Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
19/21.8PEBGC.G1
Relator: PEDRO FREITAS PINTO
Descritores: CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PERDA DE VANTAGENS
ERRO NOTÓRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Não padece do vício de nulidade da sentença por falta de fundamentação, a sentença proferida pelo tribunal “a quo”, quando entende inexistir qualquer tipo de prova relativamente à matéria dada como não provada, pois que tal nunca poderia ser valorada.
II – Entendendo-se que existiam meios de prova a determinar uma resposta diferente a essa matéria dada como não provada, estamos então perante uma questão de erro de julgamento da matéria de facto.
III – Padece de erro notório na apreciação da prova, a decisão proferida pelo tribunal “a quo” que deu como não provado, sem mais, que os arguidos com a venda das substancias estupefacientes obtiveram a quantia de € 7.075,00, quando deu como provada a venda por parte dos arguidos de diversas doses de heroína e cocaína, o preço pelo qual as tinham adquirido e o preço em montante superior pelas quais vendiam, ainda que o lucro assim obtido fosse em valor inferior à referida quantia constante da acusação.
IV – Possuindo o tribunal de recurso todos os elementos necessários para calcular o lucro obtido pelos arguidos com essas vendas, e assim apurar o montante da perda de vantagens obtidas, não há lugar ao reenvio do processo à 1ª instância para novo julgamento quanto a essa matéria.
V – Constando da matéria dada como provada, datas e quantidades dos produtos estupefacientes transacionados pelos arguidos, em alternativa, terão, em obediência ao princípio in dubio pro reo, de ser atendidas as que forem mais favoráveis aos arguidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I – Relatório

Decisão recorrida

No âmbito do Processo Comum (Tribunal Coletivo) nº 19/21.8PEBGC do Tribunal Judicial da Comarca de Bragança – Juízo Central Cível e Criminal de Bragança, foi proferido no dia 2 de março de 2022, o seguinte acórdão, cuja parte decisória se transcreve:

“Pelo exposto, decide o tribunal julgar a acusação pública procedente e, em consequência:
- condenar os arguidos R. J. e F. M., em co-autoria material, cada um na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, pela prática de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, alínea a), do Dec. Lei n.º15/93, de 22 de janeiro, as quais são suspensas na sua execução, sendo que quanto ao arguido R. J. a suspensão fica ainda sujeita a regime de prova com a obrigação de realizar durante o período de suspensão acompanhamento médico e terapêutica adequada às suas necessidades de adição pelo mesmo período, nos termos dos arts. 53º e 54º do Código Penal;
- declarar perdido a favor do Estado Português o produto estupefaciente apreendido nos autos e ordenar a sua destruição;
- declarar perdidos a favor do Estado Português os valores, telemóveis, cartões apreendidos aos arguidos condenados e ordena-se a sua destruição, à exceção do dinheiro;

O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 36.º n.ºs 2, 4 e 5 do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 110.º, n.º 1 al. b) e 4 do Código Penal requereu ainda que se declare a perda das vantagens obtidas pelos arguidos F. M. e R. J. com a prática dos factos.
Contudo não se pode dar como provados o ganho na quantia de €7.075,00 (sete mil e setenta e cinco euros), razão pela qual improcede nesta parte o requerido.
*
- condenar os arguidos supra condenados no pagamento das custas criminais do processo (artigo 514º, n.º1, do Código de Proc. Penal), fixando a taxa de justiça em 3UC´s para cada um deles (artigo 513º, n.º1, do Código de Processo Penal, e 8º, n.º9, do Regulamento das Custas Processuais)”.
*
Recurso apresentado

Inconformado com a decisão, na parte relativa à improcedência do pedido de declaração de perda das vantagens obtidas pelos arguidos F. M. e R. J. com a prática dos factos, o Ministério Público veio interpor o presente recurso e após o motivar, apresentou as seguintes conclusões e petitório, que se reproduzem:

“1.ª O Ministério Público, na acusação pública deduzida, ao abrigo do disposto no artigo 36.º, n.º 2, 4 e 5 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro e do artigo 110.º, n.º1, alínea b) e 4 do Código Penal, requereu que fosse declarada a perda das vantagens obtidas pelos arguidos com a prática dos factos que, em abstracto, consubstanciava a comissão por acção de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com o fundamento de que no âmbito da actividade de compra e venda de produto estupefaciente aqueles conseguiram obter benefícios patrimoniais traduzidos na diferença entre o preço a que adquiriam as respectivas doses de heroína/cocaína e o preço a que as revendiam a terceiros consumidores, para, no ponto 3 concluir que com a referida actividade criminosa, os arguidos obtiveram uma vantagem patrimonial de, pelo menos, de € 7 075,00 (sete mil e setenta e cinco euros).
2.ª O Tribunal a quo deu como único facto não provado que “1. Os arguidos obtiveram a quantia de € 7. 075,00 (sete mil e setenta e cinco euros)”, referindo, tautologicamente, que a sua falta de prova, resulta da ausência de prova nesse sentido, ou seja, não foi possível provar que arguidos obtiveram a quantia de € 7 075,00 (sete mil e setenta e cinco euros).
3.ª Fica-se sem saber por que motivo/razão não foi possível provar tal facto? Porquê? É necessário saber quais as razões que levaram o Tribunal a quo concluir naquele sentido probatório e conhecer o percurso lógico e racional conducente à convicção formada.
4.ª A omissão assim detectada é causa de nulidade do acórdão de que se recorre, conforme determina o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP, em resultado do que se impõe que seja suprida através da reformulação da decisão, de modo a que nela constem as razões que relevaram para a impossibilidade do apuramento da apontada matéria de facto e qual o percurso lógico e racional que o Tribunal a quo seguiu na sua ponderação e valoração até chegar a tal resultado.
5.ª Pelo exposto, deve o acórdão recorrido ser declarado nulo por falta de fundamentação quanto ao aspecto acima indicado e, em consequência, ser determinada a sua substituição por outro que supra a apontada nulidade, nos termos enunciados.
6.ª Dispõe o artigo 344.º do Código de Processo Penal que:
“1. No caso de o arguido declarar que pretende confessar os factos que lhe são imputados, o presidente, sob pena de nulidade, pergunta-lhe se o faz de livre vontade e fora de qualquer coacção, bem como se propõe fazer uma confissão integral e sem reservas.
2.A confissão integral e sem reservas implica:
a) Renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados e consequente consideração destes como provados;
b) Passagem de imediato às alegações orais e, se o arguido não dever ser absolvido por outros motivos, a determinação da sanção aplicável; e
c) Redução da taxa de justiça em metade.
3. Exceptuam-se do disposto do número anterior os casos em que:
a) Houver co-arguidos e não se verificar a confissão integral, sem reservas e coerente de todos eles;
b) O tribunal, em sua convicção, suspeitar do carácter livre da confissão, nomeadamente por dúvidas sobre a imputabilidade plena do arguido ou da veracidade dos factos confessados; ou
c) O crime for punível com pena de prisão superior a 5 anos.
4. Verificando-se a confissão integral e sem reservas nos casos do número anterior ou a confissão parcial ou com reservas, o tribunal decide, em sua livre convicção, se deve ter lugar e em que medida, quanto aos factos confessados, a produção da prova.
Neste artigo estabelecem-se, assim, dois regimes distintos (n.º s 2 e 3).
7.ª Da análise do texto do acórdão recorrido, verificamos que, na motivação da decisão de facto se refere terem sido ponderadas, para além do conteúdo de vários documentos juntos aos autos, bem como o relatório da perícia efectuada aos produtos estupefacientes apreendidos, as declarações dos co-arguidos que assumiram de forma sentida, sincera e espontânea os factos que lhes estavam imputados e constavam na acusação pública. Porém, deu-se como não provado que os arguidos obtiveram a quantia de € 7.075,00 (sete mil e setenta e cinco euros).
8.ª Inexistindo dúvidas de que o facto que foi considerado como não provado estava dentro do alcance cognitivo dos arguidos, podendo perfeitamente ser por eles confessado ou negado, e que tal facto era um dos que lhe vinham imputados, logo uma perplexidade nos assalta: mas então os arguidos fizeram ou não fizeram uma confissão integral e sem reservas, como consta da acta da única sessão da audiência de julgamento.
9.ª O tribunal alude a uma confissão dessa natureza, mas depois considera como não provado um dos factos com relevância criminal (a vantagem/proveito decorrente da prática de um facto típico, ilícito e culposo).
10.ª Há uma notória contradição na fundamentação da decisão de facto. Ou bem que os arguidos fizeram uma confissão integral e sem reservas e então não podia ser considerado como não provado aquele facto, ou então não houve confissão com a amplitude que foi referida na motivação da decisão de facto.
11.ª Não se percebe como é que se dão como provados que “3. Para o transporte da Heroína e Cocaína, os arguidos utilizavam o veículo com a matrícula FV, pertencente à arguida” e que “12. O veículo com a matrícula FV era utilizado pelos arguidos para transportarem Heroína e Cocaína que, posteriormente, iriam ceder a terceiros consumidores” para na motivação de facto se fazer constar “que o veículo apenas foi utilizado uma única vez na deslocação efectuada, sendo um episódio único no tempo”.
12.ª Mas em que é que ficamos?: o veículo em causa era utilizado nas deslocações ao Porto, no período assinalado em 1. dos factos provados, para aquisição das ditas substâncias ou só foi utilizado a 24.04.2021, dia em que os arguidos foram detidos. É que importa que isto fique esclarecido para efeitos fundamentação de declaração de perda ou não a favor do Estado do referido veículo.
13.ª Não se percebe igualmente como é que se dão como provados:
- que os arguidos adquiriam cada dose de heroína e cocaína pelo preço de € 5,00 (cinco euros);
- e que nos períodos temporais e ocasiões vertidos no ponto 4. entregaram as referidas substâncias a terceiros consumidores, deles tendo recebido, como contrapartida, as quantias monetárias de €10,00 e € 20,00 por cada dose, para depois, dar como não provada a obtenção da quantia de € 7 075,00. Tiveram ou não os co-arguidos proveitos decorrentes da prática do facto típico, ilícito e culposo que cometeram.
Tudo aponta nesse sentido. Mas o tribunal a quo, deu como não provado a total inexistência de proveitos, sem apresentar qualquer justificação.
14.ª Em que ficamos? Houve ou não uma confissão integral e sem reservas –ao que não obstava ao facto de o crime imputado ser punível com pena superior a 5 anos, desde que o tribunal assim a aceitasse, dispensado a produção de mais prova, caso em que, tendo havido, o tribunal não a valorou devidamente, sendo então de considerar notório o erro-vício por violação das regras da prova vinculada, a que alude o artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do CPP. Ou, pelo contrário a confissão foi apenas parcial e o tribunal referiu-se-lhe indevidamente como sendo uma confissão integral e sem reservas, caso em que, face ao teor do acórdão, estamos perante o vício da contradição insanável na fundamentação da decisão de facto. A resposta temos de a ir buscar à acta de julgamento.
15.ª Nesta acta, primeiro consigna-se que os arguidos confessaram integralmente e sem reservas os factos que lhe são imputados e depois que a Mmª Juiz presidente perguntou se o faziam de livre vontade, fora de qualquer coação, e sem reservas, ao que responderam afirmativamente. Em seguida foi dada oportunidade ao Ministério Público e ao Ilustre Mandatário dos arguidos para se pronunciarem, tendo ambos dito que prescindiam da produção de prova (v.g. testemunhas arroladas na acusação pública), o que só pode significar que aceitaram a renúncia à produção de prova relativamente aos factos imputados aos arguidos no pressuposto de que o Tribunal aceitasse como integral e sem reservas a confissão feita por cada um dos co-arguidos.
16.ª Mas depois surge o despacho da Mmª Juiz Presidente do coletivo que procedia ao julgamento a anunciar que entendeu que em face da confissão integral dos arguidos, e em face da posição tomada pelos arguidos e Ministério Público, se consigna que houve lugar à renúncia da produção de prova relativa aos factos imputados aos arguidos e consequentemente a consideração destes como provados, tudo nos termos das disposições conjugadas dos artigos 344.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea b), do CPP.
17.ª O que o Tribunal devia ter feito era, apenas esclarecer se aceitava ou não a confissão com toda a sua amplitude e, não a aceitando, se devia ou não ter lugar, e em que medida, a produção da restante prova oferecida pelo Ministério Público e nunca pronunciar-se relativamente aos factos que considerava provados, pois essa decisão só pode ser tomada depois de encerrada a discussão e, ao tempo, ainda a procissão ia no adro.
18.ª Mas também – conforme decorre do n.º 4, do artigo 344.º do CPP, no segmento “o tribunal decide”- porque, intervindo no julgamento um tribunal colectivo, a Mmª Juiz Presidente não tinha sequer competência, sem preceder a necessária deliberação, para considerar quaisquer factos como provados ou não provados. O que sempre afectaria o despacho de nulidade insanável, de conhecimento oficioso (cfr. artigo 119.º, alínea e), do CPP).
19.ª A Mmª Juiz Presidente consigna que houve lugar à renúncia da prova, depois dos sujeitos processuais terem prescindido daquela que ofereceram, pelo que, no caso, se a prova só não foi produzida porque dela prescindiu o Ministério Público, tal sucedeu certa e seguramente no pressuposto de que a confissão seria aceite em toda a sua plenitude!.
20.ª Assim, na hipótese – que os termos do despacho em causa permitem conjecturar – de não ter sido o tribunal colectivo a dispensar a produção de prova, também é legítimo questionar se efectivamente aceitou a confissão como integral e sem reservas, não obstante se lhe ter referido com esse nome.
21.ª Ou bem que o Tribunal aceitou a confissão como livre, integral e sem reservas e, depois, no acto de deliberação, por razões que se ignoram, mudou de ideias e decidiu que, afinal, a confissão não abrangeu todos os factos imputados aos co-arguidos ou não devia ter sido aceite quanto a todos os factos – o que, nesse momento, já não podia fazer porque esgotado o poder jurisdicional para o efeito. Ou então, o tribunal não sabe distinguir uma confissão parcial de uma confissão integral e sem reservas.
22.ª Em síntese, admitindo como possível a verificação do erro notório na apreciação da prova, que ainda assim, não pode ser reparado face à persistência da dúvida acerca do real alcance das declarações confessórias dos co-arguidos e do sentido constante do despacho da Mm.ª Juiz Presidente que as apreciou e que a posição a final tomada pelo Tribunal não permite interpretar de forma inequívoca, e, por via disso, da consequente necessidade ou não de produção de prova arrolada pelo Ministério Público na acusação pública, temos por certo que o acórdão de que se recorre padece do vício da contradição insanável na fundamentação da decisão de facto, cuja expurgação terá de passar pela repetição integral do julgamento, com o consequente reenvio dos autos, ao abrigo do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do CPP, para novo julgamento, relativamente à totalidade do objecto do processo, a ser realizado de acordo com as regras estabelecidas no artigo 426.º - A do CPP”.
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Resposta ao recurso por parte dos arguidos.
Os arguidos responderam ao recurso considerando que o mesmo deve ser rejeitado por manifestamente improcedente, ou, se assim não se entender, deverá o recurso apresentado ser considerado não procedente mantendo-se na íntegra o acórdão proferido.

Apresenta as seguintes conclusões, que se reproduzem:
“1. O douto acórdão julgou e subsumiu correctamente os factos ao direito, pelo que o recurso interposto deverá em nosso entendimento ser considerado manifestamente improcedente.
2. A decisão de não considerar perdido a favor do estado o veículo FV ocorreu com respeito pelo sentido das normas legais aplicáveis e pelo sentido da jurisprudência consolidada, não decorrendo dos factos dados como provados nem dos elementos que suportaram o decidido que o veículo tenha sido essencial para o cometimento do crime pelo qual os arguidos foram condenados, obedecendo a decisão ora posta em crise aos princípios da necessidade, proporcionalidade e essencialidade.
3. No tocante à decisão de considerar não provada em face da ausência de prova nesse sentido que os arguidos obtiveram uma vantagem patrimonial de 7075,00€, o douto acórdão obedeceu aos critérios e princípios de que dependia essa decisão.
4. Efectivamente e apesar dos arguidos terem confessado a factualidade que lhes foi imputada e que preenchia o cometimento do crime de tráfico de menor gravidade p. e p. no artigo 25º do DL 15/93, tal confissão não deve considerar-se extensível ao “enxerto” de confisco que hodiernamente as acusações públicas apresentam por sistema.
5. Pois que, e desde logo o Ministério Público no incidente acerca da perda de vantagens não procede à quantificação da suposta vantagem de forma a permitir compreender de que forma alcançou o valor que requeria fosse dado como perdido a favor do estado.
6. As obrigações devem ser certas e líquidas.
7. O resultado apresentado apesar de certo é incompreensível, desconhecendo os arguidos e o Tribunal de que premissas o M.P. se socorreu para apresentar o valor de 7075,00€.
8. Por outro lado, resultam do elenco dos factos provados diversas imprecisões concernentes à periodicidade, quantidades transacionadas e datas que não permitem sindicar o raciocínio aritmético apresentado, pelo que em última análise andou pois bem o tribunal ao entender que não foi possível dar como provada a obtenção de uma vantagem de 7075,00€, ainda que em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.
9. Em suma, entendemos não assistirem ao recurso apresentado razões nem de facto nem de direito, pelo que deverá ser mantida na íntegra o acórdão condenatório”.
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Tramitação subsequente
Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o processo foi com vista ao Ministério Público, tendo o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto, elaborado douto parecer, defendendo que o recurso deverá proceder.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP não tendo sido apresentada resposta.
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Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.
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II – Fundamentação.

Cumpre apreciar o objeto do recurso.

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas essas questões, as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (1).

As questões que se colocam à apreciação deste tribunal são, por ordem lógica da
sua apreciação, as seguintes:

I – vício da insuficiência da fundamentação na decisão de facto dada como não provada.
II – vício do erro notório na apreciação da prova.
III – vício da contradição insanável na fundamentação.
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É a seguinte a matéria de facto dada como provada e não provada pelo tribunal “a quo” (transcrição):
“Factos provados:

1. A partir de data que não se logrou, exactamente, apurar, mas situada, pelo menos, entre Abril de 2020 e o dia 24 de Abril de 2021, os arguidos, na sequência de um plano previamente elaborado e aceite pelos mesmos, decidiram, conjuntamente e em conjugação de esforços e intentos, adquirir Heroína e Cocaína para, posteriormente, cederem tais produtos a terceiros, mediante contrapartida monetária, por um preço superior àquele pelo qual o adquiririam, para assim realizarem lucros, os quais seriam repartidos pelos arguidos, plano, ao qual deram execução.
2. Na prossecução de tal plano, os arguidos abasteciam-se das referidas substâncias em diversos locais, nomeadamente, no Porto, a indivíduos cujas identidades não se logrou apurar, adquirindo cada dose pela quantia monetária de €5,00 (cinco euros).
3. Para o transporte da Heroína e da Cocaína, os arguidos utilizavam o veículo com a matrícula FV, pertencente à arguida.
4. As referidas substâncias eram entregues aos arguidos já repartidas em doses individuais e acondicionadas, com um peso não concretamente apurado, para depois as venderem a terceiros consumidores que, para o efeito, os procuravam, directamente, a qualquer hora, no interior da residência de ambos os arguidos, sita na Rua da ..., …, Bragança, nas imediações desta ou em artérias situadas na área territorial do concelho de Bragança, nomeadamente, na via pública, e nas imediações do Bar Sede da ..., sito no Bairro ... de Habitação de ..., conhecido por “Bairro ...”.
5. Para além desse contacto directo, os arguidos usavam telemóveis, cujos números forneciam aos consumidores para, através de chamadas de voz e/ou da troca de mensagens escritas e das redes sociais, nomeadamente, Whatsapp e Messenger, combinarem as quantidades das substâncias a entregar e o local onde iria decorrer a transacção, deslocando-se, de seguida, regra geral, tais consumidores, aos locais previamente combinados.
6. Nos contactos telefónicos efectuados com os consumidores era utilizada linguagem codificada, para fazer referência à droga, nomeadamente, à qualidade da mesma, “…”, “…” e “…” referindo-se a Heroína.
7. A cedência das referidas substâncias a terceiros, a troco de dinheiro, que decorria nos locais previamente combinados, supra referidos, era feita por ambos os arguidos.
8. No dia - de Abril de 2021, às 05h15, em frente à residência dos arguidos, sita na Rua da ..., n.º .., Bragança, no interior do veículo FV, os arguidos tinham na sua posse o seguinte:
a. Um telemóvel de marca Iphone, com o cartão Sim ……… inserido no mesmo, pertencente à arguida;
b. Um telemóvel de marca Hauwei, com o cartão SIM ………, inserido no mesmo, pertencente ao arguido;
c. A quantia monetária de €90,00 (noventa euros) composta do seguinte modo: quatro notas emitidas pelo BCE com o valor facial, cada uma, de €20,00 vinte euros) e uma nota emitida pelo BCE com o valor facial de €10,00 (dez euros);
d. 29 embalagens de plástico contendo no seu interior Heroína, com um peso bruto de 1,923 gramas, correspondente a menos de uma dose individual, apresentando um grau de pureza de 4,3%;e
. 37 embalagens de plástico contendo no seu interior Heroína, com um peso bruto de 16,245 gramas, correspondente a quatro doses individuais, apresentando um grau de pureza de 4,0%;
f. 35 pedaços de cocaína, com um peso líquido de 8,778 gramas correspondente a 61 doses individuais, apresentando um grau de pureza de 21,1%.
9. Os arguidos venderam Heroína e Cocaína, nas circunstâncias supra explanadas, a diversos consumidores, tendo estes, previamente os contactado telefonicamente, através de chamadas de voz e/ou da troca de mensagens escritas e das redes sociais, nomeadamente Whatsapp e Messenger, a fim de combinarem os termos em que iriam decorrer as transacções.

Assim:
a) Durante o período temporal compreendido entre Janeiro de 2021 e Abril de 2021, com a periodicidade de duas a três vezes por semana, em datas não concretamente apuradas, os arguidos venderam, no interior da sua residência sita Rua da ..., n.º .., Bragança, Cocaína, em quantidades não apuradas, mas seguramente, três doses individuais, em cada ocasião, a N. C., com a alcunha de “M.” tendo recebido deste, como contrapartida, por cada dose, a quantia monetária de €10,00 (dez euros).
b) Durante o período temporal compreendido entre Janeiro de 2021 e Abril de 2021, em datas não concretamente apuradas, por diversas vezes, no interior da sua residência, o arguido cedeu Cocaína a N. C., destinada ao consumo de ambos, sem contrapartida monetária ou de outra espécie.
c) Durante o período temporal compreendido entre Abril de 2020 e Abril de 2021, com uma periodicidade de três a quatro vezes por semana, em datas não concretamente apuradas, no interior da sua residência, no exterior da mesma e na garagem, os arguidos venderam Cocaína, em quantidades não apuradas, mas seguramente, uma ou duas doses em cada ocasião, a O. M., com a alcunha de “L.” tendo recebido deste, como contrapartida, por cada dose, a quantia monetária de €20,00 (vinte euros).
d) Durante o mês de Março de 2021, em cinco ou seis ocasiões, em datas não concretamente apuradas, no interior da sua residência, o arguido cedeu Cocaína a J. M., destinada ao consumo de ambos, sem contrapartida monetária ou de outra espécie.
e) Durante o mês de Março de 2021, em dia não concretamente apurado, no exterior da sua residência o arguido vendeu, vinte doses de Cocaína, a J. M., tendo recebido deste, como contrapartida a quantia monetária de €100,00 (cem euros).
f) Durante o período temporal compreendido entre o ano de 2020 e início de 2021, em duas ou três ocasiões, em datas não concretamente apuradas, nas imediações do Bar Sede da ..., sito no Bairro ... de Habitação de ..., conhecido por “Bairro ...”, o arguido vendeu uma dose de Heroína, em cada ocasião, a L. F., com a alcunha de “F”, tendo recebido deste, como contrapartida, a quantia monetária de €10,00 (dez euros) em cada ocasião.
g) Os telemóveis identificados em 8. a) e b) e os referidos cartões SIM foram utilizados pelos arguidos nos contactos que mantiveram entre si e com terceiros, nomeadamente, consumidores, visando a aquisição e posterior venda de produtos estupefacientes.
10. As quantias monetárias supra identificadas foram provenientes da venda de heroína e cocaína a terceiros consumidores.
11. Os pedaços de heroína e cocaína identificados em 8. d), e) e f) destinavam-se a ser cedidos a terceiros consumidores.
12. O veículo com a matrícula FV era utilizado pelos arguidos para transportarem Heroína e Cocaína que, posteriormente, iriam ceder a terceiros consumidores.
13. Com as condutas descritas, ao decidirem dedicar-se à venda e à cedência das referidas substâncias, agiram os F. M. e R. J. em comunhão de esforços e intentos, com o propósito conseguido de auferirem lucros que lhes permitissem sustentar as suas necessidades financeiras diárias.
14. Os arguidos eram conhecedores da natureza e características estupefacientes e psicotrópicas das substâncias que compravam, detinham, transportavam, distribuíam, proporcionavam, vendiam e cediam a terceiros consumidores, bem sabendo que o seu consumo afecta gravemente a saúde e que a sua cedência atenta contra a saúde pública, não obstante, não se abstiveram de agir do modo descrito, o que quiseram e lograram.
15. Bem sabiam os arguidos que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
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Das Condições Pessoais e Sociais dos Arguidos
16. F. M. iniciou o percurso profissional numa escola da cidade de Bragança, tendo adquirido vínculo no distrito de Braga, no segundo ano de docência, mas prosseguindo o exercício de funções em Bragança.
17. Cumulativamente com o desempenho da atividade profissional, concluiu o complemento de formação do ensino básico, o que lhe permitiu a equivalência a licenciatura, terminando também a pós-graduação em Domínio de Língua Portuguesa, Educação para a Cidadania e Formação Pessoal e Social. Com as aptidões académicas que obteve, aliado ao empenho profissional, ascendeu a diretora de escola, tendo também desempenhado funções no Centro de Área Educativa (CAE) de Bragança, cargos que desenvolveu cerca de sete anos. Retomando depois o ensino propriamente dito, com crianças com necessidades educativas especiais até ao presente.
18. A arguida casou com 26 anos, união que se dissolveu através do divórcio, em 2018, não obstante a separação já tivesse ocorrido anteriormente. Desta ligação tem dois filhos, atualmente com 19 e 21 anos de idade.
19. Há três anos estabeleceu relacionamento com o coarguido nestes autos, com quem mantém a relação de namoro.
20. F. M. há alguns anos que beneficia de acompanhamento clínico do foro da neurologia e psiquiatria, fazendo terapêutica diária. Referiu que, recorrentemente, entra em situação depressiva com ideação suicida, tendo já atentado contra a própria vida. Não fez referência a outros problemas de saúde relevantes.
21. Na DGRSP não há registo de anterior contacto da arguida com o sistema de justiça penal. 22. F. M. permaneceu em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional de Santa Cruz do Bispo, até -/09/2021, data em que a medida de coação foi desagravada OPHVE, que passou a cumprir na sua habitação.
23. A arguida tem vindo a adotar uma conduta e atitude compatíveis com as exigências e regras da sua situação jurídico/penal, mostrando-se cooperante no contexto dos procedimentos de controle e com os técnicos desta equipa de vigilância eletrónica no âmbito da sua intervenção. Até ao momento, não se verificaram ocorrências relevantes, cumprindo a mesma as finalidades e períodos que lhe foram fixados aquando das ausências judicialmente autorizadas.
24. F. M. não exerce atividade profissional e está dependente de terceiros a nível económico.
25. F. M. tem dois filhos maiores de idade, estudantes, nascidos na constância do seu casamento, entretanto terminado. Mantém relação amorosa com o coarguido há cerca de três anos, não obstante, não viva em união de facto com o mesmo, coabitando com o seu filho mais velho.
*
26. R. J. iniciou as aprendizagens escolares em idade regulamentar, tendo concluído o curso de enfermagem sem registo de repetições. Iniciou atividade profissional em regime de contrato administrativo de provimento no Centro Hospitalar do …, tendo integrado os quadros daquela instituição onde se tem mantido em exercício, como enfermeiro graduado, no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental de …. Neste contexto foram-lhe atribuídas características relacionais profissionais associadas a um bom desempenho profissional, não obstante as faltas laborais que se verificavam, cujos períodos o arguido justifica com o maior envolvimento com tóxicos.
27. Em paralelo com a atividade profissional, em 2004, R. J. concluiu o curso Superior de Psicologia Organizacional, passando cumulativamente a desenvolver a profissão de orientador escolar e profissional, lecionando ainda formação para formadores, atividades que realizou conjuntamente cerca de dez anos.
28. R. J. casou com 28 anos de idade, união que se dissolveu através do divórcio, em 2005, após seis anos.
29. Desta união tem uma filha, atualmente com 17 anos, com a qual não mantém relação próxima.
30. Após relações pouco consistentes, estabeleceu nova ligação afetiva com a coarguida no presente processo, relação que prevalece até ao momento.
31. R. J. reporta o início do consumo de drogas à idade de 30 anos, não obstante o consumo anterior de haxixe que terá principiado aquando da sua integração no ensino superior, aos 19 anos, mas que considerou ser apenas em contexto recreativo.
32. O mesmo tem mantido a adição ao longo dos anos, pese embora as tentativas de tratamento, com integração em comunidades terapêuticas, por períodos variáveis, os quais resultaram infrutíferos, não obstante alguns espaços temporais de abstinência.
33. Anteriormente à reclusão em estabelecimento prisional, o envolvimento de R. J. com estupefacientes seria intenso. Desde então, tem mantido acompanhamento no Centro de Respostas Integradas, (CRI) de Bragança, estando a corresponder às solicitações do serviço de saúde.
34. R. J. tem mantido ainda acompanhamento clínico do foro da neurologia e psiquiatria no Centro Hospitalar de …, fazendo também terapêutica regular.
35. Na DGRSP há registo de anterior contacto de R. J. com o sistema de justiça penal, reportados a 2018, por crime análogo ao dos presentes autos, onde lhe foi aplicada Suspensão Provisória do Processo.
36. No âmbito do presente processo, após o período de prisão preventiva, iniciado em 24/04/2021, a medida de coação de R. J. foi desagravada para obrigação de permanência da habitação com vigilância eletrónica (OPHVE), em 12/08/2021, que passou a cumprir na sua habitação, até 15/12/2021, data em que, na sequência da venda desse apartamento, mudou para casa do pai, sua atual residência, conforme autorização prévia desse Tribunal.
37. R. J. registou inicialmente alguma dificuldade no cumprimento rigoroso das regras e exigências inerentes ao estatuto coativo que detém. Os incidentes ocorridos foram reportados, em tempo, a esse Tribunal, os quais se prendem essencialmente com a ausência injustificada do local determinado para vigilância eletrónica.
38. As situações registadas sucederam por curtos períodos e foram justificadas pelo arguido com motivos relacionados com questões do quotidiano, particularmente apoio ao progenitor, por via da avançada idade deste. Na interação relacional tem-se revelado cooperante no contexto dos procedimentos de controle e intervenção aquando dos contactos com os técnicos desta equipa de vigilância eletrónica, mesmo quando advertido.
39. No que tange a saídas devidamente autorizadas judicialmente, nomeadamente para saúde e resolução de questões pessoais, R. J. cumpriu as finalidades das mesmas, em conformidade com o permitido.
40. R. J. identifica, em abstrato, atos transgressivos análogos aos que originaram o presente processo, bem como os prejuízos do envolvimento com substâncias tóxicas.
41.O arguido fez referência às repercussões do presente envolvimento judicial, designadamente a nível profissional, uma vez que se encontra inativo e sem recursos financeiros, estando ainda decorrer um processo disciplinar na Secção Regional do Norte da Ordem dos Enfermeiro.
42. R. J., vive com o progenitor que se constitui como seu suporte emocional e material.
43. R. J. apresenta um percurso académico regular com aquisição de habilitações superiores que lhe propiciaram uma integração laboral distinta. Todavia, o envolvimento com estupefacientes, tem-se repercutido de forma negativa nas diversas dimensões da sua vida, fomentando instabilidade e desorganização pessoal, com efeitos a nível familiar, profissional e social.
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44. Não são conhecidas condenações de natureza criminal aos arguidos.
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Contestação
45. O arguido R. J. era à data consumidor regular e habitual dos produtos estupefacientes apreendidos pelo que grande parte dos mesmos se destinaria à satisfação das suas necessidades aditivas.
46. A sua companheira à data e aqui arguida F. M. tinha conhecimento da problemática aditiva do arguido tendo-o acompanhado na aquisição que culminou com a detenção de ambos.
47. Os arguidos de forma esporádica procederam à venda/cedência de parte do que adquiriam a um grupo restrito de apenas quatro amigos/conhecidos igualmente consumidores.
48. Estão arrependidos.
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Factos Não Provados:

Não ficaram por provar factos com interesse para a boa decisão da causa, com excepção do seguinte facto:

1. Os arguidos obtiveram a quantia de €7.075,00. (sete mil e setenta e cinco euros).
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Consigna-se que a matéria de natureza conclusiva ou de direito, não foi objecto de qualquer consideração probatória”.
*
Para tanto motivou a decisão de facto do seguinte modo (transcrição):

“Conforme dispõe o artigo 127º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada “segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Exprime este princípio que o julgador tem a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos submetidos a julgamento com base no juízo que se fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
Sendo assim, no presente caso, o Tribunal alicerçou a convicção probatória referente à factualidade provada na apreciação crítica e articulada de toda a prova produzida em audiência de julgamento, à luz das elementares regras da experiência, do senso comum e da normalidade.
Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos meios de prova.
No entanto, importa ter em conta o resultado da prova pericial efetuada nos autos e cujo relatório constante de fls. 688/689, do IV volume.
O relatório do exame pericial permitiu dar como provado os factos contidos no ponto 8., supra exposto e dar como provado, em especial as alíneas d), e) e f) as quais identificam o tipo de produto apreendido, a sua natureza e peso, a substancia activa, número de doses e peso líquido.

Dispõe o artigo 163.º do C.P.P., que:

1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.

A prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do C.P.P. É que essa prova de apreciação vinculada como é a prova pericial, “tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” - art. 151º do C.P.P.
Ora, não tendo este Tribunal conhecimentos técnicos iguais aos dos Peritos do Laboratório de Polícia Científica (no caso vertente), não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia. Pois, a prova pericial é prova de apreciação vinculada e “tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” - art. 151º do C.P.P.
Inclusive tal prova não foi colocada em causa por nenhum outro meio de prova, tendo os próprios arguidos admitido e confessado os factos constantes da acusação, nomeadamente o produto estupefaciente apreendido, o qual foi sujeito posteriormente a este exame pericial. (cfr. resulta igualmente do auto de apreensão junto aos autos e do exame pericial supra referido)
Os arguidos em audiência de julgamento optaram por prestar declarações, assumindo de forma sincera e espontânea os factos que lhes estavam imputados e constavam na acusação pública.
É certo que os arguidos, caso quisessem, teriam o direito de se remeter ao silêncio sem que tal os pudesse prejudicar, conforme já tinham feito em primeiro interrogatório judicial. Contudo, as declarações prestadas por ambos em audiência de julgamento, de forma sentida e espontânea, assumindo a prática dos factos e demonstrando um arrependimento sincero terá de ser naturalmente valorada. (cfr. Acórdão do TRGuimarães de 16/09/2019, proc. nº 304/14.5GAVVD.G1, disponível em www.dgsi.pt)
Assim, os arguidos ao não se remeterem ao silêncio permitiram que o Tribunal ficasse esclarecido quanto aos factos que lhes vinham imputados, bem como quanto à sua motivação para aquela acção e que conduziram à prática dos factos.
Desta forma, possibilitaram que o Tribunal tomasse conhecimento da sua versão dos factos, por forma a proceder à conjugação com a demais prova produzida, bem como com a prova pericial e documental junta aos autos.
Em síntese, no que se revela mais importante, resulta que o arguido R. J., admitiu desde logo a prática dos factos, bem como a sua situação de adição a estupefacientes, a qual de acordo inclusive com o teor do relatório social junto aos autos, decorre já desde os seus 30 anos, não obstante consumir haxixe ao longo de 19 anos.
É manifesto e decorre da observação da sua postura e forma de expressão a sua condição de adição de estupefaciente e os efeitos que já se repercutem na sua aparência e condição física.
Das declarações prestadas pela arguida resultou igualmente a assunção dos factos imputados, de forma sincera, que assumiu a prática dos factos, tendo contudo contextualizado os factos com base nos sentimentos relativamente ao arguido.
A situação emocional e social da arguida, é inclusivamente abordada no relatório social.
Na verdade, F. M. já há alguns anos que beneficia de acompanhamento clínico do foro da neurologia e psiquiatria, fazendo terapêutica diária. Sendo igualmente manifesta e vislumbra-se pela postura e estado de espírito revelado em tribunal, encontrar-se em situação depressiva, bem como reveladora da interiorização da sua conduta quanto aos factos pelos quais é condenada.
Note-se, que ambos os arguidos, manifestaram a sua interiorização e consequência das suas condutas ao nível pessoal, familiar e profissional, razão pela qual se mostram verdadeiramente arrependidos.
Em face da assunção dos factos pelos arguidos, prescindiram da audição das restantes testemunhas, com exceção de D. P..
Esta testemunha revelou conhecer a família da arguida e o próprio arguido, por ter chegado a viver no mesmo prédio da arguida, quando ainda se encontrava casada. A testemunha, além de conhecer a arguida no âmbito das suas funções por também ser professora, descreveu a mesma como uma pessoa educada, no entanto, devido ao anterior casamento revela-se uma mulher que sofreu muito e com baixa auto estima. Inclusive teve conhecimento que tinha acompanhamento médico para esse efeito. Relatando, de forma assertiva que o envolvimento com o arguido R. J. potenciou a prática dos factos, pelos quais se encontra acusada.
É evidente que se trata de uma possível interpretação do âmbito psicológico, que poderá influenciar o comportamento da arguida. No entanto, não podemos perder o foco e desculpabilizar ou justificar deste modo a responsabilidade, no caso criminal, da arguida pela prática dos factos em causa.

Mais se considerou para prova dos factos dados como provados a seguinte prova documental:
. Auto de Notícia, cfr. fls. 6 a 12 – (o qual vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).
. Auto de apreensão, cfr. fls. 17/18 - (o qual vale como documento autêntico quando levantado por autoridade judiciária, órgão de policia criminal ou outra entidade policial que presenciou o crime, fazendo prova dos factos materiais nele constantes (artigos 363 n º 2 do C. C. e 169 º do CPP).. Declaração de rendimentos, cfr. fls. 25 e 26 dos arguidos.
. Fotogramas, cf. fls. 27 a 33, 88 a 93 – os quais identificam a apreensão efetuada, bem como o veiculo utilizado naquele dia pelos arguidos, cuja propriedade é da arguida, mas que não justificação a sua perda a favor do Estado, uma vez que o veiculo apenas foi utilizado uma única vez na deslocação efetuada, sendo um episódio único no tempo e não mais referenciado como meio de prossecução de um trafico de média a grande dimensão. Pelo que deve o mesmo ser devolvido à proprietária.
. Auto de exame directo e avaliação, cf. fls. 86/87, 98 a 103, efectuado ao veículo com a matricula FV;
. Transcrição de mensagens, cf. Anexo A, fls. 8 a 26; 41 a 92; . Listagens de contactos, cf. Anexo A, fls. 2, 27 a 30;
. Listagem de chamadas telefónicas, cf. Anexo A, fls. 3 a 8, 30 a 41.
Estes últimos três pontos apenas reforçam a prática dos factos imputados aos arguidos, os quais admitiram a sua prática, de acordo com a caracterização e qualificação jurídica que em seguida será efetuada.
Em relação à ausência de antecedentes criminais dos arguidos decorre da ausência de qualquer condenação anterior, conforme teor dos respetivos Certificado de Registo Criminal juntos aos autos. Quanto aos factos relativos às condições sociais, familiares e profissionais dos arguidos, resultam do teor dos respetivos relatórios sociais de ambos juntos aos autos.
Quanto aos factos dados como não provados, resulta de ausência de prova nesse sentido, ou seja, não foi possível provar que arguidos obtiveram a quantia de € 7.075,00. (sete mil e setenta e cinco euros)”.
*
I – Do vício da falta de fundamentação relativamente à matéria de facto não provada.

Face ao disposto no artigo 374º nº 2 do CPP, um dos requisitos da sentença é a fundamentação, “que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal”.
Por sua vez, o artigo 379º alínea a) também do CPP comina com a sanção da nulidade da sentença que nomeadamente não contiver as menções referidas no n.º 2 do artigo 374º.
Como salienta Germano Marques da Silva, “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias. Permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça, por outra parte, mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina. (…) No actual sistema processual português, os tribunais de recurso não podem substituir-se ao tribunal de julgamento em 1ª instância na apreciação directa da prova, mas pode e deve apreciar, nos termos do artº 410º, nº 2, se o tribunal de 1ª instância fez correcta aplicação dos princípios jurídicos em matéria de prova; deve poder julgar em recurso se houve ou não erro notório na apreciação da prova ou contradição insanável na fundamentação. Para tanto, necessário se torna que a sentença indique a motivação dos juízos em matéria de facto, para que o tribunal de recurso possa apreciar da legalidade da decisão”.
Conforme bem se salienta no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de janeiro de 2020 (2) o que importa para satisfazer a exigência legal do exame crítico das provas imposta, sob pena de nulidade, pelas disposições conjugadas dos arts. 379º nº 1 al. a) do CPP é que a fundamentação da decisão de facto expresse, com clareza, quais as regras de experiência comum, os critérios de razoabilidade e de lógica, ou os conhecimentos técnicos e científicos utilizados para conferir credibilidade a determinados meios de prova e não a outros e em que medida os meios de prova produzidos oferecem informação esclarecedora e convincente que permite considerar provados os factos ou, pelo contrário, não oferecem segurança para alicerçar uma conclusão positiva acerca da verificação de determinados factos e, por isso, se justifica a sua inclusão, nos factos não provados.
A omissão de referência à não valoração de determinadas provas por não terem relevância, não retira à sentença a sua validade e eficácia, sendo certo que redundaria numa enorme desproporção cominar com a sanção da nulidade, a omissão de qualquer referência a um meio de prova, quando este nem tem qualquer virtualidade para alicerçar seja que juízo for, acerca da demonstração dos factos objecto de um processo, sendo totalmente indiferente, por irrelevante, para a descoberta da verdade e boa decisão da causa.
Tal solução constituiria um atentado intolerável aos princípios da economia processual, da proibição da prática de actos inúteis e da segurança jurídica.

No caso em apreço o tribunal “a quo” fundamentou a decisão de facto, nomeadamente quando refere, relativamente à matéria de facto dada como não provada, a ausência de qualquer prova que permitisse provar que os arguidos obtiveram a quantia de € 7.075,00. (sete mil e setenta e cinco euros).
Ora, se o tribunal “a quo” entende que não existem sequer quaisquer meios de prova produzidos em audiência, sejam de ordem pessoal, documental ou outra, relativamente a tal matéria não provada, naturalmente que não os podia sequer ponderar ou fazer um exame crítico dos mesmos.
Se for entendido que existiam meios de prova a determinar uma resposta diferente a essa matéria de facto que foi dada como não provada, então já estamos no campo do erro de julgamento da matéria de facto, que analisaremos de seguida.
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Do erro notório na apreciação da prova.
Como é sabido a matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios ou de algum dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal (CPP); outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo Código.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.

Dispõe o artigo 410º do Código de Processo Penal (na parte que ora releva):

«1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) (…);
b) (…);
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 – O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada”.
*
Como ensina Maria João Antunes, (3) os vícios do nº 2 do artigo 410º, do C. P. Penal, não são vícios do julgamento, mas vícios da decisão, que surgem umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374º, nº 2, do C. P. Penal, que impõe a fundamentação das decisões de facto e de direito, sob pena da nulidade da sentença, mas que com eles se não confundem”.
Refere por sua vez o senhor juiz Conselheiro Sérgio Poças e de um modo que cremos lapidar “O recorrente não pode misturar/confundir a invocação dos vícios previstos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º com os requisitos da impugnação da matéria de facto a que se refere o nº 3 e respectivas alíneas e o nº 4 do artigo 412º, trata-se de institutos distintos com natureza e consequências distintas.
Os vícios previstos no mencionado artigo 410º - como é expresso na norma – devem resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência e aí se ficam, a impugnação ampla da matéria de facto cava fundo na apreciação da prova. Aqui o recorrente vai além do texto da decisão, debruça-se sobre a prova produzida em 1ª instância”.
Salienta por sua vez o senhor Juiz Conselheiro Pereira Madeira (4) “certo que o erro tem de ser notório. Mas basta para assegurar essa notoriedade que ela ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que para tanto, tenha que ser devidamente escrutinada – e ainda que, para, além das percepções do homem comum - e sopesado à luz de regras de experiência. Ponto é que, no fim, não reste qualquer dúvida sobre a existência do vício e que a sua existência fique devidamente demonstrada pelo tribunal ad quem”.
E adiantemos, desde já, que consideramos estar perante uma situação de erro notório na apreciação da prova, relativamente à matéria dada como não provada, o qual porém pode ser suprido por este tribunal de recurso, sem necessidade do pretendido reenvio para novo julgamento – artigo 426º nº do C.P.P. “a contrario”.

O Ministério Público na acusação que deduziu aos arguidos veio requerer o seguinte:

“Da declaração de perda das vantagens do facto ilícito típico a favor do Estado:
O Ministério Público, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 36.º n.ºs 2, 4 e 5 do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro e do artigo 110.º, n.º 1 al. b) e 4 do Código Penal requer se declare a perda das vantagens obtidas pelos arguidos F. M. e R. J. com a prática dos supra referidos factos, o que faz com os fundamentos que seguem:
1. Damos por integralmente reproduzidos os factos constates da acusação pública que antecede, assim como, a respectiva qualificação jurídica.
2. No âmbito da actividade de compra e venda de produto estupefaciente os arguidos conseguiram obter benefícios patrimoniais traduzidos na diferença entre o preço a que adquiriam as respectivas doses de Heroína/Cocaína e o preço a que as revendiam a terceiros consumidores.
3. Com a actividade criminosa, obtiveram os arguidos uma vantagem patrimonial de, pelo menos, € 7.075,00 (sete mil e setenta e cinco euros).
4. O referido montante corresponde à vantagem da actividade criminosa que os arguidos obtiveram com a prática do crime, na medida em que traduzem o incremento patrimonial directo que os mesmos obtiveram com a sua conduta criminosa supra descrita.
5. Considerando que os arguidos deram aos referidos montantes destino não concretamente apurado, não foi possível garantir a sua apropriação em espécie.
6. Assim, deverá ser declarado perdido a favor do Estado o respectivo valor, nos termos do artigo 36.º n.º 4 do Dec. Lei 15/93, de 22 de Janeiro.
Nestes termos, promove-se que seja declarado perdido a favor do Estado o montante de € 7.075,00 (sete mil e setenta e cinco euros).
Mais se promove que, sendo o referido valor correspondente à vantagem patrimonial directa da actividade criminosa desenvolvida pelos arguidos, se condenem os mesmos a pagar solidariamente ao Estado, a quantia de € 7075,00 (sete mil e setenta e cinco euros), nos termos dos invocados preceitos legais”.
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Preceitua o artigo 110º do Código Penal:

1 - São declarados perdidos a favor do Estado:
a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
2 - O disposto na alínea b) do número anterior abrange a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, já cometido ou a cometer, para eles ou para outrem.
3 - A perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado.
4 - Se os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
5 - O disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
6 - O disposto no presente artigo não prejudica os direitos do ofendido.
*
O D.L. 15/93 de 27 de janeiro, que como refere o seu artigo 1º tem como objecto a definição do regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas preceitua no artigo 36º. sob a epígrafe “Perda de coisas ou direitos relacionados com o facto”:

“1 – (…)
2 - São também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos de terceiro de boa fé, os objectos, direitos e vantagens que, através da infracção, tiverem sido directamente adquiridos pelos agentes, para si ou para outrem.
3 - O disposto nos números anteriores aplica-se aos direitos, objectos ou vantagens obtidos mediante transacção ou troca com os direitos, objectos ou vantagens directamente conseguidos por meio da infracção.
4 - Se a recompensa, os direitos, objectos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
5 - Estão compreendidos neste artigo, nomeadamente, os móveis, imóveis, aeronaves, barcos, veículos, depósitos bancários ou de valores ou quaisquer outros bens de fortuna”.
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O Ministério Público pretende que seja declarada a perda da quantia correspondente aos benefícios patrimoniais traduzidos na diferença entre o preço € 5,00 (cinco euros), a que os arguidos adquiriam as respetivas doses de heroína/cocaína cada dose e o preço a que as revendiam a terceiros consumidores.
Refere a acusação pública que o referido montante corresponde à vantagem da atividade criminosa que os arguidos obtiveram com a prática do crime, na medida em que traduzem o incremento patrimonial direto que os mesmos obtiveram com essa sua conduta e que deram aos referidos montantes destino não concretamente apurado, pelo que não foi possível garantir a sua apropriação em espécie.
Verifica-se assim que o requerimento de perda de vantagens se funda no lucro que os arguidos tiveram com essa atividade criminosa, que o Ministério Público concretiza, nela não cabendo porém a perda da viatura automóvel pertencente à arguida, que em momento algum foi requerida ou ponderada, pelo que é inócua a contradição existente entre os factos dados como provados relativamente às diversas utilizações desse veículo por parte dos arguidos para irem adquirir as substancias estupefacientes e a parte da motivação da decisão de facto em que é referido que o “veiculo apenas foi utilizado uma única vez na deslocação efetuada, sendo um episódio único no tempo”.
Tendo o tribunal “a quo” dado como provadas essas transações, face às declarações confessórias dos arguidos, teria necessariamente que, após ter dado como provada tal matéria nos factos provados, apurar posteriormente qual o concreto montante do lucro obtido pelos arguidos e não o fazendo, incorreu no vício do erro notório na apreciação da prova, que resulta claro do texto do acórdão recorrido.
Diga-se que a quantia referida na acusação de € 7.075,00 consubstancia matéria de natureza conclusiva, que poderá ou não decorrer da soma dos lucros obtidos por força das referidas transações e como tal não é, em si, objeto de confissão.
Há assim que apurar, face aos factos que resultaram provados qual o lucro obtido pelos arguidos.

Para tanto há que relembrar os seguintes factos provados com interesse para esta questão:

2. Na prossecução de tal plano, os arguidos abasteciam-se das referidas substâncias em diversos locais, nomeadamente, no Porto, a indivíduos cujas identidades não se logrou apurar, adquirindo cada dose pela quantia monetária de €5,00 (cinco euros) (5).
9. Os arguidos venderam Heroína e Cocaína, nas circunstâncias supra explanadas, a diversos consumidores, tendo estes, previamente os contactado telefonicamente, através de chamadas de voz e/ou da troca de mensagens escritas e das redes sociais, nomeadamente Whatsapp e Messenger, a fim de combinarem os termos em que iriam decorrer as transacções.

Assim:
a) Durante o período temporal compreendido entre Janeiro de 2021 e Abril de 2021, com a periodicidade de duas a três vezes por semana, em datas não concretamente apuradas, os arguidos venderam, no interior da sua residência sita Rua da ..., n.º .., Bragança, Cocaína, em quantidades não apuradas, mas seguramente, três doses individuais, em cada ocasião, a N. C., com a alcunha de “M.” tendo recebido deste, como contrapartida, por cada dose, a quantia monetária de €10,00 (dez euros).
b) Durante o período temporal compreendido entre Janeiro de 2021 e Abril de 2021, em datas não concretamente apuradas, por diversas vezes, no interior da sua residência, o arguido cedeu Cocaína a N. C., destinada ao consumo de ambos, sem contrapartida monetária ou de outra espécie.
c) Durante o período temporal compreendido entre Abril de 2020 e Abril de 2021, com uma periodicidade de três a quatro vezes por semana, em datas não concretamente apuradas, no interior da sua residência, no exterior da mesma e na garagem, os arguidos venderam Cocaína, em quantidades não apuradas, mas seguramente, uma ou duas doses em cada ocasião, a O. M., com a alcunha de “L.” tendo recebido deste, como contrapartida, por cada dose, a quantia monetária de €20,00 (vinte euros).
d) Durante o mês de Março de 2021, em cinco ou seis ocasiões, em datas não concretamente apuradas, no interior da sua residência, o arguido cedeu Cocaína a J. M., destinada ao consumo de ambos, sem contrapartida monetária ou de outra espécie.
e) Durante o mês de Março de 2021, em dia não concretamente apurado, no exterior da sua residência o arguido vendeu, vinte doses de Cocaína, a J. M., tendo recebido deste, como contrapartida a quantia monetária de €100,00 (cem euros).
f) Durante o período temporal compreendido entre o ano de 2020 e início de 2021, em duas ou três ocasiões, em datas não concretamente apuradas, nas imediações do Bar Sede da ..., sito no Bairro ... de Habitação de ..., conhecido por “Bairro ...”, o arguido vendeu uma dose de Heroína, em cada ocasião, a L. F., com a alcunha de “F”, tendo recebido deste, como contrapartida, a quantia monetária de €10,00 (dez euros) em cada ocasião.
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Tendo em consideração esta matéria que ficou provada e que era a que constava da acusação deduzida pelo Ministério Público há a extrair desde logo que nas transações constantes das alíneas b) e d) a cedência efetuada foi sem contrapartida monetária ou de outra espécie, pelo que não obtiveram qualquer lucro.
Na alínea e) também não existiu qualquer lucro, porquanto a venda das vinte doses de cocaína foi pelo montante de €100,00 (cem euros), que era precisamente o preço pela qual tinha sido comprada (€ 5,00 x 20 doses).
Restam assim as transações constantes das alíneas a), c) e f).
Tendo em consideração o princípio do in dubio pro reo nas situações em que são referidas datas ou quantidades em alternativa, terá de ser considerada a que for mais favorável aos arguidos.
Efetivamente o princípio do in dubio pro reo apresenta-se como corolário do princípio da presunção de inocência decorrente do artigo 32º nº 2 da Constituição da República Portuguesa.
Em obediência a tal princípio, impõe-se que, em caso de dúvida acerca de factos referentes ao objeto do processo (existência dos factos, forma de cometimento e responsabilidade pela sua prática), essa dúvida deve ser sempre desfeita em benefício do arguido relativamente ao ponto ou pontos duvidosos, podendo mesmo conduzir à absolvição (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Noções de Processo Penal, Rei dos Livros, págs. 50 e 51).

Assim, temos:
- alínea a): de Janeiro a Abril de 2021, venda, duas vezes por semana, de três doses individuais de cocaína, a N. C., pelo preço de €10,00 (dez euros), cada dose, o que corresponde a um total de vendas de 96 doses, a € 10,00 (dez euros) cada uma, pelo que tendo cada dose sido adquirida a € 5,00, dá um lucro obtido de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros).
- alínea c): de Abril de 2020 e Abril de 2021, venda, três vezes por semana, de uma dose de cocaína a O. M., pelo preço de €20,00 (vinte euros) cada dose, o que corresponde um total de 156 doses, a vinte euros cada uma, pelo que tendo cada dose sido adquirida a € 5,00, dá um lucro obtido de € 2.340,00 (dois mil, trezentos e quarenta euros).
- alínea f): venda em duas ocasiões de uma dose de heroína a L. F., pelo preço de €10,00 (dez euros) em cada ocasião, o que corresponde a duas doses, a dez euros cada uma, pelo que tendo cada dose sido adquirida a € 5,00, dá um lucro obtido de € 10,00 (dez euros).
Verifica-se deste modo que o lucro total obtido pela venda dos produtos estupefacientes ascende a € 2.830 (dois mil, oitocentos e trinta euros).
É assim esta quantia que corresponde ao lucro obtido pelos arguidos pela venda dos produtos estupefacientes e que é atendida para efeitos do disposto no artigo 110º nº 1 do Código Penal e 36º do D.L. 15/93 de 22 de janeiro, levando à condenação dos arguidos no seu pagamento ao Estado, eliminando-se consequentemente a matéria de facto dada como não provada.
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III – Decisão.

Face ao exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e em consequência condenam os arguidos no pagamento solidário ao Estado da quantia de € 2.830 (dois mil, oitocentos e trinta euros), confirmando no demais o douto acórdão recorrido.
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Sem tributação.
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Notifique.
Guimarães, 13 de julho de 2022.
(Decisão elaborada com recurso a meios informáticos e integralmente revista pelos subscritores, que assinam digitalmente).

Pedro Freitas Pinto
(Juiz Desembargador Relator)
Fátima Sanches
(Juíza Desembargadora Adjunta)
Fernando Chaves
(Juiz Desembargador Presidente desta Secção)



1. Cfr. Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995 e, na doutrina, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 3ª Edição Atualizada, Universidade Católica Editora, 2009, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1027/1028.
2. consultável in www.dgsi.pt.
3. Revista Portuguesa de Ciência Criminal Ano 4, 1994, págs. 118/123.
4. Código de Processo Penal. Comentado. A. Henriques Gaspar et ale, Almedina, 3ª edição, pág.1292
5. Destaques a negrito da nossa autoria.