Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
432/19.0GBAVV.G1
Relator: FÁTIMA FURTADO
Descritores: TAXA DE JUSTIÇA EXCECIONAL
PROCESSO PENAL
UTILIZAÇÃO ABUSIVA
ARTº 521º
DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A taxa de justiça excecional destina-se exclusivamente a situações de utilização abusiva do processo penal, em que se evidencie que a atuação reprovável feita do meio processual visava a prossecução de uma finalidade ilegal.
II) O direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, constitucionalmente consagrado no artigo 20º, não se coadunaria com a possibilidade de aplicação de uma sanção com a natureza da taxa de justiça excecional a meros erros técnicos, casos de negligência ou até de algum exagero na insistência do cidadão do que entende ser seu direito, particularmente no processo penal. Taxa de justiça excecional utilização abusiva processo penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

No processo de inquérito n.º 432/19.0GBAVV, do DIAP de Ponte de Lima, da comarca de Viana do Castelo, a Senhora Juíza de Instrução indeferiu a passagem das certidões e cópias de gravação requeridas pelo arguido R. G., com os demais sinais dos autos, sem contudo o sancionar na taxa de justiça excecional a que alude o artigo 521.º do Código de Processo Penal, por despacho datado de 15 de janeiro de 2020, com o seguinte teor:

«Veio o arguido, R. G., requerer certidão da denúncia apresentada pela ofendida nestes autos e cópia das gravações das declarações da ofendida para memória futura, com a finalidade de instaurar procedimento criminal contra a mesma e de deduzir pedido de indemnização civil.
A Digna Magistrada do Ministério Público opôs-se à consulta dos autos, nos termos e com os fundamentos da promoção que antecede.

Cumpre apreciar e decidir.

Os presentes autos de inquérito visam a investigação da prática, por parte do arguido, de um crime de violência doméstica perpetrado na pessoa da sua ex-mulher S. A., sendo que, a Digna Magistrada do Ministério Público decidiu sujeitar o inquérito a segredo de justiça, ponderados que foram os interesses da vítima e da investigação. Tal decisão foi por nós validada em 13 de Dezembro de 2019.
Dispõe o art. 86°, n° 11 do CPP, que “A autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão em que seja dado conhecimento do conteúdo de acto ou de documento em segredo de justiça, desde que necessária a processo de natureza criminal ou à instrução de processo disciplinar de natureza pública, bem como à dedução do pedido de indemnização civil.”

Ora, o arguido invoca nos seus requerimentos que pretende certidão para, segundo afirma, apresentar queixa crime “de denúncia caluniosa e difamação”, por um lado, e por crime de falsidade de testemunho, por outro.
Sucede que, conforme é referido pela Digna Magistrada do MP, quanto ao crime de natureza particular o que, processualmente se impõe e é essencial, é que o ofendido declare inequivocamente, no decurso do prazo de seis meses que deseja procedimento criminal pelo alegado crime de difamação de que possa ter sido alvo, e por outro lado, no que respeita ao crime de falsidade de testemunho, não existe ainda nenhum “processo de natureza criminal”, na medida em que o arguido ainda não efetivou (ou pelo menos não deu nestes autos a conhecer o respectivo NUIPC) na realidade queixa crime — elemento essencial e constante da previsão daquela norma invocada.
Acresce a isto, que o próprio arguido refere no seu primeiro requerimento que tomou conhecimento “através da leitura por OPC, do teor da denúncia que a ofendida apresentou contra si e que originou o presente inquérito criminal”.
Para além do mais, no final das declarações para memória futura, foi o arguido por nós inteirado do que se passou naquela diligência, por súmula e sem pormenores — é certo -, devido ao facto de os autos se encontrarem em segredo de justiça.
Nestes termos, entendemos que o arguido tem elementos para, querendo, apresentar as queixas que assim entender, salvaguardando o prazo para exercício do direito de queixa, sendo que no decurso dos processos de inquérito originados por tais queixas, aí sim, poderá ser feito uso do disposto no n° 11 do art. 86° do CPP.
Resta dizer que atento o princípio da adesão constante do art. 71° do CPP, não existindo ainda processos de inquérito relativamente às queixas crime que o arguido pretende apresentar, não se vislumbra a necessidade das certidões requeridas neste momento processual, para efeitos de dedução de pedido de indemnização civil.
Assim, os autos encontram-se sujeitos a segredo de justiça, pelo que, face aos elementos recolhidos até à presente data, também é nosso entendimento que, pelo menos neste momento, não é de admitir a passagem das certidões requeridas e cópias de gravação, pois que tal poderia colocar em causa a investigação em curso bem como os interesses de protecção da vítima, nomeadamente a própria integridade física da queixosa.
Pelo exposto indefiro o requerido.
Não se sanciona por ora o arguido, conforme promovido, mas alerta-se o mesmo para o disposto no art. 521° do CPP.
Notifique.»
*
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso restrito ao não sancionamento do arguido R. G., nos termos do artigo 521.º do Código de Processo Penal, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:

«1. No âmbito dos presentes autos que investigam factos, em tese, aptos a integrar a prática de crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º do Código Penal, foi, validamente, determinada a imposição do segredo de justiça durante todo o período legalmente previsto para a duração do Inquérito, não podendo tal segredo ser levantado antes do decurso do prazo previsto no n.º 1, do artigo 276º, do Código de Processo Penal, ao abrigo do disposto no artigo 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, e Circular n.º 1/2008-DE, emitida em 09.01.2008, pela Procuradoria Geral da República.
2. O arguido único, R. G. foi-lhe dado conhecimento e, não obstante, lançou aos autos dois requerimentos para consulta, obtenção de dados e intenção de proceder criminalmente contra a vítima, ex-mulher, S. A., o último dos quais, apenas dois dias após a recolha de declarações para memória futura àquela vítima do crime.
3. Assim, s.m.o., de forma ostensiva, praticou o arguido, com M.I. patrocínio forense, actos processuais que bem sabia, ou devia saber, não lhe ser permitido, por entorpecerem de forma grave a acção da justiça e motivando, até, a mobilização de meios humanos e materiais que inexorável e injustificadamente agravarão os custos do processo e o próprio erário público.
4. Sendo que até àquelas intervenções do arguido único, o processo seguia uma tramitação clara e linear, em consonância com as pertinentes normas adjectivas aplicáveis ao caso, e sempre salvaguardando os legítimos direitos processuais de todos os intervenientes processuais, arguido inclusive.
5. Por conseguinte, ao não condenar o arguido no pagamento de custas (artigo 12.º, n.º 1 b) do Regulamento das Custas Processuais) devidas ou na taxa sancionatória excecional, como promovido, em tempo e com legitimidade, pelo Ministério Público, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 521.º do Código de Processo Penal e 10.º do Regulamento das Custas Processuais.
NORMAS VIOLADAS.
Artigos 521.º do Código de Processo Penal, 10.º e 12.º, n.º1, alínea b), ambos do Regulamento das Custas Processuais (Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02, na décima sétima versão, a mais recente, dada pela Lei n.º 27/2019, de 28/03).»
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O recurso foi admitido para este Tribunal da Relação de Guimarães, com o regime e efeito próprios.
Não houve resposta.
Nesta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral adjunta emitiu douto e fundamentado parecer, no qual conclui que o despacho recorrido não é merecedor da censura que lhe vem assacada, devendo o recurso improceder.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (1).
*
Questão a decidir.

A questão a decidir circunscreve-se a saber se o arguido deveria ter sido condenado no pagamento de taxa sancionatória excecional.
***
III. APRECIAÇÃO DO RECURSO

A possibilidade de condenação em taxa de justiça excecional está prevista no artigo 521.º do Código de Processo Penal, por remissão expressa para a correspondente norma do processo civil, nos seguintes termos:

«À prática de quaisquer atos em processo penal é aplicável o disposto no Código de Processo Civil quanto à condenação no pagamento de taxa sancionatória excecional».

Por sua vez, sob a epígrafe «Taxa sancionatória excecional», determina o artigo 531.º do Código de Processo Civil que:

«Por decisão fundamentada do juiz, pode ser excecionalmente aplicada uma taxa sancionatória quando a ação, oposição, requerimento, recurso, reclamação ou incidente seja manifestamente improcedente e a parte não tenha agido com a prudência ou diligência devida.»

Esta norma corresponde no essencial ao artigo 447.º-B do Código de Processo Civil anterior, e havia sido aditada pelo Dec. Lei n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, que no respetivo preâmbulo a ela alude nos seguintes termos:

«Criou-se também um mecanismo de penalização dos intervenientes processuais que, por motivos dilatórios, “bloqueiam” os tribunais com recursos e requerimentos manifestamente infundados. Para estes casos, o juiz do processo poderá fixar uma taxa sancionatória especial, com carácter penalizador, que substituirá a taxa de justiça que for devida pelo processo em causa».

Como sintetiza o ac. do STJ de 09.05.2019, proc. 565/12.4TATVR-C.E1-A.S1, relatado por Conceição Gomes (2), «Constituem pressupostos da aplicação da taxa sancionatória excepcional, prevista no art. 521.º, do CPP, a natureza manifestamente improcedente do requerimento, recurso, reclamação ou incidente, visando-se evitar a prática de actos inúteis, impedindo que o tribunal se debruce sobre questões que se sabe de antemão serem insusceptíveis de conduzir ao resultado pretendido, assim se salvaguardando o princípio da economia processual, e a actuação imprudente, desprovida da diligência, no caso exigível, e como tal censurável, da parte de quem os formula/apresenta.»
Estamos pois perante uma taxa que que se destina a ser aplicada exclusivamente a situações de verdadeira utilização abusiva do processo penal, em que se evidencie que a atuação reprovável feita do meio processual utilizado visava a prossecução de uma finalidade ilegal.
Outra interpretação, aliás, não consente o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, constitucionalmente consagrado no artigo 20º, que não se coadunaria com a possibilidade de aplicação de uma sanção com a natureza da taxa de justiça excecional a meros erros técnicos, casos de negligência ou até de algum exagero na insistência do cidadão do que entende ser seu direito, particularmente no processo penal.
Revertendo agora ao caso dos autos, a situação circunscreve-se ao requerimento feito pelo arguido pedindo a emissão de certidão de atos processuais sujeitos a segredo de justiça, com vista a, segundo afirma, apresentar queixa crime «de denúncia caluniosa e difamação» e crime de falsidade de testemunho.
Neste contexto, e independentemente de o arguido já ter vindo anteriormente fazer um pedido idêntico, manifestamente que aqui não se evidencia o circunstancialismo necessário para a aplicação de taxa de justiça excecional.
Como pertinentemente salienta a própria Senhora Procuradora-Geral adjunta nesta instância, «…o arguido requereu a certidão em causa ao abrigo do disposto nos arts. 86º, n.º 11, e 89º, n.º 1, do CPP que, no caso de o processo se encontrar em segredo de justiça, prevêem, respetivamente, que a autoridade judiciária pode autorizar a passagem de certidão, desde que necessária a processo de natureza criminal, e que, durante o inquérito, o arguido pode obter certidões, salvo quando o Ministério Público a isso se opuser por considerar, fundamentadamente, que pode prejudicar a investigação ou os direitos dos participantes processuais ou das vítimas.» Sendo que, naturalmente – e acrescentamos nós – a circunstância de o Ministério Público se ter oposto à passagem da certidão uma vez não permite deduzir que irá manter essa posição durante todo o inquérito, pela dinâmica natural e própria de tal fase de investigação.
Dinâmica que o arguido não pode controlar inteiramente neste caso, precisamente pelo segredo de justiça a que está sujeito o inquérito.
Nenhuma censura merecendo assim o despacho recorrido, ao não condenar o arguido na taxa de justiça excecional a que alude o artigo 521.º do Código de Processo Penal.
***
IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam as juízas desta secção do Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso do Ministério Público.
Sem tributação, por dela estar isento o recorrente
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Guimarães, 11 de maio de 2020
(Elaborado e revisto pela relatora)

Fátima Furtado
Maria José Matos
(Assinado digitalmente)


1. Cfr. artigo 412º, nº 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
2. Disponível em www.dgsi.pt