Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
713/14.0T8VRL.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: SUPRIMENTO DE DEFICIÊNCIAS
CONVITE AO SUPRIMENTO
INOBSERVÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I - O n.º 4 do artigo 590.º CPC estabelece o dever do juiz "convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada".
II - A inobservância desse dever, traduzida na omissão de tal convite, consiste numa nulidade processual, a que se aplica o disposto no artigo 195.º CPC.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
Maria C instaurou a presente acção declarativa, que corre termos na Secção Cível da Instância Local de Chaves, da Comarca de Vila Real, contra José F, pedindo que:
"(…) deve a acção ser julgada procedente por provada, declarando que as partes viveram como se marido e mulher se tratasse, e em consequência ser declarado o direito da A. a metade do património comum resultante da união de facto e condenado o R. a entregar a A. essa metade, no montante de € 47 082.03 (quarenta e sete mil e oitenta e dois euros e três cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde a citação até integral pagamento.
Subsidiariamente seja o R. condenado a entregar à A. o respectivo valor de € 47 082.03 (quarenta e sete mil e oitenta e dois euros e três cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal em vigor desde a citação até integral pagamento, declarando-se o enriquecimento sem causa do R. à custa do empobrecimento da A."
Alegou, em síntese, que viveu com o réu desde 1984 até à primeira quinzena de Janeiro de 2014, com um interregno entre 1997 e 2000, vivendo como se fossem marido e mulher, em comunhão de mesa, leito e habitação. Mais alega que durante este tempo construíram um património comum, recusando-se agora o réu a partilhar o dinheiro e o imóvel de ambos, que, apesar de estarem em seu nome, são pertença dos dois.
O réu contestou dizendo, em suma, que iniciou uma relação de namoro com a autora em 1984, que se prolongou até princípios de 1997. No mais, o réu impugna, no essencial, o alegado na petição inicial, pois inexiste «sociedade de facto ou património comum e daí falece qualquer direito da A. a qualquer "partilha"» e "certo é que o R. não se enriqueceu à custa da A.".
Foi proferido saneador-sentença em que se decidiu:
"Pelo supra exposto, julga-se a acção totalmente improcedente e, em consequência, decide-se:
A) Absolver o Réu José F do peticionado;
B) Condenar a Autora Maria C no pagamento das custas processuais".
Inconformada com esta decisão, a autora dela interpôs recurso, que foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, findando a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
61 . A douta sentença considerou que não foram alegados factos suficientes para se considerar provada a sociedade de facto ou o enriquecimento sem causa.
62. Todavia, em momento algum convidou a A. a aperfeiçoar a petição inicial de forma a suprir eventuais irregularidades ou imprecisões,
63. Como impõe a lei processual civil.
64. Assim, foi violado com a douta sentença o artigo 590.º, n.º 4 resultando numa nulidade por excesso de pronúncia face ao conteúdo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) CPC.
65. Pelo que deve a douta sentença ser revogada e substituída por outra na qual se convide a A. a aperfeiçoar a petição inicial.
66. Por outro lado, realizou o tribunal a audiência prévia, todavia não seguiu o desígnio do artigo 591.º, n.º 1, alínea c) CPC,
67. Pois ao deparar-se com uma alegada falta de factos suficientes podia e devia o douto tribunal advertir as partes de forma clara e objectiva para o efeito.
68. Não o tendo feito o douto tribunal violou tal disposição legal como violou o princípio do contraditório ínsito no artigo 3.º, n.º 3 gerando uma nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 3 ambos do CPC pois tal advertência e tal possibilidade influíram irremediavelmente na decisão dos presentes autos.
69. Assim, em virtude de tal nulidade, sem prescindir do supra referido, deve a douta sentença ser revogada e repetida a audiência prévia com a finalidade do artigo 591.º, n.º 1, alínea c) do CPC..
70. Sem prescindir, das nulidades supra invocadas sempre resultava do processo elementos que determinavam o reconhecimento da sociedade de facto ou em último caso do enriquecimento sem causa do R..
71. Em primeiro lugar, a prova testemunhal produzida na providência cautelar apensada aos autos e que foi deferida com base na alegação dos mesmos factos trazidos na presente acção.
72. Prova que aliás iria ser reproduzida novamente com maior acuidade nos presentes autos, o que concretizaria de forma inegável os factos alegados pela A.
73. Em segundo lugar, ao longo de toda a petição inicial são alegados factos da sociedade de facto, o que facilmente se depreende com a leitura dos artigos, entre outros, do 1.º ao 5.º, do 7.º ao 13.º, 17.º a 24.º, 27.º e 28.º da p.i..
74. Em terceiro lugar, da própria prova documental junta aos autos pela A. também resulta a prova de tal sociedade., conforme doc. 1 a 6 da p.i.
75. Bem como da própria contestação pois o R. confessa vários factos alegados pela A.
76. Sem prescindir, em quarto lugar, são também alegados subsumíveis no enriquecimento sem causa nomeadamente, entre outros, os artigos 6.º, 11.º a 15.º, 17.º, 22.º, 23.º, 24.º a 28.º, 30.º, 32.º a 36.º, 39.º, 40.º, 41.º, 46.º a 50.º da p.i.
77. O mesmo se dizendo quanto aos documentos juntos na petição inicial.
78. Assim, constando nos autos factos e documentos integráveis quer no conceito da sociedade de facto, quer no enriquecimento sem causa, a decisão proferida havia de ter sido outra, nomeadamente uma que reconhecesse a união de facto e condenasse o R. ao pagamento do valor peticionado na p.i..
79. Ou por outra na qual, se determinasse a produção da prova testemunhal arrolada.
O réu apresentou contra-alegações onde termina dizendo que a "sentença apelada [deve] ser mantida e confirmada na íntegra, improcedendo o recurso interposto".
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil , delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir consistem em saber se:
a) "foi violado com a douta sentença o artigo 590.º, n.º 4 resultando numa nulidade por excesso de pronúncia face ao conteúdo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) CPC" ;
b) "ao deparar-se com uma alegada falta de factos suficientes podia e devia o douto tribunal advertir as partes de forma clara e objectiva para o efeito" e "não o tendo feito o douto tribunal (…) [cometeu] uma nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 3 ambos do CPC" ;
c) "constando nos autos factos e documentos integráveis quer no conceito da sociedade de facto, quer no enriquecimento sem causa, a decisão proferida havia de ter sido outra, nomeadamente uma que reconhecesse a união de facto e condenasse o R. ao pagamento do valor peticionado na p.i. ou por outra na qual, se determinasse a produção da prova testemunhal arrolada" .
II
1.º
Para a decisão das questões aqui em apreço importa ter presente que na petição inicial se alegou, para além do mais, que:
"1. A A. e R. viveram juntos desde 1984, apesar do R ter saído de casa entre 1997 e Dezembro de 2000. Tendo vivido juntos até a primeira quinzena de Janeiro de 2014 (…).
2. A. e R. , viviam como se fossem marido e mulher, em comunhão de mesa, leito e habitação.
3. Tomavam juntos as refeições, dormiam na mesma cama, partilhavam a mesma casa e repartiam todas as despesas e responsabilidades.
5. Nessa altura A. e R. previam que o dinheiro objecto de aforro dos rendimentos de ambos se destinaria a salvaguardar a velhice do casal.
6. Assim, ia sendo guardado no cofre da residência o dinheiro que era auferido mensalmente por ambos, quer fruto do trabalho da A., quer do R., montante esse movimentado em conjunto, como se de uma conta bancária conjunta se tratasse.
10. O R. foi trabalhar para Israel, durante um ano, permanecendo vários meses ausente face à distância, enviando os proventos do seu trabalho para a conta da A., através de transferência bancária, em moeda estrangeira, para o Banco Nacional Ultramarino (…), a fim de fazer face às despesas de ambos.
11. Posteriormente, após o regresso a Portugal, a A. e o R., na constância da vida em comum, e com os proventos vindos de Israel, acrescidos do abono da filha da Autora, a fim de compor a quota-parte da sociedade com Domingos Vilaça, adquiriam um estabelecimento comercial denominado "Cova Funda".
12. Posteriormente, vieram também a adquirir o "Café Ocidental", situado na sua área de residência.
13. Na mesma altura adquiriram em conjunto o primeiro carro, que usavam para a vida familiar.
14. O "Café Ocidental" veio a ser retomado mais tarde, em Janeiro de 2002, já noutras instalações, mas com a mesma denominação, na Travessa Ramalho Ortigão em Perafita.
15. Ambos trabalhavam no café, fazendo horários alternados, já que não tinham mais funcionários, sendo a abertura do estabelecimento feita pela A. (6h), que exercia funções de cozinheira e servente, e o fecho pelo R. (24h).
18. Posteriormente adquiriram juntos outro estabelecimento comercial em Custóias, denominado " Café Xá Fumega", continuando com os mesmos hábitos que usavam no anterior.
19. Em 2003, a A. e o R. combinaram adquirir um imóvel para residência permanente e própria de ambos, pelo que acordaram que o dinheiro objecto de aforro dos rendimentos de ambos se destinaria à restauração do imóvel e a salvaguardar a velhice do casal.
20. Pelo que compraram o imóvel sito no Lugar da Ribeira do Pinheiro, n.º 305, em Chaves (…).
21. Como 2.º outorgante na escritura apenas participou o R., pelo que o registo do aludido imóvel apenas foi efectuado em nome do R., pelo facto de na altura não quererem fechar o café para irem ambos à escritura.
22. Todavia, o imóvel foi (…) comprado com dinheiro de ambos.
23. Tal como as obras de restauro realizadas no imóvel, executadas durante o período de ausência do R. no estrangeiro resultaram do dinheiro comum.
24. A. e R. adquiriram ainda todo o recheio da habitação, constante do arrolamento, com o fruto dos seus rendimentos.
25. A A. foi assim, a impulsionadora da decoração da casa, compondo de comum acordo o lar, para onde se mudaram em 2006, após trespasse do café.
27. Devido a um contrato celebrado pelo R. em Fevereiro em 2010 para trabalhar em Itália, a A. ficou a tomar conta do lar, e do café sozinha.
28. A A. viu-se assim obrigada a ficar com o café sozinha, desde Dezembro de 2010 a Junho de 2011, enquanto o R. trabalhava naquele país.
29. O R. desde 2010, que esteve a trabalhar em Itália, passando com a A. apenas as férias e épocas festivas.
30. Desde Junho de 2011, data do trespasse do café, pelo montante de € 50.000 (…), tendo de imediato o R. recebido € 20.000 (…), e o remanescente dividido em prestações mensais e sucessivas de € 625 (…), montante que ainda se encontra a receber mensalmente.
33. Era a A. que adquiria habitualmente, assim como adquiriu em Outubro último o Selo do automóvel, para o actual automóvel matrícula XL-51-73, apesar de registado em nome do R. (…).
34. Além de que, desde 2011, que tratava do imóvel com terreno agrícola e actividade agrícola sozinha, apenas com pessoal para as actividades sazonais mais prolongadas.
35. A A. além de dona de casa, trabalhava as terras, adquiria as sementes e instrumentos agrícolas necessários, bem como pagava, entre outras despesas, despesas da casa, água e gás, e contribuição autárquica (…).
38. Durante estes anos a A. contribuiu sempre para a vida em comum.
39. Inicialmente e quando trabalhava por conta de outrem, com o seu vencimento.
40. Depois para além do trabalho da vida doméstica, sempre contribuiu na poupança das despesas do lar, bem como na aquisição de bens materiais e de conforto, para o bem-estar de ambos.
45. A relação vinha-se degradando pelo facto de o R. nunca ter fornecido a sua morada de residência em Itália, apesar das várias solicitações da A., e sempre se ter recusado incluir o nome da A. na conta onde estava depositado o rendimento aforrado por ambos.
46. Essa conta possuída pelo R. no Millennium BCP apesar de resultarem do esforço de ambos, é, contudo, titulada apenas pelo R. (…).
47. Acresce ainda o facto de o R. ter procedido à transferência do montante de € 70 574,06 (…), dinheiro resultante da cumulação dos lucros por parte de ambos, para uma outra conta em seu nome (…).
48. Sendo certo que além do mais, faz parte desta conta o valor de € 20 000, 00 recebidos do último trespasse, do estabelecimento comercial "Café Xá Fumega", bem como poderá fazer também cerca de € 15 000, que entretanto vêm sendo pagos mensalmente ao R. referente ao remanescente.
49. O R. por estar a viver com a A., não teve despesas com todo o trabalho doméstico por ela efectuado, nos estabelecimentos comerciais, nos móveis, nas roupas, e posteriormente no terreno agrícola que cultivava.
50. O R., apesar das diversas solicitações da A., recusa-se a partilhar não só os dinheiros comuns, como o imóvel, objecto de habitação de ambos, e o recheio do mesmo, por apenas estarem em seu nome, embora com pleno conhecimento que são pertença de ambos."
2.º
A autora censura a decisão recorrida por considerar que "foi violado (…) o artigo 590.º, n.º 4" . E começa por qualificar tal violação como uma "nulidade por excesso de pronúncia face ao conteúdo do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) CPC" , para depois também dizer que ela se traduz numa "nulidade nos termos do artigo 195.º, n.º 3 (…) do CPC" .
O n.º 4 daquele artigo 590.º dispõe que "incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (…)".
Há uma diferença significativa entre a redacção deste n.º 4 e a do n.º 3 do artigo 508.º do anterior Código de Processo Civil, onde se dizia que "pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (…)." Na vigência do anterior código, entendia-se que esse n.º 3 "tão só confere ao juiz um poder não vinculado, antes discricionário ou facultativo, não lhe impondo, consequentemente, sob pena de comissão de nulidade processual (art.º 201.º n.º 1 do CPC), o dever de ordenar, em despacho pré-saneador, a notificação da parte, convidando-a a completar o seu articulado, deficiente, com a invocação de factos relevantes para a decisão da causa."
Porém, hoje, com aquele n.º 4, este pré-saneador tem pressupostos diferentes, na medida em que "o despacho de aperfeiçoamento [é agora] um despacho vinculado" .
O juiz "tem o dever" de "convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada", quando se lhe afigurar que ocorrem tais "insuficiências ou imprecisões"; neste cenário está obrigado a assim agir.
Voltando ao caso dos autos, regista-se que o Meritíssimo Juiz analisou as pretensões da autora, tanto na perspectiva "da sociedade civil", como na "do enriquecimento sem causa", tendo chegado à conclusão de que "à luz da causa de pedir delimitada pela Autora na petição inicial, infere-se que os pedidos formulados pela mesma são manifestamente improcedentes, postulando-se a linear sucumbência da acção".
Para este juízo de improcedência o Tribunal a quo teve como relevante que:
- no que se refere ao Café Ocidental e ao Café Xá Fumega, "não é aduzida a causa de aquisição do mesmo e a eventual contribuição de cada uma das partes";
- relativamente ao imóvel sito no Lugar da Ribeira do Pinheiro, "a Autora cinge-se à proclamação de que o mesmo foi comprado com dinheiro de ambos, omitindo a discriminação dos valores aplicados por cada um";
- quanto ao montante de € 70 574,06, "a autora imputa-o a lucros por parte de ambos, porém, omite a génese dos mesmos";
- os "investimentos subsequentes" no estabelecimento comercial Cova Funda "são apodados de comuns, assinalando-se que a Autora não especifica o seu montante e a respectiva proveniência";
- "incumbia à Autora a alegação da falta de causa jurídica para eventuais deslocações patrimoniais, o que sucumbe de forma cristalina";
- "a Autora não especifica e discrimina factos constitutivos de enriquecimento do Réu como correlato do empobrecimento da autora";
- a autora "aflora a existência de lucros sem indicar a sua gestação individualizada";
- a autora "reconhece que o dinheiro referenciado no art.º 47.º) da petição inicial estava depositado numa conta do réu, sendo que não concretiza circunstâncias passíveis de atestar uma procedência comum do mesmo";
- a autora "descreve a prestação de serviços nos (…) estabelecimentos comerciais em termos assaz claudicantes e insusceptíveis de uma valoração patrimonial a se stante";
- "a autora não invocou a omissão de contribuição do Réu para a vivência comum, pelo que se indexava à mesma a dedução de factos qualificados que atestassem as vantagens de índole patrimonial auferidos pelo Réu em sede da união de facto, o que soçobrou de forma cristalina".
Há aqui, portanto, um conjunto de omissões que são consideradas decisivas para a sorte da acção. Fica a ideia de que sem elas, se porventura se viesse a provar a versão dos factos alegados pela autora, as suas pretensões podiam vir a ter, total ou parcialmente, sucesso; ou dito de outra forma, sem tais omissões, inexistia o fundamento em que radica o entendimento do Meritíssimo Juiz de que "os pedidos formulados pela (…) [autora] são manifestamente improcedentes" .
Então, tem que se concluir que, segundo o Tribunal a quo, na petição inicial há "insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto". Nesse caso, por força do disposto no artigo 590.º n.º 4, incumbia "ao juiz convidar (…) [a autora] ao suprimento (…) [dessas] insuficiências ou imprecisões", o que não foi feito.
3.º
Ora, a omissão deste despacho pré-saneador "constitui (…) nulidade processual, sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º-3 e 201.º" . Com efeito, "caso o juiz de 1.ª instância, por circunstâncias várias, não exerça o poder vinculado do convite ao aperfeiçoamento (art. 590.º, n.º 2) comete nulidade processual sujeita ao regime dos artigos 195.º, 197.º, 199.º, 200.º, n.º 3, e 201.º" .
Neste contexto, afigura-se que ocorreu, efectivamente, "a omissão de um acto (…) que a lei" prescreve, a qual pode "influir no exame ou na decisão da causa", o mesmo é dizer que, face ao artigo 195.º n.º 1, estamos na presença de uma nulidade processual.
Neste caso, a "omissão do acto", em que consiste a nulidade, é anterior à prolação do saneador-sentença, visto que a inobservância do que a lei exigia ao juiz situa-se em momento anterior a essa decisão . Sendo assim, o vício processual não está no saneador-sentença, encontra-se, necessariamente, antes dele, motivo por que se não acompanha o entendimento do Prof. Teixeira de Sousa de que se trata de "uma nulidade da decisão por excesso de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), nCPC)" , não obstante o profundo respeito que nos merece este eminente processualista.
4.º
Como é sabido, em regra, perante uma nulidade processual o interessado tem que contra ela reclamar e a reclamação é apresentada e julgada no "tribunal perante o qual a nulidade ocorreu, ou o tribunal a que a causa estava afecta no momento em que a nulidade se cometeu" . À partida, "as nulidades processuais que não se reconduzam a alguma das nulidades previstas no art. 668.º, als. b) a e) [do anterior CPC que correspondem às alíneas b) a e) do n.º 1 do actual artigo 615.º], estão sujeitas a um regime de arguição ou preclusão que não é compatível com a sua invocação apenas no recurso da decisão final. A impugnação que neste recurso eventualmente se possa enxertar deve restringir-se às decisões que tenham sido proferidas sobre reclamações oportunamente deduzidas com base na omissão de certo acto, da prática de outro que a lei não admita ou da prática irregular de acto que a lei previa" .
No entanto "se a nulidade está coberta por uma decisão judicial (despacho), que ordenou, autorizou ou sancionou o respectivo acto ou omissão em tal caso o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente, a deduzir (interpor) e tramitar como qualquer outro do mesmo tipo." Esta excepção à regra tem por subjacente a ideia de que "a decisão não vale somente pela vontade declarada que nela se contém, vale também pelos pressupostos tacitamente resolvidos."
No nosso caso, um dos "pressupostos tacitamente resolvidos" no saneador-sentença é o da desnecessidade de se se dirigir à autora o convite a que se reporta o n.º 4 do artigo 590.º, o mesmo é dizer que a nulidade cometida está coberta pela decisão proferida, o que significa que o meio próprio para a atacar é o (presente) recurso .
Aqui chegados, dúvidas não restam de que se impõe a anulação da decisão recorrida, devendo o Tribunal a quo convidar a autora a suprir as "insuficiências ou imprecisões" que considere que existem na petição inicial.
Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada nas conclusões 78.ª e 79.ª.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso, pelo que:
a) revoga-se a decisão recorria;
b) ordena-se que o Tribunal a quo profira despacho a convidar a autora a, nos termos do disposto no artigo 590.º n.º 4, suprir as "insuficiências ou imprecisões" que considere que existem na petição inicial, apresentando, para esse efeito, articulado em prazo a fixar.
Custas pelo réu.
23 de Junho de 2016
(António Beça Pereira)
(António Santos)
(Maria Amália Santos)
*
1 A autora inicia as suas conclusões com este número.
2 São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
3 Cfr. conclusão 64.ª.
4 Cfr. conclusões 67.ª e 68.ª.
5 Cfr. conclusões 78.ª e 79.ª.
6 Cfr. conclusão 64.ª.
7 Cfr. conclusão 64.ª.
8 Cfr. conclusão 68.ª.
9 Sublinhado nosso.
10 Ac. STJ de 18-11-2011 no Proc. 58508/09.9YIPRT.L1.S1, www.gde.mj.pt. Neste sentido veja-se ainda Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2.ª Edição, pág. 504 e Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, pág. 384.
11 Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 3.ª Edição, pág. 146. Neste sentido veja-se Urbano Dias, texto de 16-6-2014 em http://blogippc.blogspot.pt, Ac. Rel. Lisboa 15-5-2014 no Proc. 26903/13.4T2SNT.L1-2 em www.gde.mj.pt e Teixeira de Sousa, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, todos estes autores citados neste aresto.
12 Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 3.ª Edição, pág. 157.
13 Salvo melhor juízo, não vale a pena discutir aqui se estas omissões conduzem, ou não, à improcedência de todos os pedidos, sendo certo que, face ao alegado nos artigos 1.ª a 3.º e 7.º a 9.º da petição inicial, custa a compreender que, uma vez provada tal realidade, não fosse procedente o pedido de declaração de "que as partes viveram como se marido e mulher se tratasse".
14 Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 3.ª Edição, pág. 157. Ver igualmente a pág. 146.
15 Urbano Dias, texto de 16-6-2014 em http://blogippc.blogspot.pt. Neste sentido veja-se também o Ac. Rel. Lisboa de 15-5-2014 no Proc. 26903/13.4T2SNT.L1-2 citado pela autora nas suas alegações.
16 Leia-se, a violação do disposto no artigo 590.º n.º 2 b) e n.º 4.
17 Não era no saneador-sentença que o juiz devia "convidar (…) [a autora] ao suprimento (…) [das] insuficiências ou imprecisões" existentes na petição inicial.
18 Comentário de 9-4-2014 em http://blogippc.blogspot.pt, o qual é citado pela autora nas suas alegações.
19 Há algumas excepções como é, por exemplo, a prevista na parte final do n.º 4 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
20 Também aqui há excepções, nomeadamente no caso das nulidades mencionadas no n.º 2 do artigo 198.º e na situação prevista no n.º 3 do artigo 199.º, ambos do Código de Processo Civil.
21 Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, 1945, pág. 513. Isso também resulta do artigo 199.º.
22 Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil Novo Regime, pág. 187.
23 Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 183.
24 Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. II, 1945, pág. 510.
25 E não reclamação perante o tribunal que a cometeu.