para os dias 29.04.2022 e 27.05.2022.
Pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2012: “Notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do n.º 1 do artigo 333.º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo.”.
O que veio a suceder, tendo sido requerido pelo Il. Defensor, que se manteve e mantém o mesmo desde o início, a sua audição nos termos do artigo 333.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
O arguido não compareceu e nada foi requerido ou arguido pela defesa, nem no acto, nem nas sessões seguintes (agendadas para leitura de sentença).
A invocada nulidade pressupõe, necessariamente, que não tenha sido o próprio arguido a inviabilizar o seu direito a estar presente na audiência de julgamento, através do incumprimento das obrigações decorrentes do TIR e, mormente, do ónus de comunicar a mudança de residência, de molde a permitir a efectivação da notificação.
Conjugando as disposições legais vertidas nos artigos 196.º, n.º 3, alínea d) e 333.º do Código de Processo Penal, conclui-se que a notificação para a morada indicada pelo arguido é indispensável ao início da audiência, não o sendo já para a sua continuação, sempre que ocorra incumprimento das obrigações decorrentes do TIR. O que é o caso dos autos, não tendo apenas o arguido sido notificado, como não tinha que ser, da data da leitura de sentença.
Mas mesmo que assim não se entendesse, tal consubstanciaria mera irregularidade, que se encontraria já sanada por não ter sido arguida em tempo.
(…)”.

3.2. Por seu turno, o demandante não apresentou qualquer resposta.

4. Tramitação subsequente

Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e foi apresentada resposta pelo recorrente reafirmando a sua pretensão recursória .

Efectuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO

A) Objecto do recurso

Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, importa apreciar apenas a  questão da nulidade da realização do julgamento e da leitura da sentença na ausência do arguido.

B) Apreciação do recurso

1. Decisão recorrida
Após o tribunal a quo ter considerado encerrada a discussão da causa, a decisão recorrida condenatória apresenta como provados os seguintes factos (transcrição):
“(…)
1. O arguido AA formulou o propósito de auferir dividendos através da criação de uma página do facebook onde publicitava o transporte de veículos da ... para Portugal, sem que, todavia, tivesse qualquer intenção de executar tal atividade.
2. O ofendido CC encontrava-se emigrado na ..., onde adquiriu um veículo automóvel que pretendia trazer para Portugal, tendo feito uma pesquisa
na internet de empresas que executavam esse tipo de transporte.
3. No dia 18 de novembro de 2019, após ter acedido à referida página digital, o ofendido contactou com o anunciante e aqui arguido AA, o qual estabeleceu as putativas condições de transporte da viatura e respetivo custo.
4. O ofendido concordou com tais condições, tendo o arguido AA exigido 300 € de “sinal”, pagamento esse que teria que ser efetuado mediante transferência bancária para o NIB  ...10, referente a uma conta titulada pelo arguido no “Banco 1..., S. A.”.
5. Em cumprimento do acordado, no dia 21 de novembro de 2019 o ofendido CC, através de um amigo, procedeu à transferência de 300 € para a referida conta do arguido. 6. Todavia, o arguido jamais compareceu na morada do ofendido para recolher a viatura, nem no prazo acordado nem posteriormente, e não lhe devolveu a quantia paga, tendo, de resto, bloqueado o queixoso no Messenger do Facebook.
7. Uma vez na posse de referida quantia, o arguido despendeu-a em seu proveito pessoal.
8. O ofendido apenas aceitou transferir o “sinal” exigido pelo arguido por estar convencido que o mesmo iria cumprir o negócio firmado.
9. Porém, o propósito do arguido sempre foi o de não cumprir o acordado.
10. Com efeito, toda a atuação do arguido foi previamente ordenada a criar um falso contexto negocial, através da publicitação de um serviço de transportes inexistente e que jamais teve intenção de cumprir, visando apenas determinar potenciais interessados à entrega de dinheiro, como efetivamente veio a suceder.
11. O arguido atuou sempre escudado na aparência de seriedade do negócio que, aliás, foi publicitado através de uma rede social prestigiada em todo o mundo.
12. O arguido atuou com intenção de obter uma vantagem patrimonial a que sabia não ter direito e que, de outro modo, não lograria alcançar.
13. Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e
punida por lei.
14. Por culpa da atuação do arguido, o demandante sentiu-se frustrado, revoltado e enganado.
15. Todas estas circunstâncias criaram no demandante perturbação do equilíbrio social, psíquico e emocional.
16. O demandante gastou tempo.
17. Viu-se impossibilitado de enviar o carro para Portugal nas datas que tinha previsto e teve de contratar novo transportador, pagando o preço exigido.
18. O arguido tem os seguintes antecedentes criminais:
- Por sentença datada de 30/09/2019, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 11/01/2018, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 480,00€, no processo sumaríssimo n.º 24/18...., do Tribunal Judicial ... – JL Criminal, Comarca ....
- Por sentença datada de 24/02/2020, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 07/05/2018, na pena de 80 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 480,00€, no processo sumaríssimo n.º 1413/18...., do Tribunal Judicial de– JL Criminal – Juiz ..., Comarca ....
- Por sentença datada de 02/07/2020, foi condenado pela prática de um crime de burla informática e nas comunicações em 04/11/2018, na pena de 95 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 570,00€, no processo sumaríssimo n.º 479/18...., do Tribunal Judicial de– JL Criminal – Juiz ..., Comarca ....
- Por sentença datada de 15/12/2020, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 03/08/2019, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 660,00€, no processo sumaríssimo n.º 111/19...., do Tribunal ..., Comarca ....
- Por sentença datada de 14/07/2021, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 26/03/2019, na pena de 5 meses de prisão suspensa por 1 ano, no processo comum n.º 243/19...., do Tribunal ... – J C. Genérica - Juiz ..., Comarca ....
- Por sentença datada de 19/05/2021, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 20/03/2019, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 600,00€, no processo comum n.º 82/19...., do Tribunal Judicial de– JL Criminal – Juiz ..., Comarca ....
- Por sentença datada de 24/05/2021, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 16/12/2018, na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5,50€, o que perfaz o total de 880,00€, no processo comum n.º 5/19...., do Tribunal Judicial de ...- JL Criminal – Juiz ..., Comarca ....
- Por sentença datada de 4/11/2021, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 25/3/2019, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 5,00€, o que perfaz o total de 650,00€, no processo comum n.º 118/19...., do Tribunal Judicial ... - JL Criminal, Comarca ....
- Por sentença datada de 08/11/2021, foi condenado pela prática de três crimes de burla simples em 05/11/2019, 22/11/2019 e 0/12/2019, na pena única de 26 meses de prisão suspensa por 26 meses, no processo comum nº 300/19...., do Tribunal Judicial de F. Foz- JL Criminal, Comarca ....
- Por sentença datada de 19/11/2021, foi condenado pela prática de um crime de burla qualificada e um crime de falsificação de documento, na pena de 170 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 1020.00€ e dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, no processo comum n.º 477/19...., do Tribunal Judicial ... – JL Criminal, Comarca ....
- Por sentença datada de 25/11/2021, foi condenado pela prática de um crime de burla simples em 23/11/2018, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de 6,00€, o que perfaz o total de 600,00€, no processo comum n.º 474/18...., do Tribunal Judicial ..., Comarca ....
(…)”.

O recorrente não impugna directamente o conteúdo desta decisão.

O recorrente coloca em crise a validade do procedimento que conduziu a esta decisão, em particular, a realização indevida do julgamento e da leitura da sentença na sua ausência.

2. Realização do julgamento e leitura da sentença na ausência do arguido.

2.1. O recorrente ficou formalmente a saber da existência deste processo no dia 27.11.2020, pois foi neste dia que o mesmo foi constituído como arguido e prestou termo de identidade e residência.

Posteriormente, o arguido veio a ser notificado da acusação por via postal simples e não requereu a abertura de instrução.

A análise dos autos revela a seguinte tramitação a partir do momento em que avançou para a fase do julgamento:

a) Mediante despacho proferido em 6-11-2021, o tribunal designou os dias 29-4-2002 e 27-5-2022 para a realização da audiência de julgamento.
b) Este despacho foi notificado ao arguido por contacto pessoal da GNR ocorrido em 28-1-2022.
c) O arguido não compareceu na sessão de 29-4-2022 e não apresentou qualquer justificação.
d) O tribunal considerou então dispensável a presença inicial do arguido para a descoberta da verdade material e deu início ao julgamento na sua ausência, isto após o ter condenado em multa pela falta de comparência.
e) Nesta sessão de 29-4-2022, o tribunal logrou ouvir todas as pessoas arroladas  e encerrar a produção de prova.
f) Então, o Ilustre Defensor requereu que o arguido fosse ouvido na segunda data já designada nos autos (27-5-2022), o que veio a ser expressamente deferido na referida sessão.
g) Estando então pendente a elaboração de relatório social solicitado pelo tribunal a quo, a DGRSP comunicou ao processo em 13-5-2022 que o arguido deixara o E.P. ... no dia 18-2-2022 por motivo de extradição para o ....    
h) Este ofício então foi notificado ao Ministério Público, ao demandante e ao Ilustre Defensor do arguido e nada veio a ser promovido ou requerido a seu respeito.
i) No dia 27-5-2022, o arguido voltou a não comparecer em juízo e não apresentou qualquer justificação.
j) O tribunal condenou-o novamente em multa pela falta de comparência e avançou para as alegações finais, após o que designou o dia 6-6-2022, pelas 9.15 horas para a leitura de sentença.
k) O expediente de notificação relativo a esta diligência foi então remetido mediante via postal simples para a morada indicada no termo de identidade e residência.
l) O expediente em apreço foi devolvido pelos serviços postais aos autos sem prova de depósito e com a menção “não haver recetáculo” datada de 30-5-2022.
m) No dia 6-6-2022, o arguido voltou a não comparecer em juízo e não apresentou qualquer justificação.
n) O tribunal adiou então a leitura da sentença para o dia 15-6-2022, pelas 9.15, em virtude da falta de notificação do Mandatário do demandante;
o) O expediente de notificação relativo a esta diligência foi então remetido mediante via postal simples para a morada indicada no termo de identidade e residência.
p) O expediente em apreço foi devolvido pelos serviços postais aos autos sem prova de depósito e com a menção “não haver recetáculo” datada de 7-6-2022.
q) No dia 15-6-2022, o arguido voltou a não comparecer em juízo e não apresentou qualquer justificação.
r) O tribunal condenou-o novamente em multa pela falta de comparência e avançou para a leitura da sentença.
s) Foi então solicitado à GNR que procedesse à notificação pessoal da sentença ao arguido.
t) Mediante ofício datado de 20-6-2022, a GNR comunicou ao processo a frustração da diligência de notificação pessoal da sentença ao arguido, bem como que este tinha sido detido pela Polícia Judiciária em 9-2-2022, na localidade de ..., em cumprimento de Mandado de Detenção Europeu.
u) Posteriormente, mediante ofício datado de 14-10-2022, o Gabinete Nacional da Interpol comunicou que o arguido se encontrava então a cumprir pena de 30 meses de prisão no Centro Penitenciário de ..., estando ali recluso desde 18-2-2022 e com termo de pena estimado para 28-7-2024.
v) Na sequência desta comunicação, o arguido foi pessoalmente notificado da sentença naquele estabelecimento prisional em 12-12-2022.  

2.2. À face desta concreta tramitação processual, é líquido que o arguido se encontra na situação de reclusão noutro Estado Membro da União Europeia desde, pelo menos, 18-2-2022.

É igualmente insofismável que o arguido foi julgado na ausência nos presentes autos e que as sessões de julgamento, incluindo a leitura da sentença, tiveram lugar no período compreendido entre 29-4-2022 e 15-6-2022, ou seja, enquanto o arguido estava a cumprir pena de prisão efectiva no ....

É certo que o arguido estava em liberdade quando foi notificado por contacto pessoal assegurado em 28-1-2022 para as sessões de julgamento de 29-4-2022 e 27-5-2022.

Contudo, a extradição do arguido para o ... – ocorrida em 18-2-2022 – foi levada ao conhecimento do tribunal de julgamento pelos serviços prisionais nacionais antes da sessão de julgamento realizada em 27-5-2022, precisamente aquela que ficara destinada para a prestação de declarações finais pelo arguido, em conformidade com o oportunamente requerido pelo respectivo defensor nomeado.

Acresce que o arguido já estava preso fora do território nacional quando o tribunal remeteu o expediente de notificação pessoal para a morada constante do termo de identidade e residência para lhe comunicar o agendamento das sessões de julgamento, incluindo a leitura da sentença, realizadas em 6-6-2022 e 15-6-2022.

Olhando para todas estas vicissitudes, poder-se-á entender que este arguido  beneficiou de um processo equitativo e que lhe foram asseguradas todas as garantias de defesa?

Antecipa-se que a resposta não pode deixar de ser negativa.

2.3. A Constituição preocupa-se expressamente com a estrutura da audiência de julgamento em sede de processo penal e prescreve que a mesma está subordinada ao princípio do contraditório (artigo 32.º, n.º 5, da CRP).

O direito de defesa e o direito ao contraditório traduzem-se fundamental­mente na possibilidade do arguido intervir no processo, invocar as razões de facto e de direito, oferecer provas, controlar e contraditar todas as provas e argumentos jurídicos trazidos ao processo.

O legislador ordinário deu corpo a esta garantia constitucional através da aprovação de várias normas do Código de Processo Penal atinentes à estrutura contraditória da audiência de julgamento, entre as quais avultam:

a) a possibilidade do arguido apresentar uma contestação e requerer a produção de prova relativamente à matéria da acusação ou da pronúncia (artigo 315.º);
b) a regra geral da obrigatoriedade da presença do arguido na audiência (artigo 332.º, n.º 1).
c) a regra geral da proibição de valoração de provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiências (artigo 355.º, n.º 1);
d) a regra geral da submissão de todos os meios de prova apresentados ou produzidos no decurso da audiência ao princípio do contraditório (artigo 327.º, n.º 2):
e) e o direito do arguido prestar declarações em qualquer momento da audiência, em especial, no início e no final da audiência de julgamento (artigos 341.º, alínea a) e 361.º).

Obviamente, todos estes direitos de defesa relativos à audiência  apenas poderão ser exercidos pelo arguido se o mesmo for previamente notificado pelo tribunal para comparecer e intervir na audiência de julgamento, dando-se-lhe conhecimento da data em que a mesma se realiza.

Por isso, a lei adjectiva penal impõe que as notificações respeitantes à designação de dia para julgamento e à sentença devem ser feitas pessoalmente ao arguido (art. 113.º, n.º 10, do CPP).

Esta é uma exigência de um processo penal equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da CRP), que obrigatoriamente deve assegurar todas as garantias de defesa ao arguido, nomeadamente o direito ao contraditório (artigo 32.º, n.º 1 e 5, da CRP).

2.4. A regra geral do processo penal português é obrigatoriedade da presença do arguido na audiência de julgamento (art. 332.º, n.º 1, do CPP).

Mas este princípio da presença do arguido no julgamento não é absoluto.

Aliás, é a própria Constituição que prescreve que “a lei define os casos em que, assegurados os direitos de defesa, pode ser dispensada a presença do arguido ou acusado em actos processuais, incluindo a audiência de julgamento” (art. 32.º, n.º 6).
 
A lei ordinária procedeu à definição destes casos.

Com relevância para o caso concreto, importa transcrever as normas constantes dos números 1 a 3 do art. 333.º, do Código de Processo Penal:

“1 - Se o arguido regularmente notificado não estiver presente na hora designada para o início da audiência, o presidente toma as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência, e a audiência só é adiada se o tribunal considerar que é absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material a sua presença desde o início da audiência.
2 - Se o tribunal considerar que a audiência pode começar sem a presença do arguido, ou se a falta de arguido tiver como causa os impedimentos enunciados nos n.os 2 a 4 do artigo 117.º, a audiência não é adiada, sendo inquiridas ou ouvidas as pessoas presentes pela ordem referida nas alíneas b) e c) do artigo 341.º, sem prejuízo da alteração que seja necessária efectuar no rol apresentado, e as suas declarações documentadas, aplicando-se sempre que necessário o disposto no n.º 6 do artigo 117.º.
3 - No caso referido no número anterior, o arguido mantém o direito de prestar declarações até ao encerramento da audiência, e se ocorrer na primeira data marcada, o advogado constituído ou o defensor nomeado ao arguido pode requerer que este seja ouvido na segunda data designada pelo juiz ao abrigo do artigo 312.º, n.º 2.”

A respeito destas normas, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2012  contém relevantes obiter dicta que importa aqui transcrever:
“(…)
Como vimos, a intenção legislativa, a partir da revisão constitucional de 1997, com a nova redação do n.º 6 do artigo 32.º da Constituição, foi declaradamente no sentido de eliminar o impasse provocado pela regra da obrigatoriedade absoluta da presença do arguido na audiência de julgamento, permitindo que a audiência seja realizada na sua ausência mediante a garantia dos seus direitos de defesa (4).
Os trabalhos legislativos, atrás parcialmente transcritos, são particularmente elucidativos: trata-se de garantir o interesse público na administração da justiça com celeridade e eficiência, com a necessária salvaguarda dos interesses da defesa no caso de o arguido estar ausente do julgamento.
Nessa ponderação de interesses em certa medida contraditórios, a solução legal afigura-se ajustada e constitucionalmente insusceptível de censura. A presença do arguido perde o carácter de princípio absoluto, para se afirmar primacialmente como um direito do arguido a estar presente. Um direito disponível, que o arguido, enquanto sujeito processual autónomo e plenamente responsável, exercerá como entender. Não fica, porém, privado de defesa, no caso de optar por estar ausente, uma vez que será necessariamente assistido por defensor, escolhido ou nomeado.
A única exceção ao direito de opção do arguido é a de o tribunal considerar a sua presença absolutamente indispensável para a descoberta da verdade, caso em que a obrigação de presença lhe pode ser imposta, em nome do interesse público na administração da justiça.
Este quadro legislativo mostra-se perfeitamente adequado à boa administração da justiça, e inteiramente conforme com a Constituição
(…)”.

2.5. Para assegurar o referido direito do arguido a estar presente, as notificações respeitantes à designação de dia de julgamento e à sentença devem ser feitas pessoalmente ao arguido (art. 113.º, n.º 10).

Estando assegurada a prestação de termo de identidade e residência – com indicação pelo arguido da morada para efeito de realização das posteriores notificações –, a referida notificação do arguido para comparecer e intervir no julgamento pode ser realizada mediante via postal simples (artigos 113.º, n.º 1, al. c), e 196.º, n.ºs 2 e 3, al. c), do CPP).

Contudo, esta notificação por via postal simples apenas tem eficácia se o arguido estiver e permanecer livre na sua pessoa.

É a própria lei processual penal que impõe esta distinção entre arguidos em liberdade e arguidos que se encontram presos.
              
Na verdade, se sobrevier uma situação de reclusão do arguido, a respectiva notificação passa a ser requisitada ao director do estabelecimento prisional respectivo e é efectuada na pessoa do notificando por funcionário para o efeito designado (art. 114.º, n.º 1, do CPP).

Esta situação de reclusão do arguido não reclama especialidades apenas no plano das notificações.

Naturalmente, o arguido preso que deva responder perante determinado tribunal é igualmente requisitado ao director do estabelecimento prisional respectivo, pois o arguido encontra-se privado da liberdade e a sua deslocação ao tribunal para intervenção no julgamento ocorrerá necessariamente sob custódia dos serviços prisionais (art. 76.º, n.º 4, do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009; e art. 142.º, n.ºs 1 e 2, do Regulamento Geral , aprovado pelo DL n.º 51/2011).

2.6. Aqui chegados, é manifesto que o arguido – ora recorrente – não foi regularmente notificado para as sessões de julgamento e de leitura da sentença realizadas nos dias 6-6-2022 e 15-06-2022.

Na verdade, as notificações em apreço foram expedidas por via postal simples para a residência do arguido existente em território nacional quando o arguido já se encontrava em cumprimento de pena de prisão no ....

As notificações assim efectuadas ao arguido não lhe deram conhecimento das datas das referidas sessões para efeito de assegurar a sua comparência e intervenção na audiência de julgamento.

Diversamente do alegado pelo Ministério Público, importa notar que o arguido não mudara de residência, nem se ausentara da mesma, a título voluntário.

O arguido foi detido em território nacional pela Polícia Judiciária e extraditado para o ... antes do início do julgamento, e assim se manteve privado da respectiva liberdade até à prolação da sentença.

Assim sendo, mostra-se ilidida a presunção associada às referidas notificações por via postal simples, sem necessidade de entrar na questão da inexistência de recetáculo para o depósito da notificação.

Tanto seria suficiente para julgar verificada a nulidade insanável da ausência do arguido em acto processual em que a lei exige a respectiva comparência, prevista na alínea c) do art. 119.º do Código de Processo Penal, por referência às sessões de julgamento e de leitura da sentença realizadas nos dias 6-6-2022 e 15-06-2022 (Vide, neste sentido, Ac. TRP 17.01.2007, p. 0416187; Ac. TRP 02.05.2007, p. 0612305; Ac. TRC 09.02.2011, p. 522/01.6TACBR; Ac. TRG 18.12.2012, p. 706/08.6GAFLG; Ac. TRG 25.10.2021, p. 505/18.7GASEL; Ac. TRG 16.12.2021, p. 119/21.4GAVNF, disponíveis em www.dgsi.pt).
 
Contudo, o problema da ausência do arguido no julgamento dos autos não se fica por aqui.

2.7. O tribunal a quo designara o dia 27-5-2022 para a continuação do julgamento e esta data foi efectivamente aproveitada pelo tribunal a quo para assegurar a eventual prestação de declarações pelo arguido a requerimento do seu defensor.

É certo que esta data fora regularmente notificada ao arguido antes da sua detenção para assegurar a respectiva extradição para o ....

Mas não é menos certo que a comparência do arguido em juízo naquela data já não dependia da sua vontade em virtude da sua situação superveniente de reclusão.

Acresce que a detenção e extradição do arguido para o ... – ocorrida em 18-2-2022 – foi levada ao conhecimento efectivo do tribunal de julgamento pelos serviços prisionais nacionais antes da referida sessão de julgamento realizada em 27-5-2022.

Ciente desta realidade, o tribunal a quo estava obrigado a esclarecer a situação do arguido e teria sido muito fácil ter ficado a saber que o mesmo estava a cumprir então uma pena de 20 meses prisão num Estado Membro da União Europeia  (tal como o tribunal a quo viria a efectivamente a saber, quando mais tarde rapidamente logrou conhecer a sua localização para efeito da necessária notificação pessoal da sentença condenatória recorrida).

Não tem aqui aplicação a jurisprudência fixada no aludido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 9/2012, segundo a qual “notificado o arguido da audiência de julgamento por forma regular, e faltando injustificadamente à mesma, se o tribunal considerar que a sua presença não é necessária para a descoberta da verdade, nos termos do n.º 1 do artigo 333.º do CPP, deverá dar início ao julgamento, sem tomar quaisquer medidas para assegurar a presença do arguido, e poderá encerrar a audiência na primeira data designada, na ausência do arguido, a não ser que o seu defensor requeira que ele seja ouvido na segunda data marcada, nos termos do n.º 3 do mesmo artigo”.

De facto, a situação dos autos não se traduz no alheamento processual intencional ou negligente do arguido que aquela jurisprudência necessariamente pressupõe.

O tribunal a quo tomou conhecimento no dia 13-5-2022 de que o arguido tinha sido detido e extraditado para o ... em 18-2-2022 e, consequentemente, ficou então a saber naquela data que, muito provavelmente, o mesmo poderia continuar privado da liberdade à ordem de um processo criminal pendente naquela jurisdição estrangeira, bem como que a sua comparência e intervenção no julgamento poderia já não depender da sua vontade.  

Neste circunstancialismo, o tribunal a quo não podia ter considerado imediatamente – como então considerou – injustificada a falta de comparência do arguido na sessão de julgamento realizada no dia 27-5-2022, e muito menos podia ter avançado nesta mesma sessão para as alegações finais e para a designação da data de leitura da sentença.

Ao invés, o tribunal a quo deveria ter solicitado informação actualizada sobre a situação do arguido por referência à extradição que lhe fora comunicada pelos serviços prisionais nacionais e, tendo confirmado a situação de reclusão do arguido desde 18-2-2022 à ordem de processo criminal pendente noutro Estado-Membro da União Europeia, deveria ter tomado as medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a sua comparência em juízo, nomeadamente a entrega temporária a Portugal pelo prazo estritamente necessário para ser julgado ou a respectiva audição por videoconferência, tudo no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal.

Ao ter omitido este dever de averiguação e de convocação do arguido pela via da cooperação judiciária internacional, concorreu o próprio tribunal a quo para a realização indevida da referida sessão de julgamento na ausência do arguido.

Consequentemente, esta concreta ausência do arguido na sessão de julgamento de 27-5-2022 – destinada à tomada de declarações pelo arguido e onde tiveram lugar as alegações finais e a designação da data para a leitura da sentença – constitui igualmente nulidade insanável nos termos da alínea c) do art. 119.º do Código de Processo Penal (Vide, neste sentido, ainda que a respeito de situação de reclusão em território nacional, Ac. TRP 21.10.2009, p. 225/08.0GBVNG, disponíveis em www.dgsi.pt).

Para este efeito, é irrelevante que o defensor nomeado também tivesse, igualmente, sabido – como soube – da extradição do arguido antes da realização da sessão de 27-5-2022 e nada tivesse requerido nos autos sobre esta matéria até o arguido ser notificado da sentença.

A referida nulidade é insanável e deve ser oficiosamente declarada em qualquer fase do processo, sendo que a mesma afecta a validade das sessões de julgamento realizadas irregularmente na ausência do recorrente e de tudo o que ali foi decidido em seu desfavor, incluindo as condenações do arguido em multa por falta de comparência e a leitura da sentença condenatória (artigos 119.º, proémio, e 122.º, n.º 1, do CPP)    

2.8. Aqui chegados, mercê da amplitude concreta da referida nulidade insanável, importa reconhecer razão ao recorrente e fazer regressar os autos principais ao momento do julgamento em que o tribunal a quo tomou conhecimento da extradição do recorrente para o ... e anular as sessões de julgamento posteriormente realizadas nos dias 27-5-2022, 6-6-2022 e 15-6-2002, incluindo a sentença condenatória lida nesta última sessão.

III – DECISÃO

Em função do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o presente recurso, e consequentemente:

a) Julgam verificada a nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c), do Código do Processo Penal;
b) Anulam as sessões de julgamento realizadas a partir de 27-5-2022 inclusive e a sentença condenatória proferida nos autos;
c) Determinam que seja reaberta a audiência de julgamento, pela mesma Mma. Juíza de Direito, para efeito de adopção das medidas necessárias e legalmente admissíveis para obter a comparência ou a intervenção à distância do arguido – actualmente preso no ... – na audiência de julgamento, com isso viabilizando o direito do arguido a estar presente no julgamento e a eventual tomada de declarações conforme já oportunamente requerido pelo Ilustre Defensor na sessão realizada em 29-4-2022 (sem prejuízo da realização  de outras diligências que se entendam necessárias para a descoberta da verdade material e boa decisão da causa), após o que deverá ser proferida nova sentença.

Sem custas.
Guimarães, 26 de Junho de 2023
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos signatários

(Paulo Almeida Cunha - Relator )
(Cândida Martinho)
(Anabela Varizo Martins)