Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
113/16.7T8VNC-J.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: NULIDADE PROCESSUAL
INCIDENTE DE HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
RESPOSTA AO REQUERIMENTO INICIAL
REQUERIMENTO PROBATÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. Uma irregularidade processual que possa influir no exame ou decisão da causa, ou que a lei expressamente comine com a nulidade (art. 195.º, n.º 1 do CPC), deve em princípio ser arguida perante o tribunal onde foi cometida (e não directamente atacada através de recurso), nos prazos previstos no art. 199.º, n.º 1 do CPC.

II. No incidente de habilitação de cessionário, a mera apresentação de contestação confere ao respectivo requerente um articulado de resposta, de forma diversa do que sucede com a regulamentação geral aplicável à tramitação dos demais incidentes, onde apenas se prevêem o requerimento inicial e a oposição (arts. 292.º, 293.º e 356.º, todos do CPC).

III. A admissibilidade expressa de um tal articulado de resposta (face à nova matéria articulada pela parte contrária, e à nele próprio de seguida contraditada) pressupõe necessariamente que ao requerente seja possível a apresentação de simultâneo requerimento probatório, nomeadamente de prova pessoal (já que inicialmente, e de forma natural, terá ficado limitado à prova documental do acto de transmissão inter vivos), sob pena da prática (proibida) de um acto inútil e de violação do princípio constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (art. 130.º do CPC e art. 20.º da CRP).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.
*
I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. P. L. - Unipessoal, Limitada, com sede na Rua …, no Porto (aqui Recorrente), propôs incidente de habilitação de cessionário, nos autos de insolvência pertinentes a F. C. e mulher, M. J., residentes na Rua …, Vila Nova da Cerveira (que com o n.º 113/16.7T8VNC correm termos pelo Juízo de Comércio de Viana do Castelo), pedindo que

· fosse habilitado para intervir, nos autos de insolvência referidos, no lugar da aí reclamante Banco ..., S.A..

Alegou para o efeito, e em síntese, ter celebrado com esta um contrato de cessão de créditos (titulado por documento escrito que juntou), no qual Banco ..., S.A. declarou ceder-lhe o crédito que havia reclamado contra os Insolventes (F. C. e mulher, M. J.), mantendo a natureza e os acessórios a ele inerentes
Mais alegou que quer a Cessionária, quer a Cedente, comunicaram aquele contrato de cessão aos Insolventes, que não deduziram qualquer oposição.
No final do seu requerimento, sob a epígrafe «JUNTA», precisou fazê-lo quanto a «procuração forense e seis documentos», nada mais referindo quanto a qualquer outro requerimento probatório.

1.1.2. Regularmente notificados, os Requeridos (F. C. e mulher, M. J.) contestaram, pedindo que a habilitação fosse indeferida, por legalmente inadmissível; ou, subsidiariamente, fosse julgada improcedente.
Alegaram para o efeito, em síntese, ser o incidente inadmissível, face quer à natureza própria do processo de insolvência (visto essencialmente como um processo executivo especial, em que não se pode verdadeiramente falar da transmissão de coisa ou direito em litígio), quer por, no caso em concreto, inexistir crédito.
Mais alegaram ser nulo o negócio-base da cessão (a compra e venda do crédito), quer por simulação absoluta (art. 240.º do CC), quer por violar regras legais imperativas pertinentes ao exercício da actividade financeira.
Alegaram ainda que a pretensa transmissão dos créditos foi feita apenas para tornar mais difícil a sua posição no procedimento de exoneração do passivo restante.
Por fim, os Requeridos (F. C. e mulher, M. J.) defenderam actuar a Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) nos autos de má fé, pedindo que fosse sancionada em conformidade.
No final da sua contestação, sob a epígrafe «Meios de prova», requereram «o depoimento de parte do sócio gerente da Requerente (…) à matéria alegada em 91 a 97, 126 a 198 da contestação», arrolaram 06 testemunhas e juntaram documentos.

1.1.3. A Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) respondeu, pedindo que as excepções deduzidas na contestação fossem julgadas improcedentes, e reiterando a sua posição inicial.
No final da sua resposta, sob a epígrafe «PROVA», requereu «o depoimento de parte de ambos os insolventes à matéria dos artigos 45.º, 51.º, 103.º a 117.º do presente papel», arrolou 05 testemunhas (esclarecendo que «também para efeito da impugnação de documentos efectuada na contestação»), e juntou plúrimos documentos.

1.1.4. Os Requeridos (F. C. e mulher, M. J.) apresentaram em 16 de Janeiro de 2020 novo articulado, defendendo ser legalmente inadmissível o requerimento probatório apresentado com a resposta à sua oposição, pedindo por isso que fosse indeferido.

1.1.5. Foi proferido despacho em 26 de Janeiro de 2020, admitindo a resposta e indeferindo o requerimento probatório respectivo, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
Do articulado de resposta
Levantada, em sede de contestação, matéria de excepção, para além de ser deduzido o incidente de litigância de má fé, fundada se mostra a resposta entretanto apresentada pela Requerente no âmbito do legítimo exercício ao contraditório, admitindo-se a mesma, cingida entretanto apenas no que a tal matéria respeita e já não como impugnação à oposição.---
Entretanto, porém, e sem prejuízo de o tribunal poder oficiosamente determinar a produção de qualquer meio de prova que julgue pertinente, designadamente no que à matéria de impugnação e/ou litigância de má fé diz respeito, no que toca ao requerimento probatório apresentado naquela sede, entende-se não ser o mesmo admissível, de acordo com o preceituado no art.º 293.º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil.---
(…)»

1.1.6. A Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) arguiu a nulidade do despacho referido, por ter sido proferido antes de ter decorrido o prazo de contraditório sobre o requerimento da parte contrária (a pedir o indeferimento do requerimento probatório junto com a resposta à oposição), defendendo ser a violação desse seu direito susceptível de influir no exame e decisão da causa.

1.1.7. Foi proferido despacho, considerando ser processualmente inadmissível a arguição de nulidade feita, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Requerimento de 10.02.2020 [34820145]
Nos termos da previsão do artº 615.º, n.º 4 do CIRE, a invocada nulidade só poderia ter sido arguida em sede de recurso, permitido quanto ao despacho em crise nomeadamente considerando o valor atribuído ao presente incidente.
Pelo exposto, julga-se prejudicado o conhecimento da pretensão formulada pela Requerente.
Sem custas, atenta simplicidade.
Notifique.
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos

Inconformada com esta decisão, a Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) interpôs recurso de apelação, pedindo que se anulasse o despacho recorrido, permitindo-se-lhe a pronúncia sobre a pretensão deduzida; e (subsidiariamente) fosse julgado procedente e revogado o despacho recorrido, sendo substituído por outro que lhe admitisse os meios de prova requeridos com a sua resposta.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):

A) QUANTO À NULIDADE, NA SEQUÊNCIA DA APRESENTAÇÃO EM JUÍZO DO ARTICULADO DE RESPOSTA FORMULADO PELA RECORRENTE NOS TERMOS DO ESTABELECIDO PELO ARTIGO 356.º, N.º 1, ALÍNEA B) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, OS RECORRIDOS SUSCITARAM NOS AUTOS A QUESTÃO DA ADMISSIBILIDADE DOS MEIOS DE PROVA AÍ REQUERIDOS.

B) O DOUTO DESPACHO RECORRIDO ADERIU IMEDIATAMENTE À TESE PROPUGNADA PELOS RECORRIDOS NAQUELA PRONÚNCIA, MAS, NA SUA DATA, 26 DE JANEIRO DE 2020, ESTAVA AINDA EM CURSO O PRAZO DE RESPOSTA DA RECORRENTE, QUE APENAS TERMINAVA NO DIA 30 DESSE MÊS.

C) ASSIM, O DOUTO DESPACHO RECORRIDO, AO DECIDIR AQUELA QUESTÃO ANTES DO DECURSO DE TAL PRAZO, OBVIOU A QUE A RECORRENTE SE PUDESSE PRONUNCIAR SOBRE O MESMO, EM VIOLAÇÃO DO ESTABELECIDO PELO ARTIGO 3.º, N.º 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

D) OCORREU, DESTE MODO, UMA IRREGULARIDADE PROCESSUAL – ARTIGO 195º, Nº 1 DO C.P.C. – QUE INFLUI NO EXAME E DISCUSSÃO DA CAUSA E QUE CONSTITUI, POR ISSO, VERDADEIRA NULIDADE - ARTIGO 195º, Nº 1 “IN FINE” DESSE CATÁLOGO - QUE ESTAVA EM TEMPO PARA ARGUIR - SEU ARTIGO 199º - E QUE HAVIA DE TER SIDO IMEDIATAMENTE APRECIADA – AINDA SEU ARTIGO 200º, Nº 3.

E) O TRIBUNAL RECORRIDO VEIO A ENTENDER QUE TAL NULIDADE HAVIA DE SER SUSCITADA EM SEDE DE RECURSO, NOS TERMOS DO ESTABELECIDO PELO ARTIGO 615.º, N.º 4 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, MAS ESTA NÃO É NENHUMA DAS ELENCADAS NESSA NORMA, DEVENDO, NOS TERMOS GERAIS, SER ARGUIDA PERANTE O TRIBUNAL QUE A PRATICOU, NO PRAZO GERAL DE 10 DIAS.

F) PORÉM, PERANTE O SENTIDO DO DOUTO DESPACHO QUE INCIDIU SOBRE ESSA ARGUIÇÃO, A RECORRENTE VEM SUSCITÁ-LA PERANTE ESSA RELAÇÃO, PARA QUE SEJA CONHECIDA, SE FOR O MESMO O ENTENDIMENTO DESSE TRIBUNAL.

G) QUANTO AOS FUNDAMENTOS DESTA APELAÇÃO, O DOUTO DESPACHO RECORRIDO VIOLOU O ESTABELECIDO NOS ARTIGOS 356.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 552.º, N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

H) NO CASO DA HABILITAÇÃO DO CESSIONÁRIO, CABE SEMPRE AO REQUERENTE O DIREITO A PRODUZIR RESPOSTA, HAJA OU NÃO DEFESA EXCEPCIONAL, CONFORME LIMPIDAMENTE RESULTA DO ESTABELECIDO PELO ARTIGO 356.º, N.º 1, ALÍNEA B) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, QUE A PREVÊ SEM QUALQUER CONDIÇÃO OU PRESSUPOSTO QUE NÃO SEJA O DA APRESENTAÇÃO DO PRÓPRIO ARTICULADO DE CONTESTAÇÃO.

I) TAL ARTICULADO DE RESPOSTA, PORQUE É SUSCEPTÍVEL DE TRAZER AOS AUTOS MATÉRIA NOVA QUE SE MOSTRE NECESSÁRIA, NO SENTIDO DE FACTOS NÃO CONSTANTES DO REQUERIMENTO INICIAL, TEM DE PODER SER ACOMPANHADO DOS NECESSÁRIOS MEIOS DE PROVA RELATIVAMENTE A ESTES E À CONTRADIÇÃO DAQUELES QUE HAJAM SIDO ALEGADOS PELO DEVEDOR NA SUA CONTESTAÇÃO.

J) O DOUTO DESPACHO RECORRIDO VIOLOU TAMBÉM O ESTABELECIDO NO ARTIGO 445.º, N.º 2 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

K) POIS FOI SUSCITADO UM INCIDENTE DE IMPUGNAÇÃO DE DOCUMENTOS, AO ABRIGO DO ESTABELECIDO PELO ARTIGO 444.º DA CODIFICAÇÃO ADJECTIVA CÍVEL E, NO SEU ÂMBITO, A PARTE QUE PRODUZIU O DOCUMENTO TEM O DIREITO A REQUERER A PRODUÇÃO DA PROVA QUE JULGUE ADEQUADA A CONVENCER DA SUA GENUINIDADE, EM 10 DIAS, COMO FEZ E NÃO LHE FOI ADMITIDO.

L) O DOUTO DESPACHO RECORRIDO VIOLOU AINDA O ESTABELECIDO NOS ARTIGOS 4.º E 293.º, N.º 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL,

M) JÁ QUE FOI DEDUZIDO TAMBÉM UM INCIDENTE DE LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ, QUE NÃO PODE SER ADMITIDO A SER DECIDIDO SEM QUE A PARTE TENHA TIDO A POSSIBILIDADE DE SE PRONUNCIAR E EFECTIVAMENTE CONTRARIAR AS PROVAS OFERECIDAS PELA CONTRAPARTE PARA SUA DEMONSTRAÇÃO, CONFORME É EMANAÇÃO DIRECTA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE DAS PARTES.

N) O DOUTO DESPACHO RECORRIDO VIOLOU FINALMENTE O ESTABELECIDO NO ARTIGO 423.º, N.º 1 E 2º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL.

O) UMA VEZ QUE A RECORRENTE TINHA O DIREITO A PRODUZIR PROVA DOCUMENTAL COM QUALQUER ARTICULADO LEGALMENTE ADMISSÍVEL, RELATIVAMENTE AOS FACTOS QUE NELE FOSSEM ALEGADOS.
*
1.2.2. Contra-alegações

Os Requeridos (F. C. e mulher, M. J.) não contra-alegaram.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

2.2.1. Questões incluídas no objecto do recurso

Mercê do exposto, e do recurso interposto pela Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) do despacho de 26 de Janeiro de 2020 (que lhe indeferiu o requerimento probatório junto com a resposta apresentada à contestação do incidente de habilitação de cessionário que deduzira), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal:

· QUESTÃO ÚNICA - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do Direito (ao não admitir os meios de prova juntos com a resposta à contestação apresentada ao incidente de habilitação de cessionário), devendo ser alterada a sua decisão de mérito (nomeadamente, admitindo-se tais meios de prova) ?
*
2.2.2. Questões excluídas do objecto do recurso

Precisa-se, tal como a Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) recorrente o defendeu nos autos, e salvo o devido respeito por opinião contrária, que a arguição de nulidade por ela previamente feita do despacho sob recurso (por alegadamente ter sido proferido em violação do seu direito de contraditório) deveria ter sido, imediata e efectivamente, conhecida pelo Tribunal a quo.
Com efeito, uma irregularidade processual que possa influir no exame ou decisão da causa, ou que a lei expressamente comine com a nulidade (art. 195.º, n.º 1 do CPC), deve em princípio ser arguida perante o tribunal onde foi cometida (e não directamente atacada através de recurso), nos prazos previstos no art. 199.º, n.º 1 do CPC.
Por outras palavras, as nulidades «devem ser arguidas pelos interessados perante o juiz» e é a «decisão que vier a ser proferida que poderá ser impugnada por via recursória» (1); e esta solução deve ainda «ser aplicada aos casos em que tenha sido praticada uma nulidade processual que se projecte na sentença, mas que não se reporte a qualquer das als. do nº 1 do art. 615º» do CPC, devendo então «ser objecto de prévia reclamação que permita ao juiz reparar as consequências» extraídas, ainda que com prejuízo da decisão proferida (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, Almedina, pág. 26).
A «reclamação por nulidade e o recurso articulam-se, portanto de harmonia com o princípio da subsidiariedade: a admissibilidade do recurso está na dependência da dedução prévia de reclamação». «O que pode ser impugnado por via de recurso é a decisão que conhecer da reclamação por nulidade - e não a nulidade ela mesma», sendo que a «perda do direito à impugnação por via de reclamação (…) importa, simultaneamente, a extinção do direito à impugnação através do recurso ordinário» (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, Dos Recursos, Quid Juris, 2009, pág. 52, com bold apócrifo).
Compreende-se, por isso, que se afirme que «dos despachos recorre-se, das nulidades reclama-se»: nos casos de erro de procedimento (que não de erro de julgamento, que possibilita o recurso) deve a parte reclamar (arguir a nulidade), possibilitando ao juiz a sua sanação.
Excepções ao referido serão: as nulidades de conhecimento oficioso (art. 196.º do CPC), pois que estas «constituem sempre objecto implícito do recurso», podendo «ser sempre alegadas no recurso ainda que anteriormente o não tenham sido» (Luís Correia de Mendonça e Henrique Antunes, ibidem); as nulidades cujo prazo de arguição só comece a correr depois da expedição do recurso para o tribunal superior (art. 199.º, n.º 3 do CPC); e as nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1 do CPC (cometidas quando o juiz, ao proferir decisão/sentença, omite formalidades inerentes à mesma de cumprimento obrigatório (2)).

Logo, teria efectivamente a Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) que arguir perante o Tribunal a quo a nulidade relativa ao alegado incumprimento do seu direito de contraditório (quanto à pretensão dos Requeridos, de não ser admissível o requerimento probatório junto com o seu articulado de reposta à respectiva contestação). Só depois de proferida decisão pelo Tribunal a quo, desatendendo a dita arguição de nulidade, poderia então a Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) recorrer da mesma, conforme expressamente autorizada pelo art. 630.º, n.º 2 do CPC, atento o fundamento em causa (violação do seu direito de contraditório).
Não pode, por isso, este Tribunal ad quem conhecer aqui da dita nulidade, já que não se contém no objecto do recurso submetido à sua apreciação, exclusivamente o despacho proferido em 26 de Janeiro de 2020 (e não também aquele, necessária e eventualmente a interpor pela Requerente, do despacho posterior proferido pelo Tribunal a quo, sufragando entendimento diverso); e relativamente ao qual não foi arguida qualquer uma das nulidades previstas no art. 615.º, n.º 1 do CPC (ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo).
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes nos autos os factos elencados em «I - RELATÓRIO» (relativos ao seu processamento), que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Incidente de habilitação de cessionário
4.1.1. Princípio da estabilidade da instância

Lê-se no art. 259.º do CPC que a «instância inicia-se pela preposição da ação e esta considera-se proposta, intentada ou pendente logo que seja recebida na secretaria a respetiva petição inicial» (n.º 1), embora «o ato da proposição não» produza «efeitos em relação ao réu senão a partir do momento da citação» (n.º 2).

Lê-se ainda, no art. 360.º do CPC que, citado «o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvo as possibilidades de modificação consignadas na lei».

Uma das excepções ao assim consagrado princípio da estabilidade da instância é, precisamente, a sua modificação subjectiva em consequência da substituição de alguma das partes, por acto entre vivos, na relação substantiva em litígio (art. 262.º do CPC), mantendo porém o transmitente legitimidade para a causa enquanto o adquirente não for, por meio da habitação, admitido a substituí-lo (art. 263.º do CPC).
Logo, a admissibilidade da habilitação do adquirente ou cessionário depende da verificação dos seguintes requisitos: a) a pendência de uma acção; b) a existência de uma coisa ou de um direito litigioso (que constitui o objecto daquela); c) a transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da acção por acto entre vivos (em geral permitida pela ordem jurídica, que visa a promoção do comércio jurídico, uma vez que a protecção da parte estranha à transmissão poderá ser obtida mediante mecanismos de natureza processual); d) e o conhecimento da transmissão durante a acção (3).
*
4.1.2. Incidente de habilitação de cessionário - Tramitação

Lê-se no art. 356.º, n.º 1, al. a), do CPC, e no que ora nos interessa, que a «habilitação do (…) cessionário da coisa ou direito em litígio, para com ele seguir a causa, faz-se (…) por apenso», juntando «o título da (…) da cessão» e sendo «notificada a parte contrária para contestar»; e na «contestação pode» esta «impugnar a validade do ato ou alegar que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a sua posição no processo».
A cessão (prevista no art. 577.º do CC) é o contrato pelo qual o credor (cedente) transmite a terceiro (cessionário), independentemente do consentimento do devedor (devedor cedido), a totalidade ou uma parte do seu crédito.
Mais se lê, na al, b), do n.º 1, do art. 356.º citado que, se «houver contestação, o requerente pode responder-lhe e em seguida, produzidas as provas necessárias, é proferida decisão; na falta de contestação, verifica-se se o documento prova a aquisição ou a cessão e, em caso afirmativo, declara-se habilitado o (…) cessionário».
Compreende-se, por isso, que se afirme que o incidente de habilitação não tem por finalidade apreciar e decidir se o direito transmitido existe ou não, isto é, se o cedente tinha ou não o direito em causa no processo pendente e que foi transmitido ao adquirente (4). O habilitado sucederá meramente na posição processual do cedente (isto é, exercerá doravante os mesmos direitos e ficará sujeito ao cumprimento das mesmas obrigações processuais que lhe competiam), sem interferir com o objecto da causa previamente definido (isto é, na discussão do direito que constitui o seu objecto, tal como foi configurado pelo pedido e pela causa de pedir) (5).
Compreende-se ainda: quer a singeleza da alegação inicial (grosso modo reduzida à apresentação do título da cessão, já que a causa de pedir está limitada ao próprio negócio jurídico de transmissão por acto entre vivos de direito litigioso na pendência da acção e no seu conhecimento pelo devedor (6)); quer a limitação dos fundamentos da defesa a apresentar (taxativamente, a impugnação da validade do acto da cessão invocada ou a alegação de que a transmissão foi feita para tornar mais difícil a posição da parte contrária no processo), já que na finalidade do incidente não se integra a discussão do direito substantivo em litígio na causa principal (7); quer a limitação dos fundamentos da recusa da habilitação quando a mesma não seja contestada (já que então só poderá ser recusada se o acto que é invocado como seu fundamento não estiver documentado, for nulo, ou não provar a cessão).

Contudo, não deixou o legislador de antecipar que, na ampla impugnação da validade do acto da cessão (isto é, potenciais e plúrimas causas quer de nulidade, quer de anulabilidade (8)), bem como na ampla alegação tendente à demonstração do propósito de tornar mais difícil na acção a posição da parte contrária ao cedente (isto é, potenciais e plúrimas formas de o conseguir), se o cessionário ficasse impedido de as contraditar de forma idêntica (9) dificilmente se asseguraria o princípio da igualdade das partes.
Compreende-se, por isso, que ao contrário do que sucedia no CPC anterior (de 1961) se preveja agora que a mera apresentação da contestação confere à parte contrária um articulado de resposta, ao arrepio do que sucede com a regulamentação geral aplicável à tramitação dos demais incidentes, onde apenas se prevêem dois, o requerimento inicial e a oposição (arts. 292.º e 293.º, ambos do CPC).
Ora, a admissibilidade expressa de um tal articulado de resposta (face à nova matéria articulada pela parte contrária, e à nele próprio de seguida contraditada) pressupõe necessariamente que ao respectivo apresentante seja possível a apresentação de simultâneo requerimento probatório, nomeadamente de prova pessoal (já que que inicialmente, e de forma natural, terá ficado limitado à prova documental pertinente à realização do acto de transmissão inter vivios do direito ou coisa litigiosa (10)).
*
4.1.3. Direito à prova

Com efeito, lê-se no art. 342.º do CC que àquele «que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado» (n.º 1), sendo que a «prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita» (n.º 2).
Logo, a iniciativa da prova cabe, em princípio, à parte a quem aproveita o facto dela objecto, sob pena de não vir a obter uma decisão que lhe seja favorável, uma vez que o juiz julga secundum allegata et probata (art. 346.º do CC, e art. 414.º do CPC).
«Ora, para cumprir este ónus, reconhece-se o direito à prova» (J. P. Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 207), corolário do direito à tutela jurisdicional efectiva, consagrado no art. 20.º da CRP (11).
Pode definir-se genericamente o direito à prova como o «direito da parte de utilizar todas as provas de que dispõe, de forma a demonstrar a verdade dos factos em que a sua pretensão se funda. Do seu conteúdo essencial constam, portanto, os seguintes aspectos: o direito de alegar factos no processo; o direito de provar a exactidão ou inexactidão desses factos, através de qualquer meio de prova», o que implica a proibição de um elenco taxativo de meios de prova»; e o direito de participação na produção das provas» (Ac. da RC, de 14.07.2010, Carvalho Martins, Processo n.º 102/10.5TBSRE.C1).
Enfatiza-se aqui que, sem o direito à prova, as garantias constitucionais do acesso ao direito e ao processo equitativo seriam meramente formais: se não fosse facultada às partes a possibilidade de apresentarem os meios de prova legalmente admissíveis, obtidos de forma lícita, e pertinentes para a prova dos factos que previamente alegaram e cujo ónus de prova lhes compete, não conseguiriam obter o reconhecimento das respectivas pretensões.
Compreende-se, por isso, que se afirme que, sendo o direito à prova um direito necessariamente instrumental da realização de um outro, substantivo, «uma restrição incomportável da faculdade de apresentação de prova em juízo pode impossibilitar a parte de fazer valer o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva» (Ac. do STJ, de 17.12.2009, Hélder Roque, Processo n.º 159/07.6TVPRT-D.P1.S1).
Logo, e como regra geral, «os regimes adjetivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade, não estando, portanto, o legislador autorizado, nos termos dos artigos 13.º e 18.º, n.ºs 2 e 3, a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva» (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, pág.190).
Dir-se-á ainda que, e mercê deste imperativo constitucional, a própria interpretação das normais legais infra constitucionais deverá ser feita por forma a salvaguardar a máxima e efectiva actividade probatória.

Recorda-se ainda que incumbe ao tribunal remover qualquer obstáculo que as partes aleguem estar a condicionar o seu ónus probatório (art. 7.º, n.º 4 do CPC), bem como realizar ou ordenar oficiosamente «todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quando aos factos de que é lícito conhecer» (art. 411.º do CPC).
Deverá ainda o Tribunal, ao longo de todo o processo, assegurar «um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente (…) no uso dos meios de defesa» (art. 4.º do CPC) - emanação do princípio do contraditório (art. 3.º do CPC) - isto é, quanto à possibilidade de utilização dos meios de prova, assegurando o que se designa usualmente pelo princípio de igualdade de armas.
*
4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

Concretizando, verifica-se que, tendo a Recorrente (P. L. - Unipessoal, Limitada) deduzido incidente de habilitação de cessionário, pedindo para ser admitida a intervir nos autos principais (de insolvência) no lugar da reclamante Banco ..., S.A., alegou singelamente a realização do acto de transmissão do direito de crédito desta e o conhecimento do mesmo por parte dos Recorridos (F. C. e mulher, M. J.); e instruiu singelamente o seu requerimento inicial com a prova documental da cessão.
Mais se verifica que, tendo os nele Requeridos (F. C. e mulher, M. J.) contestado a habilitação, e tendo a aí Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) respondido, indicou no final da sua resposta inédita prova pessoal e juntou adicional prova documental, uma e outra pertinentes à nova matéria de facto trazido aos autos com a contestação (visando nomeadamente produzir a contraprova exigida para que a mesma improcedesse, nos termos do art. 346.º do CC).
Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, tendo o dito requerimento probatório sido apresentado com a resposta, e respeitando os limites previstos na regulamentação geral dos incidentes (art. 294.º do CPC), não poderia deixar de ser admitido, sob pena de o legislador autorizar ao requerente da habilitação a prática de um acto inútil (proibido pelo art. 130.º do CPC), isto é, a articulação de factos desprovidos porém da correspondente possibilidade de prova; e bem assim admitir uma violação do princípio constitucional de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva (consagrado no art. 20.º da CRP).
*
Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total procedência do recurso de apelação interposto pela Recorrente (P. L. - Unipessoal, Limitada).
*
V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação da Requerente (P. L. - Unipessoal, Limitada) e, em consequência, em:

· Revogar o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro, admitindo o requerimento probatório apresentado no final da resposta ao incidente de habilitação de cessionário deduzido.
*
Custas da apelação conforme vier a ser decidido no incidente de habilitação de cessionário (art. 527.º, n.º 1 e n.º 2 do CPC).
*
Guimarães, 09 de Julho de 2020.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.


1. Esta faculdade de recurso sofre no actual CPC a limitação estabelecida no art. 630.º, n.º 2: o recurso das decisões proferidas sobre nulidades previstas no n.º 1, do art. 195.º, do CPC só é admissível se contenderem com os princípios da igualdade ou do contraditório, com a aquisição processual de factos, ou com a admissibilidade de meios probatórios.
2. As ditas nulidades próprias da decisão serão, grosso modo, a não especificação dos respectivos fundamentos, a oposição destes com a decisão, a sua ininteligibilidade - por ambiguidade ou obscuridade -, a omissão e o excesso de pronúncia, nesta última se incluindo a condenação ultra petitum.
3. No mesmo sentido, Ac. da RL, de 03.12.2015, Ondina Carmo Alves, Processo n.º 691/11.7TYLSB-C.L1-2, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem.
4. No mesmo sentido, Ac. da RL, de 03.12.2015, Ondina Carmo Alves, Processo n.º 691/11.7TYLSB-C.L1-2, onde nomeadamente se lê que o «incidente de habilitação não tem por finalidade resolver se o direito transmitido existe ou não, i.e., se o cedente tinha ou não o direito em causa no processo pendente».
5. No mesmo sentido, Ac. da RG, de 14.03.2019, Alcides Rodrigues, Processo n.º 4141/16.4T8GMR-A.G1, onde nomeadamente se lê que o «incidente de habilitação de adquirente ou cessionário, previsto no art. 356º do Código de Processo Civil, visa, tão só, operar modificação nos sujeitos da lide, produzindo meramente efeitos de natureza meramente processual, ao nível das partes que se defrontam na lide, sem interferir com a discussão do direito que constitui o objeto da causa, tal como é configurado pelo pedido e pela causa de pedir».
6. Neste sentido, Ac. da RC, de 03.10.2017, Vítor Amaral, Processo n.º 13.9TBCLD-B.C1, onde nomeadamente se lê que, no «incidente de habilitação de cessionário (art.º 356.º do NCPCiv.), cabe ao requerente o ónus da prova dos factos tendentes a demonstrar a existência do contrato de cessão e seu objeto relevante».
7. Neste sentido, José Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume 3.º, Coimbra Editora, pág. 78, Eurico Lopes-Cardoso, Manual dos Incidentes da Instância em Processo Civil, Almedina, 1992, pág. 360, e Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, Almedina, pág. 257.
8. Neste sentido, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, Setembro de 2014, pág. 693.
9. Recorda-se que o exercício do contraditório, em caso de dedução de excepções, sempre estaria assegurado, nos termos gerais do art. 3.º, n.º 4 do CPC ou do art. 547.º do mesmo diploma, este último em momento anterior à audiência final.
10. Neste sentido, Ac. da RC, de 03.10.2017, Vítor Amaral, Processo n.º 13.9TBCLD-B.C1, onde nomeadamente se lê que a prova que incumbe ao requerente do incidente de habilitação de cessionário produzir «é necessariamente documental – um título escrito que prove a cessão (seja o contrato escrito de cessão, seja outro título/declaração de aquisição ou cessão, seja termo de cessão lavrado no processo) –, não tendo de expressar o exato montante da dívida ao tempo da transmissão, mas devendo identificar o crédito de molde a permitir saber qual o objeto da cessão».
11. A propósito do direito à prova como parte do direito à tutela jurisdicional efectiva, face a decisões do Tribunal Constitucional Português, vide Nuno Lemos Jorge, «DIREITO À PROVA: BREVÍSSIMO ROTEIRO JURISPRUDENCIAL», Julgar, N.º 6, 2008, págs. 99 a 106.