Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3789/18.7T8BRG.G1
Relator: ALCIDES RODRIGUES
Descritores: PRIVAÇÃO INJUSTIFICADA DO USO DA COISA
IMPEDIMENTO DOS PODERES DE FRUIÇÃO E DISPOSIÇÃO
VALOR DE EXPLORAÇÃO
ENRIQUECIMENTO POR INTERVENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- O enriquecimento por intervenção constitui uma categoria autónoma do enriquecimento sem causa.

II- No enriquecimento por intervenção o elemento central reside na obtenção do enriquecimento à custa de outrem, pelo que, nas hipóteses de utilização de bens alheios, o dano patrimonial do lesado pode mesmo não existir.

III- Mesmo que o proprietário nenhum proveito tirasse dos bens, sempre o interventor estará obrigado a indemnizá-lo do valor do uso que deles fez, restituindo-lhe o valor da exploração.

IV- Ocupando os réus, sem título legitimador oponível à autora, um imóvel que a esta pertence, deverão ser condenados a pagar-lhe o valor do uso de que ilegitimamente beneficiam, de acordo com as regras que disciplinam o enriquecimento sem causa.

V- A procedência do pedido indemnizatório não está dependente da prova de qualquer dano sofrido pela proprietária do imóvel, mas apenas da prova de que os réus o usaram, sem título legítimo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

A Caixa ..., S.A. intentou, no Juízo Central Cível de Guimarães – Juiz 5 – do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra J. P. e a M. R., pedindo a condenação destes:

a) a reconhecer a Autora como dona e legítima proprietária imóvel identificado em 1 da p.i., e a entregá-lo à Autora livre e devoluto de pessoas e bens; e
b) a pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos causados, a importância de € 72.491,03 calculada até 30.06.2018 e, ainda, o montante mensal de € 1.096,79 a contar desta data até à entrega efectiva do imóvel, com actualizações anuais às taxas fixadas legalmente para as rendas livres, a liquidar em execução de sentença, acrescidas de juros sobre o montante total da indemnização até integral e efectivo pagamento.

Alegou, em resumo, que tendo adquirido o identificado imóvel por negociação particular em processo de insolvência dos aqui Réus, aquisição que registou a seu favor, não logrou entrar na posse efectiva do imóvel, porquanto os Réus o ocupam, sem título e sem consentimento da Autora, pelo menos desde 29.11.2012, não o entregando à legítima proprietária, apesar de por esta interpelados para o efeito.
A atuação dos Réus vem provocando à Autora prejuízo correspondente ao valor de arrendamento no mercado.
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Citados, contestaram os Réus, concluindo pela procedência da invocada exceção perentória ou, assim não se entendendo, pela total improcedência da ação (cfr. fls. 27 a 31)
Excecionaram que o imóvel não está dotado de licença de utilização válida, razão pela qual não pode ser vendido, nem arrendado.
Impugnaram o alegado valor de arrendamento do imóvel, bem como, por desconhecimento, a venda do imóvel à Autora, referindo nunca, anteriormente à propositura da presente ação, tendo sido interpelados para o entregar, razão pela qual se encontram de boa-fé.
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Respondeu a Autora à matéria de exceção, reiterando os fundamentos da ação e pedindo a condenação dos Réus como litigantes de má-fé no pagamento de multa e de indemnização a favor da Autora, por utilizarem argumentos falsos na contestação para entorpecer a ação da justiça e conseguir objetivo ilegal de se manterem na ocupação do imóvel, dificultando a entrega reclamada pela Autora (cfr. fls. 52 a 54).
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Dispensada a audiência prévia, foi elaborado despacho saneador que enunciou o objeto do litígio e os temas da prova, bem como admitiu os meios de prova (fls. 56 e 57).
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Procedeu-se à realização da audiência de julgamento (cfr. acta de fls. 90 e 91).
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Posteriormente, o Mm.º julgador “a quo” proferiu sentença, datada de 13/10/2017 (cfr. fls. 92 a 99), nos termos da qual, julgando a ação parcialmente procedente, decidiu:

- Condenar os RR. a reconhecer a Autora como dona e legítima proprietária do imóvel identificado nos factos provados números 1 e 2, e a entregá-lo à Autora livre e devoluto de pessoas e bens; e
- Condenar os RR. a pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos causados, a importância mensal de € 400,00 (quatrocentos euros) desde Setembro de 2018 inclusive até à entrega efectiva do imóvel, acrescida de juros sobre o montante total da indemnização até integral e efectivo pagamento.
- Julgar parcialmente improcedente a ação, absolvendo os RR. da parte restante do pedido formulado.
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Inconformados, os réus interpuseram recurso da sentença (cfr. fls. 101 a 105) e, a terminar as respetivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1ª. A Recorrida pediu a condenação dos Recorrentes a pagar-lhe uma indemnização pelos danos causados até à entrega efetiva do imóvel;
2ª. Os Recorrentes excecionaram que o imóvel não está dotado de licença de utilização válida, razão pela qual não pode ser vendido nem arrendado, assim como impugnaram o alegado valor de arrendamento do imóvel, bem como, por desconhecimento, a venda do imóvel à Recorrida, nunca anteriormente à propositura da presente ação, tendo sido interpelados para o entregar, razão pela qual se encontram de boa-fé.
3ª. O douto Tribunal no capítulo “Fundamentação” entendeu (deu como provado), no que ao caso importa, que os Recorrentes sabem, desde Dezembro de 2017, que o imóvel identificado nos factos provados números 1 e 2 foi vendido à Autora (artigo 28º da Contestação).
4ª. Os Recorrentes permanecem, como o conhecimento da Autora, a residir no imóvel descrito nos factos provados números 1 e 2 desde data anterior a 29.11.2012 (artigo 5º da p.i. e 29º da contestação).
5ª. Colocado no mercado de arrendamento, o imóvel descrito nos factos provados números 1 e 2 proporcionaria, caso dispusesse de autorização de utilização, (sublinhado nosso) uma renda mensal de € 400,00 desde Dezembro de 2012 (artigos 8º e 10º da p.i.) e 16º, 17º e 21º da contestação).
6ª. O imóvel não dispõe de licença de utilização.
7ª. O Tribunal deu como não provado que a carta mencionada no facto 5 foi recebida pelos Autores (artigos 6º da p. i. e 31º da contestação).
8ª. O Tribunal deu como provado que o imóvel colocado no mercado de arrendamento proporcionaria uma renda mensal de € 250,00, desconsiderando e não valorando injustificadamente a única prova, testemunhal produzida em juízo, sem que houvesse outra capaz de a contradizer.
9ª. A fundamentação para a douta condenação não nos parece suficiente para justificar a aplicação de tamanha sanção (indemnização) económica, uma vez que:
a) Não existe obrigação de indemnizar quando a conduta não causa prejuízo e, como ficou demonstrado nos Autos, a Recorrida estava impedida pela falta de licença de ocupação, de obter qualquer rendimento económico a título de arrendamento;
b) Mas, por mera hipótese que não se concede, ainda que houvesse razão para indemnizar, o montante fixado de € 400,00 mensais é manifestamente exagerado, quando a única prova apresentada nos Autos, testemunhal, se referiu a um valor nunca superior a 250,00 € mensais, não havendo razões para a desvalorizar, face à total ausência de outras o que, cremos limita o recurso ao livre arbítrio do julgador.
10ª. O recurso ao “Instituto do Enriquecimento Sem Causa”, como alternativa, à justificação para uma condenação como a dos Autos nos merece provimento.
11ª. O enriquecimento sem causa constitui uma das fontes das obrigações, ainda que com natureza subsidiária, ou seja, quando não seja possível subsumir a obrigação em qualquer outro instituto. Assim o diz o artigo 474º do Código Civil “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à retribuição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
12ª. Desta norma parece resultar que quem, pretenda ser indemnizado, em virtude de outro ter “enriquecido à sua custa” tem necessariamente que ficar empobrecido, designadamente no seu património.
13ª Nada nos Autos nos diz que a Recorrida ficou empobrecida no seu património; pelo contrário, dos Autos resulta que Recorrida nenhum proveito económico poderia obter com a entrega do imóvel em Setembro de 2018.
14ª. Por outro lado e do ponto de vista dos Recorrentes, dos Autos nada resulta que estes tivessem tido um enriquecimento à custa de um património defraudado por parte da Recorrida, que justifique qualquer recomposição.
15ª. Incumbe à Recorrida, com pretensa empobrecida (o que não se concede) o ónus da prova dos danos consequentes ou da obtenção sem causa e à sua custa de um enriquecimento dos Recorrentes.
16.ª Os Autos são um total vazio em tal matéria.
17ª. Razões pelas quais os Recorrentes deveriam ser absolvidos e consequente a ação julgada totalmente improcedente, na parte em que é pedida a sua condenação a pagarem à Recorrida a indemnização por danos causados que foi peticionada.
Termos em que e sempre com o douto suprimento de V. Exas. dando provimento ao presente recurso, revogando a Douta Sentença aqui recorrida, que consagre a improcedência do pedido de indemnização em que os Recorrentes foram condenados, farão V. Exas. serena e sã JUSTIÇA!».
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Contra-alegou a autora, pugnando pelo não provimento do recurso e manutenção da sentença recorrida (cfr. fls. 109 a 113).
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (cfr. fls. 114).
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Foram colhidos os vistos legais.
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II. Delimitação do objeto do recurso

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, a questão que se coloca à apreciação deste Tribunal consiste em indagar da (in)verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar pela privação do uso do imóvel com fundamento no enriquecimento sem causa.
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III. Fundamentos

IV. Fundamentação de facto.

A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos:

1. Por título de compra e venda celebrado a 29.11.2012 na Conservatória do Registo Predial de …, N. R., na qualidade de Administrador da Insolvência de J. P. e mulher, M. R., declarou vender pelo preço de € 110.000,00 que já recebido, à “Caixa …, S.A”, no acto representada por C. D. que declarou aceitar, o prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e andar com logradouro, sito no lugar de …, freguesia de ..., concelho de Fafe, inscrito na matriz predial sob o artigo urbano … da referida freguesia e descrito sob o n.º …/19980319 de ... na Conservatória do Registo Predial de Fafe, livre de ónus ou encargos e, designadamente, das hipotecas, penhoras e declarações de insolvência, cujos cancelamentos vão ser efectuados na sequência desta venda (cfr. certidão junta com documento número 2 com a p.i., a fls. 6 v.º e ss.);
2. Encontra-se registada sob a Ap. 747 de 2012.11.19, a favor da “Caixa ..., S.A.”, a aquisição, por compra em processo de insolvência, a J. P. e a M. R., do imóvel descrito no facto provado número 1 (cfr. certidão permanente do registo predial junta como documento número 1 com a p.i., a fls. 5 v.º e ss.);
3. Os Réus sabem, desde Dezembro de 2017, que o imóvel identificado nos factos provados números 1 e 2 foi vendido à Autora (artigo 28º da contestação);
4. Os Réus permanecem, com o conhecimento da Autora, a residir no imóvel descrito nos factos provados números 1 e 2 desde data anterior a 29.11.2012 (artigo 5º da p.i. e 29º da contestação);
5. Tendo como destinatário J. P., …, n.º …, a Autora enviou a carta, com aviso de recepção, datada de 29.12.2017, cujo teor se encontra reproduzido no documento número 3 junto com a p.i., a fls. 8 v.º dos autos, contendo, entre outras, as seguintes passagens: …considerando que resultaram totalmente infrutíferas as várias diligências da Caixa, no sentido de se conseguir uma solução pacífica para a situação de ocupação do prédio em endereço protagonizada por V. Exª., informa-se de que, a partir desta data, esta Unidade irá fazer transitar o assunto para o âmbito da Direcção os Assuntos Jurídicos desta empresa, tendo em vista a imediata desocupação judicial do prédio, bem como ainda o total ressarcimento dos danos emergentes e lucros cessantes causados desde 29.11.2012, (data da aquisição do prédio por parte da Caixa) até ao momento em que se concretizar a efectiva e total desocupação do bem (artigos 6º da p.i. e 31º da contestação);
6. Colocado no mercado de arrendamento, o imóvel descrito nos factos provados números 1 e 2 proporcionaria, caso dispusesse de autorização de utilização, uma renda mensal de € 400,00 desde Dezembro de 2012 (artigos 8º e 10º da p.i e 16º, 17º e 21º da contestação);
7. Encontra-se certificado pela C.M. ... que …o processo 601/2004 P-PC, instruído nesta Câmara Municipal em nome de J. P., cujo actual proprietário é a Caixa …, relativo a um prédio, sito na Rua …, n.º … (Urb.ª de …, lote n.º 1), da freguesia de ..., deste concelho de Fafe, se encontra a aguardar pelo despejo administrativo, conforme deliberação de Câmara de 10/05/2018, por utilização do edifício sem possuir a competente autorização de utilização…(cfr. certidão emitida pela C.M. ..., junta a fls. 67 e ss. dos autos).
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E deu como não provados:

1. A carta mencionada no facto provado 5 foi recebida pelos Autores (artigos 6º da p.i. e 31º da contestação);
2. Até Dezembro de 2017 os Réus desconheciam que o imóvel em litígio tinha sido vendido à Autora (artigo 28º da contestação);
3. Os Réus conheciam, desde data anterior a Dezembro de 2018, que o imóvel tinha sido vendido à Autora (artigo 20º da resposta);
4. Colocado no mercado de arrendamento, o imóvel descrito nos factos provados números 1 e 2 proporcionaria uma renda mensal de: € 1.046,67 de Dezembro de 2012 a Novembro de 2013; € 1.081,84 de Dezembro de 2013 a Novembro de 2014; € 1.092,55 de Dezembro de 2014 a Novembro de 2015; € 1.089,16 de Dezembro de 2015 a Novembro de 2016; € 1.090,90 de Dezembro de 2016 a Novembro de 2017; € 1.096,79 de Dezembro de 2017 a Novembro de 2018 (artigos 8º e 10º da p.i.);
5. Colocado no mercado de arrendamento, o imóvel descrito nos factos provados números 1 e 2 proporcionaria uma renda mensal de € 250,00 desde Dezembro de 2012 (artigo 21º da contestação).
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V. Fundamentação de direito.

1. Da não verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar pela privação do uso do imóvel com fundamento no enriquecimento sem causa.
1.1. A matéria de facto não foi impugnada, por nenhuma das partes, de acordo com o disposto no art. 640º do CPC e assim a factualidade apurada mostra-se consolidada e será com base nesse circunstancialismo que a presente decisão será tomada.
Os recorrentes não questionam o segmento decisório que os condenou a reconhecer a Autora (ora Recorrida) como dona e legítima proprietária do imóvel melhor identificado nos factos provados nºs 1 e 2, e a entregá-lo à demandante livre e devoluto de pessoas e bens.
Insurgem-se, sim, contra o segmento da decisão que os condenou “a pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos causados, a importância mensal de € 400,00 (quatrocentos euros) desde Setembro de 2018 inclusive até à entrega efectiva do imóvel, acrescida de juros sobre o montante total da indemnização até integral e efectivo pagamento”.
Afirmam para o efeito que a sentença impugnada sustenta o dever ou obrigação de pagamento de tal indemnização no facto de os Recorrentes não terem procedido à entrega do imóvel à Recorrida em setembro de 2018, já que para tal haviam sido citados em agosto de 2018 e que o valor locativo do imóvel é de € 400,00 mensais.

Concluem que a referida fundamentação não é suficiente para justificar a aplicação de sanção (indemnização) económica, por duas razões:

a) Não existe obrigação de indemnizar quando a conduta não causa prejuízo e, no caso, a recorrida estava impedida pela falta de licença de ocupação, de obter qualquer rendimento económico a título de arrendamento;
b) Mas, ainda que houvesse razão para indemnizar a autora, o montante fixado de € 400,00 mensais é manifestamente exagerado, quando a única prova apresentada nos autos, testemunhal, se referiu a um valor nunca superior a 250,00 € mensais.
Mais acrescentam tão pouco se mostrar viável o recurso ao “instituto do enriquecimento sem causa”, como alternativa, à justificação para uma condenação como a dos autos.
Delineados os argumentos dos recorrentes, vejamos se lhes assiste razão.
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1.2. Nada impede que, nos termos do disposto no art. 555º, n.º 1, do CPC, a autora formule os pedidos característicos da ação de reivindicação e com eles cumule pedido de indemnização a que haja lugar pelo rendimento que o proprietário podia retirar do imóvel, se não fosse a indevida ocupação e mesmo que o proprietário não haja sofrido prejuízo com a indevida ocupação (1).
Dúvidas não haverá, aliás, de que a privação injustificada do uso de uma coisa pelo respetivo titular constitui um ilícito suscetível de gerar a obrigação de indemnizar, uma vez que, na normalidade dos casos, impedirá o seu proprietário do exercício dos direitos inerentes à propriedade, isto é, impede-o de usar a coisa, de fruir as utilidades que ela normalmente lhe proporcionaria, enfim, impede-o de dela dispor como melhor lhe aprouver (art. 1305º do C.C.) (2).
Como refere Abrantes Geraldes (3), desde que a violação do direito de propriedade e a decorrente privação do uso derivem da prática de acto ilícito, a par do pedido de reivindicação, nos termos do art. 1311º do CC, pode ser formulado o pedido de indemnização, como forma de repor a situação anterior e de reparar os prejuízos decorrentes da privação, como ocorre quando esta atinge bens imóveis; se se provar que a indisponibilidade foi causa direta de prejuízos resultantes da redução ou perda de receitas, da perda de oportunidades de negócio ou da desvalorização do bem, não se questiona o direito de indemnização atinente aos lucros cessantes.
Mas mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, o lesado deve ser compensado monetariamente pelo período correspondente ao impedimento dos poderes de fruição ou de disposição.
Decerto tais danos podem ser invocados. E, uma vez provados, podem servir para, com mais rigor, quantificar a indemnização ou permitir a atribuição de um quantitativo superior.
Porém, a simples falta de prova (ou de alegação) desses danos concretos não conduz necessariamente à denegação da pretensão indemnizatória. Sem embargo da prova que possa ser feita da total ausência de danos, não deve descartar-se o recurso à equidade para encontrar, no balanceamento dos factos e das regras de experiência, um valor razoável e justo. Não é imprescindível que o lesado invariavelmente alegue e prove a existência de danos efetivos.
De qualquer modo, ainda que se entenda não haver lugar à aplicação do regime da responsabilidade civil – arts. 483° e sgs. do CC – , por não existir, em concreto, um dano reparável inerente à privação do uso, a ocupação ilegítima, consubstanciando uma situação de ingerência ou intromissão em bens jurídicos ou direitos alheios (direito de propriedade), sempre será geradora da obrigação de indemnizar com base nas regras do enriquecimento sem causa, na modalidade do chamado “enriquecimento por intervenção“ (art. 473º do CC) (4).

Continuando a socorrer-nos do citado estudo de Abrantes Geraldes (5), afirma este autor que: "Exigem frequentemente os tribunais aquilo que, em termos de razoabilidade, não é exigível ou não ê materialmente comprovável. Ou elevam a tal nível a fasquia em matéria de formação da convicção que o ónus da prova se transfigura em prova diabólica, deixando por reconhecer situações que o senso comum francamente admite. Em suma, parte-se da excepção para afirmar a regra. Pretende-se que determinadas actuações ou intenções que a experiência revela serem excepcionais sirvam para integrar os comportamentos regra. Olvida-se, além do mais, que, recaindo sobre o credor o ónus da prova da ocorrência dos danos, a lei não trata com total indiferença o devedor, onerando-o com a prova dos factos impeditivos ou com a contraprova de factos susceptíveis de gerar uma situação de dúvida (art°s 342°, n° 2, e 346° CC). Por detrás deste "manto diáfano da fantasia", a verdade que se evidencia quando os tribunais, como a sociedade o exige, se pautam por critérios de normalidade, revela-nos que, por regra, não é indiferente que um bem entre na posse efectiva do adquirente na data acertada ou apenas 2 ou 5 anos depois, tal como não é inócuo que a aquisição do direito de propriedade, acompanhado da fruição, se concretize na data ajustada ou muito mais tarde (....). É a esta normalidade da vida que deve atender-se quando se trata de apreciar as situações, em vez de aferir o critério valorativo a partir de situações excepcionais, supondo, por exemplo, sem a necessária confirmação, que o proprietário, ao assumir a vontade de adquirir, pretendeu tão só aumentar o seu património imobilizado ou alcançar mais valias unicamente derivadas da valorização do imóvel.
Pode dizer-se, pois, que nas situações assinaladas, uma dilação excessiva na aquisição da propriedade e na consequente disponibilidade material e jurídica do bem não deixará de constituir uma perturbação da relação entre o credor e o seu património, privando-o do seu uso normal e das correspondentes utilidades que poderiam ser proporcionadas, que, em regra, não pode deixar de ser monetariamente compensado”.
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1.3. O enriquecimento «por intervenção» – que constitui uma categoria autónoma do enriquecimento sem causa – surge quando alguém obtém um enriquecimento através da ingerência ou intromissão, não autorizada, no património alheio, traduzida, designadamente, no uso, consumo, fruição ou disposição de bens reservados a outra pessoa; o enriquecido, sem que nada o justifique, faz uso de um bem do empobrecido. No enriquecimento por intervenção quem «age», quem é «ativo» é o enriquecido.
No enriquecimento por intervenção o elemento central reside na obtenção do enriquecimento à custa de outrem, pelo que, nas hipóteses de utilização de bens alheios, o dano patrimonial do lesado pode mesmo não existir.

A este propósito e em comentário ao art. 473º do CC, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela (6):

«Tudo quanto os bens sejam capazes de render ou produzir pertence, em princípio, ao respetivo titular. A pessoa que, intrometendo-se na utilização de bens alheios, consegue uma vantagem patrimonial, obtém-na à custa do titular do respetivo direito, mesmo que este não estivesse disposto a realizar os actos de onde a vantagem procede. Trata-se, com efeito, de uma vantagem que estava reservada ao titular do direito, segundo o conteúdo da destinação, afectação ou ordenação dos bens que constituem o respetivo objeto”.
Mesmo que o proprietário, se acaso não tivesse ocorrido tal intromissão ou interferência, nenhum proveito tirasse dos bens, sempre o interventor estará obrigado a indemnizá-lo do valor do uso que deles fez, restituindo-lhe, pois, o valor da exploração (7).
Nesse caso, o fim da pretensão à restituição do enriquecimento sem causa será a recuperação da vantagem patrimonial obtida pelo interventor, o que ocorrerá sempre que, de acordo com a repartição dos bens efetuada pela ordem jurídica, essa vantagem se considere como pertencente ao titular do direito (8).
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1.4. Importa, por outro lado, articular a obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa com a obrigação de indemnizar baseada na responsabilidade civil.

Como observa Antunes Varela (9):

Os dois institutos podem concorrer na qualificação da mesma situação, principalmente nos casos de intromissão nos bens ou direitos alheios (...)
Se a intromissão não envolve responsabilidade civil (porque não há ilicitude, como sucede quando o ato gerador do enriquecimento provém de terceiro, ou porque não há culpa, ou porque não há dano), mas há enriquecimento sem causa justificativa, o carácter subsidiário da obrigação de restituir nela fundada não impede, como é óbvio, a sua aplicabilidade”.
As duas situações são, como se vê, diferentes, pois, enquanto no âmbito da responsabilidade civil há que reparar um dano sofrido pelo lesado (e, por isso mesmo, se não houver dano não há lugar à indemnização) no enriquecimento sem causa visa-se restituir aquilo que foi obtido sem justa causa e à custa do titular, isto é, em última análise, aquilo que, nos termos do ordenamento jurídico devia pertencer ao titular dos bens ou do direito, ainda que ele não estivesse disposto a utilizar a coisa ou o seu direito para obter aquela concreta utilidade (10).
*
1.5. Sob a epígrafe “Princípio geral”, prescreve o art. 473.º do Código Civil (CC):

«1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou.»

O enriquecimento sem causa constitui, no nosso ordenamento jurídico, uma fonte geral e autónoma de obrigações e assenta na ideia de que “a ninguém é lícito enriquecer-se em detrimento de outrem sem uma causa juridicamente justificada” (11).
A obrigação de restituir/indemnizar fundada no instituto do enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia pressupõe, assim, a verificação cumulativa de três requisitos:
a) a existência de um enriquecimento;
b) que ele careça de causa justificativa dessa valorização patrimonial;
c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição (12).

O enriquecimento representa uma vantagem ou benefício, de carácter patrimonial e susceptível de avaliação pecuniária, produzido na esfera jurídica da pessoa obrigada à restituição e traduz-se numa melhoria da sua situação patrimonial, «encarada sob dois ângulos: o do enriquecimento real, que corresponde ao valor objectivo e autónomo da vantagem adquirida; e o do enriquecimento patrimonial, que reflete a diferença, para mais, produzida na esfera económica do enriquecido e que resulta da comparação entre a sua situação efectiva (real) e aquela em que se encontraria se a deslocação se não houvesse verificado (situação hipotética)» (13).
A obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista, tanto pode consistir num aumento do ativo patrimonial, como numa diminuição do passivo, como no uso ou consumo de coisa alheia (que é a que releva no caso objeto dos autos) ou no exercício de um direito alheio, como, ainda, na poupança de despesas (14); em qualquer caso, terá de traduzir-se numa “melhoria da situação patrimonial” da pessoa obrigada à restituição, melhoria essa “que se apura segundo as circunstâncias” (15).
No tocante ao segundo requisito supra enunciado, é sabido que o conceito de causa do enriquecimento não se encontre definido e que a causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do acto que lhe deu origem.
O enriquecimento injusto tanto poderá ter a sua origem ou provir de um negócio jurídico, como de um acto jurídico não negocial ou mesmo de um simples acto material.
Ou seja, e por outras palavras, o enriquecimento carecerá de causa sempre que o direito não o aprove ou consente, dado não existir uma relação ou um facto que, de acordo com as regras ou os princípios do nosso sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial ocorrida (a favor do enriquecido e à custa do empobrecimento de alguém), isto é, que legitime o enriquecimento.

Nas palavras do Antunes Varela (16), o enriquecimento será injusto quando, segundo a ordenação substancial dos bens aprovada pelo Direito, ele deve pertencer a outro.
Dado que a lei não define tal conceito, e dada a natureza diversa da fonte de que pode emergir, tal significa que o enriquecimento injusto terá sempre que ser apreciado e aferido casuisticamente, interpretando e integrando a lei à luz dos factos apurados.
Quanto ao 3º requisito, a correlação exigida por lei entre a situação do enriquecido e a do empobrecido traduz-se, como regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro.
O benefício obtido pelo enriquecido deve, pois, resultar de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido.
Pode, porém, não se verificar qualquer efetivo empobrecimento. Como já se disse, estão também aqui abrangidas situações em que a vantagem adquirida por uma pessoa não resulta de um correspondente sacrifício económico sofrido por outra – diminuição patrimonial ou simples privação de um aumento –, embora se haja produzido a expensas desta, à sua custa, como são os casos de uso de coisa alheia sem prejuízo algum para o proprietário (17). Como o direito de usar, fruir e dispor da coisa cabe exclusivamente ao proprietário (art. 1305º do CC), o gozo e disposição por outrem não autorizados legitimam sempre o titular a exigir a restituição do enriquecimento, ainda que não tenha sofrido qualquer prejuízo efectivo (18).
Por sua vez, dispõe o artigo 474º do CC que “não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.

Resulta, pois, de tal normativo que a ação baseada nas regras do instituto do enriquecimento sem causa tem natureza subsidiária (ou residual), só podendo a recorrer-se a ela quando a lei não faculte ao empobrecido outros meios alternativos para ressarcimento dos prejuízos (o que, no fundo, funcionará como um novo pressuposto ou requisito legal para o recurso à ação de restituição com base no instituto do enriquecimento sem causa).
Como explicitam Pires de Lima e Antunes Varela (19), “a subsidiariedade da ação de enriquecimento tem, no entanto, de ser entendida em termos hábeis.
Pode originariamente a lei não permitir o exercício da ação de enriquecimento, em virtude de o interessado dispor de outro direito e, posteriormente, facultar o recurso àquela ação, em consequência da caducidade desse direito”.
Por fim, dizer que constitui entendimento predominante, na jurisprudência e doutrina, no sentido de que, de harmonia com o regime estabelecido no art. 342º, n.º 1 do CC, é sobre o autor (alegadamente empobrecido) que impende não só o ónus de alegação como de prova dos correspondentes factos que integram cada um daqueles requisitos, ou seja, de todos aqueles pressupostos legais que integram o referido instituto (20). Acresce que, segundo as regras do ónus da prova, a mera falta de prova da existência de causa da atribuição não é suficiente para fundamentar a restituição do indevidamente pago, sendo necessário provar que efectivamente a causa falta (21).
In dubio, deve considerar-se que a deslocação patrimonial verificada teve justa causa (22).
Feitos os considerandos antecedentes, há que regressar ao caso concreto.
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1.6. Está dado como provado que a recorrida é dona e legítima proprietária do imóvel identificado nos autos por o ter adquirido, em 29.11.2012, por compra, em processo de insolvência, a J. P. e a M. R..
Os Réus, não obstante saberem desde dezembro de 2017 que o aludido imóvel foi vendido à Autora, nele permanecem a residir, o que fazem contra a vontade da sua legítima proprietária.
Ora, a obtenção da vantagem patrimonial (á custa de outrem) pode traduzir-se no uso de coisa alheia, como na hipótese presente, em que os réus vêm fruindo o prédio da autora.
E, não dispondo os réus, relativamente ao prédio reivindicado, de um título de detenção oponível à autora, isso significa que eles vêm usando ilegitimamente o imóvel (se não desde a data em que este ingressou, por compra, na esfera jurídica da reivindicante), pelo menos desde setembro de 2018 (23).
Portanto, a partir desta data fizeram uso ilegítimo de um bem de que só a autora, enquanto sua proprietária, podia tirar proveito.
A situação ajuizada configura claramente uma hipótese de enriquecimento por intervenção, mais precisamente de intromissão em bens e direitos alheios, na qual o intrometido obteve uma vantagem patrimonial à custa do respetivo titular, que deve restituir porque não tem causa justificativa (art. 473° do CC).
Razão por que os réus deverão ser condenados a pagar à A. o valor do uso de que ilegitimamente beneficiam – de acordo com as regras que disciplinam o enriquecimento sem causa –, desde setembro de 2018 até à data da efetiva entrega do imóvel, visto que a A. não tem qualquer obrigação de ceder àqueles, gratuitamente, o seu prédio.
Não dispondo a autora de outro meio jurídico para obter dos réus tal indemnização – no caso sub júdice torna-se inviável o recurso à responsabilidade civil por não estar apurado o dano inerente à privação do uso –, mostra-se igualmente verificado o requisito da subsidiariedade da pretensão do enriquecimento sem causa previsto no art. 474º do CC.
É, pois, de validar (e confirmar) o juízo formulado na sentença recorrida no sentido de se mostrarem verificados os pressupostos do enriquecimento sem causa dos Réus à custa da Autora, nos termos previstos pelo art. 473º do Código Civil.
Dos autos resulta igualmente provado que, colocado no mercado de arrendamento, o imóvel proporcionaria, caso dispusesse de autorização de utilização, uma renda mensal de € 400,00 desde dezembro de 2012.
Depreende-se dos factos provados que, em virtude da conduta dos RR., a A. está impedida de utilizar o seu prédio.
No caso é certo que o prédio não possui a competente autorização de utilização.

Pois bem, no que concerne às objeções colocadas quanto à falta da autorização de utilização remete-se para a fundamentação aduzida na sentença recorrida, onde se referiu (e bem) que:

«Sendo certo que o proprietário se encontra legalmente impedido de o dar de arrendamento ou de o vender enquanto não estiver dotado da respectiva licença de utilização, é também verdade, não obstante, que os Réus vêm beneficiando das utilidades que o imóvel proporciona residindo nele sem quaisquer limitações, benefício que lhes teria custado no mercado de arrendamento € 400,00 se tivessem que mudar-se para local de idênticas características.
Por outro lado, embora a Autora não possa celebrar com terceiro contrato de arrendamento, poderia consentir-lhe, ou a si própria nas pessoas dos seus representantes/trabalhadores, a ocupação do imóvel, ainda que sem contrato de arrendamento e sem garantias de durabilidade, em termos similares aos que os Réus vêm beneficiando.
Deste modo, afigura-se correcto afirmar que os Réus se enriquecem com a ocupação ilegítima do imóvel, à custa da disponibilidade que a Autora, na qualidade de proprietária, teria para lhe dar outro destino, destino este que pode consistir em atribuir a terceiro ou a si própria, vantagem semelhante».
A mais do afirmado pelo Mm.º Juiz “a quo” diremos não resultar indiciado que em condições de normalidade em que a A., proprietária do prédio, dele tivesse total disponibilidade, não lograsse obter a competente autorização de utilização.
Aliás, a esse propósito não nos parece desprezível a alegação feita pelo recorrida no sentido de que, no caso dos autos, a autora não conseguirá obter a licença de utilização nem dar cumprimento às determinações da edilidade sem ter acesso ao imóvel, uma vez que a obtenção de tais documentos e condições implicam a visita ao imóvel de que a autora se vê privada em virtude da sua ilegítima ocupação pelos Réus.
Ora, sendo os RR. os infratores, seria inadmissível que pudessem beneficiar de qualquer modo da sua conduta lesiva dos direitos da A..
Por fim, não tendo os recorrentes impugnado a decisão sobre a matéria de facto, são manifestamente inócuas as objeções levantadas relativamente ao apurado valor locativo do imóvel (€ 400,00 em vez dos propugnados € 250,00).
Sendo assim, é de aceitar que a vantagem ou o beneficio patrimonial alcançado pelos RR. com o uso ilegítimo do prédio da autora corresponda ao gozo que (em termos similares) um locatário faria do prédio arrendado e, por isso, sendo o valor locativo do prédio, desde dezembro de 2012, de € 400,00, será esse o valor – como decidido na sentença recorrida – que os réus terão de pagar mensalmente à autora, até à entrega efetiva do prédio, a título de indemnização pelo enriquecimento sem causa.
Até porque só desse modo haverá o justo equilíbrio entre o enriquecimento dos RR. e o empobrecimento da autora.
Assinale-se que, contrariamente ao propugnado pelos recorrentes, a procedência do pedido indemnizatório deduzido pela autora não dependia da prova de qualquer dano por ela sofrido, mas tão só da prova – que foi feita – de que os RR. usaram, sem título legítimo, oponível à autora, o prédio que a esta pertence e que tal uso era avaliável pecuniariamente. Feita essa prova impunha-se (como bem foi decidido) condenar os réus a pagar à autora o valor do uso de que ilegitimamente beneficiaram – uso que a ordem jurídica reserva ou afeta de modo exclusivo ao proprietário da coisa, conferindo-lhe uma zona de domínio, de soberania ou de monopólio em que ninguém mais, sem o seu consentimento, pode interferir (24
A sentença recorrida merece, assim, plena confirmação, improcedendo as conclusões dos apelantes.
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As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC).
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Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I – O enriquecimento por intervenção constitui uma categoria autónoma do enriquecimento sem causa.
II – No enriquecimento por intervenção o elemento central reside na obtenção do enriquecimento à custa de outrem, pelo que, nas hipóteses de utilização de bens alheios, o dano patrimonial do lesado pode mesmo não existir.
III – Mesmo que o proprietário nenhum proveito tirasse dos bens, sempre o interventor estará obrigado a indemnizá-lo do valor do uso que deles fez, restituindo-lhe o valor da exploração.
IV – Ocupando os réus, sem título legitimador oponível à autora, um imóvel que a esta pertence, deverão ser condenados a pagar-lhe o valor do uso de que ilegitimamente beneficiam, de acordo com as regras que disciplinam o enriquecimento sem causa.
V – A procedência do pedido indemnizatório não está dependente da prova de qualquer dano sofrido pela proprietária do imóvel, mas apenas da prova de que os réus o usaram, sem título legítimo.
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VI. DECISÃO

Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo dos apelantes (art. 527º do CPC).
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Guimarães, 14 de novembro de 2019

Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
Paulo Reis (2º adjunto)


1. Cfr. Ac. do STJ de 28/05/2009 (relator Oliveira Rocha), in www.dgsi.pt..
2. Cfr. Ac. do STJ de 26/05/2009 (relator Moreira Alves), in ww.dgsi.pt..
3. Cfr. Indemnização do Dano da Privação do Uso, Almedina, pp. 55, 61 e 62.
4. Cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, pp. 61/62. Como salientava Pereira Coelho, fora dos quadros da responsabilidade civil, que impõe a existência de um dano, “o titular do direito poderá ainda, com base nos princípios do enriquecimento sem causa, exigir ao interventor o enriquecimento deste, até ao limite do valor do uso feito (…)” - cfr. O Enriquecimento e o Dano, p. 67.
5. Cfr. obra citada, pp. 63/64.
6. Cfr. Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., Coimbra Editora, p. 457.
7. Cfr. Henrique Mesquita, anotação ao Ac. do STJ de 29/04/21992, in RLJ, ano 125º, p. 158 e o Ac do STJ de 23/03/99 (relator Silva Paixão), CJSTJ, Ano VII, T. I., pp. 172/174.
8. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 2ª ed., Almedina, p. 402.
9. Cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6.ª edição, Almedina, 1989, p. 471.
10. Cfr. Ac. do STJ de 26/05/2009 (relator Moreira Alves), in www.dgsi.pt..
11. Cfr., entre outros, Menezes Leitão, O Enriquecimento Sem Causa no Direito Civil, Centro de Estudos Fiscais, Lisboa 1996, pp. 27 e ss.; Júlio Manuel Vieira Gomes, O Conceito de Enriquecimento, O Enriquecimento Forçado e os Vários Paradigmas do Enriquecimento Sem Causa, Universidade Católica Portuguesa, Porto, 1998, pp. 112 e ss.; Ac. do STJ de 28/06/2018 (relator Tomé Gomes), in www.dgsi.pt.
12. Cfr., neste sentido, Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, 6ª edição, Almedina, p. 410, Antunes Varela, Das Obrigações (…), pp. 437 e ss., e Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações (…), p. 381.
13. Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, obra citada, p. 411.
14. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações (…), p. 449.
15. Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, obra citada, p. 411 e Rui de Alarcão, Direito das Obrigações, Coimbra 1983, pp. 183/184.
16. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações (…), p. 455.
17. Cfr. Mário Júlio de Almeida Costa, obra citada, p. 414.
18. Cfr. Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações (…),p. 403.
19. Cfr. obra citada, p. 460.
20. Cfr. entre outros, Acs. do STJ de 24/03/2017 (relator António Piçarra), de 5/12/2006 (relator João Camilo), de 29/05/2007 (relator Azevedo Ramos), de 4/10/2007 (relator Santos Bernardino) e Ac. da RC de 02/11/2010 (relator Isaías Pádua), todos acessíveis in www.dgsi.pt.
21. Cfr. Antunes Varela, Das Obrigações (…), p. 456 e Acs. do STJ de 16/09/2008 (relator Serra Baptista) e de 19/02/2013 (relator Alves Velho), disponíveis in www.dgsi.pt.
22. Cfr. Ac. do STJ de 2/02/2010 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt. e Ac. do STJ de 23/11/2011 (relator Gregório Silva Jesus), in CJSTJ, n.º 235, Ano XIX, T. III/2011, pp. 133/137, L.P. Moitinho de Almeida, Enriquecimento Sem Causa, Almedina, p. 101.
23. A esse propósito, na sentença recorrida foi considerado – sem que tal tenha merecido impugnação de qualquer das partes – que, desde a data da aquisição até finais de Dezembro de 2017, a Autora, apesar de sabedora que os Réus continuavam a residir no prédio, não reclamou destes a sua entrega e desocupação, comportamento esse da Autora que constituiu consentimento tácito à presença dos Réus no imóvel, sem que lhes tivesse sido fixado prazo ou o pagamento de contrapartida para o efeito, enquadrável na figura do contrato de comodato, sendo que só com a citação para os termos da presente ação ocorreu a interpelação dos Réus para desocuparem o imóvel.
24. Cfr. Henrique Mesquita, anotação citada, p. 158.