Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
180/16.3T8MAC-B.G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO
MONTANTE SUPERIOR AO DEVIDO
VALIDADE
RELAÇÃO SUBJACENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
– A inscrição numa livrança em branco de montante superior ao devido à data do preenchimento, não a invalida como título executivo, mantendo a mesma a sua validade relativamente ao montante em dívida que resulte do contrato que lhe está subjacente.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

Maria, Manuel, E. M. e C. M., executados, habilitados no lugar de M. O., vieram propor embargos de executado contra Banco ..., SA, exequente, invocando, de entre o mais, o preenchimento abusivo da livrança dada à execução devido à falta de interpelação para pagamento do valor em dívida e a prescrição do crédito exequendo.

O exequente contestou, invocando a validade do preenchimento e, bem assim, a notificação de M. O..

Foi proferido despacho saneador, onde se conheceu das exceções de nulidade da livrança, de inexequibilidade do título devido à falta de apresentação a pagamento, de ineptidão do título executivo e de prescrição do direito à ação cambiária.
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Foi proferida decisão que, entendendo que a dívida de capital não se mostra vencida, sendo o preenchimento da livrança indevido, julgou os embargos procedentes e determinou a extinção da execução.
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A Exequente/Embargada veio recorrer dessa decisão, concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1. A sentença objeto do presente recurso merece censura pois, ao julgar procedentes os embargos de executado e, em consequência, determinando a extinção da ação executiva, por entender que o título executivo – livrança – foi preenchida de forma abusiva, não fez adequada aplicação do Direito aos factos.
2. O objeto do presente recurso prende-se, pois, com a questão de saber se (i) o Banco Recorrente procedeu à denúncia do contrato de mútuo subjacente à emissão da livrança, de acordo com estipulado no pacto de preenchimento, no que ao subscritor M. O. respeita (ii) e se o preenchimento da livrança, quanto ao mesmo, foi efetivamente abusivo.
3. O Banco Exequente é dono e legítimo portador de 1 (uma) livrança, subscrita pelo Executado M. O., com o seguinte valor e data de vencimento:
4. A livrança em causa foi entregue ao Banco Exequente para garantia do Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente disponibilizado em Conta Crédito, com o n.º ...8, celebrado com M. O. em 30 de Dezembro de 2002 (Doc. N.º1 junto com a contestação).
5. No sobredito contrato de empréstimo o aqui Executado M. O. intervém como cliente, e subscritor da livrança entregue em caução, tendo o contrato sido assinado, e rubricado em todas as páginas, pelo mesmo.
6. Assim, o Executado M. O., e os ora Embargantes, na qualidade de sucessores na obrigação, e os demais intervenientes cambiários, deram o seu assentimento aos termos e condições de remessa da livrança, conforme se verifica pela cláusula 7.º do contrato, e declararam conhecer os termos do contrato de empréstimo, cujo cumprimento garantiram.
7. Nesse seguimento, o financiamento concedido pelo Banco ao Mutuário, foi sendo utilizado pelo mesmo, até entrar em incumprimento em Agosto de 2011, e não em Abril de 2010, como alegam os Embargantes.
8. Nesse mesmo ano, em Novembro de 2011, tendo em consideração o incumprimento reiterado, e após várias solicitações para liquidação dos montantes em dívida, o Banco procedeu á denúncia do contrato, conforme cartas juntas à contestação como doc. 4.
9. De facto, apenas em Janeiro de 2012, o Banco Embargado teve conhecimento do óbito do falecimento do Sr. M. O., porquanto o igualmente Executado R. S., filho do Executado, remeteu para o Banco uma carta na qual constava a certidão de óbito do Executado.
10. Assim, apenas nesta data, e já após o contrário ter sido denunciado, o Banco Embargado teve conhecimento do óbito,
11. O financiamento concedido produziu os seus efeitos, até à data da denúncia pelo incumprimento, sem que o Banco tivesse conhecimento do óbito do mutuário.
12. Por fim, o Banco Recorrente procedeu ao preenchimento da livrança, em conformidade com o pacto de preenchimento constante do contrato de financiamento, supra referido, e junto aos autos, e veio a intentar a presente execução.
13. Nesse seguimento, e tendo em consideração o óbito do subscritor falecido M. O. – o Banco Recorrente deduziu o competente incidente de habilitação de herdeiros, no qual foram habilitados os ora Recorridos, que assumiram a posição processual do subscritor da livrança.
14. Perante tais factos, entendeu o Tribunal a quo que o Banco Recorrente, nunca procedeu à efetiva denúncia válida do contrato, porquanto não o fez mediante carta registada com aviso de receção conforme decorre do contrato de financiamento.
15. Ora, quanto a este ponto, desde logo é importante salientar que, (i) o Banco Recorrente procedeu á junção aos autos da carta de denúncia do contrato, (ii) a mesma não foi impugnada pelos Embargantes, (iii) motivo pelo qual não existiu necessidade de juntar aos presentes autos o comprovativo do aviso de receção.
16. Aliás, foi dado como provado e assente – facto provado n.º 6 - que o Banco Recorrente procedeu ao envio da carta de denúncia do contrato, para a morada convencionada no contrato de financiamento relativamente ao Executado falecido M. O..
17. O documento junto aos autos – doc n.º4 da contestação apresentada pelo Banco Recorrente - , não foi impugnada pelos Embargantes, pelo que salvo melhor opinião, o Tribunal a quo ficcionou o facto de a mesma não ter sido remetida registada com a aviso de receção.
18. De facto, e não obstante as ilações, sem qualquer tipo de suporte factual mencionadas pelo Tribunal a quo, a carta de denuncia foi remetida com aviso de receção, não tendo o mesmo sido junto aos autos, por manifestamente, não ser necessário, tendo em consideração que a carta de Novembro de 2011, não ter sido colocada em questão.
19. De facto, estamos perante uma decisão “surpresa”, porquanto o facto de a denúncia do contrato ser declarada invalida pelo Tribunal a quo, somente pelo facto de alegadamente não ter sido remetida carta registada com a aviso de receção, são factos novos, não invocados pelos Embargantes, e sobre os quais o Banco Recorrente não teve oportunidade de se pronunciar.
20. Exatamente com os mesmos fundamentos, ficcionou o Tribunal a quo, que, a carta remetida em 16 de Fevereiro de 2016, a informar dos valores do preenchimento da livrança, foi igualmente remetida ao mutuário, sem aviso de receção.
21. Quanto a esta matéria, reitera-se tudo o mencionado supra, porquanto, (i) O Banco Recorrente juntou aos autos a mencionada carta, (ii) a mesma não foi impugnada pelos Embargantes, e (iii) em momento algum, foi alegado pelas partes que a mesma não havia sido remetida com o aviso de receção.
22. No caso em apreço não residem quaisquer dúvidas quanto à existência de um pacto de preenchimento da livrança que serve de título à presente execução.
23. De facto, nos expressos termos do contrato assinado (mais concretamente na cláusula 7.º) com o Executado M. O., o Banco Exequente ficou autorizado pelo Cliente e avalistas a preencher a livrança
24. Com a aposição da sua assinatura, o ora Executado M. O., deu o seu acordo a todo o clausulado.
25. De facto, o pacto de preenchimento da livrança, não caduca com o óbito do avalista, nem retira exequiblidade à livrança de a data de vencimento da livrança ser posterior ao óbito do avalista.
26. Na verdade, o Banco Recorrente apenas teve conhecimento do óbito de M. O., já posteriormente á denuncia do contrato, mediante certidão de óbito entregue no Banco.
27. Contudo, em momento algum, foi entregue no Banco qualquer certidão de habilitação de herdeiros, perante a qual o Banco pudesse ter conhecimento da identidade dos mesmos, para eventuais notificações.
28. Não é da responsabilidade do Banco Recorrente, ou de qualquer Banco, apurar quem são os herdeiros dos clientes falecidos.
29. De facto, o Banco nem sequer tem legitimidade para extra – judicialmente requerer tal habilitação.
30. O único momento em que o Banco pode chamar os sucessores, é em sede de ação judicial, conforme o fez nos presentes autos.
31. Por fim, salienta-se, ainda, que é sobre os Embargantes que incumbe o ónus da prova do preenchimento abusivo da livrança; prova que estes não lograram fazer.
32. O Tribunal a quo, decidiu o presente processo com base em factos não invocados pelos Embargantes, sobre os quais não foi produzida qualquer prova, nem permitido o contraditório ao Banco Recorrente, tornando a decisão agora em causa, uma verdadeira sentença surpresa.
33. O Tribunal “a quo” na sentença decidiu que, a livrança que constitui título executivo nos presentes autos, foi preenchida de forma abusiva pelo Banco Recorrente, e consequentemente, determinou a extinção da ação executiva está em clara violação da lei.
34. Por conseguinte, a douta sentença recorrida merece censura e deve ser revogada.
35. Deve ser revogada a decisão em causa, e substituída por outra que decida que (i) a denuncia do contrato de financiamento foi operada em conformidade com o previsto no contrato, e de igual modo que (ii) a livrança acionada nos presentes autos foi preenchida em conformidade com o pacto de preenchimento, não existindo qualquer preenchimento abusivo.

Nestes termos e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento à presente apelação e, em consequência, revogando a douta sentença recorrida, com o que se fará, como sempre, inteira e sã
JUSTIÇA!

Não foram apresentadas contra-alegações pelos Executados/Embargantes
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Questões a decidir:

- analisar se foi violado o princípio do contraditório;
- verificar se houve preenchimento abusivo da livrança dada à execução.
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Nada obstando ao conhecimento do objeto do recurso, cumpre apreciar e decidir.
Na primeira instância foram fixados os seguintes factos:

Factos provados:

1) O exequente deu à execução um documento tipo “livrança” no qual se encontra aposto como “Local e data de emissão: Macedo de Cavaleiros 2012-12-30; vencimento 2016-03-11; importância €46.584,90” seguido de "Caução" e “No seu vencimento pagarei por esta única via de livrança ao Banco ... (…) ou à sua ordem a quantia de quarenta e seis mil, quinhentos e oitenta e quatro euros e noventa cêntimos.”, no referido documento encontra-se aposta a uma assinatura de “M. O.” no local do “subscritor” e no verso do documento, por baixo dos dizeres “Bom por aval” mostra-se aposta a assinatura do executado R. S., conforme documento junto ao processo executivo, como “título executivo”.
2) O documento referido em 1) foi entregue ao exequente para no âmbito de um acordo, designado pelas partes de “Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente disponibilizado em Conta Crédito”, com o n.º ...8, outorgado entre M. O. e o exequente em 30 de Dezembro de 2002.
3) No âmbito desse acordo, o exequente concedeu a M. O. um financiamento no montante de €24.940,00, disponibilizados na conta n.º ...7 (conta crédito), e transferidos na sua integralidade para a conta n.º. ...8 (conta à ordem associada à conta a crédito).
4) Acordaram ainda as partes que:
“Cláusula 2ª (prazo de vigência)
1. O presente contrato é celebrado pelo prazo de 90 dias, contados a partir de 31 de Dezembro de 2002 (…) sendo sucessivamente renovado por iguais períodos se não for denunciado pelo Banco ... ou pelo Cliente.
2. A denúncia do presente contrato far-se-á por carta registada com aviso de receção enviada, com a antecedência mínima de quinze dias em relação ao fim do período em curso, para o domicílio constante do número dois da cláusula com a epígrafe “Domicílio Electivo e Notificações”. (…)
Cláusula 4ª (Juros)
1. O saldo em dívida da Conta Crédito vence juros, a favor do Banco ..., dia a dia, a uma taxa correspondente à EURIBOR a três meses, acrescida de 6,5 pontos percentuais (…).
3. Os juros são pagos postecipadamente no final de cada período de 90 dias, contando-se o primeiro a partir da data referida no número um da cláusula com a epígrafe “Prazo de vigência, através de débito na conta O/A”. (…)
Cláusula 5ª (Reembolso de capital)
1. O Cliente obriga-se a reembolsar o saldo em dívida até ao termo do presente contrato.
(…)
Cláusula 7ª (Livrança com aval e acordo de preenchimento)
1. Para garantia do bom pagamento de todas as responsabilidades que advêm para o Cliente do não cumprimento pontual e integral de qualquer prestação para ele resultante do presente contrato, nomeadamente e entre outras, o reembolso de capital, o pagamento de juros remuneratórios e moratórios (…) o Cliente entregou ao Banco ... uma livrança devidamente subscrita e avalizada pelo Garante, podendo o Banco ... acioná-la ou desconta-la caso se verifique o incumprimento das obrigações assumidas.
2. O Banco ... fica autorizado a preencher a referida livrança nos seguintes termos:
a) data de vencimento – posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o cliente do presente contrato.
b) valor – qualquer quantia devida pelo Cliente ao abrigo do presente contrato. (…)
(…)
Cláusula 10ª (vencimento antecipado)
1. O Banco ... tem o direito a declarar o vencimento antecipado das obrigações do Cliente case se verifique algum dos seguintes factos:
a) mora ou incumprimento definitivo por parte do Cliente e/ou garante de qualquer obrigação para si resultante do presente contrato.
b) diminuição das garantias prestadas;
(…)
2. A declaração referida no número anterior faz-se por carta registada com aviso de recepção enviada para o domicílio do cliente constante do número dois da cláusula com a epígrafe “Domicílio Electivo e Notificações” (…)
Cláusula 11º (Domicílio electivo e notificações)
(…) 2. As partes acordam ainda que qualquer comunicação entre si ao abrigo do presente contrato será enviada para as seguintes moradas: (…)
Cliente Rua … Macedo de Cavaleiros. (…)””., conforme documento junto aos autos a fls. 42 a 47, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
5) Em data não concretamente apurada mas pelo menos em Agosto de 2011, o acordo referido em 2) a 4) deixou de ser cumprido.
6) A 17 de Novembro de 2011, o exequente endereçou a M. O., à Rua de … Macedo de Cavaleiros, uma carta com o assunto: “vencimento antecipado de contrato de financiamento Conta Empréstimo (…)” nos termos do qual “Ser a presente para, nos termos do disposto no contrato de financiamento acima identificado, lhe comunicar o vencimento antecipado das obrigações e V. Exª com fundamento em mora ou incumprimento definitivo por parte do Cliente e/ou Garante de qualquer obrigação para si resultante do presente contrato. (…)”, conforme documento junto aos autos a fls. 59, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
7) O executado M. O. faleceu a …, conforme certidão junta ao processo executivo a 13/7/2016, ref.ª 665170, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
8) Em Janeiro de 2012 o exequente teve conhecimento do falecimento de M. O..
9) A 16 de Fevereiro de 2016, o exequente endereçou a M. O., à Rua … Macedo de Cavaleiros, uma carta com o assunto: “preenchimento da Livrança do Contrato Crédito (…)”, conforme documento junto aos autos a fls. 61, cujo teor aqui se dá por fiel e integralmente reproduzido.
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Da violação do princípio do contraditório:

Invoca a Exequente/Embargada a violação do princípio do contraditório e designadamente do disposto no art. 3º, nº 3 do C. P. Civil, por na decisão recorrida se ter considerado que a carta referida no ponto nº 6 da matéria de facto foi enviada sem aviso de receção, facto que não foi invocado pelas partes.

O princípio do contraditório, é um princípio fundamental do processo civil que reconhece às partes o direito a exporem as suas razões, o direito a serem ouvidas e a exercerem uma influência efetiva na marcha do processo.

O princípio do contraditório emana de um outro princípio que se traduz na exigência constitucional do direito de ação ou direito de agir em juízo através de um processo equitativo (artigo 20.º da CRP).

O mencionado princípio encontra-se legalmente consagrado, designadamente no art. 3º, nº 3 do C. P. Civil.

Diz-nos este preceito que o juiz deve observar e fazer cumprir ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

A violação do contraditório consubstancia uma nulidade (v. art. 195º, nº 1 do C. P. Civil) quando a omissão do ato ou formalidade que a lei prescreve possa influenciar a decisão da causa, devendo ser invocada no prazo de 10 dias, a contar do conhecimento da mesma, perante o tribunal onde foi cometida.

No entanto, conforme se decidiu nos Acórdãos da Relação de Lisboa de 11/1/11, da Relação de Coimbra de 13/11/12 e da Relação de Évora de 10/04/14 e no nosso Acórdão desta Relação, de 8/11/2018 (todos in www.dgsi.pt ), estando a nulidade decorrente da violação do princípio do contraditório sancionada/coberta por uma decisão judicial, a respetiva arguição poderá ocorrer em sede de recurso interposto dessa mesma decisão.

Na verdade, conforme explica o Professor Miguel Teixeira de Sousa no blog do IPCC em comentário ao Acórdão da Relação de Évora acima mencionado, a nulidade processual decorrente da violação do princípio do contraditório é consumida por uma nulidade da sentença por excesso de pronúncia (cf. art. 615.º, n.º 1, al. d) do C.P.C.), dado que, sem a prévia audição das partes, o tribunal não pode conhecer do fundamento que utilizou na sua decisão.

No caso, no entanto, não se verifica qualquer nulidade pois no art. 14º da petição de embargos é referida a falta de notificação “do vencimento, denúncia ou resolução” do contrato, pelo que, na contestação dos embargos, teve a Embargante possibilidade de se pronunciar sobre tal afirmação, como aliás fez, tanto que juntou aos autos cópia da carta que terá enviado ao subscritor da livrança.

Assim, improcede a arguição de nulidade.
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Do preenchimento abusivo:

O título executivo é um documento que constitui o meio legal de demonstração da existência do direito da exequente ou que estabelece, de forma ilidível, a existência daquele direito (1).

O título executivo constitui, pois, a base da execução, por ele se determinando o fim e os limites daquela (art. 10º, nº5 do C. P. Civil).

No caso, o título executivo é uma livrança que foi entregue à exequente sem que da mesma constasse o valor e a data de vencimento, ou seja, “em branco”, como garantia de cumprimento de um contrato de abertura de crédito em conta corrente.

Dá-se aqui como reproduzido tudo o que na sentença recorrida foi dito a propósito das características dos títulos de crédito e da possibilidade de os embargantes poderem opor à exequente o incumprimento do acordo de preenchimento no âmbito das relações imediatas.

A livrança em branco é reconhecida pela Lei Uniforme das Letras e Livranças no seu art. 10º por via do art. 77º e a doutrina e a jurisprudência são hoje unânimes na admissibilidade da mesma.

No entanto, a mesma só produz os seus efeitos como livrança ou obrigação cambiária depois de totalmente preenchida com todos os elementos essenciais.

Para haver uma livrança em branco é necessário que lhe falte algum requisito dos mencionados no art. 75º, que nela esteja aposta a assinatura do subscritor que esta assinatura conste de um título que contenha a designação expressa de “livrança”.

O preenchimento da livrança em branco, em regra, faz-se de harmonia com o chamado “pacto de preenchimento”.

Pode definir-se o “pacto de preenchimento” como o ato pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo de vencimento, a sede do pagamento, a estipulação de juros, etc. (2)

Como se refere no Acórdão desta Relação de 4/4/17 (3) em que foi Relatora a ora 1ªa adjunta, “sendo o pacto de preenchimento um contrato firmado entre os sujeitos da relação cambiária e extracartular que define em que termos vai ocorrer o preenchimento do título subscrito em branco total ou parcialmente, em regra, sem fixação de prazo certo para o preenchimento, nem montante previamente determinado, o credor tem o dever de interpelar o devedor, reclamando o cumprimento da obrigação emergente do contrato subjacente à subscrição do título”.

Aliás, tal notificação encontra-se prevista na cláusula 2º, ponto 2 e cláusula 10º, ponto 2 do contrato em causa nos autos, sendo que aí é referido que a comunicação quer do vencimento antecipado, quer da denúncia do contrato tem de ser feita por carta registada com aviso de receção.

A Exequente/Embargante juntou aos autos duas cartas enviadas para a morada do outorgante do contrato constante desse contrato, mas não juntou o(s) AR, que serviria(m) para demonstrar e assegurar que as cartas em causa chegaram ao conhecimento do destinatário, no entanto, tendo este falecido à data da remessa de tais missivas, é por demais evidente que o mesmo não as recebeu.

É certo que, como refere a Exequente/Embargante, através da citação de diversa jurisprudência, o pacto de preenchimento de uma livrança em branco não caduca com o óbito do seu subscritor e os embargantes sucedem na relação subjacente, onde se situa o âmbito do pacto de preenchimento, contudo, no caso concreto para que o vencimento antecipado e/ou a denúncia ou resolução produzissem efeitos, era necessário que a comunicação da ora Embargada nesse sentido, chegasse ao conhecimento do outorgante do contrato ou dos seus sucessores, o que não ocorreu no caso do primeiro pelas razões já apontadas e, quanto aos segundos (sucessores daquele) não ficou demonstrado pela Exequente que tal tivesse ocorrido antes da citação para os termos da execução.

Assim, tal como se refere na decisão recorrida, “considerando que a denúncia era essencial quer para por termo ao contrato, quer para declarar o vencimento antecipado das obrigações, não tendo essa denúncia sido validamente efetuada, dúvida não há de que o exequente não poderia ter preenchido a livrança pelo valor do capital, simplesmente porque o capital não era devido, por não terem sido validamente acionadas a cláusulas nem da cessação do contrato e consequente vencimento da obrigação, nem do vencimento antecipado das obrigações.

Assim sendo, há que considerar o preenchimento da livrança efetivamente abusivo.

De resto, isto mesmo resulta ainda do que as partes estipularam no acordo em análise quanto ao acordo de preenchimento da livrança.

Com efeito, da cláusula 7ª (Livrança com aval e acordo de preenchimento), ponto 2. resulta que “O Banco ... fica autorizado a preencher a referida livrança nos seguintes termos:

a) data de vencimento – posterior ao vencimento de qualquer obrigação ou obrigações que resultem para o cliente do presente contrato.
b) valor – qualquer quantia devida pelo Cliente ao abrigo do presente contrato. (…)”

Não obstante o que ficou acima expresso, é pacificamente aceite que a inscrição numa livrança em branco de montante superior ao devido à data do preenchimento, não a invalida como título executivo, mantendo a mesma a sua validade relativamente ao montante em dívida que resulte do contrato que lhe esta subjacente (4).

No caso concreto, no entanto, como se realça na decisão recorrida, “não se compreende se são pedidos juros remuneratórios ou tão só moratórios (…)”.

Todavia, discordando-se aqui do que se entendeu na sentença recorrida, entende-se que a execução se encontra titulada relativamente ao capital em dívida reclamado pela Exequente, ou seja, 24.939,00€, reduzindo-se a livrança a este valor, sem prejuízo da cobrança de juros moratórios vencidos e vincendos desde a data em que os ora Embargantes foram citados para os termos do processo (v. art. 716º do C. P. Civil).

Quanto às restantes quantias incluídas no título, não tendo a Exequente cumprido o ónus que lhe competia de especificar os valores compreendidos na prestação devida (no caso, quais as importâncias devidas a título de juros remuneratórios e/ou juros moratórios), em cumprimento do disposto no art. 716º, nº 1 do C. P. Civil e não sendo possível a este tribunal proceder a seu cálculo por falta de elementos, restará à Exequente reclamá-los no âmbito de uma ação declarativa.

Procede assim, parcialmente a apelação.
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DECISÃO:

Pelo exposto, acorda-se nesta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, considerando-se a execução titulada apenas quanto ao valor de 24.939,00€ (vinte e quatro mil, novecentos e trinta e nove euros), acrescido dos juros moratórios vencidos desde a citação dos sucessores do Executado para os termos do processo.
Custas na proporção de decaimento.
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Guimarães, 28 de fevereiro de 2019

Alexandra Rolim Mendes
Maria de Purificação Carvalho
Maria dos Anjos Melo Nogueira


1. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva à luz do Código Revisto, 2ª ed., pág. 30
2. Ac. STJ de 11/2/2010 in www.dgsi.pt
3. In www.dgsi.pt
4. Acs. STJ 11/2/10 e de 20/5/10 e Acs desta Relação de 13/6/13 e de 20/2/14, todos em in www.dgsi.pt