Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
815/16.8T8GMR.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: INSOLVÊNCIA
IMINÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1) A impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, na insolvência, não significa que se tenha de fazer a prova de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações, basta a prova de que o devedor não consegue cumprir obrigações vencidas que demonstrem não ter possibilidade de cumprir as restantes;
2) A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente pela insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível.
Decisão Texto Integral: Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Maria Cristina Cerdeira
2º Adjunto: Desembargador Joaquim Espinheira Baltar
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I. RELATÓRIO
A) Fernanda M veio requerer a declaração de insolvência, onde conclui pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência:
a) Seja decretada insolvência da apresentante, por a mesma não dispor de meios ou bens para fazer face às suas obrigações;
b) Seja deferido o pedido de exoneração do passivo existente, porquanto a requerente preenche os requisitos e se dispõe a observar as condições exigidas.
Para tanto alega, em síntese que se encontra desempregada, auferindo mensalmente €419,10, a título de Subsídio de Desemprego, sendo proprietária de um veículo automóvel, matrícula 00-55-GE, marca VOLKSWAGEN, modelo POLO, de 1996, sem valor comercial e não possui qualquer outro bem ou rendimento, habita em casa arrendada, pela qual paga mensalmente a renda de €220,00 e é com aquele rendimento que suporta as suas despesas de alimentação, saúde e vestuário e demais encargos da vida corrente, no que despende a quantia média mensal não inferior a €150,00, suportando as despesas do consumo de gás, eletricidade e água, com quantia média mensal não inferior a €75,00.
Refere ainda que o aludido rendimento é integralmente consumido nas referidas despesas domésticas próprias, rendimento esse que não cobre as suas despesas de subsistência, pelo que só o apoio dos familiares permite à requerente acudir às suas necessidades básicas.
Em 21-07-2010, a requerente assinou uma livrança em branco, em garantia de um contrato de crédito da filha Susana F, que aquela contraiu com o M – Instituição Financeira de Crédito, S.A., para aquisição de um veículo automóvel, estando aquela numa situação de incumprimento e a requerente, devido à instabilidade de trabalho e parcos rendimentos que usufruía, não conseguiu cumprir as obrigações assumidas, nem pagar o referido débito, pelo que foi instaurado contra ambas, para pagamento da quantia de €10.514,48, acrescida de juros, no montante global de €12.846,68, até ao momento, tendo sido movida uma execução contra ambas.
Acrescenta que, na presente data, o valor do seu único ativo é manifestamente inferior ao valor do passivo, pelo que a requerente não tem qualquer possibilidade de pagar a dívida que contraiu, verificando-se a situação de incumprimento generalizado de todas as obrigações da requerente.
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B) Foi proferido o despacho de fls. 20 e vº onde se decidiu:
“Fernanda M, NIF 211 527 050, divorciada, residente na Rua C, n.º 76, na cidade de Fafe, 4820-171 FAFE, veio apresentar-se à insolvência alegando não estar em condições de pagar as suas dívidas que atualmente se cifram em €12.846,68.
Dispõe o artigo 27º nº 1 alínea a) do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas que “No próprio dia da distribuição ou, não sendo tal viável, até ao terceiro dia útil subsequente, o juiz indefere liminarmente o pedido de declaração de insolvência quando seja manifestamente improcedente (…)”.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (Cfr. artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas (Cfr. artigo 3, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Por último, encontra-se ainda equiparada à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de ter sido o próprio devedor a apresentar-se à insolvência (Cfr. artigo 3º, nº 4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Dentro dos factos índices da insolvência surge no art. 20º do CIRE a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou circunstâncias, revelem impossibilidade de satisfação da generalidade das obrigações.
Ora, face aos factos aduzidos, não obstante ser de forma coativa, o requerente encontra-se a pagar o aludido crédito, não havendo ainda notícias de insatisfação da ação executiva que lhe foi movida, nem sendo o montante da dívida por si só revelador da impossibilidade de incumprimento.
Acrescendo que, também não está demonstrada a insuficiência de bens penhoráveis, da devedora principal (cfr. Ac. TRG de 10/09/2015, Proc. Nº 2860/15.1 T8GMR).
Pelo exposto, e por estarmos perante um caso de manifesta improcedência indefere-se liminarmente o pedido de declaração de insolvência.
Cumpra o disposto no art. 27º nº 2 do CIRE.
Valor da ação: €5.000,01
Custas pela A.”
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C) Inconformada com o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência, veio a requerente F (fls. 28 vº e segs.) interpor recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir nos próprios autos, com efeito devolutivo (fls. 34).
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D) Nas suas alegações, a apelante Fernanda M, formula as seguintes conclusões:
A) O tribunal a quo não observou as regras da normalidade e da experiência na interpretação dos factos trazidos a juízo pela recorrente, daí resultando um manifesto erro na apreciação da prova, porquanto decorre do invocado na petição que a devedora comprovadamente não pode cumprir as obrigações vencidas, nem poderá fazê-lo num futuro próximo.
B) A apelante evidencia manifesta incapacidade económica e não tem condições de satisfazer a generalidade dos seus compromissos, quer pelo seu significado no conjunto do passivo, quer pelas próprias circunstâncias do incumprimento.
C) Apesar de ainda se encontrar pendente o aludido processo executivo contra a recorrente, mantém-se atual a impossibilidade generalizada de a devedora cumprir as obrigações vencidas.
D) A apelante mantém perante o M, S.A. um débito de €12.846,68, acrescido de juros – superior aos seus ativos.
E) A apelante está desempregada, aufere unicamente a quantia de €419,10 de subsídio de desemprego, absolutamente necessária à sua subsistência, não dispondo de bens ou ativo que lhe permitam solver os alegados compromissos.
F) Assim, verifica-se a insuficiência de bens da recorrente e, consequentemente, a impossibilidade generalizada da devedora de pagamento de todas as obrigações vencidas.
G) Estão preenchidos os pressupostos a que alude o artigo 20º nº 1 do CIRE, nomeadamente quanto à alínea b) do indicado preceito legal, pelo que é manifesta a alegada insolvência.
H) A decisão recorrida não atendeu nem considerou devidamente o disposto nos artigos 1º, 2º, nº 1, alínea a), 3º, nº 1, 20º, nº 1 e 28º do CIRE.
Termina entendendo deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, e declarada a apelante insolvente.
Não foi apresentada resposta.
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E) Foram colhidos os vistos legais.
F) A questão a decidir na apelação é a de saber se deverá ser alterada a decisão que indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência da requerente.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 608º nº 2, 635º nº 2 e 3 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC).
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C) Estabelece-se no artigo 3º nº 1 do CIRE que é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Segundo de perto a exposição do Prof. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2016, 2ª Edição, a páginas 47 e seguintes, dir-se-á que – para efeitos do normativo considerado – apenas são consideradas as obrigações vencidas e não as vincendas e só releva a impossibilidade de cumprir.
Do que se trata, é de não ter meios para cumprir as obrigações vencidas, meios que o devedor não tem porque nem sequer consegue obtê-los junto de terceiros.
Em rigor, a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas não significa que se tenha de fazer a prova de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações, basta a prova de que o devedor não consegue cumprir obrigações vencidas que demonstrem não ter possibilidade de cumprir as restantes.
Como se lê no sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 13/07/2010, (Relatora Desembargadora Márcia Portela) estão em causa as obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade das suas obrigações.
Mas, por outro lado, não basta que não consiga cumprir pontualmente uma parte insignificante das suas obrigações vencidas.
O cumprimento em causa é o que ocorre pontualmente.
Embora o CIRE não tenha recuperado o que constava do artigo 3º nº 1 do CPEREF, que, ao caracterizar a situação de insolvência, fazia expressa referência à impossibilidade de “cumprir pontualmente”, a melhor leitura parece ser a que considera que é “inerente à ideia do cumprimento a realização atempada das obrigações a cumprir.”
Mas não basta a mora para haver impossibilidade de cumprir.
O Acórdão da Relação de Lisboa de 20/05/2010, relatado pelo Desembargador Farinha Alves, identifica um conjunto de aspetos que foram considerados relevantes para se determinar a existência de uma situação insolvência: “Deve ser considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas. A situação de insolvência da ora apelante é evidenciada pela dimensão do passivo reconhecido, sem que tenham ficado demonstrados pagamentos significativos, pela falta de informação em relação aos resultados da sua atividade, sabendo-se que não permitiram fazer face ao pagamento do passivo, e pela ausência de crédito, quer junto da banca, quer dos fornecedores. E é particularmente evidenciada pela dimensão e antiguidade do crédito da ora apelada, pelo incumprimento quase total dos dois planos de pagamento da dívida que foram acordados entre as partes, sendo que o último já teve como contrapartida a extinção da instância em anterior processo de insolvência, e ainda pela inexistência de qualquer pagamento, ou proposta de pagamento deste crédito, posterior à instauração da presente ação.”
Mas, para além do que acabou de se referir o CIRE estabelece ainda no artigo 3º nº 4 que “equipara-se à situação de insolvência atual a que seja meramente iminente, no caso de apresentação pelo devedor à insolvência.”
E continuando a acompanhar a exposição do Prof. Alexandre de Soveral Martins, que refere a influência do §18 da InsO (Insolvenzordnung), onde se diz que «se o devedor requerer a abertura do processo de insolvência, constitui também fundamento para abertura a iminente incapacidade de pagamento.»
Mas quando é que o intérprete e o aplicador do direito podem considerar que a insolvência é iminente? Infelizmente, a lei portuguesa não contém um esclarecimento como aquele que resulta do § 18 (2), da InsO: «O devedor será considerado em situação de iminente incapacidade de pagamentos quando previsivelmente não irá estar na posição de cumprir no momento do vencimento as obrigações de pagamento existentes.» Também a Ley Concursal espanhola auxilia o intérprete ao estabelecer, no seu artigo 2, 3 que «se encontra em estado de insolvência iminente o devedor que preveja que não poderá cumprir regular e pontualmente as suas obrigações.»
Como é evidente, se estamos a falar de insolvência iminente é porque nos encontramos já perante uma ameaça. Mas não basta um medo ou pavor por parte do devedor. É preciso que se trate de uma probabilidade objetiva. Daí que seja necessário efetuar um juízo de prognose, que pode ser auxiliado pela elaboração de um estudo sobre a liquidez do devedor. Será preciso averiguar qual a probabilidade de o devedor não pagar as obrigações vencidas e as obrigações atuais não vencidas no momento em que se vencerem. Se for previsível que isso venha a acontecer, há insolvência iminente.
Conforme referem os Drs Luís Carvalho Fernandes e João Labareda em anotação ao artigo 3º do seu Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, “com efeito, impressiona, desde logo, a equiparação que, sem mais, o nº 4 do artigo 3º faz da insolvência iminente à chamada insolvência atual, sem estabelecer qualquer outra diferença que não seja a de a iminente relevar apenas para os casos de apresentação do devedor.
A este propósito, não deixa também de ser significativo o modo como a nova lei enquadra o dever de apresentação, exatamente em conexão com o conhecimento da situação de insolvência e não, necessariamente, com o efetivo incumprimento de obrigações vencidas, diferentemente do que era visto suceder com o artigo 6º CPEREF.
Mas, para lá destes pontos, avulta um outro que nos parece decisivo. Tem ele a ver com o manifesto intuito legislativo de, ao proceder à reformulação geral do instituto da insolvência, procurar agilizar a solução de situações cuja continuidade só pode ser fonte de inconvenientes, para os credores e para o tráfego em geral.
Ora, neste contexto, e assumindo-se, em definitivo, o dever de apresentação, natural é que ele se imponha quando, apesar de faltar ainda o incumprimento efetivo de obrigações, este se vislumbra já no horizonte, em ponderação da situação concreta do devedor e das expectativas que objetivamente deve ter quanto à capacidade de honrar atempadamente os respetivos compromissos, levando, designadamente, em conta a relação entre o seu ativo e o seu passivo.
Daí parecer-nos mais consentâneo com o pensamento legislativo entender que o dever de apresentação existe quando o devedor incorra em insolvência iminente, entendida esta com o sentido que adiante melhor se esclarecerá…”
“A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente pela insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível.
Haverá, pois, que levar em conta a expectativa do homem médio face à evolução normal da situação do devedor, de acordo com os factos conhecidos e na eventualidade de nada acontecer de incomum que altere o curso dos acontecimentos.
Importa, não obstante, salientar um aspeto crucial do regime legal que condiciona, em boa medida, o interesse prático da caraterização da situação de insolvência iminente, com particular impacto no caso de apresentação à insolvência.
Com efeito, dado que hoje se consigna no artigo 28º, a apresentação por parte do devedor, implicando, para ele, o reconhecimento da sua situação, determina a declaração judicial da mesma, mediante o proferimento da corresponde sentença.
Não há, pois, nesta eventualidade, nenhum contraditório, designadamente pelo lado dos credores, que só são chamados ao processo após a insolvência ter sido declarada.
Já se vê por isso que, se o devedor se apresenta sob a invocação da situação de insolvência iminente uma vez que, por virtude do nº 4 deste artigo 3º, esta se equipara à insolvência atual, segue-se o desencadeamento do regime do artigo 28º, em regra mesmo que não se verifique efetivamente a situação tal como ela é apresentada pelo devedor.
Só assim não será se, para lá da ocorrência de exceções dilatórias insupríveis, que aqui não importa especialmente considerar, o pedido for manifestamente improcedente, ou seja, quando, em face da própria matéria alegada ou da documentação apresentada, resulta, com clareza, a inexistência do pressuposto da declaração judicial de insolvência - no caso a situação de insolvência iminente – por aí haver lugar a indeferimento liminar segundo o que decorre do estatuído no artigo 27º nº 1 alínea a).
Ora, até pelos critérios relevantes para a caracterização da insolvência iminente e pelo apelo que fazem à consideração da expectativa do homem médio colocado na posição do devedor, não é crível, salvo casos marginais, que o tribunal disponha de elementos que o levem a concluir pela manifesta inexistência da situação e consequente improcedência do pedido.
Vale isto por dizer que, ao menos, no plano prático, o interesse da conveniente caracterização da iminência da insolvência releva apenas para o caso de não ter havido apresentação – ou apresentação atempada – do devedor e, mesmo aí, somente se se entender existir um dever nesse sentido, tal qual como atrás sufragamos. Este pode, aliás, ser um argumento adjuvante para a sustentação do dito dever.”
Reportando-nos à situação em apreço, verifica-se que o despacho recorrido parte de pressupostos errados.
Com efeito, afirma-se na decisão recorrida que, “face aos factos aduzidos, não obstante ser de forma coativa, o requerente encontra-se a pagar o aludido crédito, não havendo ainda notícias de insatisfação da ação executiva que lhe foi movida, nem sendo o montante da dívida por si só revelador da impossibilidade de incumprimento.”
Dos factos alegados resulta que a requerente dispõe, como único rendimento, de um subsídio de desemprego no montante mensal de €419,10, paga de renda de casa €220,00, tem como despesas de alimentação, saúde, vestuário e demais encargos da vida corrente, €150,00 e despesas de gás, eletricidade e água, €75,00, o que, alegadamente, já não cobre a totalidade das referidas despesas.
Por outro lado, é devedora, juntamente com a sua filha, perante o M, da quantia global de €12.846,68, de um crédito para aquisição de um veículo automóvel, que esta não conseguiu cumprir, tendo sido movida uma execução contra ambas, sendo que o valor do seu único ativo é manifestamente inferior ao valor do passivo, pelo que a requerente não tem qualquer possibilidade de pagar a dívida que contraiu.
Importa esclarecer que não está demonstrado – embora a requerente conclua nesse sentido – que esta esteja numa situação de incumprimento generalizado, dado que a única situação em que estará em situação de incumprimento será a que originou a instauração de execução contra a requerente e a sua filha, não havendo qualquer alegação concreta de factos de onde resulte o incumprimento generalizado das suas obrigações, relativas às despesas que alega ter.
É verdade, no entanto, que o montante da dívida, relativamente aos seus rendimentos, é significativo, uma vez que corresponde a cerca de 31 vezes o valor do seu rendimento mensal, sem que a requerente dispusesse de qualquer valor do mesmo para a sua subsistência.
Na decisão recorrida diz-se que dentro dos factos índices da insolvência surge no art. 20º do CIRE a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou circunstâncias, revelem impossibilidade de satisfação da generalidade das obrigações.
Ora, face aos factos aduzidos, não obstante ser de forma coativa, o requerente encontra-se a pagar o aludido crédito, não havendo ainda notícias de insatisfação da ação executiva que lhe foi movida, nem sendo o montante da dívida por si só revelador da impossibilidade de incumprimento.
Importa esclarecer que o artigo 20º nº 1 CIRE estabelece que “a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos seguintes factos…”
Isto é, conforme já resultava da epígrafe do referido artigo, no mesmo indica-se quem são os sujeitos que podem requerer a declaração de insolvência - que não o devedor - e em que condições, uma vez que, quanto à declaração de insolvência requerida por este, rege o artigo 18º CIRE, sendo que, em muitos casos, se impõe, mesmo que a requeira.
Efetivamente, o artigo 18º nº 1 CIRE estabelece que “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 30 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do artigo 3º, ou à data em que devesse conhecê-la.”
Por outro lado, não há elementos nos autos que permitam afirmar-se, como o faz a decisão recorrida, que “face aos factos aduzidos, não obstante ser de forma coativa, o requerente encontra-se a pagar o aludido crédito, não havendo ainda notícias de insatisfação da ação executiva que lhe foi movida, nem sendo o montante da dívida por si só revelador da impossibilidade de incumprimento.”
Como se referiu, não só não há nos autos elementos que revelem que a requerente está a pagar o aludido crédito, como é despropositado dizer-se não haver notícias de insatisfação da ação executiva, uma vez que o que releva é a impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas e a instauração de execuções contra um devedor é, seguramente, um indício de tal impossibilidade.
Seria talvez esclarecedor colocar a questão de saber qual deveria ser a atitude a tomar se o credor M viesse requer a insolvência da ora requerente e devedora, alegando, nomeadamente, que instaurou contra esta uma execução, para cobrança do valor acima indicado, a que continuamente acrescem juros de mora, que foi arquivada em virtude de a mesma não dispor de qualquer bem penhorável, além de uma viatura que (de acordo com a declaração da requerente) não tem valor comercial e apenas tem como rendimentos o montante relativo a subsídio de desemprego.
Certamente que não deveria merecer indeferimento liminar.
E, se assim é para um credor, não vemos que deva ser diferente a atitude a tomar perante o próprio devedor a quem se impõe o dever de se apresentar à insolvência e, inclusivamente, se fixa prazo para o efeito e se estabelecem requisitos menos exigentes daqueles que se exigem a terceiros, para requererem a declaração de insolvência de outrem.
É claro que, como refere o Professor Alexandre de Soveral Martins, cit., a páginas 101 e seguinte, “a dedução de pedido de declaração de insolvência ou a apresentação à insolvência só deve ter lugar quando existam fundamentos para tal. O devedor não deve apresentar-se à insolvência apenas para obter alguma proteção perante os credores e estes não devem requerer a insolvência daquele apenas como meio de pressão para conseguirem o pagamento dos seus créditos.
Por isso mesmo é que o artigo 22º determina que a indevida apresentação à insolvência ou a dedução de pedido infundado de declaração de insolvência dão origem, em caso de dolo, a responsabilidade civil pelos prejuízos causados, consoante os casos, aos credores ou ao devedor.
Por todo o exposto, resulta que o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento de declaração de insolvência, por parte da requerente, deverá ser substituído por outro que, uma vez verificada a regularidade processual da instância, decrete a insolvência da requerente, assim procedendo a apelação.
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D) Em conclusão:
1) A impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas, na insolvência, não significa que se tenha de fazer a prova de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações, basta a prova de que o devedor não consegue cumprir obrigações vencidas que demonstrem não ter possibilidade de cumprir as restantes;
2) A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já atual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exatamente pela insuficiência do ativo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível.
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III. DECISÃO
Pelo exposto, tendo em conta o que antecede, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se o despacho que indeferiu liminarmente o requerimento de declaração de insolvência, por parte da requerente, que deverá ser substituído por outro que, uma vez verificada a regularidade processual da instância, decrete a insolvência da requerente.
Sem custas.
Notifique.
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Guimarães, 10/11/2016