Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
642/16.2T8BGC.G1
Relator: MARGARIDA SOUSA
Descritores: MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
INDEMNIZAÇÃO
INTERESSE CONTRATUAL POSITIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do pedido não ocorre quando o tribunal sustenta a condenação, limitada a parte do valor peticionado, em fundamentos jurídicos parcialmente distintos dos invocados pelo autor;

II – Nada impede que o Tribunal da Relação, em sede de recurso e até oficiosamente, exclua da decisão de facto, por força das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, um determinado facto, nada impedindo também que o venha a considerar provado, não com o fundamento invocado na decisão recorrida mas com base em documento junto aos autos, como resulta do disposto no art. 662º, nº 1, do CPC;

III – Quando da mera leitura de documento essencial junto aos autos decorre ali se conter um erro com relevância para o facto que o mesmo se destina a provar, deve a Relação esclarecer a “dúvida fundada”, pela referida leitura suscitada, efetuando a indagação que a primeira instância já deveria ter efetuado em momento prévio à sentença proferida;

IV – Diferentemente do que ocorre no contrato promessa de compra e venda, no mandato sem representação, o negócio jurídico que o mandatário deve realizar é um ato de alienação cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário;

V – Não tendo ocorrido resolução contratual, nem estando a mesma peticionada, não tem sentido excluir-se a indemnização pelo interesse contratual positivo, devendo, sem mais, determinar-se a indemnização devida à luz do critério legal para calcular a indemnização, assente na “teoria da diferença”, previsto no art. 562º do CC;

V – Desde que se prove a existência (qualitativa) de danos, sem que os autos permitam a sua imediata quantificação, a ação declarativa deve terminar com uma sentença de condenação ilíquida, sem prejuízo de o tribunal condenar desde logo o devedor no pagamento de uma indemnização, dentro do quantitativo que considere já provado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Maria intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Rui e G. M. peticionando o seguinte:

- Serem os Réus condenados a cumprir o acordo/pacto contratual, transmitindo a titularidade do prédio urbano melhor identificado no ponto 10.º da petição inicial para a sua esfera jurídica, ordenando-se o consequente averbamento de tal propriedade no registo predial a seu favor; ou,
- Serem os Réus condenados a pagar-lhe o valor do prédio que quantifica pela quantia mínima de € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros), sem prejuízo de se vir a apurar que o real valor do mesmo é superior.

Em ordem a sustentar a sua pretensão, em síntese, a Autora alegou ter celebrado um acordo verbal com os Réus, nos termos do qual aqueles se obrigaram perante si a adquirir a terceira pessoa, por compra e venda, o direito de propriedade sobre o prédio urbano situado na freguesia de ..., do concelho de Bragança, descrito na Conservatória do Registo de Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial respetiva sob o art. ....º, e, bem assim, a transmitir-lho em seguida logo que a mesma o solicitasse.

Segue dizendo que, na execução do sobredito acordo contratual, por escritura pública de compra e venda outorgada em 20 de Novembro de 2011, agindo em nome próprio mas por conta da autora, o Réu marido adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio urbano supra descrito, o qual passou a integrar o património comum do casal de Réus, em virtude do regime de bens do casamento.

Sucede porém que, ao arrepio da obrigação que assumiram, sem razão para tal, os Réus recusam-se a transferir para a aqui Autora, o direito de propriedade sobre o referido imóvel que adquiriram, causando-lhe um prejuízo equivalente ao valor real do prédio em questão, que não é inferior ao valor patrimonial tributário, ou seja, 642.180 € (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros), que corresponde ao valor do enriquecimento ilegítimo dos réus.
Regular e pessoalmente citados para os termos da ação, com as necessárias cominações legais, os Réus não ofereceram contestação no prazo legal de que dispunham para o efeito.
Em face disso, ao abrigo do disposto no art. 567º, n.º1, do Código de Processo Civil, o tribunal considerou confessados os factos alegados pela Autora. (vide despacho de fls. 93)

Foi, depois, proferida sentença que decidiu:

- Julgar improcedente o pedido (que se entende principal) aduzido pela autora de condenação dos réus a cumprir o acordo/pacto contratual, transmitindo a titularidade do prédio urbano melhor identificado no ponto 10.º da petição inicial para a sua esfera jurídica, ordenando-se o consequente averbamento de tal propriedade no registo predial a seu favor, e, em consequência, absolver os réus Rui e G. M. de tal pedido;
- Julgar parcialmente procedente o pedido, que se entende, subsidiário, e, em consequência:

* Condenar os réus Rui e G. M. a pagar à autora Maria a quantia de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros); e,
* Absolver os réus Rui e G. M. da parte restante do pedido subsidiário aduzido pela autora Maria.

Inconformada com a referida sentença, a Autora interpôs recurso, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões:

1.ª- A sentença de que se recorre, padece, com todo o respeito pelo tribunal a quo, de uma errónea interpretação e aplicação do direito, face à matéria de facto dado como provada, por força da não contestação da acção por parte dos aqui Apelados.
2.ª- Entendendo a referida sentença que o contrato em causa entre as partes não foi um contrato fiduciário, mas sim um mandato sem representação, vem a mesma condenar os Réus no pagamento à Autora da quantia de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), por se entender ser esta a medida do enriquecimento daqueles.
3.ª- Com todo o respeito que merece – que é muito – a decisão enferma de um claro erro na quantificação do enriquecimento dos Réus, com o qual a Autora não se pode conformar, como não se conforma.
4.ª- Na verdade, deu como provado a referida sentença que valor real do prédio em causa nos autos é, pelo menos, de € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros), que já o era no momento da celebração da escritura.
5.ª Considerando depois que o prejuízo causado à Autora se traduz, no valor que a Autora não teria gasto caso não tivesse outorgado o contrato de mandato sem representação, que a sentença considera existir, com os Réus, ou seja, € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros).
6.ª- Mais uma vez com todo o respeito, não se pode concordar com tão enviesada construção jurídica.
7.ª- Para a sentença recorrida – e para o senhor juiz que a profere – já não existirá «uma situação geradora de desequilíbrio e de benefício elevado e completamente injustificado» quando alguém que incumpre uma obrigação se locupleta de um bem por menos de um quarto do seu real valor.
8.ª- Por outras palavras, o facto de a Autora vir exigir uma indemnização correspondente ao valor real do bem de que se viu – ilicitamente – despojada gera desequilíbrios e benefícios elevados e completamente injustificados.
9.ª- Já o facto de os Réus ficarem – ilicitamente – com a propriedade de um determinado bem por menos de um quarto do seu real valor é uma situação justa, equilibrada e completamente justificada.
10.ª- Caso para se dizer: A ilicitude compensa!
11.ª- Daí que, com todo o respeito, consideremos a construção jurídica subjacente á sentença proferida absolutamente distorcida – ELA É O CONTRÁRIO DAQUILO QUE O DIREITO DEVE SER!
12.ª- A Autora não ficou apenas despojada do valor que pagou pelo prédio, não sendo por esse valor que tem de ser indemnizada; a Autora ficou foi despojada do prédio que os Réus se tinham obrigado a transferir para a sua esfera jurídica – veja-se ponto 14) dos factos provados – e cujo valor é, pelo menos de € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros) – cf. ponto 25) dos factos provados.
13.ª- O dano sofrido pela Autora não foi o valor que pagou pelo prédio; o dano sofrido pela Autora traduz-se no valor do prédio que a mesma hoje não tem, pela conduta ilícita dos Réus
14.ª- Na óptica, e seguindo a construção jurídica subjacente à sentença proferido pelo tribunal a quo, se o negócio que os Réus outorgaram em nome da Autora tivesse sido um negócio gratuito – uma doação, por exemplo – a Autora não teria sofrido qualquer dano, uma vez que nada tinha desembolsado pelo prédio.
15.ª- Por outro lado, a Autora pagou ainda «todas as despesas concernentes ao referido negócio e as demais posteriores» - cf. ponto 12) dos factos provados.
16.ª- Quer isto dizer que a Autora pagou os emolumentos devidos pela escritura, pelo registo e ainda todas as obrigações fiscais.
17.ª- Que, para a sentença recorrida não consubstanciam um dano sofrido pela Autora, e, consequentemente, não merece a Autora ser indemnizada pelo mesmo.
18.ª- Pensamento que viola todas as regras, normas e princípios vigentes neste Estado de Direito, que ainda é Portugal.
19.ª- Com o qual a Autora não se pode conformar e é dever do direito, na suprema realização da justiça, afastar.
Por outro lado,
20.ª- Note-se que à obrigação de indemnização a cargo do devedor faltoso são aplicáveis as disposições dos artigos 562.º e ss. do Código Civil – Código Civil Anotado – Volume II, Pires de Lima e Antunes Varela, Coimbra Editora, 4ª edição, página 53,
21.ª- E que, nos termos do disposto no artigo 564.º do Código Civil, o prejuízo indemnizável compreende o dano emergente e o lucro cessante.
22.ª- É absolutamente provável e expectável que a Autora viesse a vender o prédio em questão nos autos, pelo seu real valor, ou seja, € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros).
23.ª- Pelo que, também por esta razão, deve a indemnização devida à Autora ser computada no referido valor de € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros).
24.ª- Deve, pois, a sentença proferida ser revogada e substituída por decisão que condene os Réus a pagar à Autora a quantia de € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros).

Sem prescindir:

25.ª- Não existem dúvidas que, existe um enriquecimento dos Réus e que esse enriquecimento foi feito à custa da Autora.
26.ª- O valor do enriquecimento dos Réus e, consequentemente, o valor do empobrecimento da Autora cifra-se em € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil centos e oitenta euros).
27.ª- Sendo absolutamente espantoso (para não dizer outra coisa) que se afirme, como se faz na sentença recorrida, que o enriquecimento dos Réus, correspondente à diferença entre o valor real do imóvel e aquele que têm de pagar à Autora tenha uma causa justificativa, quando se dá como provado que estes se obrigaram a transmitir a propriedade do prédio para a Autora, quando esta determinasse.
28.ª- Inexistindo razão, na óptica da sentença proferida em primeira instância, para ressarcir a Autora à luz do enriquecimento sem causa.
29.ª- Acontece que o enriquecimento não é – nem pode ser - justificado por causas ilícitas e contrárias à boa-fé, violadoras das mais elementares regras e normas legais.
31.ª- No caso dos autos, como já por mais de uma vez se referiu, existe um enriquecimento dos Autores, sendo que o valor desse enriquecimento nunca será inferior ao valor real do prédio, que se provou ser € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros).
32.ª- Este enriquecimento não tem causa justificativa, desde logo porque o direito não aprova nem consente a conduta dos Réus – como não poderia nunca consentir.
33.ª- Tal enriquecimento foi, reitera-se, conseguido à custa da Autora.
34.ª- E, caso se entenda que esta indemnização não deva ser arbitrada pelo incumprimento dos Réus da obrigação a que se vincularam perante a Autora, não poderá a mesma deixar de ser arbitrada a título de enriquecimento sem causa, com carácter subsidiário.
35.ª- Pelo que se encontram preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa.
36.ª- Devendo os Réus serem condenados a pagar à Autora a quantia de € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros).
37.ª- Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou o disposto nos artigos 798.º e 562.º e ss. do Código Civil e, subsidiariamente, o artigo 473.º do Código Civil.

Conclui pedindo a revogação da decisão recorrida.

O Réu/Recorrido apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.

Interpôs, também ele, recurso, com as seguintes conclusões:

--- A Autora formulou dois pedidos na presente acção;
--- Ambos os pedidos foram julgados improcedentes na douta sentença recorrida;
--- O Tribunal condenou os Réus em pedido diverso dos deduzidos, não se enquadrando essa condenação no seguimento de qualquer um dos dois constantes da petição inicial;
--- O tribunal decidiu para além destes pedidos e em objecto diverso dos mesmos;
--- Estava vedado ao Tribunal assim decidir, por imperativo do disposto no artigo 609º do Código de Processo Civil;
--- Tendo ambos os pedidos iniciais sido julgados improcedentes, outra alternativa não restava que julgar a acção totalmente improcedente e os Réus absolvidos dos pedidos;
--- Há factos dados como provados que o não podiam ter sido por estarem em contradição com documentos autênticos juntos que não foram impugnados, nem o seu teor atacado de falso e que fazem prova plena do seu conteúdo;
--- Os factos constantes em 12 e 16 dos “factos provados” estão em contradição com o teor da escritura referida a 15 e como tal devem ser eliminados;
--- Foi a Autora que fez a junção de tal escritura e como tal tem que se cingir ao seu teor e conteúdo;
--- Consta da escritura que o preço de 140.000,00 € foi pago pelo comprador;
--- Não pode o Tribunal dar como assente que foi a Autora e seu ex-marido que pagou tal preço;
--- A Autora nem sequer alegou e especificou que valor terá pago e que valor terá sido pago pelo seu ex-marido;
--- É incompreensível que um bem a adquirir em “partilha” de bens comuns do casal, seja adjudicado à Autora e seja o seu ex-marido a pagar parte do preço;
--- A Autora não tem legitimidade para receber a totalidade daquele preço, caso a ele tivesse direito;
--- A sua legitimidade estaria confinada ao montante por si pago, que se desconhece qual foi;
--- Para além de ter decidido em espécie diversa do pedido, o Tribunal não tinha elementos para condenar os Réus no montante em que o fez;
--- Se assim fosse, estaríamos perante um enriquecimento sem causa da Autora;
--- O valor referido em 25 está em contradição com o valor mencionado na escritura e certidão matricial pelo que deverá ser alterado para 14.450,00 €;
--- O valor constante na certidão matricial junta aos autos não está correcto e ficou a dever-se a erro grave e grosseiro na sua emissão;
--- O valor patrimonial actual do artigo em causa é de 14.450,00 € determinado pelo respectivo Serviço de Finanças em 2017, conforme certidão que ora se junta;
--- A Autora teve conhecimento da verificação desse erro grosseiro e tentou e tenta tirar dividendos desse mesmo erro;
--- Em claro e manifesto abuso de direito e manifesta má-fé;
--- Tenta exercer um hipotético direito, baseando-se em valores que sabe serem falsos, conhecedora do erro verificado e conhecedora do actual valor real do imóvel;
--- Os factos constantes dos provados em 11 a 19 consubstanciam um verdadeiro contrato promessa de compra e venda verbal;
--- Tal contrato é nulo por não constar de documento escrito e assinado pelos interessados;
--- Nada mais consubstancia que não isto;
--- Caso a Autora pretenda se indemnizada pelo possível incumprimento deste contrato, isso mesmo terá que invocar e peticionar em acção própria.
---- No presente caso e face aos pedidos formulados pela Autora, a acção tem necessariamente que improceder.
--- A douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 369º, 371º, 410º, 471º, 1180º a 1184 do Código Civil e 607º, 609º e 615º do Código de Processo Civil.

Termina pedindo seja a sentença recorrida revogada e substituída por uma outra que julgue a ação totalmente improcedente por não provada e em consequência absolva os Réus dos pedidos.

Não foram apresentadas contra-alegações a este recurso.

Já nesta Relação e considerando que, no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 652º, nº 1, b), do CPC, ao juiz relator cabe o de ordenar a produção de meios de prova, nos termos do art. 662º, nº 2, alíneas a) e b), do mesmo código (cfr. Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 236), sendo de admitir, de acordo com a última das referidas alíneas, a produção de novos meios de prova em casos de dúvida fundada sobre a prova realizada, se determinou que ficasse no processo o documento junto aos autos com as alegações do Recorrente Rui, porquanto deste resulta a correção dos dados constantes da matriz e o valor matricial, do prédio em causa, de tal correção decorrente, meio de prova adequado ao esclarecimento de dúvida suscitada pelo teor da certidão matricial anteriormente junta pela Autora, concedendo-se a esta o prazo de 10 dias para, querendo, sobre esse novo documento se pronunciar.
Notificada, a Recorrente/Recorrida veio dizer que o documento em causa poderá servir apenas para provar o valor patrimonial tributário do imóvel e já não o seu real valor.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
III. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO:

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC).

No caso vertente, as questões a decidir são as seguintes:

- Saber se a sentença é nula por conter condenação em pedido diverso;
- Saber se a decisão da matéria de facto contém erro de direito, por violação de regras de direito probatório material;
- Saber da qualificação do contrato: mandato sem representação ou contrato promessa (nulo)?
- Saber se, não tendo sido resolvido o contrato, nem havendo pretensão formulada nesse sentido, a indemnização pela violação contratual ocorrida se deve cingir ao prejuízo pelo interesse contratual negativo ou da confiança ou se, pelo contrário, a indemnização em causa deve corresponder à reparação do dano do cumprimento, ou seja, a uma “proteção positiva”;
- Saber se, no âmbito da responsabilidade contratual e não obstante ter sido formulado um pedido líquido, não estando determinado o valor exato do dano, pode haver lugar a condenação no que se vier a liquidar ulteriormente.
*
IV. FUNDAMENTOS:

Os factos.

A. Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade:

1. Os réus são casados entre si sob o regime de comunhão de adquiridos.
2. No final da década de 90 do século passado, a autora e o seu ex-marido A. C., com quem a autora foi casada sob o regime de comunhão geral de bens, começaram a negociar com A. F. e seu filho, entretanto falecido, M. J., a compra de vários lotes de terrenos situados na freguesia de ..., do concelho de Bragança.
3. Mormente, A. F. e o seu filho M. J. estavam interessados em vender e a autora e o seu ex-marido estavam interessados em comprar os lotes de terreno na altura identificados como números um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, quinze, dezasseis, dezassete, dezoito, dezanove, vinte, vinte e um e vinte e três A e B do loteamento realizado no prédio situado na freguesia de ..., do concelho de Bragança, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 00401/110590.
4. Os sobreditos lotes de terreno encontravam-se descritos na Conservatória do Registo Predial, respectivamente, sob os nºs ..., (…).
5. A. F. e o seu filho M. J. e a autora e o seu ex-marido acertaram todas as condições do negócio de compra e venda dos lotes referidos, tendo sido pago respectivo preço em momento anterior à redução do negócio a escritura pública.
6. Com vista à concretização do negócio de compra e venda dos sobreditos lotes de terreno pelos preços e sob as condições que entendesse convenientes, em 29 de Março de 1999, A. F. e o seu filho M. J. outorgaram procuração forense em favor do ex-marido da autora, prevendo-se a possibilidade deste realizar negócios consigo mesmo, tendo a procuração sido conferida no interesse do mandatário.
7. No âmbito do mandato que lhe foi conferido, o ex-marido da autora outorgou, no dia 13 de Outubro de 2000, escritura pública de compra e venda, nos termos da qual, na qualidade de procurador de A. F. e do seu filho M. J., declarou vender à sociedade comercial por quotas “Construções A. C., Lda.”, da qual era gerente, pelo preço global de Esc.18.000.000 (dezoito milhões de escudos) os seguintes bens imóveis:
- Prédio urbano composto de uma parcela de terreno para construção, com a área de 600m2, identificada pelo lote número 5/6, situado no (...), limite da freguesia de ..., do concelho de Bragança, a confrontar de Norte, Nascente e Sul com rua público, então omisso na matriz predial;
- Prédio urbano composto de uma parcela de terreno para construção, com a área de 600m2, identificada pelo lote número 7/8, situado no (...), limite da freguesia de ..., do concelho de Bragança, a confrontar de Norte, Nascente e Sul com rua público, então omisso na matriz predial; e,
- Prédio urbano composto de uma parcela de terreno para construção, com a área de 600m2, identificada pelo lote número 9/10, situado no (...), limite da freguesia de ..., do concelho de Bragança, a confrontar de Norte, Nascente e Sul com rua público, então omisso na matriz predial;
8. M. J. faleceu no dia 7 de Setembro de 2011.
9. No dia 22 de Setembro de 2011, a mãe do falecido M. J. outorgou procuração em favor de M. L., nos termos da qual lhe conferiu poderes para vender ou prometer vender, pelo preço e condições que entendesse convenientes, quaisquer bens imóveis que fizessem parte da herança aberta por óbito do seu filho M. J..
10. Aquando do divórcio da autora e seu ex-marido, ambos acordaram que o na altura denominado Lote …, do loteamento realizado no prédio urbano situado na freguesia de ..., do concelho de Bragança, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. ....º, ficaria para a aqui autora.
11. Por lhe ser conveniente, a autora ponderou que fosse o réu marido a outorgar a escritura pública de compra e venda, figurando na mesma como comprador do referido imóvel.
12. A compra seria feita em nome do réu marido, ainda que com dinheiro da aqui autora e seu ex-marido, sendo que seria a autora que pagaria todas as despesas concernentes ao referido negócio e as demais posteriores.
13. O lote de terreno ficaria dessa forma na esfera jurídica dos réus – por força do regime de casamento dos mesmos – em quem a autora depositava confiança absoluta.
14. Sendo que os réus transmitiriam a propriedade do imóvel para a autora aquando tal lhes fosse solicitado por esta.
15. Colocada a questão aos réus, a quem foram explicadas as razões para proceder dessa forma, estes concordaram em proceder da maneira descrita supra, pelo que, por escritura pública outorgada em 2 de Novembro de 2011, constante de fls. 31 do livro … do Cartório Notarial de João, sito na Avenida …, o réu marido declarou comprar a A. F. e à herança aberta por óbito do seu filho M. J., e estas vender-lhe, por intermédio da procuradora supra identificada, o imóvel referido.
16. Foi aí declarado o preço de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros), preço esse que já tinha sido pago pela autora e seu ex-marido à vendedora.
17. A autora tomou, desde então, a posse do referenciado lote de terreno.
18. Paralelamente foi sempre a autora quem pagou os impostos concernentes ao mesmo, bem como todas as demais despesas.
19. Os réus nunca negaram a circunstância de o imóvel se destinar a integrar o acervo patrimonial da autora, antes o aceitavam expressamente.
20. Tanto assim que outorgaram uma procuração a favor do filho da autora – A. C. – que lhe conferia poderes necessários e suficientes para vender o identificado lote de terreno.
21. Todavia, a partir do início do ano de 2013, os réus passaram a intitular-se donos da fracção, sem qualquer obrigação concomitante, nomeadamente que assumiram por ocasião da aquisição e que atrás se referiu.
22. Ou seja, passaram expressamente a recusar-se a transmitir a sua titularidade para a autora.
23. Em conformidade com tal atitude e contrariando a obrigação que tinham assumido, os réus revogaram a procuração que tinham outorgado a favor do filho da autora.
24. E isto não obstante bem saberem que ficaram de transmitir essa propriedade para quem a autora lhe dissesse, que não para quem bem entendessem.
25. O valor real do prédio melhor descrito em 10) é, pelo menos, de €642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros), valor esse que o prédio já tinha ao momento da outorga da escritura pública referida em 15).

B. Nenhuma factualidade foi considerada não provada.
*
O Direito.

- Da invocada nulidade da sentença recorrida por condenação em objeto diverso do pedido

Nos termos do art. 615º, nº 1, e), 2.ª parte, do C.P.C. é nula a sentença quando o juiz condene em objeto diverso do pedido.

Este preceito legal, em sintonia com o estipulado pelo artigo 609º, nº 1, do CPC – a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir e pelo art. 3º, nº 1, do CPC, que consagra o princípio do pedido o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes define os limites da condenação a proferir, de modo que, com observância do princípio do dispositivo, a decisão se contenha, quer em substância, quer em quantidade, no âmbito do pedido formulado.

Assim, o tribunal está adstrito à pretensão definida pelo autor, isto é, usando a terminologia do artigo 581º, nº 3, do CPC, ao efeito jurídico que aquele pretende obter com a ação, não podendo decretar um outro efeito, um aliud, ainda que esse outro efeito esteja legalmente previsto.

Entende o Réu que a Autora formulou dois pedidos na presente ação e ambos os pedidos foram julgados improcedentes, concluindo, pois, que o Tribunal condenou os Réus em pedido diverso dos deduzidos, não se enquadrando essa condenação no seguimento de qualquer um dos dois constantes da petição inicial.

Vejamos se lhe assiste razão.

Desde logo se frisará que, contrariamente ao referido pelo Réu, a sentença da primeira instância em nenhum momento julga o pedido subsidiário improcedente, dizendo, ao invés, de forma expressa, que o julga parcialmente procedente, integrando, pois, a condenação efetuada no dito pedido subsidiário.

A questão será, pois, a de saber se, não obstante o que está dito na sentença, a condenação em causa – Condenar os réus Rui e G. M. a pagar à autora Maria a quantia de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros) – corresponde a pretensão diversa da expressa no pedido subsidiário.

O teor literal do dito pedido é o seguinte: “Serem os réus condenados a pagar-lhe o valor do prédio que quantifica pela quantia mínima de € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros), sem prejuízo de se vir a apurar que o real valor do mesmo é superior”.

Não é, porém, a visão isolada do pedido, nem do dispositivo da sentença, que nos permite alcançar o verdadeiro sentido de um e de outro.

A interpretação do pedido não prescinde da leitura da totalidade do articulado em que o mesmo se insere, sendo aqui de recordar que, no caso em apreço, no artigo 35º da petição inicial se pode ler: A medida da responsabilidade dos Réus pelo incumprimento definitivo da obrigação fiduciária é precisamente a do prejuízo sofrido pela Autora em virtude desse incumprimento – a do valor da fracção, que não é inferior ao valor patrimonial tributário, ou seja, € 642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros), mas que será bem superior – pelo qual em consequência eles devem ser condenados a indemnizar aquela.

Daqui resulta claro que o pedido subsidiário formulado nos autos corresponde a uma pretensão indemnizatória pelo não cumprimento do acordo alegadamente celebrado entre Autora e Réu, correspondendo o valor peticionado – equivalente ao alegado valor patrimonial do prédio que, segundo também o alegadamente acordado, deveria ter sido transferido, pelos Réus, para a esfera jurídica da Autora – ao montante máximo de, na perspetiva de quem demanda, prejuízo configurável em razão de tal não cumprimento. Em suma, o que a Autora pretende é a reparação integral dos prejuízos causados por determinada conduta.

Consequentemente, o pedido subsidiário não traduz um pedido de indemnização pensadamente circunscrito aos lucros cessantes, mas antes um pedido de indemnização que visa a maior reparação possível da lesão patrimonial decorrente do não cumprimento do contrato.

Por seu turno, o dispositivo agora em apreço, na parte em que condena ao pagamento do referido valor de 140.000 € (equivalente ao montante do preço da venda) a mais não corresponde do que à condenação no pagamento de uma indemnização de valor inferior para reparação do, na perspetiva do julgador da primeira instância, juridicamente relevante prejuízo ocasionado pelo dito não cumprimento, não se afigurando, pois, que a sentença tenha condenado em pedido diverso.

É que, como se recorda no acórdão do STJ de 27.04.2017, a arguida nulidade, a que se reportam os artigos 615º, nº 1, e) e 609º, nº 1, do CPC, “não ocorre quando o tribunal, eventualmente, se baseia para a condenação no pedido (ou em parte dele), em fundamentos jurídicos distintos dos invocados pelo autor”.

No sentido da flexibilização ou mitigação "do princípio do pedido "em prol da efectividade do processo", veja-se ainda, na jurisprudência, o Acórdão do STJ de 11.02.2015, e, na doutrina, Lopes do Rego, “O princípio do dispositivo e os poderes de convolação do juiz no momento da sentença”, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, pág. 788 e Miguel Mesquita, “A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno CPC”, na RLJ, ano 143º, pág.´s 134 e ss.

Inexiste, pois, a apontada nulidade.

Mas ainda que assim não fosse (o que não se concede), isto é, ainda que este Tribunal confirmasse a arguição da referida nulidade, não se poderia limitar a reenviar o processo para o tribunal a quo, devendo, pelo contrário, mesmo nessa hipótese, prosseguir com a apreciação das demais questões suscitadas, conhecendo do mérito das apelações interpostas, nos termos do art. 665º, nº 1, do CPC.
Com efeito, a anulação só justifica o reenvio se não estiverem imediatamente disponíveis os elementos necessários para a referida apreciação, ou seja, quando a matéria de facto se revele insuficiente para apreciar, com segurança, as diversas questões suscitadas nos autos, não sendo esse o caso (nem a Recorrente defendendo que o seja).

- Da alegada violação de direito probatório material

Defende o Réu/Recorrente que há factos dados como provados que o não podiam ter sido por estarem em contradição com documentos autênticos juntos que não foram impugnados, nem o seu teor atacado de falso e que fazem prova plena do seu conteúdo.

Em causa estaria, pois, um erro resultante da violação de direito probatório material, mais precisamente de disposições legais expressas que fixam a força probatória de determinado meio de prova, isto é, um verdadeiro erro de aplicação de direito (cfr. acórdão do STJ de 03.12.2015).
E assim sucederia, desde logo, com os factos constantes em 12 e 16 dos “factos provados” que, segundo aquele, estão em contradição com o teor da escritura referida a 15 e como tal devem ser eliminados.

Vejamos.

Recordemos, em primeiro lugar, o teor dos factos em questão, que é o seguinte:

12. A compra seria feita em nome do réu marido, ainda que com dinheiro da aqui autora e seu ex-marido, sendo que seria a autora que pagaria todas as despesas concernentes ao referido negócio e as demais posteriores.
16. Foi aí (na escritura) declarado o preço de €140.000,00 (cento e quarenta mil euros), preço, esse, que já tinha sido pago pela autora e seu ex-marido à vendedora.
Segundo o Recorrente estaria assente por documento autêntico que o preço foi pago pelo Réu.

Todavia, lida a escritura em causa, na mesma nada consta contrário aos factos considerados provados sob os nºs 12 e 16, dela não constando, tão pouco, ter a procuradora da vendedora declarado ter recebido do ora Réu o preço ali referido (de 140.000 €), como diz este nas suas alegações, mas apenas já ter recebido tal preço.

Não pode, aliás, esquecer-se que a força probatória material das escrituras públicas, nos termos do art.º 371º, n.º 1 do Cód. Civil, não respeita a tudo quanto nelas se diz ou se contém, mas somente aos factos que a mesmas referem terem sido praticados pelo notário ou por ele terem sido atestados com base nas suas perceções, isto é, aos factos de que o notário se pode inteirar com os seus próprios sentidos, o que não abrange o conteúdo do declarado perante ele, mas não por ele diretamente percecionado, nomeadamente quanto ao vendedor ter já recebido o dinheiro e de quem.

Passemos, agora, a tratar da invocada contrariedade entre o valor do prédio considerado provado e o documento que o Recorrente pretendia juntar aos autos e que este Tribunal veio a ordenar que fosse junto pelas razões explicitadas na decisão que antecedeu este acórdão.

Como na referida decisão já se assinalou:

Na sentença objeto de recurso consta dos factos provados, sob o nº 25:

“O valor real do prédio melhor descrito em 10) é, pelo menos, de €642.180,00 (seiscentos e quarenta e dois mil cento e oitenta euros), valor esse que o prédio já tinha ao momento da outorga da escritura pública referida em 15)”.

Na respetiva petição inicial, a propósito do valor do prédio objeto da aludida escritura, o que a Autora alegou, no art. 35º, foi o seguinte:

“A medida da responsabilidade dos Réus (…) é a do prejuízo sofrido pela Autora em virtude desse incumprimento – a do valor da fracção, que não é inferior ao valor patrimonial tributário, ou seja, 642.180 €, mas que será bem superior (…)”.

Confrontando o alegado com o provado, desde logo resulta haver dissemelhança entre uma coisa e outra, percebendo-se que a conclusão da Autora no sentido de que o valor do prédio é superior a 642.180 € assenta numa premissa de facto não explicitada na sentença, qual seja, a de que o valor matricial do prédio ascende a 642.180 €.

Impõe-se, pois, para além do mais, autonomizar e explicitar o dito valor matricial na matéria de facto provada.

Para prova do alegado valor matricial, juntou a Autora uma certidão matricial (cfr. doc. nº 7 – fls. 34), nada impedindo, pois, este Tribunal de recurso de considerar provado tal facto com base na aludida certidão.

Sucede, porém, que, da mera leitura da dita certidão, resulta a existência, nesse mesmo documento, de um lapso quanto à base de cálculo do valor ali referido.

Com efeito, no item “ÁREAS” consta o seguinte:

“Área total do terreno: 1.003,0000 m2
Área de implantação do edifício: 1.003,0000 m2
Área bruta de construção: 8.024,0000 m2
Área bruta dependente: 2.006,0000 m2”

Do confronto entre as duas primeiras áreas referidas e as duas segundas é manifesta a existência de um erro, já que a soma da área de construção e da área dependente corresponde a um valor dez vezes superior à área total do terreno/área de implantação do edifício.

Por outro lado, não obstante o juiz a quo só referir na “motivação” da decisão relativa à matéria de facto a confissão ficta resultante da ausência de contestação, certo é que o valor matricial deve ser comprovado pela competente certidão matricial, nada impedindo – pelo contrário, antes o impondo a lei –, que o Tribunal da Relação, em sede de recurso e até oficiosamente, exclua um determinado facto, por força das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, da decisão de facto, ou o venha a considerar provado, não com o fundamento invocado na decisão recorrida mas com base em documento junto aos autos, como resulta do disposto no art. 662º, nº 1, do CPC.

Para corroborar o que ali já se tinha deixado escrito, cita-se, agora Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 144/145: “Determinados vícios que afectam a decisão da matéria de facto acabam por reflectir muitas vezes verdadeiros erros de direito que devem ser sanados pela Relação (…), mesmo oficiosamente, sem necessidade de uma expressa declaração da parte interessada”, nomeadamente, quando for considerado provado determinado facto com recurso exclusivo a um meio de prova que a lei considera insuficiente (v.g. factos que exigem prova documental – art. 364º, nº 1, do CC)”.

Todavia, como se deixou exarado na aludida decisão da ora Relatora, num caso como o ora em apreço, não pode a Relação basear-se num documento (a certidão matricial junta pela Autora) da mera leitura do qual decorre ali se conter um erro com relevância para o facto – valor do prédio – que o mesmo se destina a provar sem esclarecer a “dúvida fundada”, pela referida leitura suscitada, efetuando a indagação que a primeira instância já deveria ter efetuado em momento prévio à sentença proferida, certo que o valor matricial só com base nesse documento se poderia considerar provado.

Ora, efetuando a averiguação que se impunha, constata-se que da certidão matricial mais recente resulta a correção do manifesto lapso constante da matriz, refletido na anterior certidão, sendo o valor matricial, do prédio em causa, de tal correção decorrente, o de 14.450,00 €, o que impede se considere provado que o valor patrimonial tributário seja de 642.180 €, como alegado pela Autora e decidido pela primeira instância, e impõe se considere assente que o valor patrimonial tributário do dito prédio é de 14.450,00 € (o constante da certidão matricial cuja junção aos autos foi ordenada em fase de recurso).

Por outro lado, embora tal documento – destinado à prova do valor tributário do prédio – não faça prova, para efeitos civis, do valor desse mesmo prédio, certo é que o valor, para efeitos civis, do dito prédio foi alegado pela Autora tendo por referência o valor tributário, pelo que os efeitos da confissão ficta resultante da ausência de contestação por parte dos Réus se terão de produzir tendo também por referência o dito valor tributário que agora, mediante a indagação feita por esta Relação, se revela ser distinto do alegado pela Autora. Quer isto dizer que ao equivalente a tal valor tributário se terão que circunscrever as consequências da referida confissão ficta, só se podendo, pois, considerar provado, com tal fundamento, que o valor (para efeitos civis) do referido prédio é equivalente a, pelo menos, o seu valor patrimonial tributário.

Assim sendo, em substituição do ponto 25 dos Factos provados devem ficar a constar dois novos pontos (25-A e 25-B) – o primeiro resultante da certidão matricial corrigida junta aos autos e o segundo da confissão ficta – com o seguinte teor:

25-A) O valor patrimonial tributário do prédio melhor descrito em 10) ascende a 14.450,00 €.
25-B) O valor do referido prédio é, pelo menos, igual ao valor patrimonial tributário referido em 25-A), valor, esse, que o prédio já tinha ao momento da outorga da escritura pública referida em 15).

Quanto ao mais que a respeito da matéria de facto consta nas conclusões da alegação do Réu/Recorrente, não estando em causa, como não está, uma questão de apreciação crítica da prova produzida – uma vez que os factos foram considerados provados com fundamento na confissão ficta –, nada mais há a acrescentar, certo que, exceção feita à matéria já tratada nenhuma outra violação de direito probatório material é suscitada.

- Da subsunção jurídica dos factos

Pretende a Autora/Recorrente que os Réus sejam condenados a pagar à Autora a quantia de € 642.180,00, correspondente, segundo a mesma, ao valor do prédio, pretendendo, por seu turno, o Réu/Recorrente a absolvição total dos pedidos.

Para efeito da pretendida absolvição e face à própria factualidade a esse respeito considerada provada pela primeira instância, questiona o último a qualificação jurídica do contrato como mandato sem representação defendendo estarmos antes perante um contrato promessa (nulo por falta de forma).
Fá-lo, porém, sem qualquer razão, sendo de todo indefensável estarmos perante uma promessa de compra e venda do imóvel em questão.

Na verdade, estamos inteiramente de acordo com o Juiz a quo quando escreve que coligindo os factos provados, somos de concluir que entre autora e réus, de forma consensual e no âmbito da liberdade contratual (…), com liberdade de forma (…), foi validamente outorgado um contrato de mandato sem representação, nos termos do qual assumiu a qualidade de mandante a autora, tendo os réus assumido, por sua vez, a qualidade de mandatários.

Na verdade, no âmbito de tal contrato, os réus (enquanto mandatários) obrigaram-se perante a autora, a praticar por conta dela, acto jurídico consistente na aquisição, por compra e venda, do direito de propriedade sobre o prédio urbano situado na freguesia de ..., do concelho de Bragança, descrito na Conservatória do Registo de Predial sob o n.º... e inscrito na matriz predial respectiva sob o art. ....º.

Para evidenciar a diferença entre um contrato e outro, apenas se acrescentará o seguinte:

O mandato assume-se como um contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais atos jurídicos por conta de outra, podendo esses atos consubstanciar um negócio jurídico ou um simples ato jurídico (artigo 1157º do Cód. Civil).

Constitui-se, portanto, um vínculo de mandato sempre que uma pessoa promete a outra a sua colaboração jurídica, pondo à disposição dela a sua capacidade de agir no mundo do Direito, contratando com terceiros ou praticando outros atos jurídicos em face deles.

O mandatário, pessoa que aceitou - que se obrigou - a praticar um ou mais atos jurídicos por conta da outra (1157º), pode não ser representante do mandante (1180º) e agir por conta de outrem, mas em nome próprio, sendo a atividade do mandatário sempre substitutiva da do mandante.

Agindo em nome próprio, e não em nome do mandante, os atos por ele praticados em vez de produzirem os seus efeitos na esfera jurídica do mandante (art. 258.º), produzem-nos na esfera do mandatário, pelo que é ele, mandatário, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos atos que celebra.

Todavia, embora o mandato seja exercido em nome próprio, o negócio pertence sempre ao mandante, pelo que os resultados úteis conseguidos pelo mandatário devem ser para aquele transferidos (art. 1181º).

Em suma, “no mandato sem representação, o ato produz os seus efeitos na esfera jurídica do mandatário, que é parte no negócio que celebrou com o terceiro, executando em nome próprio a gestão de que está incumbido, tornando-se, formalmente, o sujeito dos direitos e obrigações promanados da atividade exercida, muito embora, em consequência e execução do mandato, deva transferir para o mandante os direitos adquiridos, no interesse de quem essa atividade foi realizada” (Acórdão do STJ de 02.12.2013), pelo que, citando o Professor Galvão Teles, Parecer publicado na C.J. Ano VIII (1983), tomo 3, pág. 10, "O mandatário "nomine próprio", a quem, por ex., foi vendido um prédio e assim o adquiriu, tornando-se dono dele, tem subsequentemente, e por seu turno, de o alienar ao mandante, através de um novo negócio jurídico” (Acórdão do STJ de 11.05.2000).

Todavia, como de imediato clarifica o referido Professor, “este novo negócio jurídico não é obviamente uma venda; mas é, em todo o caso, um acto de alienação - uma modalidade alienatória específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante".

Diferentemente, no contrato promessa as partes obrigam-se mutuamente, sem nenhum outro quadro obrigacional que o justifique, a realizar prestações de facto, consistentes na emissão das declarações negociais integrantes do prometido contrato.

E é exatamente uma obrigação decorrente de um mandato sem representação (e não a de emitir a declaração de venda integrante de um contrato definitivo de compra e venda) a obrigação assumida pelos Réus no caso em apreço quando acordaram com a Autora que transmitiriam a propriedade do imóvel - cuja compra seria previamente feita em nome do réu marido - para a autora aquando tal lhes fosse solicitado por esta, integrando-se tal obrigação no cumprimento de um acordo mais vasto – que está na sua origem e lhe dá razão de ser – consubstanciado na obrigação assumida perante a autora, de praticar por conta dela, acto jurídico consistente na aquisição, por compra e venda, do direito de propriedade sobre o prédio.

Em conclusão, a qualificação jurídica do acordo celebrado entre Autora e Réus efetuada pela decisão recorrida revela-se correta, nada havendo, pois, a apontar à validade formal do mesmo.

Passando, agora, à questão de saber se a indemnização pela violação contratual ocorrida – aqui se recordando que o não cumprimento do acordo não está posto em causa – se deve cingir ao prejuízo pelo interesse contratual negativo ou da confiança ou, pelo contrário, deverá corresponder ao valor do prejuízo pelo interesse contratual positivo ou do cumprimento.

Entendeu o julgador da primeira instância que os Réus seriam responsáveis pelo prejuízo causado à autora/mandante, nos termos do citado art. 798.º do Código Civil (…), que se traduz, in casu, no valor que a autora não teria gasto caso não tivesse outorgado o contrato de mandato sem representação com os réus, por estes incumprido, ou seja, caso estes não tivessem quebrado a confiança que a primeira neles depositou e lhe tivessem transmitido a propriedade do imóvel (interesse contratual negativo), explanando de seguida que quer isto significar que o valor do prejuízo causado à autora/mandante pelos réus/mandatários, em consequência directa e necessária do incumprimento da obrigação decorrente do contrato de mandato sem representação, corresponde ao valor por ela despendido na aquisição do imóvel, ou seja, €140.000,00 (cento e quarenta mil euros), e não ao valor real do mesmo (agora e ao momento da outorga da escritura pública de compra e venda referida em 15) dos factos provados), como a autora pretende fazer valer, argumentando, na defesa da posição tomada, que não pode a autora, agora, à custa do incumprimento culposo dos réus da obrigação de transmitirem para si a propriedade do imóvel, receber, a título indemnizatório, a quantia correspondente ao valor real do imóvel, pois que tal acarretaria uma situação geradora de desequilíbrio e de benefício elevado e completamente injustificado, não havendo, assim, lugar à indemnização pelo interesse contratual positivo.

Vejamos se assim é.

O dano patrimonial compreende o dano emergente (dannum emergens) ou perda e o lucro cessante (lucrum cessans) ou frustração de ganho: o primeiro inclui o prejuízo causado nos bens, ou direitos existentes aquando da lesão, podendo consistir na diminuição do ativo ou num aumento de passivo, enquanto o segundo engloba a perda de benefícios que a lesão impediu de auferir e que ainda não tinham existência à data do evento (art. 564º, nº 1, do CC).

A indemnização do chamado interesse contratual negativo ou da confiança corresponde apenas aos prejuízos (quer de uma espécie, quer da outra) que o credor não sofreria se o contrato não tivesse sido celebrado (aquilo que alguns autores designam de "pequena indemnização") e, por seu turno, a indemnização pelo chamado interesse contratual positivo (também designada de "grande indemnização") corresponderá à indemnização pelos lucros que o credor deixou de auferir devido à cessação contratual.

Por outras palavras:

“Na protecção positiva são ressarcidas todas as frustrações de expectativa do credor quanto ao cumprimento, o qual deve ser indemnizado em tudo o que se situa entre a situação criada e a situação hipotética correspondente à “captura de bem-estar”.

A protecção negativa permite apenas que o credor recupere os custos por ter adoptado uma conduta que só faria sentido se o devedor cumprisse, visando nuclearmente reconstituir o “status quo” anterior ao contrato”. (Acórdão do STJ de 27.03.2007)

A ideia contida na fundamentação jurídica da sentença recorrida corresponde, em abstrato, ao defendido por alguma doutrina e jurisprudência no sentido de, quando há lugar à resolução contratual – com a inerente destruição retroativa dos efeitos do contrato –, “apesar de inexistirem fundamentos para, em tese, afastar a possibilidade de se cumular a resolução do contrato com o pedido indemnizatório pelo interesse contratual positivo, admitindo, consequentemente, a referida cumulação”, não se deverá descurar que, “caso a caso, consoante o tipo de contrato e o circunstancialismo que o rodeia, tal poderá resultar num desequilíbrio ou benefício injustificado” – dada precisamente a referida destruição retroativa dos efeitos do contrato decorrente da resolução –, hipótese em que se deverá proceder à negação da dita “grande indemnização” (cfr. Ac. de STJ de 14.10.2010).

Nada tendo a obstar a esta orientação, que é equilibrada, cremos, porém, que a mesma em nada releva para a resolução do caso em apreço, afigurando-se-nos que a sua aplicação pela sentença recorrida assenta num equívoco, já que, de outro modo não é compreensível a distinção avançada a respeito das duas indemnizações acima referidas e os limites ali apontados quanto à possibilidade de opção pela “proteção positiva”.

Na verdade, embora nada refira expressamente a respeito de estarmos perante uma indemnização associada a uma resolução contratual, a decisão da primeira instância parece partir desse pressuposto, quando, na realidade, no caso em apreço, não houve qualquer resolução contratual e nada está sequer peticionado, ainda que implicitamente, nesse sentido (não estando peticionada, em adição ao pedido de indemnização formulado e como consequência de uma eventualmente querida resolução, a restituição do preço pago), não havendo, portanto, razão para sequer se colocar a hipótese de, mediante a indemnização do dito interesse contratual positivo, se gerar uma situação de desequilíbrio ou de benefício injustificado, cumprindo, pois, sem mais, determinar a indemnização devida à luz do disposto no art. 562º do CC, segundo o qual quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.

E a situação que, no caso, existiria, se não se tivesse verificado a violação, por omissão, do dever dos Réus de transferirem para a esfera da Autora o imóvel em causa, isto é, a situação que existiria se os mesmos tivessem transferido para a Autora o bem por conta dela adquirido, é fácil de configurar: a Autora teria hoje, na sua esfera patrimonial, o dito imóvel, benefício ou incremento económico que a mesma deixou de obter em consequência da lesão (o que corresponde a um lucro cessante já ocorrido).

Este é, portanto, o dano a reparar.

Não sendo possível a reparação in natura desse mesmo dano, a reparação é feita por equivalente pecuniário, pelo que assiste razão à Autora quando pretende ser indemnizada com uma quantia equivalente ao valor real do prédio que teria na sua esfera patrimonial se os Réus tivessem cumprido a obrigação perante ela assumida.
Sucede, porém, que, no caso, não se apurou o valor exato do prédio e, consequentemente, o valor exato do dano a indemnizar.

Qual a solução?

Para nós, “desde que se prove a existência (qualitativa) de danos, sem que os autos permitam a sua imediata quantificação, com ou sem recurso à equidade (quando esta seja admissível), a ação declarativa deve terminar com uma sentença de condenação ilíquida”.

Concordamos, pois, com o propugnado no Acórdão do STJ de 05.02.20015 (Relator Abrantes Geraldes), que refere em seu apoio os Acórdãos do STJ, de 11-10-94, BMJ 440º/448, de 27-1-93, CJSTJ, tomo I, pág. 89, 29-1-98, BMJ 473º/445, de 28-10-10 e de 8-11-12 (estes em www.dgsi.pt) e Lebre de Freitas, CPC anot., vol. II, pág. 648, com menção de diversa doutrina e jurisprudência no mesmo sentido.

Sendo esta a resposta que frequentemente tem sido dada no campo da responsabilidade extracontratual, no aludido acórdão salienta-se que esta é também a resposta a dar à questão no campo da responsabilidade contratual, “quando, por exemplo, estando apurada a existência de um crédito, não sejam recolhidos todos os elementos necessários à sua exacta quantificação (art. 609º, nº 2, do CPC)”, mais facilmente ainda se mostrando, pois, defensável a extensão de tal resposta a casos de reparação de danos no campo dessa mesma responsabilidade contratual.

Para completar a resposta a dar à aludida questão, importa ainda considerar que, nos termos do art. 565º do Cód. Civil, devendo a indemnização ser fixada em liquidação posterior, pode o tribunal condenar desde logo o devedor no pagamento de uma indemnização, dentro do quantitativo que considere já provado.

Assim, no caso, tendo-se apurado que o valor do referido prédio é, pelo menos, igual ao seu valor patrimonial tributário (14.450,00 €), a indemnização deverá integrar já uma parte líquida equivalente a esse mesmo montante, ficando o valor que eventualmente o exceder para liquidação posterior.

*
Sumário:

I – A nulidade da sentença por condenação em objeto diverso do pedido não ocorre quando o tribunal sustenta a condenação, limitada a parte do valor peticionado, em fundamentos jurídicos parcialmente distintos dos invocados pelo autor;
II – Nada impede que o Tribunal da Relação, em sede de recurso e até oficiosamente, exclua da decisão de facto, por força das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, um determinado facto, nada impedindo também que o venha a considerar provado, não com o fundamento invocado na decisão recorrida mas com base em documento junto aos autos, como resulta do disposto no art. 662º, nº 1, do CPC;
III – Quando da mera leitura de documento essencial junto aos autos decorre ali se conter um erro com relevância para o facto que o mesmo se destina a provar, deve a Relação esclarecer a “dúvida fundada”, pela referida leitura suscitada, efetuando a indagação que a primeira instância já deveria ter efetuado em momento prévio à sentença proferida;
IV – Diferentemente do que ocorre no contrato promessa de compra e venda, no mandato sem representação, o negócio jurídico que o mandatário deve realizar é um ato de alienação cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário;
V – Não tendo ocorrido resolução contratual, nem estando a mesma peticionada, não tem sentido excluir-se a indemnização pelo interesse contratual positivo, devendo, sem mais, determinar-se a indemnização devida à luz do critério legal para calcular a indemnização, assente na “teoria da diferença”, previsto no art. 562º do CC;
V – Desde que se prove a existência (qualitativa) de danos, sem que os autos permitam a sua imediata quantificação, a ação declarativa deve terminar com uma sentença de condenação ilíquida, sem prejuízo de o tribunal condenar desde logo o devedor no pagamento de uma indemnização, dentro do quantitativo que considere já provado.

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedentes as apelações da Autora e do Réu, e, consequentemente, em alterar a sentença recorrida no sentido de julgar procedente, nos termos preditos, o pedido subsidiário, condenando os Réus a pagar à Autora a indemnização a fixar ulteriormente, no valor, a apurar, do prédio descrito em 10) dos “Factos provados”, mas não superior a € 642.180,00, condenando, desde já, os primeiros a pagar à última, a título dessa mesma indemnização e a deduzir no referido valor a apurar, a quantia de 14.450,00 €.
Custas da ação e dos recursos da Autora e do Réu, por ambos, provisoriamente, na proporção de metade, sem prejuízo do que se vier a fixar na ulterior liquidação.
Guimarães, 08.11.2018

Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade
Alcides Rodrigues