Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
474/17.0GCBRG.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
APRECIAÇÃO DOS PRESSUPOSTOS
PODERES DO JIC
NÃO CONCORDÂNCIA DO JIC
NULIDADE DO ARTº 119º
AL. E) DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/05/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) O JIC para dar a sua concordância à suspensão provisória do processo deverá aferir dos indícios para fundamentarem uma convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido.

II) No caso dos autos, o JIC limitou-se a interpretar os factos imputados pelo Mº Pº ao arguido, concluindo que os mesmos não constituem crime, mas apenas contraordenação.

III) E tal posição em não configura a nulidade do artº 119ª, al. e), do CPP, arguida pelo Mº Pº, uma vez que a análise feita pelo Senhor Juiz não belisca em nada a competência do recorrente, enquanto titular da ação penal, para proceder à investigação na fase de inquérito a que preside.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. Nos autos de inquérito nº 474/17.0GCBRG, da Procuradoria da República da Comarca de Braga, Departamento de Investigação e Ação Penal – 1ª Secção de Vila Nova de Famalicão, no Juízo de Instrução Criminal de Braga – J2, em que é arguido Filipe, com os demais sinais nos autos, o Exº Srº Juiz de Instrução proferiu despacho de não concordância com a suspensão provisória do processo por determinação do Ministério Público.
2. Em face do que, o M.P. suscitou a nulidade do sobredito despacho, tendo concluído no sentido de que “deverá ser declarada a nulidade do despacho judicial de fls. 61 e 62, com as legais consequências, que passam, no caso, desde logo e antes do mais, pela prolação de despacho, em substituição, que dê a concordância (ou não concordância, mas por motivos que não os que foram alinhados) à suspensão provisória do processo determinada pelo Ministério Público”.
3. Por despacho exarado nos autos, o Exª Juiz de Instrução julgou improcedente a invocada nulidade.
4. Não se conformando com este despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
1. Podendo e devendo sindicar a competência do Juiz, a arguição da nulidade insanável do despacho de não concordância é admissível, ao abrigo do disposto, entre o mais, no artigo 119.°, al. e) do Código de Processo Penal, pelo que o despacho que indefere o peticionado e mantém uma decisão nula - fis. 78 a 80 - deve considerar-se recorrível (cfr. artigo 399.°, 400.° a contrario, 401.°, n.° 1, a.) e 427.° do Código de Processo Penal).
2. Conforme o Ministério Público se apresta a demonstrar, o despacho recorrido, relativo ao indeferimento da arguição da nulidade do artigo 119.°, al. e) do Código de Processo Penal e manutenção da decisão antecedente de não concordância com a suspensão provisória do processo determinada pelo Ministério Público, assenta num juízo que extravasa os poderes de cognição do Juiz de Instrução — sendo, em consequência, nulo — e, também, num raciocínio material e logicamente inválido — quanto à falta de verificação do tipo legal de crime.
3. O princípio da legalidade a que o Ministério Público está adstrito, encontra-se mitigado pelo princípio da oportunidade, e, com base nisso, o Ministério Público optou por não deduzir acusação, decidindo-se pela aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, sendo que o juízo formulado sobre a existência ou inexistência de indícios suficientes da prática de crime está na exclusiva disponibilidade do Ministério Público, subtraído, portanto, aos poderes de cognição do juiz de instrução.
4. O juiz de instrução deve ater-se aos factos alinhados/narrados no despacho de aplicação do instituto de suspensão provisória do processo e que lhe foi submetido para concordância, e não aos elementos de prova que o Ministério Público carreou para o processo, para, de forma fundamentada ou não, concluir pela verificação ou não verificação de indícios suficientes da prática de crime.
5. Atendendo a que os factos constantes do despacho do Ministério Público, de fls. 54 a 56, são integrativos dos elementos do tipo de ilícito sub judice, o Mmo.Juiz, contrariamente ao que fez, deveria ter-se cingido a tais factos, sem levar a cabo qualquer atividade investigatória, para a qual não tem, como se viu, competência.
6. O juiz de instrução está vinculado ao “thema decidendum “, pelo que não pode tecer considerações que extravasem o âmbito da questão que foi colocada à sua consideração, sob pena de violar o princípio do pedido, que mais não é do que um dos aforamentos do basilar e matricial princípio do acusatório (artigo 32.°,n.° 5 da Constituição da República Portuguesa), como fez quando decidiu: “...não dou a minha concordância à suspensão provisória do processo por os factos não constituírem crime, mas apenas uma contraordenação.”
7. O referenciado despacho judicial, embora devidamente fundamentado, não pode também impor condições e/ou limitações para a aplicação daquele instituto jurídico, nem tampouco pode o Juiz, através dele, veicular sugestões ou interpretações, nomeadamente dirigidas ao Ministério Público.
8. O despacho judicial, na parte em que sindica os indícios da prática do crime, desrespeitou a estrutura acusatória do processo penal, por ter-se exercido uma competência própria do Ministério Público, a quem cabe investigar e dirigir o inquérito (artigos 32.°, n.° 5 e 219.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, 49.°, 53.° e 263.° do Código de Processo Penal).
9. O despacho de discordância nos termos expendidos - qualificando já como contraordenaçao os factos a si submetidos — é claramente violador do princípio do acusatório, do qual o princípio do pedido é um aforamento. Ao veicular-se junto do Ministério Público, “interpretações” e “sugestões”, foram extravasados os limites da competência do Juiz de Instrução (cfr. artigos 32.°, n° 5 e 219.°, n.° 1 da Constituição da Republica Portuguesa, 17.°, 53.° e 263.° e 26$.°, n°s 1 e 2 do Código de Processo Penal)
10. Resulta, assim, com clareza, que como consequência direta da atuação do Mmo. Juiz de Instrução, o despacho judicial proferido a fis. 61 e 62 enferma da nulidade prevista no artigo 1 19.°, al. e) do Código de Processo Penal, pois que, por via do mesmo, foram violadas as regras de competência do tribunal, consagradas nos artigos 10.0 e ss. do Código de Processo Penal, e, mais especificamente, no artigo 17.° do citado Diploma legal, em conjugação com os artigos 32.°, 53•0, 263.°, 26$.°, nos i e 2 e 281.°, n.° 1 do Código de Processo Penal e artigos 32.°, n.° 5 e 219.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa.
11. Razão pela qual devia ter sido acolhida a arguição de nulidade e proferido despacho que a declarasse, o que, conforme decorre da análise do despacho recorrido, não sucedeu.
12. A decisão recorrida padece ainda de um erro de avaliação/apreciação (da prova adquirida), pois conforme resulta do exame pericial o arguido detinha 7,477 gramas de canabís (resina) correspondentes a 10 doses diárias, à qual acrescem 1,212 gramas de cocaína (cloridrato), o que configura quantidade superior a 10 doses diárias.
13. O Mmo. Juiz de Instrução, ao concluir que não há crime, na medida em que não é possível apurar o grau de pureza da cocaína, contraria o elemento literal da norma, pois a lei é clara no que respeita à incriminação, exigindo que o arguido detenha produto estupefaciente em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.
14. O que não deixa de se verificar no caso dos autos, pois a pequena excrescência de cocaína, somada à canabis (resina) apreendida, ultrapassa a quantidade mínima de produto estupefaciente, da qual o legislador fez depender a incriminação da conduta.
15. A dita interpretação judicial também não atende ao elemento teleológico da norma citada, na medida em que a distinção entre uma conduta passível de subsunção ao tipo legal de crime p. e p. pelo artigo 40.°, n.° do Decreto-lei n.°15/93, de 22 de janeiro ou ao tipo de ilícito de mera ordenação social previsto no artigo 2.°, n.°s 1 e 2 da Lei n.° 30/2000, de 29 de novembro, funda-se na quantidade de produto estupefaciente detida pelo consumidor.
16. Na verdade, a descriminalização do consumo a que se assistiu por via da entrada em vigor da Lei n.° 30/2000, de 29 de novembro, tem o seu cerne na quantidade de produto estupefaciente, entendendo o legislador que a detenção para consumo próprio e exclusivo a partir de uma certa dosagem — que fixou em 10 doses diárias — é merecedora de tutela penal.
17. Ora, se a quantidade de canabis (resina) apreendida equivale a 10 doses diárias, e se o arguido trazia também consigo 1, 212 gramas de cocaína, não resta senão concluir pela verificação de crime.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, declarando-se a nulidade do despacho de fls. 61 e 62, e revogando-se o despacho recorrido, determinando-se a prolação de outro, em substituição, que dê a sua concordância à aplicação, no caso, do instituto de suspensão provisória do processo ao arguido Filipe.
5. O arguido, apesar de notificado, não respondeu ao recurso.
6. Nesta instância, o Exª Senhor Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto.
7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. O despacho recorrido

1.1- O Exº Srº Juíz de Instrução proferiu o seguinte despacho [transcrição]:

Após doutas considerações teóricas expendidas ao longo de fls. 66 a 75, termina o MP:

“Termos em que, de harmonia com as disposições conjugadas dos artigos 119.º, al. e), 17.º, 32.º, 53.º, 263.º, 268.º, nºs 1 e 2 e 281.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e artigos 32.º, n.º 5 e 219.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, deverá ser declarada a nulidade do despacho judicial de fls. 61 e 62, com as legais consequências, que passam, no caso, desde logo e antes do mais, pela prolação de despacho, em substituição, que dê a concordância (ou não concordância, mas por motivos que não os que foram alinhados) à suspensão provisória do processo determinada pelo Ministério Público”.

Decidindo.

Como se diz no acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, n.º 16/2009, DR, 1.ª série, 24/12/2009, a concordância do JIC é « … vinculada, e preenche uma função de controlo que é de interesse público. Trata-se pois de um poder-dever, e não pode, portanto, deixar de ser uma decisão fundamentada».

O despacho de não concordância mostra-se fundamentado, tanto que o MP o entendeu.

E aquele interesse público que condiciona o juízo de concordância ou não concordância do JIC em relação à proposta do M.P. de suspensão provisória do processo, abarca, necessariamente, todos os elementos que a constituem, quer formais, quer materiais, desde a existência de indícios de crime e respectiva punibilidade, à dimensão e natureza das injunções e regras de conduta promovidas, cabendo-lhe ainda aferir, em concreto, se as mesmas atentam contra a dignidade pessoal do arguido ou atingem o núcleo dos seus direitos fundamentais – ac. do TRE de 30/09/2014, proc. 89/13.2GGODM-A.E1.

Sabendo-se que o despacho de não concordância com a suspensão provisória do processo é irrecorrível (acórdão de fix. de jurisprudência citado), não pode o MP pretender por via da arguição de uma nulidade – que não existe – criar condições para contornar essa irrecorribilidade, forçando reapreciações.
Pois, como se diz no acórdão do TRE de 21/10/2014, proc. 388/13.3GBODM-A.”…, não se contentando com a posição do Juiz ao não aceitar a suspensão provisória do processo, e sendo esse despacho irrecorrível, por força da Jurisprudência fixada no acórdão nº 16/2009 de 24/12/2009, o qual refere que "a discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do nº l do artigo 281° do Código de Processo Penal, não é recorrível", veio rodear tal proibição, forçando esse mesmo Juiz de Instrução a proferir novo despacho sobre a matéria, despacho este a que, formalmente, já não estaria vedada a interposição de recurso.
No entanto, tratou-se apenas de forçar uma formalidade, já que o que o recorrente pretende do segundo despacho proferido pelo Juiz, atento o requerimento que lhe deu origem, é precisamente a nulidade do primeiro, e, consequentemente, a alteração da decisão de fundo, isto é, que o juiz decida no sentido da suspensão provisória do processo, como pretendia desde o início, independentemente da opinião daquele Magistrado sobre o caso concreto.

Como tal, entende-se que o despacho recorrido não padece de qualquer nulidade, já que o juiz que o proferiu é competente para o proferir, nos seus precisos termos, não tendo havido violação de qualquer preceito legal”.
Ora, como o signatário é juiz e proferiu o despacho de não concordância improcede assim a arguida nulidade.
Devolva os autos ao MP.

1.2- O despacho proferido pelo Exº Senhor Juiz de Instrução de não concordância com a suspensão provisória do processo requerida pelo M.P. tem o seguinte teor [transcrição]:

“Em face dos elementos colhidos nos autos e no tocante aos factos vertidos no despacho do Ministério Público, entende o MP que o arguido Filipe cometeu um crime de consumo, p. e p. pelo artigo 40º nº 1 e 2 do Decreto-lei n° 15/93, de 22/01 e AUJ n.° 2/2008, punível com pena de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias
O arguido concordou com a suspensão provisória; não tem antecedentes criminais e não beneficiou anteriormente da suspensão provisória do processo por crime da mesma natureza.
Mas, como se refere no acórdão do TRC de 19/12/2012, proc. 946/09. OGBILH Cl, cuja jurisprudência se acolhe:
“A detenção de substâncias compreendidas nas tabelas Ia IV anexas ao D.L. n.°15/03, de 22/1, para consumo próprio integra a prática de um crime de consumo de estupefacientes, do art. 40.º, n.° 2, se a sua quantidade for superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias;
Para a determinação do estado de toxicodependência é essencial não só identificar a natureza da substância, com vista à demonstração de que ela integra as referidas tabelas, como ainda a percentagem do princípio ativo existente no produto apreendido:
Só depois, com estes valores fixados no exame laboratorial, é que podemos socorrer-nos dos valores referidos no mapa anexo à Portaria n.° 94/96, de 26/3: só perante a percentagem do princípio activo constante da substância apreendida, só perante um produto “puro “, conforme se diz em linguagem corrente — seja com a canabis, seja com qualquer outra substância, mormente heroína ou cocaína - é que podemos avaliar se a quantidade detida é “superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias.”
No caso concreto, nos termos do exame pericial de fls. 43, a canabis apreendida dava para 10 doses e quanto à cocaína não foi possível apurar o grau de pureza — sendo que o peso da cocaína referido no exame é bruto (ou seja contempla o plástico).
Termos em que não dou a minha concordância à suspensão provisória do processo por os factos não constituírem crime, mas apenas uma contraordenação.”

2. Apreciação do recurso

2.1- O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso do tribunal.

O nº 1 do artigo 412º do C.P.P. estabelece que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Nas conclusões do recurso, o recorrente deverá fazer uma síntese das razões da sua discordância relativamente à decisão recorrida, tal como se encontram delineadas na respetiva motivação.
Assim, e vistas as conclusões do recurso, a questão essencial a decidir, considerando o teor das conclusões do recurso interposto pelo M.P., consiste em saber se o despacho de não concordância com a suspensão provisória do processo proferida pelo Exº Juiz de Instrução padece da nulidade insanável invocada..
Ora, julgamos não ser demais recordar que foi fixada jurisprudência segundo a qual “A discordância do juiz de instrução em relação à determinação do Ministério Público, visando a suspensão provisória do processo, nos termos e para os efeitos do nº 1 do artigo 281º do Código de Processo Penal não é passível de recurso”, cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 16/2009, DR 1ª Série, de 24.12.2009.

O que significa que para dar resposta à questão que agora nos ocupa, não está em causa saber do acerto da posição de discordância assumida pelo Exº Senhor Juiz de Instrução com a suspensão provisória do processo, uma vez que essa questão, bem ou mal, está resolvida por decisão irrecorrível, nos termos do sobredito AUJ.

A questão que importa agora decidir é outra e tem que ver com o conteúdo dos poderes do juiz de instrução quanto à apreciação, em inquérito, dos pressupostos de que depende a suspensão provisória do processo por determinação do M.P..
Segundo o M.P., “O despacho judicial, na parte em que sindica os indícios da prática do crime, desrespeitou a estrutura acusatória do processo penal, por ter-se exercido uma competência própria do Ministério Público, a quem cabe investigar e dirigir o inquérito (artigos 32.°, n.° 5 e 219.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, 49.°, 53.° e 263.° do Código de Processo Penal) (conclusão 9ª).

É neste contexto que deverá e irá ser analisada a invocada nulidade insanável da al. e) do artigo 119º do C. P. Penal.
Sobre a questão enunciada adiantamos, desde já, que não seguimos uma orientação que defenda uma posição minimalista dos poderes do juiz de instrução(1).

Como é sabido, a concordância do juiz de instrução na suspensão provisória do processo na fase de inquérito, por determinação do M.P., prevista no artigo 281º do CPP, decorre da intervenção fiscalizadora do TC no Ac. nº 7/87.

Em tal contexto, a concordância do juiz de instrução surge, como bem salienta Maia Costa (2), “…como suplemento de jurisdicionalidade, constitui um elemento indispensável de legitimação da decisão do Ministério Público. A concordância do juiz não traduz, pois, uma manifestação de vontade subjetiva ou incontrolável, antes uma verdadeira decisão jurisdicional (embora não constitua uma decisão final) que incide sobre a verificação dos pressupostos formais e materiais…” da suspensão provisória do processo por determinação do Ministério Público.

Assim, como decorre do elemento literal do nº 1 do artigo 281º do CPP, exige-se que o juiz de instrução esteja de acordo com todos os pressupostos (formais e materiais) da suspensão provisória do processo, pois que aí se refere expressamente “concordância”, não se bastando com um mero controlo de legalidade formal da suspensão provisória do processo por determinação do Ministério Público.

Por isso, a intervenção do juiz de instrução no âmbito da concordância exigida pelo nº 1 do artigo 281º do CPP não se limita ao papel de juiz das liberdades dos artigos 268º e 269º do CPP, de mero fiscal da aplicação de normas e procedimentos potencialmente lesivos de direitos fundamentais dos cidadãos. O juiz de instrução exerce uma atividade materialmente jurisdicional.

No entanto, segundo a tese defendida pelo M.P. no presente recurso, esta posição viola o princípio do acusatório.

O princípio da acusação decorre do artigo 32º, nº 5 da CRP, na parte em que refere que o processo criminal tem estrutura acusatória.

Rigorosamente considerada, a estrutura acusatória do processo penal implica: a) proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação; b) proibição de acumulação subjetiva a jusante do processo, isto é, que o órgão de acusação seja também órgão julgador; c) proibição de acumulação orgânica na instrução e julgamento, isto é, o orgão que faz a instrução não faz a audiência de discussão e julgamento e vice-versa, cfr. Constituição da República Portuguesa Anotada, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Coimbra editora, 2ª ed., 1984, pág. 217.

A exigência da concordância do juiz de instrução para suspender provisoriamente o processo com o sentido que deixamos assinalado em nada belisca a liberdade de investigar a cargo do M.P., nem permite sequer que haja qualquer espécie de confusão entre a entidade que acusa e a entidade que julga, as quais mantém-se a sua autonomia.

Como nota Maria João Antunes (3) “Do ponto de vista do cumprimento do princípio da acusação é indiferente que a fase de investigação e acusação caiba ao ministério público ou ao juiz de instrução, já que ambos não se confundem com o juiz de julgamento. O enquadramento do princípio nas normas constitucionais já aponta, porém, para uma repartição de funções entre magistraturas distintas”.

Por outro lado, a tese minimalista dos poderes do juiz de instrução conduziria, em último termo, a que fosse considerada igualmente violadora do princípio da acusação a intervenção do juiz de instrução, no âmbito da instrução, quando fosse chamado a pronunciar-se sobre a decisão de acusar ou de arquivar, ou ainda de suspender provisoriamente o processo, cfr. artigos 286º, 307º e 307º, nº 2 do CP, o que obviamente é inaceitável (4).

Nesta linha de pensamento, entendemos que, no inquérito, a apreciação que o juiz de instrução deve fazer sobre os indícios da prática do crime imputado para dar a sua concordância com a suspensão provisória do processo por determinação do M.P. é a mesma que deverá fazer na fase de instrução. E daí que, tendo o juiz de instrução, em inquérito, concordado com a decisão do M.P. de suspender provisoriamente o processo, não pode depois, se o processo vier a prosseguir, proferir despacho de não pronúncia por considerar inexistirem indícios suficientes (5).

No caso vertente apenas se discute a competência do juiz de instrução para averiguar da verificação em concreto do primeiro dos pressupostos da suspensão provisória do processo - indícios suficientes da prática de um crime punível com pena não superior a cinco anos ou com sanção diferente da prisão.

Na perspetiva do M.P., “O juiz de instrução deve ater-se aos factos alinhados/narrados no despacho de aplicação do instituto de suspensão provisória do processo e que lhe foi submetido para concordância, e não aos elementos de prova que o Ministério Público carreou para o processo, para, de forma fundamentada ou não, concluir pela verificação ou não verificação de indícios suficientes da prática de crime” (conclusão 4ª).

Ora, o Exº Senhor Juiz de Instrução não deu a sua concordância à suspensão provisória do processo por, no seu entender, os factos imputados não constituírem um crime de consumo de produtos estupefacientes, mas antes uma contraordenação.

Poderá ser discutível ou não a posição sustentada pelo Exº Senhor Juiz quando refere que os factos imputados não constituem um crime de consumo de produtos estupefacientes, mas apenas uma contraordenação. Todavia, como começamos por dizer supra, esta é uma questão que não releva para o caso, por ser irrecorrível o despacho no qual foi sustentado este entendimento.

O que releva agora é apenas a questão de saber se o JIC tem competência para sustentar este entendimento.

Quanto a esta questão, em nosso entender, como decorre do que acima dissemos, o juiz de instrução não poderá limitar-se, como pretende o M.P., a controlar a legalidade formal da decisão de suspender provisoriamente o processo.

Na verdade, se assim fosse, estaria aberta a porta para a suspensão provisória do processo arbitrária com a concordância do de instrução. O juiz de instrução, para dar sua concordância à suspensão provisória do processo deverá aferir dos indícios para fundamentarem uma convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido (6).

A imputação dos factos descritos no despacho de determinação da suspensão provisória do processo com base nos quais o M.P. entendeu estar indiciada a prática de um crime de consumo de produtos estupefacientes baseou-se apenas - para além naturalmente da prova da detenção das substâncias pelo arguido - na perícia efetuada aos produtos estupefacientes (para determinação da sua natureza e da sua quantidade) para apenas daí se concluir que se trata de consumo médio individual superior a 10 dias (por referência ao disposto na Portaria nº 94/96, de 26.03, pois não é indicado qualquer outro elemento).

Por isso, ao contrário do que vem referido pelo M.P., o Exº Senhor Juiz de Instrução não fez (nem teve necessidade de fazer) nenhuma investigação para concluir da forma que concluiu, ou seja, de que os factos descritos indiciam não um crime, mas apenas a prática de uma contraordenação. Antes limitou-se a interpretar os factos imputados pelo MP ao arguido, conjugadamente com o exame pericial, defendendo que a aplicar-se o disposto na mencionada portaria, na perícia deveria ter-se apurado, quanto à cocaína, a percentagem do princípio ativo, o que não sucedeu. Ora, esta análise não belisca em nada a competência do M.P., enquanto titular da ação penal, para proceder à investigação na fase de inquérito a que preside.

Podemos discordar da conclusão a que chegou o Exº Senhor Juiz de Instrução, tanto mais que as quantidades a que se refere a Portaria nº 94/96, de 26.03, conforme vem sendo sustentado pela jurisprudência (7), têm valor meramente indicativo do consumo médio de produtos estupefacientes. Mas o certo é que o Exº Senhor Juiz partiu dos mesmos elementos em que se baseou o M.P. na imputação que fez ao arguido.

Em suma: O Exº Senhor Juiz de Instrução ao fundamentar, da forma acima descrita, a sua discordância com a suspensão provisória do processo não ultrapassou os seus poderes, não tendo sido cometida a nulidade do artigo 119º al. e) do CPP. E, sendo assim, não assiste razão ao M.P., motivo pelo qual o recurso não poderá proceder.

III- DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, manter o despacho recorrido.
Sem custas.
Guimarães, 05.03.2018
Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários (artigo 94º, nº 2 do C. P. Penal).

(Armando da Rocha Azevedo - Relator)
(Clarisse Machado S. Gonçalves - Adjunta)

1. Pelo contrário, a posição que seguimos é aquela que vem sendo seguida maioritariamente pela jurisprudência, a qual defende uma posição alargada dos poderes do juiz de instrução, cfr., entre outros, Ac. RP de 09.12.2009, proc. 628/07.8TAAMT.P1, relator Joaquim Gomes; Ac. RP de 18.03.2009, processo 1856/08.4PBMTS, relatora Maria do Carmo Silva Dias; Ac. RP de 08.07.2009, processo 19/09.6PTPRT.P1, relator Jorge Jacob; Ac. RE de 21.10.2014, processo 388/13.3GBODM-A, relatora Maria Fernanda Palma; e Ac RE de 30.09.2014, processo 89/13.2GGODM-A.E1, relator Renato Barroso, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
2. In Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 983.
3. In Direito Processual Penal, Almedina, 2016, pág. 72.
4. Assim, vide Ac. RP de 09.12.2009, processo 628/07.8TAAMT.P1, de que foi relator Joaquim Gomes
5. Neste sentido, vide Ac. RL de 30.11.2011, processo 117/09.6JDLSB 3ª secção, de que foi relator Carlos Almeida, acessível em www.pgdlisboa.pt 6. Neste sentido, vide a fundamentação do AUJ nº 16/2009, in DR I Série de 24.12.2009
7. Assim, vide v.g. Ac RP de 25.11.2015, processo 13/12.0GEVFR.P1, de que foi relator Neto Moura, acessível em www.dgsi.pt