Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3381/11.7TBGMR.G1
Relator: ESPINHEIRA BALTAR
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA - TIR
CONTRATO DE TRANSPORTE
DOLO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. O dolo previsto no artigo 29 n.º 1 da Convenção de Genebra de 1965, a que o Estado Português aderiu, integra um elemento restrito da culpa de maior censurabilidade que visa punir o transportador, retirando o critério limitador do cálculo da indemnização previsto no artigo 23 n.º 3.
2. Incumbe ao credor da indemnização o ónus da prova do dolo na medida em que é um elemento constitutivo do seu direito a uma indemnização integral dos prejuízos sofridos.
Decisão Texto Integral: Acordam em Conferência na Secção Cível da Relação de Guimarães

J…, intentou esta acção declarativa contra a ré A…, Lda., pedindo que a mesma seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 5.763,94, acrescida de juros contados desde 16/10/2011 até integral pagamento.
O autor invocou ter contratado com a ré o transporte de mercadorias que adquirira em Itália, tendo-se verificado, após entrega no seu armazém em Portugal, que faltava uma parte das ditas mercadorias, perfazendo o valor global de € 5.437,24.
A ré defendeu-se alegando que o seu objecto é o de uma empresa transitária, dedicando-se à organização e expedição de mercadorias, tendo sido para esse efeito que foi contactada pelo autor. Aduziu ainda que para realização do transporte desde Itália até Portugal contratou a empresa T…, Lda., tendo sido naquele trajecto que as mercadorias se terão extraviado. Defende, por último, que, a existir responsabilidade da sua parte, a mesma está limitada a € 950,00 em virtude do disposto no artigo 23º, nº 3 da CMR.
Na contestação suscitou ainda a ré a intervenção acessória da sociedade no artigo 23º, nº 3 da CMR.
Admitida a intervenção e citada para os termos da demanda, a chamada não ofereceu contestação.

Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar ao autor nos seguintes termos: “Condeno a ré A…, Lda. a pagar ao autor a quantia de € 1.167,43 (mil cento e sessenta e sete euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros à taxa de 5% ao ano, contados desde 16.10.2011 até integral pagamento;

Inconformado com o decidido o autor interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. A douta decisão recorrida não fez correta interpretação e aplicação dos preceitos legais atinentes ao caso sub judice, subvertendo totalmente o princípio do ónus da prova e constituindo inqualificável e injustificável prémio à irresponsabilidade do transportador.
2. O Recorrente e a Recorrida celebraram um contrato de transporte internacional, para que esta diligenciasse pela expedição e transporte dos artigos têxteis (discriminados nas faturas juntas aos autos) de Itália para Portugal; para realização do transporte internacional de mercadorias em grupagem, a Recorrida contratou a empresa T…, Lda. através do CMR ET 01201 09 G004-01.
3. Em 10 de Outubro de 2010, a mercadoria foi expedida e transportada por aquela empresa no seu veículo, sendo que, em 16 de Outubro de 2010 a Recorrida procedeu à entrega das mercadorias no armazém do Recorrente, sito em Creixomil, Guimarães, o qual recebeu as mercadorias com as reservas apostas nas guias de transporte, por falta de uma parte de tais mercadorias, sendo que das adquiridas à “F…” nenhuma foi entregue ao ora Recorrente.
4. Terá sido durante o percurso de Itália para Portugal que ocorreu o desaparecimento dos volumes em falta.
5. O contrato de transporte é um contrato de resultado, que apenas se mostra cumprido com a entrega da mercadoria ao destinatário, entendendo-se mesmo que é essa a obrigação essencial do transportador, sendo sobre o transportador que recai a obrigação de entregar a mercadoria no local acordado, tal como lhe foi entregue na origem (obrigação de resultado).
6. Tendo desaparecido parte da mercadoria, é evidente que o transportador não
a fez chegar ao destinatário, não tendo ocorrido, consequentemente, a entrega da mercadoria.
7. A falta de entrega da mercadoria configura incumprimento contratual e pode
dever-se a várias causas, nomeadamente, perda, destruição, extravio, retenção, arresto, penhora, ou qualquer outro ato da autoridade ou de terceiro. (Alfredo Proença e J. Espanha Proença, in Transporte de Mercadorias, pág. 119.)
8. Nas prestações de resultado, como acontece no contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil contratualmente previsto, basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para se estabelecer o incumprimento do devedor.
9. A propósito da responsabilidade do transportador, e que in casu importa considerar, dispõe o nº 1 do artigo 17º da CMR que “o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”; trata-se de uma presunção de culpa do transportador, que só fica desobrigado dessa responsabilidade, nos termos do nº 2 do mesmo artigo, “se a perda, avaria ou demora teve por causa uma falta do interessado, uma ordem deste que não resulte de falta do transportador, um vício próprio da mercadoria, ou circunstância que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar”.
10. De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 18º da CMR, “compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve por causa
um dos factos previstos no artigo 17º, parágrafo 2º”.
11. Ao interessado (expedidor ou destinatário) bastará a prova de que fez a entrega da mercadoria ao transportador e que este não a entregou no destino ou que a entregou com avarias; por sua vez, ao transportador incumbirá a prova de qualquer circunstância que o isente de responsabilidade pelo sucedido, ou seja, uma circunstância limitativa da sua responsabilidade.
12. Também constituem exceção à regra da responsabilidade da transportadora pela perda da mercadoria até à sua entrega ao destinatário as situações provenientes de caso fortuito, força maior, vício do objeto, culpa do expedidor ou do destinatário, como resulta do preceituado pelas disposições combinadas dos artigos 383º e 376º do Código Comercial.”; uma coisa é certa: sendo um facto excludente da responsabilidade da Recorrida, competia a esta prová-lo.
13. Ao transportador impunha-se a guarda e conservação da mercadoria, protegendo-a da ação dos elementos da natureza ou de terceiros, tal como o faria um profissional experiente, conhecedor e responsável, com o padrão de diligência adotado por um bonus pater familias (in Acórdão do STJ de 14/06/2011 Processo 437/05.9TBANG.C1.S1.), não podendo a Recorrida ignorar a realidade que constitui a maciça existência de assaltos nas cargas transportadas em viaturas de transporte internacional.
14. Caso a Recorrida tivesse tomado as providências apropriadas para cumprir
o encargo que lhe fora cometido de efetuar a deslocação incólume da mercadoria para o destinatário, em condições de integral satisfação, não omitindo os esforços exigíveis de que também se não absteria um bom pai de família, tal evento não se teria verificado.
15. Por conseguinte, não tendo a Recorrida sequer alegado quaisquer factos
para provar a inevitabilidade do desaparecimento das mercadorias e, consequentemente, que este constituía caso fortuito, é responsável pela perda das mesmas, cujo transporte foi confiado à sua guarda, com o inevitável incumprimento contratual, presumindo-se a sua culpa que não logrou ilidir.
16. Deste modo não se mostra excluída a responsabilidade da Recorrida pelo
desaparecimento das mercadorias, estando obrigada a, nos termos dos artigos 382º e 383º do Código Comercial, 17º nº 1 e 18º nº 2 da CMR e 798º, 799º nº 1 e 483º do Código Civil, indemnizar todos os prejuízos que causou ao Recorrente.
17. O Recorrente provou o que lhe cabia, ou seja, que a mercadoria não lhe foi
entregue, constituindo-se, assim, a transportadora na obrigação de provar que esse facto não se deveu a culpa sua, afastando a sua responsabilidade e a sua obrigação de indemnizar nos termos gerais (artigos 344º e 799º Código Civil); existindo incumprimento do contrato de transporte por qualquer causa, são aplicáveis, em primeira linha, as regras gerais dos artigos 799º e seguintes do Código Civil, ou seja, há uma presunção de culpa do devedor pelo não cumprimento da prestação respetiva (artigo 344º Código Civil), presunção esta que a Recorrida não logrou ilidir, pelo que nenhum sentido faz aplicar aqui a limitação de responsabilidade invocada pela Recorrida.
18. A responsabilidade da Recorrida emerge não apenas do incumprimento da
obrigação de entrega das mercadorias, como, também, do incumprimento da obrigação de contratar o seguro de transporte, sendo que, também a este título, nunca se colocaria qualquer limitação à indemnização, pois, caso assim não fosse, estaríamos perante um estímulo ao não cumprimento do contrato pelo transportador e à entrega da mercadoria só quando a este conviesse, pagando a seda ao quilo!
19. Conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/06/2011, merecendo o acolhimento do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/06/2012 “uma falta que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo, a que se reporta o artigo 29º da Convenção CMR, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional [...], a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/06/2011 in processo nº 437/05.9TBAGN.C1), só esta interpretação faz jus à lei, ou melhor, faz dela lei justa.
20. Caso assim não se entenda – o que só por hipótese de raciocínio se concede – sempre se dirá que estamos perante uma situação de dolo eventual.
21. Perante os factos provados, não existe qualquer fundamento para a limitação da responsabilidade da Recorrida, pois houve um inequívoco incumprimento do contrato de transporte, bem como uma clara violação da obrigação de contratar o seguro de transporte.
22. O ora Recorrente tem, por isso, direito a reaver da ora Recorrida a totalidade da quantia correspondente ao valor das mercadorias extraviadas (€ 5 437,24 acrescido do valor que despendeu com o transporte das mercadorias (€ 326,70), pelo facto de a Recorrida ter incumprido a obrigação de entrega das mercadorias, incumprindo, por consequência, o contrato de transporte internacional de mercadoria e também por não ter contratado o seguro; deste modo, presume- se culposa a omissão da Recorrida ao não celebrar qualquer contrato de seguro (artigo 799º do Código Civil), inexistindo quaisquer factos que permitam ilidir tal presunção, tendo causado um dano ao Recorrente com tal omissão.
Termos em que, revogando-se a douta sentença recorrida, será feita JUSTIÇA!

Houve contra-alegações da ré que pugnou pelo decidido.

Das conclusões do recurso ressaltam as seguintes questões a saber:
1. Em que circuntâncias responde o responsável pelo incumprimento do contrato de transporte internacional de mercadorias por via terrestre.
2. Se é obrigatória a celebração de um contrato de seguro que assegure o transporte da mercadoria nesta modalidade de transporte.

Vamos fixar a matéria de facto consignada na decisão recorrida que passamos a transcrever:
Factos Provados.
Com relevo para a decisão a proferir, consideram-se provados os seguintes
factos:
1. O autor dedica-se ao comércio de vestuário e acessórios têxteis.
2. A ré dedica-se à organização e expedição de mercadorias.
3. No exercício da sua actividade comercial, adquiriu, em Itália, em 08/09/2010 e 09/09/2010, os artigos têxteis discriminados nas seguintes factura juntas a fls.
9 a 14, cujo teor aqui se dá por reproduzido, a saber:
- G…:
a) Factura nº 01208/b, emitida em 08/09/2010, no valor de € 2.298,92;
b) Factura nº 01220/b, emitida em 09/09/2010, no valor de € 830,81;
- F…:
c) Factura nº 1614, emitida em 09/09/2010, no valor de € 1.613,11;
- R…:
d) Factura nº 1482/BO, emitida em 09/09/2010, no valor de € 3.038,04;
- G…:
e) Factura nº 1985, emitida em 09/09/2010, no valor de € 1.633,85;
4. Na sequência da aquisição desses artigos têxteis, após o seu regresso a
Portugal, o autor contactou a ré para que esta diligenciasse pela expedição e
transporte das ditas mercadorias de Itália para Portugal.
5. Para realização do transporte internacional de mercadorias em grupagem, a
ré contratou a empresa T…, Lda., através do CMR ET 01201 09 G004-01, cuja cópia consta de fls. 167, aqui se dando o seu teor por inteiramente reproduzido.
6. Em 10/10/2010, a mercadoria foi expedida e transportada por aquela empresa no seu veículo.
7. À descarga da mercadoria (nas instalações da ré em Portugal), foram apostas pela ré reservas no CMR – ponto 19: “falta 4 vol J…”.
8. Em 16/09/2010 a ré procedeu à entrega das mercadorias no armazém do
autor, sito em Creixomil, Guimarães, o qual as recebeu com as reservas
apostas nas guias de transporte juntas a fls. 19 a 22 com a petição inicial, por
falta de uma parte de tais mercadorias, sendo que das adquiridas à “F…”
nenhuma foi entregue ao autor.
9. A falta dessas mercadorias extraviadas é a discriminada na relação de fls. 23
e 24, cujo valor importa no montante global de € 5.437,24.
10. A ré não teve intervenção no carregamento das mercadorias, bem como no
seu transporte.
11. Foi durante o percurso de Itália para Portugal que ocorreu o desaparecimento dos volumes em falta.
12. As mercadorias a que se alude em 9. vinham acondicionadas em 10 volumes, sendo que à entrega a ré constatou faltarem os seguintes: um volume da G…, com o peso 20 kgs.; dois volumes da F…, com o peso de 50 kgs; um volume da R…, com o peso de 15 Kgs; e um volume da G…, com o peso de 16,50 kgs.
13. Em 30/09/2010, a ré enviou à empresa T…, Lda. o fax cuja cópia consta de fls. 43.
14. A autora despendeu com o transporte das mercadorias referidas em 3. a
quantia de € 326,70.

Vamos conhecer das questões enunciadas
1 O tribunal recorrido fundamentou a sua decisão essencialmente no seguinte: “Assente que se está perante um contrato de transporte, cabe então determinar a responsabilidade que para a ré resulta do extravio de parte das mercadorias adquiridas pelo autor – extravio esse que foi aceite por ambas as partes.
Ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada aplica-se a
Convenção CMR, assinada em Genebra, em 15.05.1956, e introduzida no direito português pelo Decreto-Lei nº 46.235, de 18.03.1965 (e modificada pelo Protocolo de Genebra de 05.07.1978, aprovado, para adesão, pelo Decreto 28/88, de 6 de Setembro).
Nas prestações de resultado, como acontece no contrato de transporte
internacional de mercadorias por estrada, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil contratualmente previsto, basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para se estabelecer o incumprimento do devedor.
Este, o transportador, apenas se desonera da culpa pelo incumprimento, com
fundamento nas causas liberatórias previstas nos artigos 383º e 376º do Código
Comercial, que são as situações provenientes de caso fortuito, força maior, vício do objecto, culpa do expedidor ou do destinatário.
O caso de força maior, quer se trate de acontecimentos naturais, quer de acções humanas, embora possa ser prevenido, não pode ser evitado, sobrelevando a ideia de inevitabilidade. No caso fortuito, o facto não foi previsível, mas seria evitável se tivesse sido previsto, relevando portanto a ideia de imprevisibilidade.
A propósito da responsabilidade do transportador internacional de mercadorias
por estrada, dispõe ainda o artigo 17º, nº 1 da CMR que “o transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”.
Trata-se de uma presunção de culpa do transportador, que só fica desobrigado
desta responsabilidade, nos termos do nº 2 do mesmo artigo 17º da CMR, se a perda, avaria ou demora teve por causa: uma falta do interessado; uma ordem deste que não resulte de falta do transportador; um vício próprio da mercadoria; ou circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar.
Compete ao transportador fazer a prova de que a perda, avaria ou demora teve
por causa um dos factos previstos no citado artigo 17º, nº 2. Assim, o ónus da prova da existência de caso fortuito cabe ao transportador, a quem incumbe demonstrar o cumprimento não culposo do contrato de transporte. No plano do direito interno, essa presunção de culpa resulta também do preceituado no artigo 899º, nº 1 do Código Civil.
Por sua vez, no artigo 23º, nºs 1, 2, 3, 5 e 6 da CMR estabelece-se um regime
específico de indemnização por perdas e danos. Mas tal regime especial não tem aplicação se a perda da mercadoria for imputável a dolo ou a falta do transportador equivalente a dolo.
Com efeito, dispõe o artigo 29º, nº 1, da CMR que “O transportador não tem
direito de aproveitar-se das disposições do presente capítulo que excluem ou limitam a sua responsabilidade ou que transferem o encargo da prova se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei de jurisdição que julgar o caso, seja equivalente ao dolo”. Quando houver dolo do transportador ou falta equivalente, a indemnização deve reparar integralmente os danos verificados, de acordo com a teoria da diferença consagrada no artigo 566º, nº 2 do Código Civil.
E, conforme se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de
14.06.2011 (Proc. nº 437/05.9TBANG.C1. S1, acessível em www.dgsi.pt “uma falta que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, como acontece com a jurisdição nacional, não pode deixar de ser, manifestamente, face à legislação nacional, enquanto elemento do nexo de imputação do facto ao agente, a negligência ou mera culpa que, conjuntamente com o dolo, faz parte da culpa lato sensu”.
De referir é ainda, por último, que, como dispõe o artigo 3º da CMR, “Para
aplicação da presente Convenção, o transportador responde, como se fossem
cometidas por ele próprio, pelos actos e omissões dos seus agentes e de todas as outras pessoas a cujos serviços recorre para a execução do transporte, quando esse agente ou pessoas actuam no exercício das suas funções”, princípio este que depois é desenvolvido, no âmbito das regras que regem sobre a responsabilidade do transportador, p. ex. no artigo 29º, nº 2 da CMR.
Ora, revertendo ao caso dos autos, ficou provado – e não foi sequer controvertido – que no transporte das mercadorias desde Itália para Portugal, se extraviou uma parte delas que, por isso, não chegou a ser entregue ao autor. Sendo assim, não tendo a ré alegado ou demonstrado factos bastantes para elidirem a presunção de culpa que sobre si recai ou para afastarem a sua responsabilidade ao abrigo do nº 2 do artigo 17º da CMR ou dos artigos 383º e 376º do Código Comercial, é manifesto que a mesma deverá ser condenada a ressarcir o autor.
Entende este que o quantum da indemnização deverá corresponde ao valor das
mercadorias extraviadas (€ 5.437,24), acrescido do valor que despendeu com o
transporte das mercadorias (€ 326,70). Sustenta a ré, pelo contrário, que a sua
responsabilidade está limitada pela previsão do artigo 23º, nº 3 da CMR, que estabelece que a indemnização não poderá ultrapassar 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.
Cremos que, quanto a este último aspecto, a razão está do lado da ré.
Com efeito, não resulta dos factos provados – nem isso foi alegado pelo autor –
qual o circunstancialismo que rodeou, ou a que ficou a dever-se o extravio e perda das mercadorias. Donde não seja possível concluir que o dano verificado proveio de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável (a si ou às entidades que subcontratou) e que, segundo a lei portuguesa, seja equivalente ao dolo.
Ou seja, não se tendo provado qualquer factualidade que aponte no sentido de a perda das mercadorias ter resultado de comportamento doloso ou negligente da ré ou dos seus agentes ou auxiliares, está aquela autorizada a fazer-se valer das regras especiais atinentes à responsabilidade do transportador internacional de mercadorias por estrada (cfr. o artigo 29º a contrario da CMR).
E assim, não tendo ficado a constar na declaração de expedição o real valor das mercadorias em conformidade com o artigo 24º da CMR, a responsabilidade da ré fica efectivamente limitada às 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta (cfr. os nºs 1 a 3 e 6 do artigo 23º da CMR. A essa quantia, apurada ainda com referência ao nº 7 desse artigo 23º, que faz corresponder a unidade de conta ao direito de saque especial, tal como definido pelo Fundo Monetário Internacional, deverá acrescer ainda o reembolso do preço do transporte de acordo com a proporção das mercadorias extraviadas (cfr. o nº 4 o artigo 23º).
Ora, resultou provado que as mercadorias perdidas tinham um peso global de
101,5 quilogramas (cfr. ponto 12 dos factos provados). Destarte, cifrando-se o valor do direito de saque especial nesta data em € 1,147, de acordo com a informação constante da página oficial do Banco de Portugal, concluir-se que a indemnização a liquidar ao autor por força do nº 3 do artigo 23º da CMR ascende a € 967,78.
A este montante deverá acrescer, como se disse, o proporcional do preço do
transporte suportado pelo autor, proporcional esse que, tendo em conta a parcela das mercadorias extraviadas e os valores dos respectivos fretes (documentados a fls. 25 a 28 – docs. 11 a 14 junto pelo autor com a petição inicial), ascende ao montante de € 199,65.
Às referidas quantias acrescerão ainda juros à taxa de 5% ao ano, contados
desde 16.10.2011 (porque assim peticionados), como resulta do disposto no artigo 27º, nº 1 da CMR.

Da conjugação das conclusões do recurso com os fundamentos do decidido está em discussão o montante indemnizatório e a quem incumbe o ónus da prova dos factos que integram o dolo ou algo equiparado vertido no artigo 29 da Convenção de Genebra de 1956, a que Portugal aderiu, que afasta o limite da responsabilidade do incumpridor do contrato vazado no artigo 23 n.º 3 da referida convenção.
Provado o dolo ou o equivalente o responsável pelo transporte, cujo contrato seja cumprido defeituosamente, responde pela totalidade dos danos provocados. Deixa de beneficiar do critério fixador da indemnização previsto no artigo 23 n.º 3, para lhe serem aplicadas as regras previstas no artigo 17 n.º 1 e 18 n.º 1 da Convenção. Sobre este ponto a doutrina e jurisprudência estão de acordo.
A jurisprudência está dividida sobre a amplitude do conceito “dolo”, no âmbito da culpa, como elemento constitutivo da responsabilidade civil contratual, na interpretação do artigo 29 n.º 1 da Convenção. Uma corrente jurisprudencial do STJ vai no sentido de que o dolo referido neste normativo se integra na culpa em geral (que abrange o dolo e a negligência), pelo que uma vez definida a culpa do transportador, mesmo presumida, este responde sempre pela totalidade dos danos, ao abrigo do disposto no artigo 798. conjugado com os artigos 483 n.º 1 e 562, todos do C.Civil (Ac. STJ. de 14/06/2011, Ac. STJ. 5/06/2012; Ac. STJ. de 15/05/2013 em www.dgsi.pt ). Esta jurisprudência põe em destaque, essencialmente, a necessidade de pressionar o transportador a cumprir o contrato.
Outra corrente do STJ defende que o dolo é um dos elementos da culpa, mas mais exigente, cuja concretização implica um maior grau de censurabilidade, pelo que deve ter um tratamento diferente no contexto da Convenção. A sua referência no artigo 29 n.º 1 tem como objectivo punir o transportador que agir com dolo ou algo equivalente, na medida em que lhe retira o critério limitador do cálculo da indemnização previsto no artigo 23 n.º 3, que é a regra em caso de actuação negligente. E isto deve-se à natureza excepcional da norma, dentro do contexto da Convenção, que tenta equilibrar o risco do transporte internacional via terreste por veículos automóveis. Quem quiser maior protecção poderá lançar mão dos expedientes previstos nos artigos 24 e 26 da Convenção, pagando um suplemento. Só no caso de dolo deixa de haver necessidade de proteger o transportador, que deverá assumir o custo global do prejuízo sofrido com a perda das mercadorias, porque interveio de forma directa, necessária ou pelo menos aceitou o resultado previsto (Ac. STJ. 11.03.1999, Ac. de 6/07/2006 em www.dgsi.pt e Ac. STJ. 17/05/2001 CJ (STJ), Tomo II, pag. 91).
E aderimos a esta corrente jurisprudencial porque julgamos que é a que melhor se coaduna com a letra e espírito da Convenção.
Chegados aqui temos a norma do artigo 29 n.º1 da Convenção que determina em que termos é que suspende o critério limitador do cálculo da indemnização. É uma norma constitutiva do direito de crédito do lesado com o incumprimento do contrato de transporte. Em caso de dolo do transportador ou de quem agiu em seu nome, a indemnização será total, abrangendo todos os prejuízos sofridos. Assim, nos termos do artigo 342 n.º 1 do C.Civil incumbe ao credor alegar e provar o dolo, para que a indemnização seja total e não limitada nos termos do artigo 23 n.º 3. Como resulta dos factos provados o autor não fez a prova do dolo, nem das circunstâncias em que se verificou a perda da mercadoria, pelo que a decisão teria de calcular o montante da indemnização de acordo com o disposto no artigo 23 n.º 3 da Convenção, como o fez.

2. A questão da obrigatoriedade da celebração do contrato de seguro não foi solicitada até à decisão, nem por esta conhecida, pelo que é uma questão nova, que a Relação não pode conhecer, porque só deve debruçar-se sobre o que foi objecto de decisão. Assim não vamos conhecer desta questão.

Concluindo: 1. O dolo previsto no artigo 29 n.º 1 da Convenção de Genebra de 1965, a que o Estado Português aderiu, integra um elemento restrito da culpa de maior censurabilidade que visa punir o transportador, retirando o critério limitador do cálculo da indemnização previsto no artigo 23 n.º 3.
2. Incumbe ao credor da indemnização o ónus da prova do dolo na medida em que é um elemento constitutivo do seu direito a uma indemnização integral dos prejuízos sofridos.

Decisão
Pelo exposto acordam os juízes da Relação em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.
Custas a cargo do apelante.
Guimarães, 01/10/2015
Espinheira Baltar
Henrique Andrade
Eva Almeida