Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1482/16.4T8VCT-A.G1
Relator: MARIA LEONOR CHAVES DOS SANTOS BARROSO
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
ACÇÃO EXECUTIVA
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/07/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I. Na acção conexa de acidente de trabalho (154ºCPT) não pode a autora/seguradora vir discutir a violação das regras de segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora, caso tenha corrido acção emergente de acidente de trabalho que findou, na fase conciliatória, por sentença homologatória de acordo, onde a seguradora assumiu, sem qualquer reserva, a responsabilidade decorrente do sinistro com base no risco.

II. A tal se opõe a autoridade de caso julgado, conceito que a lei expressamente ampliou no nº 2, do artigo 154º CPT, aos aspectos referentes à qualificação do sinistro e determinação da entidade responsável, ainda que na acção conexa não se verifique a clássica tríplice identidade de partes, causa de pedir e pedido.

III. Preceito a que subjazem razões de ordem pública inerentes ao regime de reparação de acidentes de trabalho, que impõem a concentração e definição no processo especial de acidentes de trabalho dos direitos reclamados pelo sinistrado/beneficiários e os assumidos/declarados a cargo dos responsáveis pela reparação, quer seja a empregadora ou seguradora.

IV. Vedando-se a repetição de acções conexas que visem discutir aqueles aspectos, também sob pena de insegurança, incerteza e descrédito jurídico.
Decisão Texto Integral:
I. RELATÓRIO

AUTOR/RECORRENTE- “X – Seguros, S.A”.
RÉ - “Y – Indústria de Borrachas, Ltª”.

A autora pede a condenação da ré no pagamento da quantia global de €32.426,90, acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, a contar da citação, tendo a acção prosseguido como “processo para efectivação de direitos de terceiros conexos com acidente de trabalho”, nos termos do artigo 154º CPT.
Alega que celebrou com a ré um contrato de seguro do ramo de acidentes de trabalho; que em 27-08-2015 ocorreu um acidente de trabalho com um trabalhador da ré, P. J., abrangido pelo dito seguro; que correu acção emergente de acidente de trabalho onde a ora autora, na tentativa de conciliação, aceitou a caracterização do sinistro como sendo de trabalho e assumiu a responsabilidade pagando ao sinistrado o capital de remição de pensão anual vitalícia e juros de €22.577,86; que sofreu, ainda, outros encargos com honorários, deslocações, custas e demais encargos judiciais; que procedeu também ao pagamento de cuidados médicos e medicamentosos, transportes e indemnização por IT´s; que a produção do acidente se deveu exclusivamente à violação das regras de segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora, ora ré; que pela presente acção vem exercer o direito de regresso nos termos artigos 18º e 79º da Lei nº 98/2009, de 04-09 e o disposto no artº 28º das Condições Gerais da Apólice; que goza do direito de receber da ré o valor total de que ficou desembolsada e decorrente do sinistro, direito que ora exerce após o ter tentado nos tribunais comuns e ter sido confirmado pelo STJ, por acórdão de 2-5-19, a incompetência em razão da matéria, atribuindo-a aos tribunais de trabalho.
A ré contestou. Arguiu a excepção de caso julgado, ou a autoridade de caso julgado ou, caso assim se não entenda, uma excepção dilatória inominada, porque o acidente de trabalho e sua reparação foi objecto de decisão no processo especial emergente de acidente de trabalho nº 1482/16.4T8VCT, de que estes autos são apenso. Onde a ora ré chegou a juntar procuração a favor de mandatário, mas foi dispensada de intervir porque a ora autora e o sinistrado chegaram a acordo na fase conciliatória, acordo objecto de homologação. Ora, nesse processo, a ora autora/seguradora não suscitou qualquer questão de incumprimento pela ora ré das regras relativas à segurança e saúde no trabalho. Limitando-se a assumir toda a responsabilidade pelo sinistro. Excepciona também o abuso de direito. Impugna a restante matéria.

No despacho saneador proferiu-se decisão sobre o mérito da causa, do modo que segue:
DECISÃO RECORRIDA (DISPOSITIVO):
Julgar totalmente improcedente a acção, dela se absolvendo a R.
Custas pela A..
Valor: o indicado pela A.“

A AUTORA RECORREU – SINTESE:
A recorrente coloca a questão de saber se é ou não possível, no âmbito de acção para efectivação de direitos conexos com acidente de trabalho (154º CPT) apreciar a responsabilidade da entidade empregadora na ocorrência de acidente de trabalho por violação das normas de segurança, se na fase conciliatória da acção especial emergente de acidente de trabalho tal questão não foi suscitada/discutida.
No seu entender a resposta é afirmativa porque não se verifica o invocado efeito de caso julgado e nenhum impedimento legal existe para o exercício em juízo da sua pretensão indemnizatória.
Pese embora tenha corrido acção especial por acidente de trabalho onde a ora autora aceitou a responsabilidade objectiva por acidente de trabalho e se conciliou com o sinistrado, o juiz limitou-se a proferir um simples despacho homologatório não chegando a conhecer do fundo da relação jurídica substancial, sendo a sua actividade de mera verificação da validade do acto praticado pelas partes, do ponto de vista do objecto e da qualidade das pessoas que nele intervêm.
O despacho homologatório do acordo obtido em fase conciliatória na acção especial de acidente de trabalho não é uma sentença, formalmente, nem jurídico- processualmente, isto é, não está pensada, nem é equiparável, do ponto de vista processual, às sentenças, e não decide de mérito, não estando, portanto, coberto pelo artigo 619º nº 1 do CPC, isto é, não fazendo caso julgado.
A acção especial não prosseguiu para a sua fase contenciosa e, portanto, não houve pronúncia sobre o fundo da questão.
Nem existe identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, necessários ao caso julgado.
Não há nenhuma norma que estabeleça a obrigatoriedade de a seguradora suscitar na fase conciliatória a questão relativa à violação de regras de segurança pela entidade patronal.
O princípio do caso julgado previsto no artigo 154º/2, CPT só tem pertinência nos casos em que na acção emergente de acidente de trabalho foi abordada/discutida a violação as regras de segurança pela entidade empregadora, impedindo nova decisão a respeito dessa matéria já definitivamente julgada e de forma a evitar contradições de julgados.
Não pode ser atribuído efeito cominatório ao facto de a autora/seguradora nada ter referido em sede de tentativa de conciliação a respeito da violação das regras de segurança pela entidade patronal e, especialmente, atendendo à redacção conferida pelo legislador ao artº 79º/3 da LAT.
Deve ser revogada a decisão final.

CONTRA-ALEGAÇÕES DA RÉ - SINTESE:

Previamente correu termos no Tribunal da Comarca de Viana do Castelo- Ministério Público, Procuradoria Inst. Central - Trabalho, o processo nº 1482/16.4T8VCT, com origem no acidente de trabalho sofrido pelo trabalhador da ré, P. J., ali intervindo como partes o sinistrado, a autora seguradora, ora recorrente e a ré que juntou procuração aos autos.
Aquela acção seria o lugar e momento adequados para se concluir pela verificação e preenchimento dos requisitos constantes do artigo 18º da Lei 98/2009, de 4-09 referentes à violação das regras de segurança e saúde no trabalho por banda da empregadora, questão que não foi sequer suscitada pela ora autora que aceitou sem reservas a sua responsabilidade.
Não o tendo feito não pode agora a recorrente vir suscitar a questão do direito de regresso, colocando novamente à apreciação factos já decididos no processo principal.
Nos autos principais, de que estes são apenso, houve acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída.
Ocorre, assim, a excepção de caso julgado.
Ou de autoridade de caso julgado, que prescinde da referida tríplice identidade e que ocorre quando uma decisão, mesmo que proferida noutro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado.
Ou, se assim se não entender, não poderá a pretensão proceder por se configurar a excepção dilatória inominada, que conduz à absolvição da Ré.
A autora ao propor agora esta acção, quando no processo próprio não suscitou qualquer questão, apresenta uma atitude insólita, imprevisível e de ostensiva má-fé, o que consubstancia uma actuação de abuso de direito.
Deve manter-se a douta sentença recorrida.

PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO: propugna que deve ser negado provimento ao recurso face ao efeito de caso julgado do artigo 154º/2PT.
A autora/recorrente respondeu propugnado pela procedência do recurso.
Foram colhidos os vistos e o recurso foi apreciado.

QUESTÕES A DECIDIR (o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões do recurso (1)): saber se a autora/seguradora pode em acção conexa a acidente de trabalho discutir a falta de observância das regras de segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora após homologação judicial de acordo efectuado no âmbito da acção especial de acidente de trabalho.

I.I. FUNDAMENTAÇÃO

A- FACTOS

Na primeira instância foram julgados provados os seguintes factos:

1 – No processo principal a fase conciliatória terminou por acordo devidamente homologado.
2 – Nessa conciliação, a seguradora aqui A. aceitou o acidente dos autos como de trabalho, o nexo de causalidade entre as lesões que o sinistrado apresentava e o acidente, a transferência da responsabilidade da entidade empregadora pela totalidade da remuneração auferida pelo sinistrado e o resultado do exame do GML.
3 – Aceitou, por isso, pagar ao sinistrado todas as quantias por este reclamadas.
4 – No processo principal e naquela fase conciliatória, a aqui A. não suscitou a questão da responsabilidade da entidade empregadora por violação de regras de segurança.

B) RECURSO SOBRE A MATÉRIA DE DIREITO

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (2), a única questão a analisar é:
Saber se no âmbito da acção destinado à efectivação de direitos conexos com acidente de trabalho prevista no artigo 154º CPT pode a seguradora vir discutir a actuação culposa da empregadora (18º e 79º/3, LAT), quando na acção prévia emergente de acidente de trabalho aceitou, sem reserva, a responsabilidade pela reparação do acidente de trabalho, terminando os autos por acordo, na tentativa de conciliação, devidamente homologado.
Na sentença recorrida considerou-se que, não tendo a seguradora arguido tal questão e tendo aceite a sua responsabilidade na acção prévia de acidente de trabalho, ficou precludido o direito de regresso a exercer na acção prevista no artigo 154º CPT.
Análise do caso:

Em caso de verificação de actuação culposa do empregador na produção do acidente de trabalho, não há dúvida que a lei confere o direito de regresso à seguradora que tenha satisfeito o pagamento de prestações pelo sinistro com base no risco e enquanto devedora a título subsidiário- 18º e 79º NLAT.
A questão que se coloca é a de saber o momento em que a seguradora deve arguir a falta de observação das regras de segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora, questão a ser respondida, não por recurso às normas substantivas, mas sim às normas processuais.
Concorda-se, desde já, com a sentença recorrida quando nela se afirma que, tendo corrido processo especial de acidente de trabalho e tendo a ré seguradora aceite sem reservas a responsabilidade pelo sinistro, não pode agora pretender vir discutir a existência de violação de regras de segurança.

Basta atentar no disposto no artigo 154º/2 CPT que estipula:

1- O processo destinado à efectivação de direitos conexos com acidente de trabalho sofrido por outrem segue os termos de processo comum, por apenso ao processo resultante do acidente, se o houver.
2- As decisões transitadas em julgado que tenham por objecto a qualificação do sinistro como acidente de trabalho ou a determinação da entidade responsável têm valor de caso julgado para estes processos” (sublinhado nosso).

A norma acrescenta algo à noção tradicional de caso julgado.
A excepção dilatória de caso julgado, nos seus moldes clássicos, veda a propositura de acção idêntica, por nela figurarem os mesmos sujeitos e ter igual causa de pedir e pedido - 580º e 581º CPC.
Ao passo que aquela norma estende o efeito de caso julgado ao processo conexo, ainda que as partes não sejam as mesmas, os pedidos sejam diferentes e as causas de pedir seja parcialmente distintas. A norma é clara nesse sentido e de resto só assim tem utilidade, dado que já existe norma geral a vedar a repetição, stricto sensu, de causas já julgadas.
Compreenda-se que o processo de acidente de trabalho tem uma finalidade muito específica visando a reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho ao sinistrado e seus familiares, sendo este o pedido (indemnização por IT, pensões por IP´s, despesas de transportes e medicamentosas, subsídios por elevadas incapacidades permanentes, etc…)
Já os pedidos nas acções conexas serão sempre diferentes relativamente à acção emergente de acidente de trabalho. No presente caso respeita ao valor que se pretende reaver em direito de regresso. Os sujeitos podem não ser todos idênticos e tenderão a não o ser, se a norma for bem utilizada, para o fim a que se destina. E a causa de pedir só parcialmente é igual, no segmento relacionado com a qualificação do sinistro e a responsabilidade pelo mesmo – 577º/i, 578º, 580º e 581º CPC.
Compreenda-se também que a acção emergente de acidente de trabalho tem por traços característicos essenciais o carácter oficioso do processo e a sua natureza de interesse público, donde decorrem relevantes consequências.
Entre elas, a começar, o principio de que o processo, iniciando-se com a fase conciliatória após recebimento da participação, é dirigida pelo Ministério Púbico e, portanto, subtraída ao impulso de uma parte, cabendo aquele a promoção de todas as diligências probatórias que se afigurem necessárias – 99º CPPC.
Incumbe também ao Ministério Púbico um dever de confirmação da veracidade dos elementos do processo e das declarações das partes para efeitos de proposição de acordo ao juiz, tendo mesmo de emitir parecer se for junto acordo extrajudicial e, ainda assim, previamente verificar a justa valoração dos factos e correcta aplicação da lei – 104º e 114ªCPT.
Em especial, ao Ministério Público incumbe investigar e requisitar inquérito urgente quando ” houver motivos para presumir que o acidente ou as suas consequências resultaram da falta de observação das condições de segurança e saúde no trabalho ou que “foi dolosamente provocado” – 104º/2/c/d, CPT (sublinhado nosso).
Finalmente, é o Ministério Público que promove os termos do acordo obedecendo a um principio de legalidade, conforme aos elementos probatórios fornecidos/recolhidos e as normas legais imperativas, ou que, ao invés, apresenta a petição inicial -109º, 113º, 114º/2, 116º, 119º CPT.
Ademais, à tentativa de conciliação da fase conciliatória são chamados, além do sinistrado/beneficiários legais, as entidades empregadoras ou seguradoras, conforme os elementos constantes na participação, ou de outras entidades conforme as declarações prestadas – 108º CPT
Caso haja conciliação no auto deve constar, além da identificação dos intervenientes, a indicação precisa dos direitos e obrigações que são atribuídos e descrição pormenorizada do acidente e dos factos que servem de fundamento aos direitos e obrigações – 111º CPT.
No caso contrário de não haver acordo, no auto devem ser consignados os factos em que há acordo, com referência expressa a se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente de trabalho, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau de incapacidade atribuída, com vista a afunilar o mais possível as questões controvertidas- 112º CPT.
Mais, a lei expressamente consagra um dever de os interessados tomarem posição expressa sobre cada um destes factos estando habilitados a fazê-lo, sob pena de condenação em litigância de má fé – 112º/2, CPT. Não está, assim, na disponibilidade das partes, mormente da entidade seguradora, não tomar posição expressa sobre o que entende ser a sua responsabilidade, onde se incluiu a validade do seguro, o montante da retribuição transferido, a existência de culpa do sinistrado, ou a falta de observação das regras de segurança por parte da entidade empregadora.
Aliás, tal posição é indispensável porquanto só assim se definem os direitos do sinistrado, finalidade da acção de acidente de trabalho. Não podemos olvidar que o direito de ressarcimento do sinistrado em caso de actuação culposa do empregador é muito superior ao que resultaria das regras gerais de responsabilidade objectiva (18º LAT), pelo que as partes, todas elas, têm o dever de nos termos expostos tomar posição expressa sobre o que entendem ser os seus direitos e responsabilidades, o que passa por clarificar se o sinistro teve causa no risco ou teve causa na responsabilidade extracontratual.
Assim, não se poderá reconhecer na acção de acidente de trabalho que a seguradora responde com base no risco e que o sinistrado tem, assim, direito apenas à reparação “simples” e, numa acção conexa, declarar-se, incongruentemente, que houve culpa da entidade empregadora na produção do acidente, conferindo-se o direito de regresso à seguradora.

Seria como se diz, expressivamente, na sentença um “entorse jurídico”:

num processo considerar-se responsável principal e única a entidade seguradora, e pelas pensões normais, e noutro processo, julgar-se responsável principal a entidade patronal, donde decorreria que haveria lugar a pensões agravadas e apenas responsabilidade subsidiária da seguradora. Esta contradição revelar-se-ia axiológica e juridicamente inadmissível. “….
Ao permitir-se a reabertura do sinistro laboral, hoc sensu, através deste processo conexo, colocava-se em risco a decisão então proferida, pois que se poderia concluir agora pela culpa da entidade patronal, com todas as consequências que daí decorrem. E é exactamente este resultado que o citado normativo legal pretende impedir.
Sublinhe-se novamente este aspecto: se neste processo conexo fosse possível agora discutir a responsabilidade da entidade empregadora, poder-se-ía chegar a uma conclusão que determinaria que o sinistrado tinha direito a uma pensão agravada, em oposição ao que ficou decidido no processo principal, o que seria uma contradição inadmissível tanto mais que estamos perante direitos irrenunciáveis.”

É correcto o afirmado.

Do regime de acidente de trabalho, regulado ao pormenor, resulta uma ideia de concentração neste processo especial de todas as questões relacionadas com a caracterização do acidente de trabalho e determinação da entidade responsável e em que moldes, com a consequente preclusão de reabertura destas questões. Em obediência aos princípios da oficiosidade, da irrenunciabilidade dos direitos conferidos pela lei de reparação de acidentes de trabalho e da sua natureza pública– 12º NLAT.

Ora, no caso vertente, a acção de acidente de trabalho extinguiu-se por autocomposição das partes sendo o acordo homologado pelo juiz, validando o acto e vinculando as partes ao seu conteúdo, tendo a seguradora assumido a responsabilidade sem levantar qualquer objecção - 114º e 115º CPT.
Alega a autora, enredando-se em argumento de natureza formal, a inexistência de caso julgado stricto sensu porque não há identidade de partes, causa de pedir e pedido, e porque se trata de uma sentença homologatória sem apreciação de mérito.
Remete-se para o supradito relativamente ao disposto no artigo 154º/2, donde resulta uma extensão do conceito de caso julgado e sua autoridade, prescindindo-se do tríplice de identidade, ou, como na jurisprudência dizem outros, donde resulta uma excepção dilatória inominada que impede que se conheça da causa. Optando por uma ou por outra, o resultado será o mesmo, tendo a pretensão da autora de soçobrar, porquanto aceitando, em termos inequívocos e sem reservas, a sua responsabilidade pelo sinistro na acção de acidente de trabalho, fica precludido o seu direito de, em acção conexa, discutir a culpa da empregadora (3).
É também insustentável o segundo argumento de inexistência de caso julgado porque a acção de acidente de trabalho terminou por despacho homologatório e não decisão de mérito.
O artigo 154º/2, CPT, não faz tal restrição, nem faria sentido que fizesse face às razões de ordem pública e especificidades acima assinaladas do regime de reparação por sinistro laboral.
Pretende a autora atribuir o efeito de mero caso julgado formal à sentença homologatória negando-lhe o carácter erga omnes, porém o cerne da distinção caso julgado material/formal não passa por o processo terminar por uma sentença subsequente a um contencioso ou por uma sentença homologatória.
O caso julgado formal incide somente sobre a relação processual, subjazendo-lhe razões de “ordem e disciplina/procedimental e daí a sua natureza modificável”. O caso julgado material incide sobre os bens ou direitos substantivos em litígio, sobre a relação material controvertida.
O que os diferencia é o seu objecto e não o seu invólucro, entenda-se sentença tout court ou sentença homologatória. E o que lhe está subjacente é a “…a perplexidade que a contraditoriedade de decisões judiciais para situações em tudo similares sempre geraria…” e ainda a consciência de que “seria gravemente atentatório dos valores da certeza e segurança jurídicas… “ e que “seria a falência dos prestígio dos tribunais e da paz jurídica…” (4). O efeito de caso julgado material atribuído às sentenças homologatórias é pacificamente mencionado pela doutrina (5).
Assim sendo, para tal argumento ter relevância teria a autora seguradora de, previamente, destruir o valor do acordo, obtendo a respectiva anulação judicial e a revisão da sentença homologatória do mesmo, nos termos do art. 291º/2 do NCPC.
Finalmente, também já a doutrina mais antiga opinava no sentido sufragado, designadamente António Leite Ferreira:

Há que notar, todavia, que nestes processos destinados a dar efectivação a direitos de terceiros conexos com acidentes de trabalho ou doenças profissionais não pode discutir-se a qualificação do sinistro ou da doença como acidente de trabalho ou doença profissional nem tão pouco a determinação da entidade patronal, mas apenas a questão conexa em si. É que no processo que emergiu do acidente ou da doença já foi discutida, apreciada e decidida a natureza do acidente como acidente de trabalho ou da doença como doença profissional, assim como a questão da identidade do responsável pelas suas consequências. A decisão proferida sobre qualquer destas questões, uma vez transitada, adquire força de caso julgado material que obsta À sua reapreciação” (6).

I.I.I. DECISÃO

Pelo exposto, de acordo com o disposto nos artigos 87º do CPT e 663º do CPC, acorda-se em negar provimento ao recurso mantendo-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da recorrente.
Notifique.
7-05-2020

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso (relatora)
Antero Dinis Ramos Veiga
Alda Martins


Sumário – artigo 663º n.º 7 do C.P.C

I. Na acção conexa de acidente de trabalho (154ºCPT) não pode a autora/seguradora vir discutir a violação das regras de segurança e saúde no trabalho por parte da empregadora, caso tenha corrido acção emergente de acidente de trabalho que findou, na fase conciliatória, por sentença homologatória de acordo, onde a seguradora assumiu, sem qualquer reserva, a responsabilidade decorrente do sinistro com base no risco.
II. A tal se opõe a autoridade de caso julgado, conceito que a lei expressamente ampliou no nº 2, do artigo 154º CPT, aos aspectos referentes à qualificação do sinistro e determinação da entidade responsável, ainda que na acção conexa não se verifique a clássica tríplice identidade de partes, causa de pedir e pedido.
III. Preceito a que subjazem razões de ordem pública inerentes ao regime de reparação de acidentes de trabalho, que impõem a concentração e definição no processo especial de acidentes de trabalho dos direitos reclamados pelo sinistrado/beneficiários e os assumidos/declarados a cargo dos responsáveis pela reparação, quer seja a empregadora ou seguradora.
IV. Vedando-se a repetição de acções conexas que visem discutir aqueles aspectos, também sob pena de insegurança, incerteza e descrédito jurídico.

Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso


1. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC.
2. Segundo os artigos 635º/4, e 639º e 640º do CPC, o âmbito do recurso é balizado pelas conclusões do/s recorrente/s.
3. No sentido da preclusão de direito emergentes de acidente de trabalho não discutido no momento próprio: RL acórdão de 3-05-2017 (acção de acidente de trabalho que terminou também por homologação de acordo e o sinistrado noutra acção pretendeu demandar a empregadora por violação de regras de segurança) ; RP de 8-11-2010 (acção de acidente de trabalho que terminou por homologação de acordo e os beneficiários accionaram nova acção com base em responsabilidade subjectiva); RG de 21-04-2016 (julgou-se procedente a excepção inominada na sequencia de acordo homologado na acção de acidente de trabalho, o que impede, no entender da Relação, que a instância se renove e as partes intentem nova acção para reclamar outros direitos); RE de 9-03-2016 (no sentido de que em acção conexa não é possível discutir-se se o acidente ocorreu por falta de observação das regras de segurança, pese embora no caso a acção de acidente de trabalho termine por sentença de mérito pós julgamento).
4. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, p. 448.
5. Por exemplo José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º v., 3ª ed., p. 750.
6. Código de Processo do Trabalho, Anotado, 4º ed., p. 676.