Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
616/16.3T8VNF-E.G1
Relator: EUGÉNIA CUNHA
Descritores: INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
ABERTURA DO INCIDENTE
PRAZOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Preenchidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz, pode determinar ex officio, mesmo em fase posterior à prolação da sentença de declaração de insolvência, a abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa;

2. Face a isso, os prazos, previstos no n.º 1 e 3, do art. 188º, do CIRE (na redação emergente da Lei n.º 16/2001, de 20.04), para o administrador de insolvência requerer, fundamentadamente, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa e para apresentar parecer são meramente ordenadores ou reguladores (não podendo ser considerados prazos perentórios).
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

No Incidente de Qualificação de Insolvência de V. P. – Apenso D -, a Sra. Administradora da Insolvência apresentou, em 14 de Junho de 217, “Parecer sobre o incidente de qualificação de insolvência nos termos do nº2, do art. 188º, do CIRE”, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa – cfr fls 1 a 20.

O Ministério Público emitiu o parecer de fls 22 a 24 quanto à qualificação da insolvência.

Notificado o insolvente, este deduziu oposição (cfr fls 26 e ss.), onde arguiu a intempestividade da Apresentação do Requerimento/Parecer sobre o Incidente da Qualificação da Insolvência.

Com vista dos Autos, o Ministério pronunciou-se sobre a alegada extemporaneidade do parecer de qualificação da Excelentíssima Senhora administradora da insolvência, promovendo que se indefira a pretensão do afetado pela qualificação da insolvência
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Foi proferido despacho saneador, no qual foi decidido não se atender a invocada intempestividade do parecer da Excelentíssima Senhora administradora da insolvência, julgando-se improcedente a invocada exceção, nos seguintes termos:

Da extemporaneidade de apresentação do parecer de qualificação do senhor administrador de insolvência
O insolvente veio opor-se à qualificação invocando a apresentação extemporânea do parecer do senhor administrador, por não ter respeitado o prazo do artigo 188º, nº1 CIRE, pugnando pelo seu consequente desentranhamento e arquivamento do incidente de qualificação de insolvência.

Notificado o Ministério Público para se pronunciar sobre a invocada extemporaneidade da junção do parecer da senhora administradora, nos termos do disposto no artigo 3º, nº3 e 593º, nº1, todos do CPC, ex vi artigo 17º CIRE, veio a fls 58 e ss pugnar pelo indeferimento da invocada exceção com os fundamentos que aí apresenta e extensa jurisprudência.

Cumpre decidir.
Efetivamente, a senhora administradora juntou nos presentes autos o parecer de qualificação da insolvência a 14-6-2017, quando a assembleia de credores para apreciação do relatório teve lugar a 29-3-2016.
E o artigo 188º, nº1 CIRE dispõe expressamente que até 15 dias após a realização daquela assembleia o administrador de insolvência ou qualquer interessado pode alegar o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação.

Este prazo tem que ser entendido como um prazo peremtório sob pena de violação do disposto no artigo 20º, nº4 da CRP, como entende o oponente?
Entendemos que não, uma vez que, como muito bem aponta o senhor Procurador da República, o administrador de insolvência não é parte do processo, mas um órgão da insolvência, nos termos do artigo 52º do CIRE no capítulo intitulado órgãos da insolvência e na seção I, intitulada “Administrador da insolvência”.

A este respeito afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, página 689: “O parecer do administrador da insolvência, bem como o do Ministério Público constituem, como resulta do disposto nos nº 5 e 6, elementos relevantes na decisão do incidente de qualificação da insolvência- e na sua própria tramitação-, pelo que nenhum deles pode deixar de observar a obrigação que lhe compete sem incorrer em violação dos seus deveres funcionais.

Na omissão da lei não pode ser atribuído valor ao silêncio, cabendo ao juiz, se for o caso, providenciar para que, mesmo tardio, o parecer seja emitido. (…) - entretanto, no sentido de o decurso do prazo concedido ao administrador para apresentar o seu parecer não precludir a possibilidade de o fazer depois, vejam-se o ac. Da Rel. Pto, de 23/FEV/2012, citado na precedente nota nove e os acs da Rel. Guim. De 2/JUN/2011, proferido no processo 881/07.7TBVCT-U.G1, e de 14/ABR/2011, proferido no processo 881/07.7TBVCT-S.G1.

Se, em definitivo, faltar algum dos pareceres, não pode considerar-se preenchida a previsão do nº5”.
Desta forma, por o parecer do senhor administrador sobre a qualificação da insolvência ser essencial para o processo, não sendo sequer o administrador parte, mas um órgão intrínseco ao processo de insolvência, não se lhe aplica a peremtoriedade do prazo previsto no artigo 188º, nº1 do CIRE.
Termos em que indefiro a invocada exceção inominada”.
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Não conformado, veio o insolvente, V. P., interpor recurso de apelação formulando as seguintes

CONCLUSÕES:

1. O ora recorrente apresentou Oposição ao parecer da senhora administradora de insolvência, no sentido da qualificação da insolvência ser julgada como culposa.

2. Para tanto, sustentou resumidamente que:

(a) “ Prevê o artigo 188.º, n.º 1 do CIRE “Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
(b) Ora, a assembleia de credores, conforme consta dos autos principais, foi realizada 29-03-2016, pelo que o prazo para apresentação requerimento, no âmbito do respectivo incidente, terminaria a 13-04-2016.
(c) Ora, o incidente de qualificação da insolvência foi aberto a 14-06-2017, cerca de catorze meses após o término do prazo.
(d) Neste sentido, é clarividente que o prazo para apresentação do mencionado requerimento há muito que tinha sido ultrapassado, ou seja, em clara violação do n.º 1 do artigo 188º do CIRE.
(e) O prazo previsto no artigo 188º, n.º 1 do CIRE terá de ser entendido como um prazo peremptório.”

3. Apreciada pelo digno Tribunal “a quo”, o mesmo indeferiu a exceção invocada, decidindo doutamente que o prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1 do CIRE não é perentório, fundamentando tal decisão com o argumento que “o administrador de insolvência não é parte do processo, mas um órgão da insolvência”.

4. Ora, facto assente é que o mencionado requerimento/parecer foi apresentado 14 meses depois de precludido o prazo referido no artigo 188.º, n.º 1 do CIRE.

5. De acordo com boa parte da jurisprudência, e como o ora recorrente alega, o prazo deverá ser entendido como sendo um prazo perentório, ou, em último reduto, legal ou resolutivo.

6. Caso assim não seja, qualquer decisão em sentido contrário deverá ser julgada como inconstitucional, por clara violação do disposto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República: “Todos têm direi- to a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.

7. Tal ditame constitucional traduz-se numa expressão directa do acesso à Justiça, que decorre inequivocamente do princípio do Estado de direito e da dignidade da pessoa Humana.

8. Densifica-se tal o princípio através de outros princípios dele decorrentes, designadamente o direito à igualdade de armas ou direito à identidade de posições no processo, pelo qual se estatuiu que as partes que pedem justiça devem, no processo, estar em paridade de condições, exigindo-se que o autor e o réu tenham direitos processuais idênticos e estejam sujeitos também a deveres, ónus e cominações idênticos, sempre que a sua posição no processo seja equiparável.

9. Ora, no caso em apreço, o entendimento que o prazo previsto no artigo 188.º, n.º 1 do CIRE não é perentório, viola categoricamente o princípio plasmado no artigo 24.º, n.º 4 da CRP, designadamente por pôr em causa a equidade entre as partes, em virtude da desigualdade de armas, uma vez que uma parte não prazos com cominações legais - o requerente do incidente de qualificação de insolvência -, enquanto que, o insolvente visado detém um interminável número de prazos que deverá cumprir, sob pena de sofrer o castigo da preclusão do direito de agir ou de defesa.

10. Tanto mais que, o ora pilar constitucional prevê “…decisão em prazo razoável…”, pelo que a falta de limite temporal à apresentação do requerimento/alegação para abertura do incidente de qualificação de insolvência, implicaria que o referido poderia ser apresentando ad aeternum, violando o carácter de prazo razoável que qualquer processo judicial deverá ter, nos termos do ditame constitucional.

11. Deste modo, a exceção da extemporaneidade de apresentação do parecer de qualificação do senhor administrador de insolvência deverá ser entendida como provada e procedente, pela mesma violar o previsto no artigo 188.º, n.º 1 do CIRE, bem como

12. o douto despacho saneador ora em questão deverá ser apreciado no sentido de ser julgado inconstitucional, por violação do supra mencionado artigo 20.º, n.º 4 da CRP.

13. Nestes termos, deverá o douto despacho saneador revogado, por violação do artigo 188.º, n.º 1 do C.I.R.E., e artigo 20.º. n.º 4 da C.R.P., sendo substituída por decisão que determine deferimento da excepção inominada da extemporaneidade de apresentação do parecer de qualificação do senhor administrador de insolvência, com consequente absolvição do insolvente do pedido e respectivo arquivamento dos autos.
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O Ministério Público respondeu, apresentando contra alegações, cfr. fls 76 e segs, onde pugna pela improcedência do recurso,

CONCLUINDO:

1. Porque o administrador da insolvência não é parte, antes um verdadeiro colaborador da justiça do âmbito do processo de insolvência cujo dever funcional revela uma actuação no interesse alheio, o dos credores, não se lhe aplica qualquer prazo preclusivo, nomeadamente aquele previsto no art° 188°, n° 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

2. Tanto assim é que pode ter necessidade de realizar diligências impossíveis de concretizar em tal prazo, até porque é frequente (por exemplo) a venda de bens após a declaração da insolvência e, em conformidade, existem actos jurídicos a valorar para qualificar a insolvência como culposa que não são tempestivamente detectados;

3. Acresce que uma das circunstâncias que legitima a tipificação da insolvência como culposa ocorre obrigatoriamente após a declaração de insolvência (a violação do dever de colaborar com o administrador da insolvência) e a sua constatação pode ocorrer fora do âmbito temporal a que alude o art° 188°, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

4. Como tal, o parecer/alegação apresentado e que determinou a abertura do presente incidente é, concomitantemente, tempestivo;

5. Tal entendimento cristaliza um entendimento normativo conforme à Constituição da República Portuguesa;

6. Não foram violadas quaisquer disposições legais.
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Após os vistos, cumpre apreciar e decidir o mérito do recurso interposto.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

- OBJETO DO RECURSO

Apontemos as questões objeto do presente recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.

Assim, a questão decidenda é a seguinte:

- Se o “Requerimento (Início de Processo)”/ “Parecer sobre o incidente de qualificação de insolvência nos termos do nº2, do art. 188º, do CIRE” - v. fls 2 e segs - apresentado pela Administradora Judicial, de insolvência culposa, foi apresentado extemporaneamente.
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II. A - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos provados, com relevância para a decisão, constam já do relatório que antecede.
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II. B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

- Da extemporaneidade de apresentação da Alegação/Parecer de qualificação, da Senhora Administradora Judicial, de insolvência como culposa

A única questão a resolver no âmbito do presente recurso prende-se com a tempestividade do “Requerimento”/ “Alegação”/ “Parecer” apresentado pela administradora de insolvência para qualificação da insolvência do devedor como culposa.

Como bem refere o Digno Magistrado do Ministério Público, na sua resposta, “Na senda do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto 06 de Dezembro de 2011 (1), (…) "não estamos perante qualquer prazo de caducidade ou de prescrição, pois que uma e outra respeitam à extinção de direitos quando estes não são exercidos durante certo tempo - segundo um critério tradicional, clássico, a prescrição (extintiva, claro está) respeita aos direitos subjectivos propriamente ditos, enquanto a caducidade visa os direitos potestativos, sendo certo que a nossa lei optou por um critério formal, afirmando no art. 282°, nº 2, do C. C. que quando um direito deva ser exercido durante um certo prazo se aplicam as regras da caducidade, salvo se a lei se referir expressamente à prescrição" (sublinhado nosso).

Estando em causa uma pretensa caducidade (leia-se intempestividade do parecer), importa dizer que resulta à saciedade que este instituto, reflexo do decurso do tempo nas relações jurídicas, corporiza o fundamento que lhe subjaz: o aspecto objectivo da certeza e segurança do direito (2).
Para bem prosseguir, e erradicar definitivamente interpretações abusivas do mesmo instituto jurídico, como pretende alcançar o recorrente, relembre-se que no âmbito da caducidade estão em causa relações jurídicas do mais diverso tipo (direitos e obrigações) mas não direitos ou deveres de índole estritamente processual (estabelecidas na relação processual existente entre o Tribunal e as partes).

Caso estivéssemos perante o decurso de um prazo, peremptório (o que manifestamente não sucede), estabelecido na lei para a prática de certo acto, extinguir-se-ia o direito de o praticar. Note-se, para bem burilar este entendimento e não desviar o foco do que é importante, que a preclusão está ligada aos ónus e não aos simples deveres jurídicos. De facto, e também na esteira daquele sagaz aresto, " ... tratam-se de conceitos jurídicos distintos, pois enquanto o ónus ... se traduz na imposição jurídica de uma pessoa proceder de certo modo para conseguir ou manter uma certa vantagem própria ou, pelo menos, evitar uma desvantagem ou a perda de um direito (o ónus de contestar, o ónus de impugnar, o ónus de provar, etc.), o dever jurídico consiste na necessidade imposta pelo direito objectivo de serem observados determinados comportamentos com vista a salvaguardar interesses alheios, exigindo-se o seu acatamento ou cumprimento em ordem a respeitar direito subjectivo alheio[o dever de cumprir pontualmente a prestação, nos termos dos arf. 7620 e 768° do C.C., o dever processual de agir de boa fé, nos termos do 266°-A do CP.C., o dever processual de cooperação, nos termos do 266° do C.P. C., etc. (sublinhado nosso))".

Atendendo ao disposto no art° 12°, nº 2, do Estatuto do administrador judicial, ousamos acrescentar a tal rol "o dever de maximizar os interesses dos credores" nos processos em que aqueles profissionais são nomeados administradores da insolvência (…), aqui não são aplicáveis os institutos da extinção dos direitos ou obrigações reguladas no direito civil (…) o administrador da insolvência, na qualidade de servidor da justiça e do direito, junta aos autos os elementos tidos por pertinentes não no exercício de qualquer direito ou obrigação, advindos de qualquer relação obrigacional, mas sim no escrupuloso cumprimento de deveres funcionais que exerce no âmbito do processo da insolvência (3).

Relativamente ao administrador da insolvência, como entidade meramente adjuvante na aplicação da justiça (não é um credor, relativamente a quem tal sucede indubitavelmente) não é admissível, sequer, a confabulação de imposição de prazos preclusivos (a violação dos seus deveres poderá e deverá ser valorada em sede de destituição (4)) pois tal sucede apenas relativamente às partes no processo! Note-se que, evidentemente, aquele pratica actos no processo não para se fazer valer de um qualquer direito próprio mas antes porque sobre si impende um dever funcional e, assim, actua no interesse alheio, o dos credores!

Como tal, poderá ter que realizar diligências que não se compadecem, naturalmente, com o decurso do prazo que o recorrente pretende agasalhar (leia-se apodar de peremptório) até porque é frequente a venda de bens após a declaração da insolvência e, em conformidade, existem actos jurídicos a valorar para qualificar a insolvência como culposa que não são detectadas a tempo! Adite-se a este raciocínio o facto de, pelo menos, uma das circunstâncias que legitima a tipificação da insolvência como culposa ocorrer obrigatoriamente após a declaração de insolvência (5) para facilmente se intuir que a forma de perspectivar os prazos em curso não pode ser entendida como pretendido pelo apelante, aí sim por se tratar de interpretação jurídica absolutamente descontextualizada da realidade insolvencial, com óbvio e manifesto dos credores!

Não nos movemos nem por critérios estatísticos nem por interesses objectivamente parciais cujo último desiderato é, como se alcança sem dificuldade, a não responsabilização patrimonial perante terceiros (legítimos) credores e, como tal, entendemos que, pelo menos nos casos em que o parecer é apresentado pelo administrador da insolvência (como sucede), é perfeitamente desadequado estar a equacionar a existência de um qualquer prazo preclusivo que, se não observado, demandará a impossibilidade da abertura do incidente de qualificação da insolvência e, por arrastamento, o desvirtuar da essência deste apenso!

Inexoravelmente, ter-se-á que concluir que o parecer do administrador da insolvência constitui um elemento relevante quer para a decisão do incidente de qualificação da insolvência quer para a sua própria tramitação e, ainda que tardio, deverá o juiz providenciar pela sua junção aos autos (6).
Pretender agasalhar entendimento diverso desvirtua e viola frontalmente toda a teleologia subjacente às normas ínsitas ao processo de insolvência, de tendencial satisfação universal dos credores, desiderato esse que, não tendo sido alcançado após rateio, poderá ser concretizado no cumprimento do preceituado no art° 189°, n° 2, aI. e), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, id est, no âmbito do apenso de qualificação da insolvência, onde nos movemos!
No sentido propugnado vai-se formando jurisprudência manifestamente maioritária (7)”.

No último Acórdão citado - Acórdão de 15/3/2018, desta seção e por nós subscrito, como adjunta - decidiu-se, com inteira pertinência para o caso, que “prescreve o disposto no art. 188º, n.º 1, do CIRE, que: “Até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para o efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.

Esclarece-se que o “relatório” a que se refere a parte inicial do antecedente preceito legal é aquele que vem consignado no art. 155º, do CIRE, a ser apreciado na respetiva “assembleia de apreciação do relatório”, a que se refere o disposto no art. 156º, do CIRE, sem prejuízo do tribunal, em sede de sentença de declaração de insolvência, poder, fundamentadamente, declarar prescindir da realização da mesma (cfr. art. 36º, n.º 1, al. n) in fine, do CIRE). Neste último caso, em que não é designado dia para a realização da assembleia de apreciação do relatório, os prazos previstos no CIRE, contados por referência à data da sua realização, contam-se com referência ao 45º dia subsequente à data da prolação da sentença de declaração de insolvência (cfr. art. 36º, n.º 4, do CIRE).

Por sua vez, o n.º 3 do referido art. 188º, do CIRE estipula que: “Declarado aberto o incidente, o administrador de insolvência, quando não tenha proposto a qualificação da insolvência como culposa nos termos do n.º 1, apresenta no prazo de 20 dias, se não for fixado prazo mais longo pelo juiz, parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for caso disso, as pessoas que devem ser afetadas pela qualificação da insolvência como culposa.” (nosso sublinhado)

No caso em apreço, já vimos que não teve lugar a realização da referida “assembleia de apreciação do relatório”, sendo certo que a sentença que declarou a insolvência da dita sociedade foi proferida a 17.02.2016, sem que tivesse declarado a abertura do incidente de qualificação da insolvência (art. 36º, n.º 1, al. i), do CIRE).

Mais temos demonstrado que o requerimento inicial (alegações) de abertura do incidente de qualificação da insolvência como culposa foi apresentado pela administradora judicial em 10.10.2016 (cfr. fls. 2 e 3) e o respetivo parecer, após despacho de abertura do incidente de 18.10.2016, foi apresentado em 25.11.2016 (cfr. fls. 4 e 9 e segs.).

Importa, porém, desde já frisar que o que está aqui em causa é o aludido requerimento/alegações apresentado pela administradora judicial em 10.10.2016, e não já o “parecer” apresentado subsequentemente ao despacho que declarou a abertura do incidente de qualificação de insolvência.

Nesta medida, não se pode aqui chamar à colação a doutrina e a jurisprudência maioritária, que referindo-se ao anterior n.º 2 do art. 188º, do CIRE (na redação anterior à introduzida pela Lei n.º 36/2012, de 20.04) e atualmente ao n.º 3 do art. 188º do CIRE entendia e entende que o prazo para o administrador de insolvência apresentar o “parecer” aí mencionado, “não é peremptório, mas meramente ordenador”. (8)

No que refere ao atual n.º 1 do art. 188º, do CIRE, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda escrevem, designadamente, que:

Uma vez que é de uma faculdade conferida aos interessados que o n.º 1 trata pode dar-se o caso de não haver qualquer alegação de nenhum interessado.
Mas pode suceder que o incidente de qualificação já tenha sido aberto na sentença declaratória e, se assim for, seguem-se naturalmente os termos dos n.ºs 3 e seguintes.
Na outra hipótese, será normal que o juiz, em face do silêncio dos interessados, nada despache, situação em que a insolvência se haverá necessariamente como furtuita.
É, porém, de crer que, apesar da falta de alegações, o juiz possa, por sua própria iniciativa, e desde que o processo contenha elementos suficientes para a suportar, decidir a abertura.
Concorrem para esta asserção, as seguintes razões.

Desde logo, se o juiz pode, numa fase precoce do processo – momento da declaração da insolvência –, optar por abrir o incidente, não se vê porque recusar esse poder no quadro do art.º 188º, numa altura em que, a própria marcha possa ter revelado factos significativos – e até com valor próprio e autónomo, como sucede com o previsto no art.º 83º, n.º 3 – e indiciadores da culpa, que nem sequer eram facilmente percetíveis àquela primeira data.
De resto, como ficou dito, dispondo agora o juiz de uma segunda oportunidade para avaliar a situação, em conformidade com a disciplina do n.º 1 deste art.º 188º, normal será que prescinda de decidir logo na primeira, pelo que limitar o seu poder de abertura do incidente à alegação de interessados pode até ter um efeito perverso.

Por outro lado, é indiscutível, à vista da parte final do n.º 1, que o juiz não tem de seguir o entendimento manifestado nas alegações dos interessados, podendo, sem dúvida, decidir pela não abertura do incidente apesar do que for sugerido e requerido. Não se vê nenhum motivo sério para que essa liberdade só ocorra quando o resultado seja favorável aos potenciais afetados pela qualificação da insolvência. É que a questão da qualificação não é, nem pode ser, considerada como algo que se situa no estrito âmbito dos interesses particulares e, nessa medida, no âmbito da disponibilidade.

Acresce que (…), o legislador alterou o atual n.º 5 – anterior n.º 4 – no sentido de, mesmo coincidindo os pareceres do administrador e do Ministério Publico na proposta da qualificação da insolvência como furtuita, o tribunal não ficar vinculado a ela, ainda que, se decidir em conformidade, a decisão seja irrecorrível.
Ora, se bem avaliarmos, o poder de, mesmo nessa situação particular, mandar prosseguir o incidente justifica, só por si, que não fique também vinculado a não abrir o incidente quando ninguém alegou nada.
Finalmente, não pode deixar de se ter presente o poder oficioso do juiz consagrado no art. 11.º.(9) (sublinhámos)

Concordamos inteiramente com esta posição doutrinária e, como tal, poderemos facilmente daqui tirar a conclusão de que o prazo, previsto no n.º 1 do art. 188º, do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo perentório mas meramente ordenador ou regulador.
Na realidade, se a qualquer momento (até ao encerramento do processo), reunidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz poderá determinar ex officio a abertura do incidente de qualificação de insolvência como culposa, não vemos, por maioria de razão, que o mesmo esteja impedido de o fazer, a requerimento fundamentado de qualquer interessado ou do administrador de insolvência, ainda que para além do prazo previsto no art. 188º, n.º 1, do CIRE.

É claro que estamos cientes que existe já alguma jurisprudência que defende o contrário; ou seja, que o prazo aludido no art. 188º, n.º 1, do CIRE, por se tratar de um prazo de “iniciativa processual”, quando o incidente de qualificação de insolvência ainda não foi determinado oficiosamente pelo tribunal na sentença que decretou a insolvência, deverá antes ser considerado um prazo perentório. (10)
No essencial, esta jurisprudência para justificar este seu entendimento, defende que, no atual quadro legal, o juiz apenas poderá, oficiosamente, declarar aberto o incidente de elementos relevantes; para daí concluir que, fora desse momento, apenas poderá fazê-lo na sequência de “iniciativa processual”, formulada pelo administrador da insolvência ou por qualquer outro interessado, dentro do prazo assinalado na lei.

Não é esta, porém, a nossa posição, como já salientámos supra, pelo menos no quadro legal em vigor, aquando a abertura do presente incidente de qualificação da insolvência.
Realce-se ainda que, in casu, não houve lugar à realização da “assembleia de apreciação do relatório” (art. 156º, do CIRE), nem sabemos em que data é que a administradora da insolvência logrou concluir e apresentar o mesmo “relatório” previsto no art. 155º, do CIRE.

No entanto, sabemos que a mesma administradora, no requerimento de fls. 2 e 3, salientou, desde logo, que foi em resultado da elaboração do mesmo “relatório”, bem como dos posteriores desenvolvimentos do processo de insolvência, designadamente contactos tidos com o antigo gerente, que logrou encontrar indícios da existência de culpa por parte da devedora na sua insolvência.

A elaboração do “relatório” referido no art. 155º, do CIRE, trata-se pois de uma peça fundamental para apreciação do comportamento do devedor, sendo certo que ainda mais essencial se revela, em casos – como foi o nosso – em que não teve lugar a realização da assembleia prevista no art. 156º, do CIRE. (11)

Por assim dizer, a administradora de insolvência acabou por alegar justo impedimento e igualmente factos supervenientes que a impediram de requerer, dentro do prazo de 60 dias após a sentença de declaração de insolvência, a abertura do presente incidente de qualificação da insolvência como culposa; sendo certo igualmente que também não temos demonstrado nos autos em que data é que teve lugar a apresentação do relatório a que se refere o art. 155º, do CIRE, elemento preponderante para apreciação da conduta da sociedade insolvente devedora e seus gerentes.”. (12)

É esta a nossa posição não podendo o prazo, previsto no n.º 1 do art. 188º, do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, deixar de ser considerado como um prazo meramente ordenador ou regulador.

Efetivamente, se a qualquer momento (até ao encerramento do processo), reunidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz pode determinar ex officio a abertura do incidente de qualificação de insolvência como culposa, não vemos razão para o não poder fazer a requerimento, fundamentado, de qualquer interessado ou do administrador de insolvência, ainda que para além do prazo previsto no art. 188º, n.º 1, do CIRE.

Conclui o apelante que decisão em sentido contrário ao que propugna deve ser julgada inconstitucional, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição da República, que consagra que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.

Não está aqui em causa violação de qualquer direito do insolvente ou de princípio ou preceito constitucional, designadamente os de acesso à Justiça, de decisão em prazo razoável, da igualdade e da equidade mas de legítima defesa de direitos e interesses dos credores, dos cidadãos e do Estado, interessado em assegurar o cumprimento da legalidade e em evitar e punir insolvências culposas, que o Tribunal, ex officio, deve levar a cabo, o que bem fez o Tribunal a quo.

Assim, e pelas razões expostas, que se afirmam neste processo e que já foram consideradas no anteriormente referido, improcedem as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pela apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
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III. DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
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Custas pelo apelante, pois que ficou vencido – art. 527º, nº1 e 2, do CPC.
Guimarães, 30 de maio de 2018

Eugénia Marinho da Cunha
José Manuel Alves Flores
Sandra Melo


1. Sábia e exemplarmente relatado pelo Excelentíssimo Senhor Desembargador João Ramos Lopes (processo 1566f09.8TBAMT-W.P1, disponível em www.dgsLpt).
2. Neste sentido vide, v.g., Mota Pinto in "Teoria Geral do Direito Civil", 2a Edição actualizada, págs. 370 a 374.
3. Art° 12°, nº 1, do Estatuto do administrador judicial.
4. Art. 56° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
5. A falta ou recusa de colaboração com o administrador da insolvência [art" 1860, na 2, al. i), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas].
6. Neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda, in "Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas" Anotado, pág. 689, anotação 123 ao arf 188, 33 Edição, 2015, Quid Juris.
7. Vide acórdãos da Relação do Porto de 17 de Novembro de 2008 (processo 0855650, relator Excelentíssimo Senhor Desembargador Sousa Lameira), de 29 de Outubro de 2009 (processo 10/07.7TYVNG-B.P1, relator Excelentíssimo Senhor Desembargador Filipe Caroço), de 14 de Março de 2017 (processo 2037/14.3T8VNG.EP1, relator Excelentíssimo Senhor Desembargador José Carvalho), da Relação de Évora de 29 de Janeiro de 2015 (processo 34/14.8T2GDL.E1, relatora Excelentíssimo Senhor Desembargador Silva Rato, acórdão cujo objecto é outro mas que indirectamente admite esta tese), e da Relação de Guimarães de 24 de Setembro de 2015, 12 de Julho de 2016 (aquele no processo 3597/11.6T8VNF.G1 e este no processo 4561/14.9T8VNF-B.G1, sendo em ambos relator o Excelentíssimo Senhor Desembargador Estelita de Mendonça) e de 15 de Março de 2018 (processo 253/16.2T8VNF-D.G1, relator Excelentíssimo Senhor Desembargador António Barroca Penha, todos disponíveis em www.dgsipt).
8. Cfr. Luís Manuel Menezes Leitão, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Almedina, 7ª edição, págs. 190-191; o mesmo autor in Direito da Insolvência, Almedina, 6ª edição, pág. 256 (nota 388); Ana Prata, ob. cit., pág. 522; Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., edição de 2008, págs. 617-618; bem como todos os arestos citados nas mesmas obras, entre os quais, v.g. cfr. Ac. RP de 23.02.2012, proc. n.º 621/09.6TBOAZ.P1, relator Pinto de Almeida; Ac. RP de 29.10.2009, proc. n.º 10/07.7TYVNG-B.P1, relator Filipe Caroço; Ac. RG de 02.06.2011, proc. n.º 881/07.7TBVCT-U.G1, relator António Sobrinho; e Ac. RG de 14.11.2011, proc. n.º 881/07.7TBVCT-S.G1, relator Manso Rainho, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
9. Código da Insolvência e da recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 2015, págs. 687-688.
10. Por todos, cfr. Ac. RC de 10.03.2015, proc. n.º 631/13.9-L.C1, relatora Catarina Gonçalves; e Ac. RG de 25.02.2016, proc. n.º 1857/14.3TBGMR-DG1, relatora Cristina Cerdeira, acessíveis em www.dgsi.pt.
11. Saliente-se que este entendimento, tem já aliás consagração legal no atual n.º 1 do art. 188º do CIRE, com a redação introduzida pela Lei n.º 114/2017, de 29.12, onde se prevê expressamente agora que o respetivo prazo de 15 dias, nos casos em que não tenha lugar a assembleia de apreciação do relatório, deverá contar-se após a junção aos autos do relatório a que se refere o art. 155º.
12. Acórdão da Relação de Guimarães de 15/3/2018, processo 253/16.2T8VNF-D.G1, disponível in dgsi.net