Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
146/19.1JAVRL-B.G1
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: ARRESTO
PERDA ALARGADA DE BENS
PERICULUM IN MORA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
O arresto requerido em momento anterior à liquidação exige que seja alegada e demonstrada a existência de fundado receio de diminuição das garantias patrimoniais (periculum in mora), para além dos fortes indícios da prática do crime.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do procedimento cautelar de arresto preventivo que corre termos sob o nº146/19.1JAVRL-B, por apenso ao processo de inquérito com o NUIPC146/19.1JAVRL, no Tribunal Judicial da Comarca de Bragança – Juízo Local Criminal de Bragança, por despacho proferido em 22-02-2022 [referência 24062009], foi decidido (transcrição):

«IV. DISPOSITIVO:
Em face do exposto, os termos dos artigos. 7.º, 8.º e 10.º da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro, julga-se o presente procedimento cautelar parcialmente procedente, por parcialmente provado, e, em consequência, decide-se decretar o arresto dos seguintes bens:
- CONTAS BANCÁRIAS:
BANCO A / ...........58
BANCO B / ...........46
BANCO C / ...........00
BANCO D / ...........50
- BEM IMÓVEL:
Artigo Urbano, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ... e inscrito na CRP sob o n.º ..., pela AP. 4179 de 2010/04/16, sito em ..., Bragança.
- BENS MÓVEIS:
MERCEDESBENZ, com matrícula OL;
OPEL VECTRA/LIM, com matrícula XZ.
Sem custas (artigo 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).»

2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido J. L.. que, após dedução da motivação, apresentou as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

«1. O presente Recurso tem como objeto toda a matéria do Despacho que aplicou o Arresto Preventivo bens ao Arguido, ora Recorrente, bem como a nulidade do despacho que convidou o Ministério Público a apresentar “novo requerimento”, sob a forma de aperfeiçoamento.
2. No Primeiro requerimento de arresto apresentado pelo Digno Magistrado do Ministério Público requereu “à Mm.ª JIC o arresto preventivo sobre os ativos localizados e identificados pelo GRA no âmbito do presente inquérito”, nos termos dos “artigos 1.º, n.º 1, al. f), 7.º, 10.º todos da Lei 5/2002 de 11 de janeiro”.
3. Vindo o Tribunal “a quo” a apreciar e decidir da seguinte forma na sua primeira decisão: «analisado o requerimento de fls. 1080 e ss. constatamos que do mesmo não constam os factos atinentes aos fortes indícios da prática do crime imputado ao arguido, ao fumus bónus iuris o periculum in mora e o pedido dos concretos bens a arrestar. Logo, temos de concluir que tal requerimento se mostra deficientemente alegado.”
4. Ora, nem do artigo 590, n.º 1 al. b) do CPC se pode retirar tal conclusão, nem a jurisprudência citada lhe atesta a razão, salvo o devido e elevado respeito, naturalmente!
5. O requerimento de arresto preventivo não era irregular, era omisso em relação aos factos essenciais que constituem os fundamentos do mesmo, ou seja, os fortes indícios da prática de um crime de catálogo definido no art. 1.º da Lei n.º 5/2002, como se reconhece no despacho recorrido.
6. Na medida em que o despacho recorrido convida a aperfeiçoar um requerimento que é omisso em relação aos factos determinantes do arresto preventivo previsto no artigo 10.º n.º 2 e 3 da Lei n.º 5/2002 - fortes indícios da prática do crime imputado ao arguido; ao fumus bónus iuris; periculum in mora e o pedido dos concretos bens a arrestar – praticou um ato proibido por lei, logo nulo, por efeito do artigo 195.º n.º 1 do CPC, devendo anular-se tudo o que dele dependa absolutamente, nos termos do artigo 195.º n.º 2 do CPC.
7. O Tribunal “a quo” considerou sumariamente provados 35 factos;
8. No entanto, salvo devido respeito, não foram mencionados factos suscetíveis de permitir a aplicação de uma medida de garantia patrimonial tão gravosa ao Recorrente, tal como é exigido pelo artigo 10.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro;

Desde logo,
9. O facto considerado como sumariamente provado n.º 9 é enganador, pois, segundo a Inquirição a T. F., datada de 06.04.19, é falso que foi o Arguido que “propôs a T. F. que baixaria o valor da correção caso lhe entregasse a quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) em numerário”, mas foi a própria TESTEMUNHA quem tentou aliciar o arguido com a oferta de um equipamento no valor de 5.000,00€, que este recusou;
10. O facto 17 refere “Em data não concretamente apurada, mas, seguramente, entre o ano de 2016 e 2017, o arguido A. P. foi fiscalizado pelo arguido J. L.”, Ou seja, o denunciante, J. P., alegadamente tem conhecimento dos factos desde “2016 ou 2017” e o seu autor (o arguido), porém não apresentou queixa e manteve-se em silêncio até 2020, após o caso aparecer nos órgãos de comunicação.
11. Nas subsequentes dezenas (cerca de 20) de inquirições a contribuintes inspecionados pelo arguido J. L. não existe um único que tenha sido aliciado;
12. Ambos os contribuintes acima identificados enganaram o Estado Português, ambos os contribuintes tiveram de liquidar avultados impostos que tinham omitido, resultantes de valores que receberam e não declaram nas declarações de IRC, ambos os contribuintes ficaram desagradados com a atuação do inspetor tributário e ambos os contribuintes podem ter vantagens com o desfecho deste processo (para além daqueles que o contribuinte T. F. teve em que a contabilista considerava razoável pagar 35.000,00€ e apenas teve de liquidar cerca de 6.000,00€);
13. Não foi tida em consideração uma escuta telefónica a contradizer os factos imputados ao arguido que recusou tomar um café com a testemunha T. F., a convite deste em 6 de Abril, ou seja no decurso da ação inspetiva, antes da apresentação da queixa mas depois da data que a testemunha referiu ter sido aliciada;

Mais,
14. Na motivação de facto, conclui a decisão cautelar que «[o] Tribunal fundamentou a sua convicção na prova produzida em sede de inquérito, globalmente analisada e concatenada em conjugação com as regras da lógica e da experiência comum e normalidade do devir (artigo 127.º do CPP)”;

Porém,
15. O Mmº. Juiz de Instrução não realizou uma análise crítica dos motivos que o levaram a discriminar os factos dados como provados e porque considerou condigna a prova que indicou;
16. Regendo-se o arresto pelo CPC, são aplicáveis os artigos 292.º a 295.º desse Código, por força dos seus artigos 365.º n.º 3 e 376.º n.º 1;
17. Como à decisão cautelar se aplica o artigo 607.º n.º 4 do Código de Processo Civil: [n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”, artigo este que não foi cumprido pelo JIC que não procedeu a uma análise crítica da prova;
18. A prova testemunhal incriminatória não está corroborada por nenhum outro meio de prova e as pessoas em questão estão ligadas por vínculos de consanguinidade - T. F. e A. R. – ou por vínculos profissionais - T. F. e M. H.;
19. Das dez testemunhas apresentadas, seis (A. V., C. F., M. B., R. P., A. B., C. M.) têm vínculo laboral com o Serviço de Finanças, embora com cargos distintos;
20. Nos seus depoimentos referiram, entre outros tópicos, que os inspetores tributários efetuam inspeções externas desacompanhados, ou seja, que era um procedimento normal o arguido se deslocar sozinho às sedes das empresas alvo de inspeção, como também que não existe um telefone/telemóvel de serviço, sendo também recorrente utilizar e conceder o número de telemóvel pessoal por patricidade, não tendo nenhum dos inspetores tributários inquiridos desconfiado de qualquer conduta ilícita praticada pelo arguido;
21. Se fosse verdade que o arguido queria obter uma vantagem indevida não tinha reduzido a escrito e junto ao processo de inspeção elementos de prova físicos que suportavam sem margem para dúvidas que o contribuinte T. F. “fugia” ao pagamento dos impostos e que a sua contabilista era conivente com esse comportamento, tendo ficado esta com uma cópia das declarações;
22. Ou seja, é dada credibilidade a uma contabilista que cometeu uma ilegalidade (que poderia e deveria originar um processo disciplinar), que afirmou que T. F. é uma pessoa honesta, tendo essa mesma pessoa sido alvo de fiscalização e correção, pois não declarava, efetivamente, tudo o que vendia e que a própria contabilista admitiu que na contabilidade nem tudo estava conforme a lei;
23. É dada credibilidade às declarações prestadas pelo arguido J. P. que na sua segunda inquirição se considerou um homem “honesto”, mas que tinha em falta nas declarações de impostos da empresa cerca de 75.000€ a pagar ao Estado por verbas que recebeu e não declarou em sede de IRC;
24. Nenhuma escuta indicia qualquer comportamento do arguido em assumir o resultado daquilo de que vem indiciado ou de propor o pagamento de qualquer quantia para adulterar o resultado das ações inspetivas;
25. As dezenas de contribuintes inspecionados pelo arguido e inquiridos segundo relação feita pelo órgão de Polícia Criminal e pelo Digno Magistrado do Ministério Público afirmaram não ter recebido qualquer proposta de aliciamento por parte do arguido;
26. E os vários inspetores da AT (alguns dos quais indicados pelo arguido) nunca se aperceberam de qualquer comportamento estranho ou tentativa de aliciamento aos contribuintes;
27. No momento não é possível fazer prova cabal da proveniência lícita de todos os montantes monetários do arguido, todavia aqueles que nesta fase não é possível demonstrar a proveniência lícita é possível ver que se tratam de depósitos ou transferências realizadas pelo pai, pela mãe e pela sogra do arguido;
28. Sendo também de conhecimento comum a normalidade de, em famílias conservadoras, principalmente de Trás-Os-Montes, os pais ampararem monetariamente os seus parentes, principalmente tratando-se, como é o caso, de uma estreita relação de pais/filhos e netas, porque muitos desses depósitos foram feitos pelos avós (pais do arguido) para pagarem as despesas escolares e extracurriculares da neta;
29. Nenhuma busca ou apreensão resultou na obtenção de documentos que suportam as alegadas vantagens exigidas pelo arguido aos contribuintes;
30. Acabou por ser decretado um arresto de bens no valor de 189.677,62€ quando o valor que é imputado ao arguido pela conduta ilícita é de 1.000,00€;
31. Por tudo acima exposto, a decisão cautelar é nula, nos termos do artigo 615.º n.º 1 al. d) do CPC, por violação do artigo 607.º n.º 4 desse Código, o que importa a sua revogação;
32. A decisão também é nula por contradição na fundamentação de direito, pois o JIC proferiu nos mesmo autos no espaço de poucos dias duas decisões contraditórias apreciadas no domínio da mesma legislação e dos mesmos factos, violando na sentença que decretou o arresto o Despacho que a mesma Mm. Juiz proferiu anteriormente nos mesmos autos, em que o requerimento apresentado pelo Digno Magistrado do Ministério Público não é aceite inicialmente por não cumprir os requisitos legais (designadamente o fumus bonus iuris e o periculum in mora) e, seguidamente o Tribunal “a quo” decreta o arresto dizendo que esses requisitos não são necessários;
33. O Douto Tribunal “a quo” não poderia ter decidido como decidiu na segunda decisão, alegando o caso estar enquadrado no artigo 10.º, n.º 3 da Lei n.º 5/2002;
34. Pois, quando o arresto é decretado sem a liquidação e sem acusação (o que sucedeu no caso) e é referido pelo JIC no primeiro despacho que não aceita o requerimento de arresto, segundo disposto no artigo 10.º, n.º 2 da Lei 5/2002, é necessário a verificação cumulativa do fumus bonus iuris e periculum in mora associado aos fortes indícios da prática de um crime;
35. Não seria necessário provar-se o fumus bonus iuris e periculum in mora se já tivesse havido acusação e liquidação, como não houve, é necessário alegar e demonstrar o receio na perda de bens;
36. E nenhum desses requisitos foi alegado ou ficou demonstrado, sendo tanto o requerimento apresentado pelo Digno Magistrado do Ministério Público como a decisão de arresto do Tribunal “a quo” omissos quanto à verificação destes pressupostos;
37. Pois, o património que o arguido detém em seu nome é superior ao valor da vantagem criminosa (erradamente contabilizado, pois todos os valores são demonstráveis – uns pelos próprios movimentos entre as contas, outros pela periocidade de valores – rendas- de uma conta titulada por terceiro e os outros, mais tarde, porque provém de transferências ou depósitos realizados de familiares de primeiro grau);
38. Não só não há periculum in mora presumido porque os bens do arguido não são insuficientes para pagar o valor que está ali presumido, como não foi invocado nem existe qualquer ato do arguido tendente a dissipar património;
39. Dos factos discriminados de 1 a 35, por si ou quando conjugados com outros, nada se revela à efetiva obtenção da vantagem, nem que pretenda o arguido dissipar o seu património;
40. Como também, os factos indiciários assentam exclusivamente em prova testemunhal não corroborada por recurso a outros meios de prova, como é o caso dos factos discriminados nos pontos 9,10,11,13, 14, 16, 19, 22, 23, 24 e 25; Prova testemunhal produzida por dois contribuintes com interesse em desfecho do processo e que ocultavam ao Estado o recebimento de dezenas/centenas de milhares de euros em sede de IRC.
41. Tratando-se de conceitos indeterminados – fortes indícios da prática de um crime de catálogo definido no art. 1.º da Lei n.º 5/2002 ou indícios suficientes da prática do crime de catálogo e, ainda, periculum em mora – não é possível a subsunção de um único facto para se fazer um juízo concludente sobre a sua existência ou pelo menos sobre a existência de periculum in mora;
42. Por essa razão, há erro de julgamento da matéria de direito por violação do art. 10.º da Lei n.º 5/2002, o que importa a revogação da decisão que decretou o arresto dos bens do arguido;
43. A perda alarga prevista na Lei n.º 5/2002 tem como finalidade a restituição do arguido ao status patrimonial anterior à prática do crime;
44. No entanto, segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 19/16.0YGLSB-J.S3, datado de 15-04-2021, “XX - O arresto para garantia da perda alargada está ainda sujeito aos princípios aos princípios gerais da necessidade, adequação e proporcionalidade (art. 193.º, n.º 1, do CPP)”;
45. Porém, decretado o arresto ficou o arguido impedido de movimentar saldos bancários, alienar os bens ou fazer qualquer operação para fazer face às despesas do processo ou da obtenção de meios para subsistir, pois foi arrestada a totalidade do valor constante da conta onde o arguido recebe o ordenado e a esposa o subsídio de desemprego;
46. Ao arguido vem imputado um crime de corrupção onde, até ao momento e o inquérito já vai longo, apenas se imputou que terá pedido € 5000 e que lhe terão entregue a quantia de € 1000, nos anos de 2018 e 2019, o que se irá demonstrar (quando for possível ao arguido contraditar os testemunhos) que é falso;
47. Se os bens se encontram há mais de 5 anos na posse do arguido, é ao Ministério Público a quem compete ilidir a presunção, como se deduz do artigo 9.º n.º 3 al. b) da Lei n.º 5/2002, à contrario sensu;
48. Por tudo isto, é manifestamente desadequada a medida em questão, violando a decisão o artigo 193.º n.º 1 do CPP, na senda do decidido pelo STJ no processo 19/16.04GLSB – J.S3, datado de 15-04-2021, tendo sido violados os princípios gerais da necessidade, adequação e proporcionalidade.
49. Ou seja conta do BANCO A titulada por A. J. (esposa do arguido), aliás o seu nome completo enquanto solteira, com o n.º ...........58, foi aberta no ano de 1994, ou seja, antes do matrimónio.
50. Deste modo, requer-se que seja retirada a menção à conta bancária BANCO A n.º ...........58 nos autos tal como seja retirada dos bens alvo de arresto, bem como, os valores que a mesma movimentou serem desconsiderados como proveniência ilícita.
51. Do mesmo modo, houve negligência grosseira pelo Ministério Público e pelo Mmº. JIC ao considerarem como facto provado n.º 32 que conta BANCO B n.º ...........46 é co-titulada pelo arguido e por A. L..
52. A conta em questão é co-titulada pelo arguido e pela irmã, A. C., conforme fls. e as importâncias que dessa conta bancária constam provêm do pagamento de rendas estabelecidas nas cláusulas contratuais de um contrato de arrendamento que se juntou ao processo, o qual o arguido é completamente alheio.
53. Uma parte substancial dos valores depositados nessa conta, periódicos e similares, são as rendas que a irmã do arguido recebia. Outra parte, no montante de € 30.000,00 corresponde a transferências que a irmã do arguido A. C. fez de uma conta sua para conta co-titulada pelo arguido.
54. O GRA na sua análise considerou, quanto aos movimentos financeiros nas contas bancárias, como proveniente de atividade ilícita as transferências bancárias efetuadas da conta de depósito à ordem da BANCO C n.º ...........00 co-titulada pelo arguido e o seu cônjuge para a conta poupança nº ..........61 da mesma instituição bancária, com os mesmos titulares.
55. O GRA duplicou os rendimentos do arguido para considerar metade deles como proveniência ilícita, pois contabilizou como rendimentos as transferências da conta poupança do arguido para a sua conta habitual, quando os valores da primeira tinha sido recebidos da sua conta.
56. Incredulamente, nem o Digno Magistrado do Ministério Público nem o JIC (que não fez uma análise critica da prova limitando-se a transcrever a informação prestada pelo requerimento de arresto) se aperceberam da duplicação de proveitos e integraram tais valores na proveniência ilícita.
57. Assim, em 2015 o arguido e o seu cônjuge transferiram da sua conta poupança para a conta à ordem 7.062,60€; em 2016 o valor de 5.950,00€; em 2017 o valor de 10.900,00€; em 2018 o valor de 10.850,00€; e em 2019 o valor de 9.850,00€. Totalizando assim o valor de 44.612,6€ que não provém de atividade ilícita, mas sim de um banal planeamento financeiro mas que foram contabilizados como proveniência ilícita valores transferidos de uma conta titulada pelo arguido para outra conta titulada pelo arguido, devendo ser tal montante subtraído ao valor global considerado como recebimento injustificado pelo arguido.
58. Importa também ressalvar, quanto às transferências da conta poupança para a conta à ordem, que se tratam de duas contas poupança, a inicial designada como “caixa aforro” com o n.º ..........78, e a segunda, que surgiu com extinção da primeira, designada como “conta poupança” n.º ..........61.
59. Ora, somados estes valores apresenta-se o montante de 44.612,6€ em transferências da conta poupança para a conta à ordem, ambas tituladas pela mesma pessoa (o arguido) que foram tidos em consideração no cálculo de atividade criminosa.
60. Imputando as autoridades de polícia criminal e as autoridades judiciárias a titularidade dessa conta bancária ao arguido e à sua cônjuge.
61. O que é falso, como o próprio Magistrado do Ministério Público no requerimento inicial admitiu, quando afirmou que a mesma era “titulada pelo arguido J. L. e pela A. C., irmã do arguido”.
62. Devendo, salvo devido respeito, ser retirado o valor total da conta porque se consegue verificar que ela é movimentada apenas pela A. C., de valores resultantes de rendas como também de três depósitos de 10.000,00€ cada, no total de 30.000,00€, que são da conta de A. C. para outra conta bancária com a mesma titular.
63. Ou, pelo menos, utilizando as regras do direito, sendo a conta BANCO B co-titulada pelo arguido e a irmã A. C., que seja dividido o montante de 69.509,96€ em duas partes iguais, perfazendo cada uma o valor de 34.754,98€. Sendo para o cálculo da VAC apenas considerado 1/2 do valor global.
64. Por último, consta ainda no processo e é tido como vantagem ilícita os cheques recebidos pelo arguido e pelo seu cônjuge no valor total de 3.445,16€, nos anos de 2015 e 2016, a título de indemnização por um acidente de trabalho que vitimou a cônjuge do arguido, A. L., pagas pela Companhia de Seguros ... e depositados na conta da BANCO C n.º ...........00.
65. Ora, como é de conhecimento geral, não são declaradas ao Estado as indemnizações por acidente de trabalho, mas o GRA, o Digno Magistrado do Ministério Público e o JIC, inexplicavelmente, somam ao valor das vantagens indevidas uma indemnização.
66. Assim, se não for considerada nula a decisão que decretou o arresto preventivo, pelo menos deverá ser retirado ao valor da vantagem indevida imputada ao arguido, o valor da conta bancária de solteira da cônjuge (18mil euros), o valor das transferências bancárias feitas da conta poupança para a conta à ordem (44 mil euros), o valor das transferências feitas pela irmã (20/30/no total de 69.000) que é efetivamente co-titular da conta bancária do BANCO B e as autoridades judiciárias não tiveram isso em consideração ou retiram a quota parte que lhe pertencia, e o valor total de 3.445,16€, pago pela Companhia de Seguros ... a título de indemnização por um acidente de trabalho que vitimou a cônjuge do arguido, A. L., no valor global de € 116.445,16.


TERMOS EM QUE REQUER:

a) Que seja declarada a nulidade do despacho de fls... que convidou o Digno Magistrado do Ministério Público a aperfeiçoar o requerimento do arresto por violação, entre outras, das disposições dos artigos 195.º, n.º 1, 2 do CPC, 590.º, n.º 1, b) 3, 4 do CPC, artigo 10.º, n.º 2 da Lei n.º 5/2002.
b) Que seja declarada a nulidade da decisão que decretou o arresto por nulidade em virtude de não ter procedido a uma análise crítica da prova, de inexistirem indícios fortes e de não conter qualquer facto que sustente o justo receio ou o periculum in mora, de um pedido de arresto efetuado num processo onde não foi deduzida acusação, nem liquidada a vantagem indevida em violação dos artigos 127.º do CPP, 617.º n.º 1, al. d) do CPC, 607.º, n.º 4 do CPC, 365.º, n.º 3, 376.º, n.º 1, artigos 9.º, n.º 3, al. b), 10.º da Lei n.º 5/2002, artigos 191.º, 193.º do CPP.
c) À cautela e caso assim não se entenda

Ser reduzido o valor das vantagens indevidas para a quantia de 73.232,46€, com a consequente desoneração dos bens que não se revelem necessários para garantir o valor.»

3. Ao recurso interposto pelo arguido respondeu o Ministério Público, da seguinte forma (transcrição das conclusões):

«1. Ao contrário do que defende o recorrente, não merece censura a decisão recorrida, devendo pelo contrário considerar-se que se encontra sustentada.
2. Convém ter sempre presente que o arresto preventivo aplicado nos presentes autos visa, exclusivamente, assegurar a eficácia do confisco das vantagens do crime.
3. Quando se fala em vantagens do facto ilícito típico fala-se em benefício ou incremento patrimonial e não em bens certos e determinados.
4. Por outro lado, o vector axiológico intuitivo, expresso no brocardo que afirma que "o crime nunca é título legítimo de aquisição" não se esgota numa mera semântica metafísica.
5. Tal significa não só que o agente do crime não adquire qualquer direito sobre os bens ou direitos obtidos com a prática do crime e que constituam o seu benefício. Esse incremento patrimonial jamais lhe pertencerá.
6. O confisco pelo Estado representa o único destino legal e legítimo para as vantagens do crime. Até esse momento ideal, as vantagens do crime, directas, indirectas, pelo valor, sucedâneo e respectivos juros, lucros e demais acréscimos, sempre que apurados, são apenas e só isso mesmo: um património ilícito.
7. O legislador nacional estabeleceu o confisco das vantagens como uma medida obrigatória, subtraída a qualquer critério de oportunidade, e que ocorrerá sempre, por imperativo legal, que com a prática do crime tenham sido gerados benefícios económicos.
8. O ordenamento jurídico nacional impõe o confisco de bens que estejam na disponibilidade/titularidade de terceiros. Esta imposição legal é apenas refreada pela salvaguarda dos direitos dos terceiros que não se encontrem em qualquer das condições elencadas no artigo 111.º do Código Penal.
9. O confisco das vantagens do crime cede apenas perante necessidade de observância dos critérios de proporcionalidade, em sentido amplo e pela protecção dos "terceiros" de "boa-fé" tal como enunciada no regime previsto para a efectivação das medidas ablativas.
10. O confisco das vantagens não se resume aos objectos directamente adquiridos com a prática do crime, ou com os respectivos sucedâneos bem como os juros lucros e demais acréscimos.
11. Como diz a nossa lei "se a recompensa, os direitos, as coisas ou as vantagens ... não puderem ser apropriadas em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor" (art. 110.º, n.º 4, do CP).
12. O Seria incompreensível que os tribunais ficassem vinculados, ou limitados formalmente pela mera invocação de que um determinado bem se encontra blindado e fora do alcance do poder do Estado pela simples razão de pertencer formalmente a um terceiro.
13. A circunstância de determinado bem pertencer a um familiar do arguido (terceiro) não é impeditivo do confisco, nem constitui qualquer limite à satisfação das importantes necessidades preventivas que subjazem ao confisco.
14. Em bom rigor, também aqui, os visados indiciariamente autores do crime continuam, muitas vezes, a ser os verdadeiros titulares do bem confiscável, gerindo a sua utilização a uma distância suficientemente razoável para dizer que não é seu, mas conservando intactas todas as possibilidades de usufruir dos seus benefícios. Embora formalmente já não pertençam aos visados, materialmente (através do controlo directo ou indirecto daquela pessoa colectiva) continuam a ser seus.
15. Aqueles são, em última análise, os seus verdadeiros detentores e beneficiários.
16. Tendo então presente a constelação normativa convocável, e apreciando as especificidades do caso concreto, pode afirmar-se que a os familiares do arguido, ainda que fossem classificados como terceiros (o que não é substantivo), nunca estariam de boa-fé tal como este conceito deve ser concretizado no confisco das vantagens.
17. Antes de mais, cumpre salientar que a protecção legalmente conferida a terceiros de boa fé não é confundível com a simulação da qualidade de terceiro, fenómeno muito frequente na praxis quotidiana (sobre este problema, cf. João Conde CORREIA, Da proibição, cit., p. 133 e ss.).
18. No âmbito do arresto preventivo mantém-se o critério de aplicar apenas e tão só "as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal", nos termos do que dispõe o art. 4º, do Código de Processo Penal.
19. É no processo penal (e no direito penal substantivo) que se encontram as regras para definir os conceitos de "terceiro de boa-fé" para efeitos de confisco das vantagens do crime.
20. Os terceiros afectados pela providência de confisco não podem nem devem ser constituídos arguidos.
21. As instâncias formais de controlo não podem ficar reféns da possibilidade ou impossibilidade de encontrar a própria coisa e, por isso mesmo, devem poder apreender bens de valor equivalente à vantagem inicial.
22. A generalidade das convenções e dos fóruns internacionais recomendam
intensamente a adopção do confisco como eficaz instrumento de luta contra o crime, bem como, das medidas cautelares necessárias à sua concretização.
23. A remissão para o processo civil no âmbito do arresto preventivo é apenas para as respectivas formalidades e não para o tipo de direitos que se pode fazer valer.
24. Não está em causa uma mera providência processual civil enxertada no processo penal, mas uma medida de garantia patrimonial que se aproxima das medidas de coacção tendo na base o ius imperium estadual, nomeadamente a necessidade de demonstrar que o crime não é uma forma legítima de aquisição processual. No recurso que apresentou entendemos que nenhuma das situações indicadas pelo recorrente integra qualquer nulidade.
25. Na verdade, nem as nulidades invocadas encontram reflexo no catálogo legal previsto para estas consequências jurídicas no CPP, nem por outro lado, as situações que foram invocadas como causa dessas nulidades apresentam qualquer desvio ao formalismo legalmente estabelecido.
26. Das diligências de inquérito que até ao momento foi possível realizar encontra-se fortemente indiciada a prática do crime enunciado no despacho que decretou o arresto, bem como da obtenção de benefícios patrimoniais deles resultantes, que deverão ser declarados perdidos a favor do Estado.
27. O ordenamento jurídico nacional impõe o confisco de bens que estejam na disponibilidade/titularidade do arguido e mesmo de terceiros.
28. Não está em causa nos presentes autos qualquer providência cautelar de arresto, mas antes, inequivocamente, a aplicação de uma medida de garantia patrimonial, desde logo, a aplicação de arresto preventivo, tal como previsto no artigo 228.º do CPP.
29. A esta medida, insiste-se, aplicam-se as regras do Código de Processo Penal, enquanto regime adjectivo, encontrando-se o respectivo regime substantivo previsto, integralmente, no Código Penal, cfr. artigo 109.º a 112.2.
30. A promoção do Ministério Público onde se requer que seja decretado o arresto enuncia, especificada mente, quer a factualidade que a sustenta quer os elementos de prova que sustentam cada um dos segmentos factuais invocados.
31. Concatenando a decisão colocada em crise pelo recorrente, constata-se que, na mesma, a Mma. Juiz a quo descreve os factos que considera indiciados, assim como os elementos de prova que sustentam tal conclusão, explicitando, ainda, as razões de direito que sustentam a decisão de decretamento de arresto preventivo que tomou.
32. Neste contexto, não se vislumbra estar-se perante o invocado incumprimento do dever de fundamentação que determine a suscitada nulidade.
33. A decisão judicial, pela forma descrita, expõe as razões de facto e de direito que conduziram à decisão tomada, ora colocada em crise.
34. Por outro lado, não padece o despacho recorrido do vício de omissão de pronúncia, designadamente porque se pronunciou sobre todas as questões que importava apreciar, considerando a específica posição do recorrente enquanto visado pela providência.
35. A decisão recorrida não violou as normas jurídicas relativas à aplicação do arresto preventivo, ou o regime substantivo relativo ao confisco das vantagens do facto ilícito típico.
36. O fumus bonus iuris concretiza-se no âmbito do arresto preventivo por referência ao Fumus Commissi Delicti, que se encontra nessa medida devidamente demonstrado.
37. No âmbito do arresto preventivo para garantia do confisco das vantagens do crime, não se exige a existência de receio de dissipação da garantia patrimonial
38. Ainda assim, no presente caso verifica-se a existência de periculum in mora, desde logo, porque este pressuposto existe sempre que as garantias faltem.
39. Nestes casos estará automaticamente demonstrado o periculum in mora e consequentemente legitimado o decretamento do arresto.
40. A demonstração da diminuição das garantias de pagamento do valor das vantagens do crime, seja por falta imputável ou não ao proprietário dos bens em causa, constitui apenas um dos fundamentos que podem ser invocados no momento de avaliar a existência do fundado receio, não sendo o modo exclusivo ou sequer o principal de o demonstrar.
41. Não foram violadas quaisquer normas jurídicas, designadamente os artigos 228.2 e 194.2 do CPP, nem o artigo 32.2 da CRP.
42. Por outro lado, a decisão recorrida não é inexistente, e encontra-se devidamente fundamentada, a que acresce que cumpriu inequivocamente todas as exigências formais previstas para a aplicação das medidas de garantia patrimonial.
43. O despacho de aplicação das medidas de garantia patrimonial não depende do cumprimento do formalismo previsto para a fundamentação da sentença, nem poderá decalcar-se para a aplicação a exigência de elencar os factos provados e não provados, o que sempre dependeria do exame crítico da prova, que nem é neste momento produzida, nem tal labor se compadece com a natureza e com as finalidades do despacho que aplica uma medida de garantia patrimonial (como de resto consta de abundante jurisprudência).
44. Por outro lado, convém ter sempre presente que o arresto preventivo aplicado nos presentes autos visa, exclusivamente, assegurar a eficácia do confisco das vantagens do crime.
45. Quando se fala em vantagens do facto ilícito típico fala-se em benefício ou incremento patrimonial e não em bens certos e determinados.
46. A generalidade das convenções e dos fóruns internacionais recomenda intensamente a adopção do confisco como eficaz instrumento de luta contra o crime, bem como das medidas cautelares necessárias à sua concretização.
47. A remissão para o processo civil no âmbito do arresto preventivo é apenas para as respectivas formalidades e não para o tipo de direitos que se pode fazer valer.
48. Não está em causa uma mera providência processual civil enxertada no processo penal, mas uma medida de garantia patrimonial que se aproxima das medidas de coacção tendo na base o ius imperium estadual, nomeadamente a necessidade de demonstrar que o crime não é uma forma legítima de aquisição processual.
49. A conjugação desta garantia patrimonial com a caução económica impõe que em ambos os casos esteja em causa o mesmo objecto (isto é, para além do mais, a garantia da «perda das vantagens do facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondentes» cfr. actual artigo 227.º n.º 1 ai. b) e artigo 228.º do CPP).
50. A mesma solução será alcançada numa interpretação conforme ao direito europeu, quando impõe que os Estados-Membros adoptem as medidas necessárias para permitir o congelamento de bens, tendo em vista uma eventual decisão de perda subsequente, mesmo que eles estejam na posse de terceiros (artigo 7.º da Directiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Abril de 2014, sobre o congelamento e a perda dos instrumentos e produtos do crime na União Europeia).
51. Todos os rendimentos lícitos do arguido e da sua esposa foram considerados no cálculo do valor do património incongruente.
52. Acresce ainda que, para além desses rendimentos, foram igualmente considerados todos os valores que este comunicou à AT, e que constam das suas declarações de rendimentos.
53. Das diligências de inquérito que até ao momento foi possível realizar encontra-se fortemente indiciada a prática do crime enunciado no despacho que decretou o arresto, para o qual se remete, bem como da obtenção de benefícios patrimoniais deles resultantes, que deverão ser declarados perdidos a favor do Estado.
54. Sendo a apreensão, por seu lado, o mecanismo apto para garantir o perdimento das vantagens em espécie, ou seja, daquelas que é possível vincular ou conexionar directamente com a prática do facto ilícito típico.
55. O arresto incide apenas, por essa razão, sobre o património lícito, ou pelo menos sobre o património cuja licitude não foi possível demonstrar.
56. No presente caso o arresto foi aplicado com vista a garantir o confisco das vantagens do crime, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida.
57. A decisão recorrida não violou as normas jurídicas relativas à aplicação do arresto preventivo.»

4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer, concluindo pela seguinte forma:

«(…) somos de parecer que, tendo o arresto sido decretado antes da liquidação, impunha-se face ao disposto do referido nº 2 do art. 10º que estivesse demonstrada a existência de haver fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento das quantias em que o arguido viesse a ser condenado, o que não ocorreu
Nesta conformidade, somos de parecer que deverá o presente recurso ser declarado procedente nesta parte, ficando prejudicados os demais fundamentos invocados na motivação de recurso.»

5. Não houve resposta a este parecer, pelo que, efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Delimitação do objeto do recurso.

Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal (1), e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo Código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (artigo 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

Atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

a) – Saber se estão verificados os requisitos de decretamento do arresto, nomeadamente a alegação e prova de factos suscetíveis de integrarem o conceito de periculum in mora, nos termos previstos no artigo 10º nº2 da Lei nº5/2002 [Conclusões 32. a 42.].

b) – Em caso de resposta positiva à anterior questão:
- saber se ocorre nulidade do despacho que convidou o Ministério Público ao aperfeiçoamento do primeiro requerimento de arresto apresentado, nos termos do disposto no artigo 195º nº1 e 2 do Código de Processo Civil – [Conclusões 1. a 6.]
- saber se ocorre nulidade da decisão que decretou o arresto por não conter uma análise crítica da prova dos factos dados como provados, nos termos do disposto no artigo 615º nº1 alínea d) [b)] por violação do disposto no artigo 607º nº4, ambos do Código de processo Civil. [Conclusões 7. a 31.].
- saber se ocorre violação por parte da decisão de decretamento do arresto dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade e do disposto no artigo 193º nº1 do Código de processo Penal [Conclusões 43. a 66.].

2. Da decisão recorrida.

Atentas as questões a decidir enunciadas supra, importa transcrever o despacho de aperfeiçoamento datado de 27-01-2022 [referência 23991034]:

«Do pedido de arresto preventivo:
Nos termos constantes a fls. 1080 a 1882 veio o Ministério Público solicitar que face à “informação do GRA constante de fls. 218 (Apenso GRA Volume I) e a fim de assegurar as quantias que venham a ser apuradas, nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, al. f) 7.º, 10.º todos da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro” seja decretado “o arresto preventivo sobre os ativos localizados e identificados pelo GRA no âmbito do presente inquérito”.

Cumpre apreciar e decidir:

O arresto com vista à perda alargada de bens a favor do Estado constante dos arts. 7.º e 10.º da Lei 5/200, de 11 janeiro é uma medida criada no combate à criminalidade organizada, o qual tem por fim a: “restituição do arguido ao status patrimonial anterior à prática do crime” (…).
No plano processual, o regime de perda de bens previsto na Lei n.º 5/2002 está sujeito a um procedimento próprio, enxertado no procedimento criminal pela prática de algum dos crimes do catálogo, mas o legislador não deixou de ter em atenção diversas garantias processuais” (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 392/2015, disponível em:
http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20150392.html).

De acordo com o disposto no artigo 10.º, da Lei n.º 5/2002 (Arresto):

“1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2 - A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa.
3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.”.

Numa análise meramente literal parece resultar que o comando do n.º 2 desdiz o que resulta no número 3.
Contudo, atendendo à exposição de motivos da diretiva comunitária que está na base da lei 30/2017, de 30 de Maio não nos parece que assim seja.
O periculum in mora constante do n.º 2 associado aos fortes indícios refere-se as situações em que o arresto é decretado ainda sem a liquidação, mas com o apuro da existência de incongruência patrimonial, ou seja, durante a fase do inquérito.
A nova redação do n.º 2.º do art. 10.º da Lei 5/2002, permite que o arresto preventivo possa ser decretado sem a efetiva liquidação, mas sustentada, cumulativamente, na existência de fortes indícios de um dos crimes do catálogo, fumus bonus iuris e o periculum in mora, ao contrário do arresto requerido após a liquidação —, necessariamente após a acusação conforme determina o n.º 1 do art. 8º pois, os fortes indícios afastam a necessidade do fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais.
Não obstante, na primeira hipótese pode não haver liquidação, mas, tem de estar apurado o montante da incongruência.
Isto posto, no caso dos autos não há liquidação, pelo que o meio processual accionado pelo Ministério Público tem alçada no n.º 2, do artigo 10.º, da lei 5/2002.

Nestes termos o requerimento destinado ao pedido de arresto preventivo com vista à perda alargada de bens a favor do estado deve conter cumulativamente:

- factos atinentes aos fortes indícios da prática de um crime do catálogo (v. a. artigo 1.º, da Lei 5/2002);
- o fumus bonus iuris e o periculum in mora;
- o montante da incongruência (v. a. artigo 7.º, da Lei 5/2002);
- o pedido dos concretos bens a arrestar;
- e os meios de prova que sustentam os indícios, o montante da incongruência, o fumus bonus iuris e o periculum in mora.

Posto isto, analisado o requerimento de fls. 1080 e ss. constatamos que do mesmo não constam os factos atinentes aos fortes indícios da prática do crime imputado ao arguido, ao fumus bonus iuris e o periculum in mora e o pedido dos concretos bens a arrestar.
Logo, temos que concluir que tal requerimento se mostra deficientemente alegado.
Aqui chegados, de acordo com o n.º 4, do artigo 10.º, da Lei 5/2022, em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.
Por seu turno, decorre do artigo 228.º, do CPP que o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil.
Nos termos da lei processual civil – artigo 590.º, n.º 1, al. b) – nos casos de despacho liminar o juiz deve providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados (neste sentido, quanto ao arresto preventivo, ver Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo n.º 1492/17.4T9VRL-A.G1, de 10-05-2021 e Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 1833/17.4T8FIG.C1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Assim sendo e considerando-se o exposto, convida-se o Ministério Público a apresentar em 5 dias novo requerimento que cumpra os requisitos acima assinalados, sob pena de rejeição liminar.
Devolva ao Ministério Público.»

A decisão que decretou o arresto proferida pelo Tribunal a quo em é do seguinte teor (transcrição):
«DECISÃO
I. Relatório:
Nos termos constantes a fls. 1080 a 1882 dos autos principais veio o Ministério Público solicitar que face à “informação do GRA constante de fls. 218 (Apenso GRA Volume I) e a fim de assegurar as quantias que venham a ser apuradas, nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, al. f) 7.º, 10.º todos da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro” seja decretado “o arresto preventivo sobre os ativos localizados e identificados pelo GRA no âmbito do presente inquérito”, relativamente ao arguido J. L. filho de A. M. e de M. T., natural d de …, nascido em - de Maio de 1971, solteiro, Inspector Tributário, titular do C.C. ………, contribuinte n.º ………, casado em regime de comunhão de adquiridos e residente na Rua … n.º .., Bragança.
Foi proferido despacho de aperfeiçoamento e determinado que o arresto fosse autuado por apenso aos autos principais e foi determinada a junção das certidões matriciais e prediais dos imóveis identificados na petição de arresto, nos termos dos despachos que antecedem.
Não há lugar à audiência prévia do requerido, cujo contraditório terá lugar após a decisão (art. 393º, nº 1 do Código de Processo Civil ex vi art. 228.º, nº 1, 1.ª parte do Código de Processo Penal, aplicável, por seu turno, por força do art. 10º, n º4, da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro – vide acórdão do Tribunal Constitucional n.º 724/2014, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
O Tribunal é o competente, em razão da hierarquia, da matéria e do território.
O Ministério Público tem legitimidade para o presente procedimento cautelar.
O processo é o próprio e não existem nulidades, questões prévias ou incidentais que obstem ao conhecimento do mérito da causa e de que cumpra conhecer.
Inexistem outras exceções dilatórias, questões prévias ou nulidades de que cumpra conhecer e que obstem ao prosseguimento dos autos.
Os autos oferecem todos os elementos, pelo que se profere, de imediato, decisão (art. 393.º, n.º1, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 228.º, n.º1, 1.ª parte, do Código de Processo Penal, aplicável, por seu turno, por força do art. 10.º, n.º4, da Lei n.º5/2002, de 11.01).
II. O objeto do litígio consiste em saber se deve ser decretado o arresto preventivo dos bens e valores indicados do arguido, designadamente os saldos das contas bancárias e os imóveis melhor identificados pelo Ministério Público no requerimento inicial.

Nos presentes autos são questões a decidir:
a) Dos pressupostos do arresto preventivo;
b) Da suficiência dos bens a arrestar para segurança normal do crédito.

III – Fundamentação de facto:

Da prova produzida, o Tribunal considerou sumariamente provados os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa:

1. J. L. foi constituído arguido nos autos no dia 3.6.2020.
2. O arguido é casado com A. J., desde - de Outubro de 1997, no regime de comunhão de adquiridos.
3. À data dos factos aqui em causa o arguido desempenhava as funções de Inspector Tributário, nível 1, exercendo a sua actividade na Direção Geral de Finanças de Bragança.
4. No âmbito do desempenho das suas funções, no final do ano de 2018, o arguido procedeu a uma inspecção tributária junto da empresa T. F., que desenvolve actividade comercial na construção civil e venda de eletrodomésticos, gerida pelo denunciante T. F..
5. A inspecção iniciada pelo arguido visava apurar a existência de disparidades entre o facturado e a real actividade da empresa, que teria reflexo em sede de tributação de IVA e IRS, entre os anos 2015 e 2017.
6. No dia 2 de Abril de 2019, o arguido deslocou-se à sede da indicada empresa, sita na rua … n.º …, freguesia e concelho de … e apresentou ao denunciante um relatório provisório da inspecção.
7. Do teor do relatório apresentado, constatava-se que haveria disparidades entre os valores declarados em sede de IRS e IVA e o efectivamente auferido e recebido, determinando, assim, uma correcção das referidas declarações num valor total de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) a pagar pela identificada empresa, valor esse, que não se coadunava com a estrutura da empresa.
8. O denunciante, confrontado com o valor apresentado pelo arguido, receoso com o destino da empresa, nomeadamente o seu encerramento, considerando que se tratava de uma microempresa, caso pagasse tal quantia, solicitou ao arguido que o informasse da forma de impugnação de tal valor.
9. Nessa sequência, o arguido propôs a T. F. que baixaria o valor da correção caso lhe entregasse a quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros) em numerário.
10. Assim, o arguido combinou com o denunciante que o contactaria, via telefone, no dia seguinte para que lhe entregasse a quantia solicitada.
11. No dia 3 de Abril de 2019, o arguido contactou T. F. a questioná-lo se já tinha a quantia solicitada, ao que lhe foi respondido que não.
12. Perante tal resposta, o arguido retorquiu-lhe: “Então vou fazer o meu trabalho e vou apresentar ao meu chefe amanhã”, referindo-se apresentaria a correcção das referidas declarações num valor total de €150.000,00 (cento e cinquenta mil euros) ao seu chefe.
13. No dia 4 de Abril de 2019, o arguido deslocou-se à sede da empresa T. F. questionou o denunciante sobre se já tinha o dinheiro para lhe entregar, tendo aquele respondido negativamente.
14. Perante tal resposta, o arguido insistiu com o denunciante para que lhe entregasse a referida quantia de €5.000,00 (cinco mil euros) dirigindo-lhe as seguintes palavras: “Então vou fazer o meu trabalho e vai doer muito”, concluindo “Você tem o meu número de telemóvel, ligue quando quiser ou se lembrar de alguma coisa”.
15. Em junho de 2019, T. F. foi notificado pela Direcção da A.T. de Bragança da decisão final da inspecção, tendo sido determinado pela AT que o valor a pagar referente aos acertos dos anos 2015 a 2017 ao nível de IVA e IRS, seria € 14.000,00 (catorze mil euros).
16. O arguido A. P. é sócio-gerente da empresa Granitos …, Lda. e dedica-se ao ramo da transformação e comercialização de granitos e mármores tendo a sua Sede na Zona Industrial, lote .., …, ….
17. Em data não concretamente apurada, mas, seguramente, entre o ano de 2016 e 2017 o arguido A. P., foi fiscalizado pelo arguido J. L..
18. Na sequência de tal inspecção, o arguido apresentou-lhe uma correção do imposto a pagar, multas, juros e custas no valor de €100.000,00 (cem mil euros), beneficiando de uma redução para o valor de €75.000,00 (setenta e cinco mil euros) por ter aderido ao pagamento voluntário com perdão fiscal.
19. Apesar de discordar do valor apresentado J. P. pagou o mesmo.
20. Durante a acção inspectiva levada a cabo pelo arguido J. L. nas Instalações da sua empresa o arguido J. L. propôs ao arguido J. P. que lhe entregasse uma quantia monetária a troco de uma redução de imposto e multas a pagar à AT.
21. Nessa sequência, o arguido J. L. convidou-o para se deslocarem ao exterior da empresa para conversarem a sós.
22. Após, o arguido J. L. disse ao arguido J. P.: “Ó sr. J. P., a vida custa a todos, eu posso ajudar mas… sabe como é, a vida está difícil para todos... Pelas minhas contas você tem €200.000,00 euros para pagar, mas eu posso ajudar…”.
23. Aproveitando o facto do arguido J. P. se mostrar assustado com o valor anunciado, cujo pagamento poderia levar ao encerramento da empresa, o arguido J. L. disse-lhe: “Eu posso ajudá-lo mas para isso preciso de 5.000,00 € e tem de ser em numerário.”.
24. Nessa sequência, o arguido J. P. entregou, em mão, ao arguido J. L. a quantia de €1.000,00 (mil euros).
25. Seguidamente, o arguido A. M. disse ao arguido J. P. que mais tarde se encontrariam para que este lhe pagasse a quantia restante.
26. Entretanto, o arguido J. P. foi notificado pela AT do valor de correção, coima, custas e juros num valor correspondente a €100.000,00 (cem mil euros).
27. O arguido J. L. actuou da forma descrita com o propósito de obter benefícios a que bem sabia não ter qualquer direito, na quantia monetária solicitada, bem sabendo, que tal atentava contra as funções públicas que desempenhava, actuando com deslealdade para com o Estado – A. T., que nele confiou que desempenhasse as funções que lhe estavam confiadas com total respeito pelos deveres inerentes àquelas.
28. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.
29. Durante o período compreendido entre o dia 4 de Junho de 2015 e o dia 31 de Dezembro de 2019 o arguido obteve rendimentos de trabalho e provenientes de mais-valias tendo apresentado perante a Administração Tributária, os seguintes rendimentos, para efeitos de IRS, em conjunto com a sua cônjuge, no montante global de 133.616,92 €, que se discriminam nos seguintes termos:




30. O arguido não obteve durante o referido período outros rendimentos lícitos conhecidos.
31. O arguido no período compreendido entre o dia 4 de Junho de 2015 e o dia 31 de Dezembro de 2019 possuiu um património composto por bens móveis, imóveis, depósitos bancários e produtos financeiros.
32. O arguido e a sua esposa no período compreendido entre o dia 4 de Junho de 2015 e o dia 31 de Dezembro de 2019 as seguintes contas bancárias:
33. No período referido o arguido apresentou movimentos de crédito no valor global de €323.294,54 (trezentos e vinte e três mil euros duzentos e noventa e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos).
34. Durante os cinco anos que antecederam a constituição como arguido de J. L., o arguido auferiu rendimentos lícitos no valor global de €133.616,92 (cento e trinta e três mil seiscentos e dezasseis euros e noventa e dois cêntimos).
35. Assim, verifica-se que o arguido possuiu o valor de €189.677,62 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos) (€323.294,54 - €133.616,9), que se traduz na diferença entre os movimentos de crédito e os rendimentos declarados em sede fiscal.

B. Da prova produzida, inexistem factos não indiciariamente provados, com relevo para a boa decisão da causa, não se tendo o Tribunal pronunciado sobre matéria conclusiva ou conclusiva.

C. MOTIVAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal fundamentou a sua convicção na prova produzida em sede de inquérito, globalmente analisada e concatenada, em conjugação com as regras da lógica e da experiência comum e normalidade do devir (artigo 127.º, do CPP).

Concretizando.
O Tribunal considerou os elementos probatórios constantes dos autos, designadamente as declarações prestadas pelo arguido J. P. perante Autoridade Judiciária, nomeadamente em sede de interrogatórios judiciais; depoimentos das testemunhas T. F., M. H., A. R., A. V., C. F., M. B., C. F., R. P., A. B., C. M., P. P.. Todos os documentos constantes dos autos, designadamente: elementos bancários, fls. 537 a 547, 676 a 748, 761 a 768, 773 a 849, 887 a 931; relatório intercalar, fls. 265 e ss.; auto de busca e apreensão, cf. Fls. 409 e ss., relatório intercalar, cf. Fls. 453 e ss.; decisão final da AT, Apenso 2; Projecto e anotações da decisão administrativa e documentos contabilísticos, cf. Apenso 3; Análise de informação bancária, …….95 Volume I; Transcrição das escutas telefónicas que integram o Apenso I dos autos; Sessões intercepção telefónica 416 e 2498; Todos os documentos que constam do apenso de recuperação de activos, nomeadamente, as tabelas de análise de património e rendimento constantes do Apenso GRA e certidões matriciais e prediais juntas por ordem do Tribunal.

III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

A Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, estabeleceu medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, definindo, para tanto, um regime especial em matéria de recolha de prova, quebra de sigilo profissional e perda de bens a favor do Estado.
Assim, o artigo 1.º da referida Lei estabelece um “catálogo” de crimes que se caracterizam não só pelo grau de sofisticação e organização com que são praticados, mas também, e sobretudo, pela sua capacidade de gerar avultados proventos para os seus agentes.

Dispõe o artigo 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, que [sublinhado nosso]:

“1 - Para garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido.
2 - A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa.
3 - O arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime.
4 - Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.”.

O facto de o arresto ser decretado independentemente dos pressupostos referidos no artigo 227.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, significa que se dispensa a existência de fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente a garantias de pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, bastando a existência de indícios da prática do crime.
E mais dispõe o artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, que, “em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito”.

E acrescentam os n.ºs 2 e 3 do aludido normativo que:
“2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens:
a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;
b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;
c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.
3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.”.

São, assim, os seguintes os pressupostos para o decretar o arresto de bens que sofrerão a perda alargada a favor do Estado:
a) a existência de fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo previstos no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro;
b) a desconformidade do património do arguido, ou seja, o património apurado tem de ser incongruente com o rendimento lícito.

De facto, mesmo depois da alteração legislativa introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de maio, tais pressupostos mantiveram-se, tendo o legislador tão somente introduzido uma nova possibilidade de arresto quando o Ministério Público ainda não tenha realizado a liquidação, nesse caso exigindo um requisito suplementar (além dos fortes índicos do crime), a existência de um fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais.
“Estando em causa um procedimento cautelar, não se pode exigir, nesta fase, o estabelecimento de um grau de certeza, relativamente aos factos integradores do ilícito criminal, ao nível do exigível a final, para efeitos de condenação; aqui, os factos a partir dos quais funcionará a referida presunção legal, deverão provar-se para além de qualquer dúvida razoável. Para o decretamento do arresto a que se refere o artº 10º da Lei 5/2002 não será de exigir concretamente a ocorrência de uma probabilidade séria da existência do direito (pois que esta se presume), nem de um fundado receio de diminuição ou de descaminho das garantias patrimoniais (‘periculum in mora’), pois que a norma do seu nº 3 o dispensa. Apenas exige a lei que existam fortes indícios da prática de crime previsto no catálogo” (vide acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11.10.2017, no proc. n.º 22/09.6ZRCBR-E.C1, disponível em www.dgsi.pt).

No caso concreto, dos factos descritos resulta fortemente indiciada a prática pelo arguido dos factos descritos no requerimento inicial, que integram a prática, em abstracto, em coautoria material e na forma consumada, de pelo menos um crime de corrupção passiva para ato ilícito, p. e p. pelo artigo 373.º, n.º 1 do Código Penal.
E tal crime integra o elenco de crimes referido na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, tal como resulta do artigo 1.º, n.º 1, alínea f).
Tendo em conta a presunção que resulta do artigo 7.º, n.º 1, do referido diploma legal, presume-se como vantagem da atividade criminosa do arguido/requerido a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, no caso, no valor de € 189.677,62 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos) (€323.294,54 - €133.616,9), traduzido na diferença entre os movimentos de crédito e os rendimentos declarados em sede fiscal pelo arguido.
Existe uma clara desproporção entre o montante recebido licitamente e aquele que foi apurado nos termos acima exarados.
O valor do crédito a assegurar nos autos (“fumus bonus juris”), a este tempo é, pois, de € 189.677,62 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos), por ser este, provisoriamente, aquele que pode vir a ser declarado perdido a favor do Estado.
A diminuição de garantias patrimoniais no caso presume-se.
Assim, o Tribunal entende ser de decretar o arresto preventivo dos saldos bancários e bens imóveis titulados do arguido necessários e suficientes a acautelar o montante da incongruência apurado - 189.677,62 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos).
À semelhança das restantes medidas de garantia patrimonial, também o arresto para garantia da perda alargada está sujeito aos princípios da necessidade, adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade (cfr. sobre toda esta matéria, João Conde Correia, Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, pág.186 e segs.).
Para garantir a efetiva perda daquele valor incongruente, pode o Ministério Público requerer ao juiz que decrete o arresto de bens do arguido.
O arresto pode incidir sobre bens de que formalmente é titular um terceiro.
O titular de direitos afetados pela decisão pode, tal como o arguido, ilidir a presunção do art. 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, nomeadamente provando (através da demonstração inteligível dos fluxos económico-financeiros na origem das aquisições em causa) que os bens foram adquiridos com proventos de atividade lícita. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, p. 1420/11.0T3AVR-N - G1, de 20-03-2017, disponívelemhttp://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/d6ade2a77c9df4c3802580f300486ffc?OpenDocument).
A expressão “titular” (p. no artigo 7.º, n.º 2, al. a), da Lei 5/2002) é idónea a compreender não apenas o direito de propriedade, mas também outras formas jurídicas.
Efetivamente, todos os bens de que o arguido tenha o domínio e o benefício, ou tenham sido por este transferidos para terceiro a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória nos cinco anos anteriores à sua constituição como arguido continuam, quer para efeitos de perda quer para efeitos de arresto, a ser “bens do arguido”.
Como diz João Conde Correia, ob. cit. pg. 106: "Com esta formulação ampla, escolhida no intuito de alargar o conceito de património confiscável e de evitar obstáculos jurídicos à sua perda alargada, o legislador português consagrou uma noção meramente económica. Para este efeito, o património não é constituído apenas pelo conjunto dos direitos e obrigações civis com caráter pecuniário de um determinado sujeito, abrangendo todas as posições ou situações economicamente valiosas tituladas pelo condenado, mesmo que desprotegidas, não tuteladas ou até contrárias ao direito civil: inclui tudo aquilo que materialmente ainda possa ser imputado ao condenado, mesmo que, do ponto de vista formal, não lhe pertença".
Visto isto, o Tribunal entende que é de decretar o arresto dos valores existentes nas contas bancárias indicadas pelo Ministério Público, dos bens móveis e do imóvel urbano inscrito na matriz sob o artigo ... e inscrito na conservatória do registo predial sob o número mil quinhentos e trinta e sete, mas não os demais imóveis, porquanto não são os mesmos titulados pelo arguido, nem é invocada pelo requerente qualquer conexão destes bens com a prática dos ilícitos aqui são imputados ao arguido.

IV. DISPOSITIVO:

Em face do exposto, os termos dos artigos. 7.º, 8.º e 10.º da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro, julga-se o presente procedimento cautelar parcialmente procedente, por parcialmente provado, e, em consequência, decide-se decretar o arresto dos seguintes bens:
- CONTAS BANCÁRIAS:
BANCO A / ...........58
BANCO B / ...........46
BANCO C / ...........00
BANCO D / ...........50
- BEM IMÓVEL:
Artigo Urbano, inscrito na matriz respectiva sob o artigo ... e inscrito na CRP sob o n.º ..., pela AP. 4179 de 2010/04/16, sito em ..., Bragança.
- BENS MÓVEIS:
MERCEDESBENZ, com matrícula OL;
OPEL VECTRA/LIM, com matrícula XZ.
Sem custas (artigo 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).
Registe e notifique, por ora, apenas o Ministério Público e o Gabinete de Recuperação de Ativos da Polícia Judiciária (GRA).
O arresto será efetuado pelo GRA, em conformidade com os artigos 4.º, n.º 3 e 9.º da Lei n.º 45/2011, de 24 de junho.
Após a realização do arresto, devidamente comunicado a este Tribunal, deverá o arguido/requerido ser notificado, em conformidade com o disposto no artigo 366.º, n.º 6, do Código de Processo Civil e para os efeitos previstos nos artigos 293.º n.º 2, e 365.º n.º 3, do mesmo diploma legal (ex vi artigos 228.º do Código de Processo Penal e 10.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro).»

3. Apreciação do recurso.

3.1. Da verificação dos requisitos de decretamento do arresto, nomeadamente a alegação e prova de factos suscetíveis de integrarem o conceito de periculum in mora, nos termos previstos no artigo 10º nº2 da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro.

De acordo com a decisão proferida e ora em crise, a presente providência cautelar de arresto foi decretada na sequência de requerimento apresentado pelo Ministério Público no sentido de ser decretado o arresto preventivo sobre os ativos localizados e identificados pelo GRA (Gabinete de Recuperação de Ativos) no âmbito do inquérito de que é apenso, relativamente ao arguido J. L., a fim de, por essa forma, assegurar as quantias que venham a ser apuradas, nos termos dos artigos 1.º, n.º 1, al. f) 7.º, 10.º todos da Lei 5/2002 de 11 de Janeiro.
Conforme resulta do mesmo requerimento e decisão, o arresto foi requerido por apenso ao processo de inquérito nº146/19.1JAVRL, onde se investiga a prática por parte do requerido, de crime de corrupção passiva para ato lícito previsto e punido pelo artigo 373º nº1 do Código Penal, em momento anterior à dedução de acusação e em que, embora existindo um cálculo por parte do GRA do valor do património incongruente do requerido, ainda não foi levada a cabo a liquidação a que se refere o artigo 8º da lei nº5/2002 de 11 de janeiro.
Cabe fazer um breve enquadramento do instituto da perda alargada de bens e do arresto com a mesma conexo, por ser nesse âmbito que se situa a questão a conhecer no presente recurso.
Nos termos do disposto no artigo 1º da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro, “A presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativa aos crimes de:
(…)”
Trata-se, portanto, do estabelecimento de um conjunto de medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, conforme decorre da tipologia de crimes constante das alíneas a) a r) do preceito legal transcrito.
Tais medidas, e concretamente as medidas previstas no seu artigo 7.º, inserem-se numa tendência político-criminal atual que tem merecido a atenção no plano do direito internacional e europeu e que vai no sentido de demonstrar, quer ao condenado, quer à comunidade, que “o crime não compensa”, através de mecanismos destinados a impedir que o condenado pela prática de crime que lhe tenha permitido obter elevados proventos possa conservar no seu património as vantagens assim obtidas.
Com efeito, no regime geral da perda de coisas e direitos relacionados com a prática de um ilícito criminal, previsto nos artigos 109.º e 110.º do Código Penal - “Perda de instrumentos ou produtos” – e no artigo 111º do Código Penal - “Perda de vantagens” – está sempre pressuposta a demonstração de que aqueles instrumentos, produtos ou vantagens foram obtidos, direta ou indiretamente, como resultado da prática de um facto ilícito, ou seja, exige-se a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido.
Tais mecanismos revelaram-se manifestamente insuficientes no que concerne ao combate ao crime organizado, de dimensão transnacional e, essencialmente, de cariz económico financeiro, relativamente ao qual as penas revelam menor eficácia do que a perda dos proveitos económicos da atividade ilícita.
Como refere João Conde Correia (2), “Só falando a mesma linguagem pecuniária será possível alcançar algum sucesso na luta contra o crime económico-financeiro, insensível à pena de prisão. Desta forma o legislador procura colmatar uma lacuna legal, permitindo, também, a perda de bens que, com grande probabilidade, provêm da prática do crime”.
É, pois, neste contexto, que surge a Lei nº5/2002 de 11 de janeiro (3).
Com este regime, em caso de condenação por um dos crimes integrantes do catálogo previsto no seu artigo 1.º, aprecia-se a congruência entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos, sendo declarado perdido em favor do Estado o valor do património do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos lícitos, se o arguido não ilidir a presunção de que esse património excessivo resultou da atividade criminosa.

Isso mesmo resulta da exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 94/VIII (que esteve na origem da referida Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro), onde se refere, a esse respeito, que:

«(…) a eficácia dos mecanismos repressivos será insuficiente se, havendo uma condenação criminal por um destes crimes [identificados no artigo 1.º], o condenado puder, ainda assim, conservar, no todo ou em parte, os proventos acumulados no decurso de uma carreira criminosa. Ora, o que pode acontecer é que, tratando-se de uma actividade continuada, não se prove no processo a conexão entre os factos criminosos e a totalidade dos respectivos proventos, criando-se, assim, uma situação em que as fortunas de origem ilícita continuam nas mãos dos criminosos, não sendo estes atingidos naquilo que constituiu, por um lado, o móbil do crime, e que pode constituir, por outro, o meio de retomar essa actividade criminosa», acrescentando-se ainda que, com este regime, se prevê que «(…) em caso de condenação por um dos crimes previstos no seu artigo 1.º, se aprecia a congruência entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos. O valor do património do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos cuja licitude fique provada no processo são declarados perdidos em favor do Estado».

No entanto, embora não se exija a prova da conexão entre o ilícito criminal e os respetivos proventos, o regime resultante do disposto nos artigos 7.º e 9.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, estabelece como requisitos do confisco alargado o que segue.
Em primeiro lugar, terá de haver condenação por um dos crimes previstos no artigo 1.º da referida Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro (tráfico de estupefacientes, terrorismo e organização terrorista, tráfico de armas, tráfico de influência, recebimento indevido de vantagem, corrupção ativa e passiva, peculato, participação económica em negócio, branqueamento de capitais, associação criminosa, pornografia infantil e lenocínio de menores, dano relativo a programas ou outros dados informáticos e sabotagem informática, tráfico de pessoas, contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda, lenocínio, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados).
Em segundo lugar, terá de concluir-se, após avaliação, existir uma diferença entre o valor do património do arguido (integrado pelos bens enumerados nas alíneas a) a c), do n.º 2, do artigo 7.º) e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Existindo essa incongruência de valores, a lei presume que tal diferença constitui vantagem de uma atividade criminosa.
É o que estabelece o artigo 7º nº1 da Lei nº5/2002: “Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.”
Esta avaliação/liquidação que tem como resultado a verificação de discrepância entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito terá de ser invocada pelo Ministério Público na acusação (4), em que deverá fazer a liquidação do montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado ou, não sendo possível a liquidação no momento da acusação, a mesma poderá ainda ter lugar até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento (cfr. artigo 8.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro).
Esta liquidação é notificada ao arguido e ao seu defensor (cfr. artigo 8.º, n.º 4 da Lei n.º 5/2002), podendo o arguido apresentar a sua defesa na contestação, se a liquidação tiver sido deduzida na acusação, ou no prazo de 20 dias a contar da notificação da liquidação, caso esta tenha sido posterior à acusação (cfr. artigo 9.º, n.º 4 da Lei n.º 5/2002).
Conjuntamente com a sua defesa, o arguido poderá oferecer a prova no sentido de demonstrar a origem lícita dos bens (cfr. artigo 9.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2002), de forma a ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 7.º, nos termos previstos nos n.ºs 1 a 3, do artigo 9.º, da Lei n.º 5/2002. Para tal, o arguido pode utilizar qualquer meio de prova válido em processo penal (cfr. artigo 9.º, n.º 2, da Lei 5/2002, e 125.º do Código de Processo Penal), não estando sujeito às limitações probatórias que existem, por exemplo, no processo civil ou administrativo.
E, no que respeita aos factos cuja prova permite ilidir a presunção, para além de poder provar que os bens resultam de rendimentos de atividade lícita, o arguido poderá, em alternativa, provar que os bens em causa estavam na sua titularidade há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido ou que foram adquiridos com rendimentos obtidos no referido período (cfr. artigo 9.º, n.º 3, als. a), b) e c) da Lei n.º 5/2002).
Este, em traços gerais, o regime legal da perda alargada de bens a decretar em sede de sentença.
Por outro lado, como bem assinala João Conde Correia (5), «A criação de um mecanismo substantivo de confisco alargado, suscetível de confiscar o valor do património ilícito do arguido (artigos 7º e seguintes da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro) gerou também a necessidade de criar o correspondente mecanismo processual cautelar, capaz de assegurar a possibilidade mínima do cumprimento futuro dessa decisão final (já que não estão em causa os instrumenta ou producta sceleris, as recompensas dadas ou prometidas, as vantagens, o seu sucedâneo ou o seu valor, mas todo o património incongruente do arguido). Mais uma vez, se os bens confiscáveis não puderem ser, preventivamente ‘apreendidos’, quando chegar enfim o momento decisivo de executar a decisão nada restará. A globalização económica crescente arrasta a volatilidade do património, criando oportunidades inultrapassáveis para a sua fuga. Perseguir, depois, as suas pistas longínquas será, na maior parte dos casos infrutífero. Um dos maiores problemas do confisco é, por isso mesmo, a sua execução (…). Consciente deste problema essencial e dos instrumentos internacionais e europeus relativos às garantias processuais penais da possibilidade de executar o confisco, o legislador nacional – para além do regime material da perda alargada – criou a possibilidade suplementar do arresto de bens do arguido, no valor correspondente ao apurado, como constituindo vantagem da atividade criminosa (artigo 10º da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro)».
Assim, o arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal (prova do fundado receio da perda da garantia patrimonial), se existirem fortes indícios da prática de um crime do catálogo consagrado no artigo 1.º (artigo 10.º, n.º3 da Lei n.º 5/2002).
Por outro lado, pressupõe a lei que também se demonstre a existência de fortes indícios da existência de património incongruente com o rendimento lícito do requerido.
O arresto cessa se for prestada caução económica pelo valor da diferença entre o património do arguido e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito (artigo 11.º, n.º1 da Lei n.º 5/2002), e aquele e esta extinguem-se com a decisão final absolutória (artigo 11.º, n.º3 da Lei n.º 5/2002).
Em qualquer momento do processo, o Ministério Público pode requerer a redução do arresto ou a sua ampliação, se for apurado que o valor suscetível de perda é menor ou maior do que o inicialmente apurado, respetivamente (artigo 11º, n.º2, da Lei n.º 5/2002).
Finalmente, em tudo o que não contrariar o disposto na citada Lei n.º 5/2002, é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal (artigo 11.º, n.º4 da Lei n.º 5/2002), o qual, recorda-se, é decretado “nos termos da lei do processo civil” (artigo 228.º n.º1 do Código de Processo Penal).
Cabe agora analisar o caso do arresto decretado ao abrigo do disposto no nº2 do artigo 10º da lei nº5/2002 de 11 de janeiro, por ser nesse âmbito que se situa a questão a decidir no presente recurso.

A redação deste nº2 foi introduzida pela Lei nº 30/2017 de 30 de maio que, por sua vez, procedeu à transposição da Diretiva 2014/42/EU do Parlamento Europeu e do Conselho de 03-04-2014 e é do seguinte teor:

“A todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa.”
Seguiremos de perto, o estudo do Exmo. Juiz Desembargador José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho “A Transposição da Diretiva 2014/42/EU. Notas à Lei nº30/2017 de 30 de maio (Aspetos Processuais Penais), in “O novo Regime de Recuperação de Ativos à luz da Diretiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs”, 1ª edição, 2018, página 185 a 264.
Estamos, pois, no domínio do arresto requerido e decretado antes da liquidação que, como vimos, deve ocorrer na acusação ou, não sendo possível, até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento (cfr. artigo 8.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro) (6).
A redação do nº2 do artigo 10º na versão original da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro, era a seguinte: “A todo o tempo, o Ministério Público requer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa”.
Como pode verificar-se, a Lei nº30/2017 de 30 de maio, introduziu no dispositivo legal em causa a expressão “logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime”.
Do teor literal da mesma expressão resulta, por um lado, a clarificação da controvérsia existente, estabelecendo sem margem para dúvida, que o arresto pode ser decretado em momento anterior à liquidação, exigindo, porém, como se compreende, dada a fase embrionária da investigação, que seja alegada e demonstrada a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais (periculum in mora), para além dos fortes indícios da prática do crime, exigência esta, que já resultaria do disposto no nº3 do preceito e do próprio artigo 1º da Lei que define o seu âmbito de aplicação como restrito à perda de bem a favor do Estado relativa a um catálogo de crimes.
Acresce que é, também, necessário que se apure o montante da incongruência, sendo certo que, inexistindo liquidação (nos termos do disposto no artigo 8º levada a efeito na acusação e notificada ao arguido), o apuramento deste valor é feito pela apresentação de uma “liquidação provisória.”
Como bem se refere no estudo mencionado supra, “Sucede, porém, que em muitas situações a velocidade da investigação financeira ou patrimonial não acompanha a da investigação criminal. Assim, se já se recolheram fortes indícios da prática de um crime referido no artigo 1º da Lei nº5/2002, a investigação económico ou patrimonial pode ainda não permitir fornecer com suficiente rigor o valor daquela incongruência.
O desenrolar do processo pode levar o GRA e o Ministério Público a avançar com uma liquidação provisória ainda muito pouco consolidada, com o consequente requerimento e decretamento do arresto.
Impõe-se, por conseguinte, que em fase de inquérito o Ministério Público só formule um pedido de arresto antes da liquidação não apenas quando existam indícios fortes de desconformidade de património do arguido, mas também quando a extensão da incongruência esteja já suficientemente determinada, ainda que a nível indiciário.”
Quanto ao requisito da alegação e prova do “periculum in mora”.
Nos termos do disposto no artigo 10º nº4, “Em tudo o que não contrariar o disposto na presente lei, é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal.”

Por sua vez, o artigo 228º nº1 do mesmo código estabelece que: “Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil (…)”

Assim, o conceito de “periculum in mora” a ter em conta é o que resulta do disposto nos artigos 391º e 392º do Código de Processo Civil, a saber:

Artigo 391º nº1:
“Fundamentos
1 - O credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.”

Artigo 392º nº1:
“Processamento
1 - O requerente do arresto deduz os factos que tornam provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, com todas as indicações necessárias à realização da diligência.”
Como já se pronunciou o Tribunal Constitucional “(…) os requisitos de que depende o decretamento do arresto, também em processo penal por força da remissão consignada no art.º 228º, n.º 1, do CPP, respeitam tão só à aparência do direito de crédito e ao perigo da dissipação do património (cfr. artºs 391º e 392º, do CPC)” (7)
Assim, nos termos do disposto no artigo 392º nº1 do Código de Processo Civil, cabe ao requerente alegar e provar factos que tornem provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos.
Atenta a remissão feita pelo artigo 10º nº4 da Lei 5/2002 de 11 de janeiro para o disposto no artigo 228º do Código de Processo Penal e deste para o disposto na lei processual civil (artigos 391º e 392ª), impende sobre o Ministério Público o ónus de alegar e provar o periculum in mora.
De tudo resulta que para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial é necessário que se aleguem e provem factos concretos, objetivos, que demonstrem que o alegado receio é objetivamente fundado.
Embora não seja necessária a certeza de que a perda da garantia se torne efetiva, mas apenas que haja um receio justificado de que tal virá a ocorrer, não basta qualquer receio, sendo necessário, no dizer da própria lei, que o receio seja justificado.
Na verdade, no caso do nº2 do artigo 10º da Lei nº5/2002 de 11de janeiro, o legislador, considerando a inexistência de uma liquidação levada a cabo nos termos do artigo 8º e a agressividade e potencial ofensivo dos direitos do requerido de uma providência como é o arresto de bens, é muito claro na opção que faz pela exigência de alegação e prova do periculum in mora, em vez de apenas o presumir (como faz quando o arresto é decertado nos termos gerais dos nºs 1 e 3 do mesmo artigo 10º).
Como se referiu no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 06-03-2018, proferido no âmbito do processo nº1833/17.4T8FIG.C1 (8) “No arresto, o factualismo apto a preencher a previsão legal do requisito “justo receio” da perda da garantia patrimonial, pode assumir uma larga diversidade, nele cabendo casos como os de receio de fuga do devedor, da sonegação ou ocultação de bens, da situação patrimonial deficitária do devedor, ou qualquer outra conduta relativamente ao seu património, que, objectivamente, faça antever e temer o perigo de se tornar impossível ou difícil a cobrança do crédito.”

Também, por lapidar, se transcreve parte do acórdão do Tribunal da relação de Guimarães de 12-09-2019: (9)
A existência de justificado receio de perda de garantia patrimonial implica que seja «razoável essa possibilidade, por existirem condições de facto capazes de por em risco a satisfação do direito aparente ou, pelo menos, tornar consideravelmente difícil a realização do mesmo (Ac. da RP, 21.06.1987, C.J., Ano XII, Tomo 4, p. 218).
Compreendem-se, na «perda da garantia patrimonial», todas as situações em que haja: suspeita de fuga do devedor; abandono de empresa ou de estabelecimento; subtração ou ocultação de bens; dissipação de bens; actual ou iminente superioridade do passivo face ao activo (v.g. pluralidade de credores, com créditos globais superiores ao valor do património do devedor); falta de cumprimento de obrigações que, pelo montante ou circunstância do incumprimento, revele a impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das obrigações; ou risco de perda de garantias dadas antes em benefício do crédito invocado.
Não se exige, porém, que esta perda da garantia patrimonial seja já efectiva.
(…)
Já quanto ao «receio», importa que seja «justo», isto é, que se configure em razões objetivas, convincentes, capazes de justificarem a pretensão drástica do requerente, de subtrair bens à livre disposição do seu titular (não bastando por isso meras convicções daquele, simples desconfianças de carácter subjectivo, um receio porventura conjeturado e exagerado); e há de assentar em factos concretos, que o revelam à luz de uma prudente apreciação (Ac. STJ., de 20.10.1953, R.T. 72º, 16, B.M.J., 39º, 244, Ac. da RP, de 16.11.1956, J.R., 2º, 1069, Ac. do STJ, de 3.05.1957, B.M.J., 67º, 481, e Ac. do STJ, de 08.11.1960, B.M.J., 101º, 559).”
Conforme sumário do mesmo aresto: “Para comprovação do justo receio de perda da garantia patrimonial há que alegar factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, devendo assim atender-se à forma da actividade do devedor, à sua situação económica, à sua solvabilidade, à natureza do seu património, à dissipação ou extravio, ou ocultação que faça dos seus bens, à ocorrência de procedimentos anómalos que revelem o propósito de não cumprir a obrigação, ao montante do crédito em causa e à própria relação negocial estabelecida entre as partes, de forma que objectivamente se justifique a pretensão drástica do requerente de subtrair bens à livre disposição do seu titular.”

A propósito da densificação do conceito de periculum in mora, e respetivas exigências de alegação e prova de factos que o preencham, veja-se, entre outros:

- Na Doutrina: Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV vol., 2ª ed., pág. 187; Alberto dos Reis, in “CPC Anotado”, vol. II, págs. 19 e segs.; Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, vol. II, pág. 268; João Conde Correia, in “Comentário Judiciário Do Código de Processo Penal”, Tomo III, Almedina, 2021, páginas 623 e seguintes; Jacinto Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código de Processo Civil”, Vol.II, pág.191.
- Na Jurisprudência: acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 04/11/2009, processo nº 3944/08.8TDLSB-B.L1-5; do Tribunal da Relação do Porto de 25/11/2010, processo nº 93/10.2TBMAI.P1 e de 25-11-2010, processo nº93/10.2TBMAI.P1; do Tribunal da relação de Guimarães de 10.05.2021, processo nº1492/17.4T9VRL-A.G1 e de 27.09.2021, processo nº140/12.3TELSB-M.G1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 19-12-2012, processo nº244/10.7JAAVR-B.C1, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.

Regressemos ao caso dos autos.
Compulsada a decisão em crise verifica-se que, na mesma, foram considerados provados factos que consubstanciam a prática, por parte do requerido, de um crime de catálogo (artigo 1º nº1 alínea f) da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro), isto é, de um crime de corrupção passiva para ato ilícito previsto e punido pelo artigo 373º nº1 do Código Penal.

Tais factos são os enumerados de 1. a 28. e isso mesmo consta da decisão conforme excerto que se transcreve:

“No caso concreto, dos factos descritos resulta fortemente indiciada a prática pelo arguido dos factos descritos no requerimento inicial, que integram a prática, em abstracto, em coautoria material e na forma consumada, de pelo menos um crime de corrupção passiva para ato ilícito, p. e p. pelo artigo 373.º, n.º 1 do Código Penal.
E tal crime integra o elenco de crimes referido na Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, tal como resulta do artigo 1.º, n.º 1, alínea f).”

Por outro lado, consta da mesma decisão uma liquidação que conclui pela existência de património incongruente do requerido, calculado nos termos do disposto no artigo 7º da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro em € 189 677,62 (cento e oitenta e nove mil, seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos) – Factos provados 29. a 35.

A mesma decisão pronuncia-se no sentido de julgar verificado, também este requisito de decretamento do arresto requerido pelo Ministério Público (transcrição):

“Tendo em conta a presunção que resulta do artigo 7.º, n.º 1, do referido diploma legal, presume-se como vantagem da atividade criminosa do arguido/requerido a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, no caso, no valor de € 189.677,62 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos) (€323.294,54 - €133.616,9), traduzido na diferença entre os movimentos de crédito e os rendimentos declarados em sede fiscal pelo arguido.
Existe uma clara desproporção entre o montante recebido licitamente e aquele que foi apurado nos termos acima exarados.
O valor do crédito a assegurar nos autos (“fumus bonus juris”), a este tempo, é pois de € 189.677,62 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos), por ser este, provisoriamente, aquele que pode vir a ser declarado perdido a favor do Estado.”
Não obstante, a Mma. Juiz a quo considerou que: “A diminuição de garantias patrimoniais no caso presume-se.”
Atentas as considerações tecidas supra, não podemos sufragar este entendimento, atento o teor do nº2 do artigo 10º da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro.
Mas, mesmo que não se tivesse entendido assim, verifica-se que, não obstante o convite endereçado ao Ministério Público para completar o primeiro requerimento de arresto, não veio o requerente, no segundo requerimento formulado, alegar factos concretos de onde se pudesse extrair, com objetividade e alguma certeza, que as garantias de execução da decisão final de perda alargada corriam o risco de desaparecer ou de diminuir, pelo que, da decisão recorrida não consta como provado qualquer facto desta natureza.

Com efeito, naquele requerimento e no que tange a esta aspeto, refere-se:

“Por outro lado, entendemos igualmente que se verifica o pressuposto do periculum in mora. No âmbito do decretamento do arresto preventivo o periculum in mora será concretizado por referência ao “receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias de pagamento” do valor das vantagens, tal como determina o artigo 277º nº1 do CPP.
A concretização dos pressupostos de que “faltem” ou “diminuam” substancialmente as garantias de pagamento não suscita especiais dificuldades:
Existe receio que as garantias faltem, nomeadamente, sempre que o valor das vantagens seja superior ao valor do património do visado.
Existe receio que as garantias diminuam sempre que o visado tenha alienado ou se prepare para alienar uma parcela do património.
Na presente situação verifica-se a primeira condição.
No presente caso resulta, inequivocamente, que existe o manifesto receio que faltem as garantias de pagamento dos valores apurados, desde logo na medida em que o património do arguido, no presente, poderá ser insuficiente para satisfazer o confisco dos valores supra referidos.”
Também não podemos sufragar este entendimento, na medida em que, na verdade, o requerente se limita a presumir o periculum in mora, não alegando factos concretos suscetíveis de o consubstanciar.
Ademais, não se compreende o raciocínio expendido, na parte em que se afirma que o valor dos bens que constituem o património atual do arguido poderá ser insuficiente para satisfazer o confisco. Com efeito, o valor do património incongruente calculado, valor esse que se presume vantagem de atividade criminosa do requerido e que, nos termos expostos, será o que virá a ser objeto de declaração de perda na decisão final, está liquidado em € 189.677,62 (cento e oitenta e nove mil seiscentos e setenta e sete euros e sessenta e dois cêntimos) e a soma dos saldos atuais das contas bancárias que foram objeto de arresto e do valor patrimonial do imóvel, também arrestado, totalizam €468 144,54 (quatrocentos e sessenta e oito mil, cento e quarenta e quatro euros e cinquenta e quatro cêntimos).
Em conclusão, não tendo sido alegados e provados factos concretos de onde possa concluir-se existir periculum in mora falece um dos requisitos legais de decretamento do arresto, pelo que o despacho deveria ter sido de indeferimento do requerido pelo Ministério Público, não decretando o arresto peticionado.
Procede, pois o recurso.

3.2. – Tendo a resposta à primeira questão a decidir no presente recurso sido negativa, isto é, tendo-se decidido que não se verificam os requisitos legais de decretamento do arresto requerido, prejudicado fica o conhecimento das demais questões colocadas pelo recorrente e elencadas supra.
Com efeito, nestas circunstâncias não tem qualquer efeito útil apreciar a justeza da decisão sobre a matéria de facto provada [Conclusões 7. a 31.] o mesmo se verificando quanto à questão de saber se a decisão em crise violou os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade [Conclusões 43. a 66.].
Uma nota apenas para esclarecer que, também a questão de saber se ocorre nulidade do despacho que convidou o Ministério Público ao aperfeiçoamento do primeiro requerimento de arresto apresentado, nos termos do disposto no artigo 195º nº1 e 2 do Código de Processo Civil – [Conclusões 1. a 6.] – se mostra prejudicada.
Na verdade se, na sequência do despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento inicial do Ministério Público, tivesse este, no segundo requerimento que apresentou, alegado factos suscetíveis de integrar todos os requisitos legais de decretamento do arresto, teria sentido questionar a regularidade de tal despacho. Contudo, como assim não aconteceu, a questão nuclear mostra-se decidida e que é a de saber se se verificam, ou não, os requisitos legais de decretamento do arresto.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido J. L., revogando-se o despacho recorrido e, consequentemente, ordena-se o levantamento do arresto decretado.
Sem tributação em custas (artigo 513º, n.º 1, a contrario, do Código de Processo Penal).

(Texto elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
Guimarães, 13-07-2022

Os Juízes Desembargadores
Fátima Sanches (relatora)
Anabela Martins (adjunta)
Fernando Chaves (Presidente da Secção)
(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)




1. Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
2. In “Da proibição do Confisco à Perda Alargada”, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, S. A., 2012, página 101.
3. V.G. acórdão do STJ de 24-10-2006 in CJ STJ, III, 2006, ágina 217.
4. Note-se que, tendo em vista o procedimento cautelar de arresto previsto no artigo 10º da mesma lei nº5/2002, a avaliação deste património incongruente pode ocorrer mesmo em momento anterior, estando nesse caso, a providência sujeita a um regime mais exigente e apertado, como se referirá mais adiante.
5. Cfr. obra citada, página 186.
6. Remetemos para o estudo mencionado, páginas 213 a 217, quanto às diversas posições doutrinais e jurisprudenciais existentes antes da entrada em vigor da Lei nº nº30/2017 de 30 de maio, concretamente sobre a questão de saber se, em face da redação, então em vigor do nº2 do artigo 10º da Lei nº5/2002 de 11 de janeiro, o arresto poderia ser decretado antes da liquidação.
7. Cfr. Ac. do T. C. n.º 724/2014, de 28/10/2014, disponível ara consulta em www.dgsi.pt
8. Acórdão citado pela Mmª Juiz a quo no seu despacho convite ao aperfeiçoamento do primeiro requerimento de arresto e disponível para consulta em www.dgsi.pt
9. Processo nº 1641/19.8T8BCL-C.G1, relatora Exma. Desembargadora Vera Sottomayor, disponível em www.dgsi.pt,