Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
592/11.9GCGMR.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: OBJECTO DO RECURSO
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO PROCEDENTE
Sumário: I – Para o efeito da norma do art. 358 nº 1 do CPP, são relevantes para a decisão da causa os novos factos que se reportem a um distinto modo de comissão ou execução do crime, bem como à intenção de praticar esses factos e de atingir o resultado penalmente ilícito (com eventuais consequências a nível da graduação da pena).
II – O facto novo que pode assumir relevo próprio na valoração global do comportamento do arguido importa uma alteração não substancial de factos.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Por sentença proferida em 22 de Novembro de 2012 pelo tribunal singular no 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Guimarães, o arguido Raul D... foi condenado pelo cometimento, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido no art.º 152.º, n.ºs 1, alínea a) e 2 do Código Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão, de execução suspensa sob a condição de se apresentar mensalmente ao técnico de reinserção social.

2. O arguido interpôs recurso e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição) :

A) Quanto à decisão sobre a matéria de facto
1ª- Porque da acusação não constava a imputação dos factos “em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2011, o arguido, por telemóvel, disse à testemunha Diana S..., e referindo-se à ofendida, “quero ver essa filha da puta a penar”, nem os factos “ e empurrou-a”; “e, dirigindo-se à mesma apelidou-a de “puta, vaca, filha da puta”; “e já na presença da testemunha Nuno S... (...) apelidou-a de “puta, filha da puta, vaca”, que a fundamentação de facto nos seus pontos 5. e 11. deu como provados, que integram alteração não substancial dos factos descritos na acusação e porque de nenhuma das actas das audiências de discussão e julgamento consta, que ao recorrente tenha sido feita a respectiva comunicação prevista no nº 1 do art.º 358º do CPP, deve a sentença recorrida, por força do prescrito na alínea b) do nº 1 do art.º 379º do CPP, ser declarada nula.
2ª- Pelos fundamentos especificados em 1. de III da motivação, por terem sido, erradamente, julgados os factos do ponto 2. da fundamentação de facto, impõe-se que os mesmos sejam alterados para: “ Na vigência do casamento, apenas, nasceu Raul D... a 27 de Dezembro de 1995 e, em 16 de Agosto de 2006, nasceu Leonor D..., também, filha do arguido e da Maria E....”
3ª- Pelos fundamentos especificados em 2. de III da motivação, por terem sido, erradamente, julgados provados no ponto 4. da fundamentação de facto, o facto “algum mobiliário” deve ser substituído por “uma peça de mobiliário” e eliminado o facto (causando receio e inquietação) “na ofendida Maria E...”.
4ª- Pelos fundamentos especificados em 4. de III da motivação, por terem sido, erradamente, julgados provados os factos do ponto 8. da fundamentação de facto, impõe-se, que seja alterado para: “acto seguido, o arguido desferiu um murro numa das cadeiras daquele estabelecimento”.
5ª- Pelos fundamentos especificados em 5.2., 5.3. e 5.4. da motivação, mesmo na improcedência da 1ª conclusão quanto aos respectivos factos, por não ter sido feita prova segura dos factos dos pontos 11., 15., 16. e 17. da fundamentação de facto, impõe-se, que os mesmos sejam alterados e que deles fique a constar, respectivamente, apenas o seguinte:
-“11. Já no interior da entrada do aludido prédio e na presença da testemunha Nuno S..., vizinho da ofendida que ali acedeu atento o barulho que se fazia no local, o arguido deu um pontapé na barriga da ofendida.”
- “15. Maria E... sofreu ligeiro edema a nível da mandíbula do lado direito, dor a palpação da grade costal sem crepitação ou sinais clínicos de fractura no terço superior do hemitórax direito, dores a palpação da parede abdominal do andar superior, equimose enegrecida na face posterior-lateral do terço superior do braço com quatro por cinco centímetros e meio de maiores eixos, o que lhe determinou 15 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral (10 dias) e sem incapacidade para o trabalho profissional.”
-“16. Com o comportamento descrito pretendeu e conseguiu o arguido molestar o corpo de Maria E..., sua ex-mulher, causando-lhe dor.”
-“17. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a apontada conduta era punida e proibida por lei.”.
B) Quanto à matéria de Direito
1ª- Na procedência das 2ª, 3ª, 4ª e 5ª conclusões, produzidas à decisão da matéria de facto, a sentença recorrida deve ser revogada, por inverificados os factos integrantes do crime de violência doméstica e o recorrente ser condenado, apenas, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto no nº 1 do art.º 143º do C. Penal.
E na improcedência da anterior conclusão:
2ª- O conceito “maus tratos físicos ou psíquicos” da previsão do art.º 152º do C. Penal, tem de atingir elevado grau de gravidade e de censurabilidade para integrar a previsão do tipo “violência doméstica”.

3ª- Mesmo que se mantenham inalterados os factos, que a fundamentação de facto deu como provados, os mesmos não integram aquele conceito “maus tratos físicos ou psíquicos”, nem com base neles se pode manter, que o recorrente agiu com culpa “de intensidade acima da média” e que “a actuação do recorrente se prolongou no tempo” pelo que a sentença recorrida fez errada aplicação aos respectivos factos do disposto no art.º 152º nºs 1, alínea a), e 2 e no art.º 71º, ambos do C. Penal, o que conduz à respectiva absolvição pela prática desse crime e à condenação do recorrente, apenas, pela prática de um crime de ofensa à integridade física, previsto no nº 1 do art.º 143º do C. Penal.”

3. O magistrado do Ministério Público no Tribunal Judicial de Fafe formulou resposta ao recurso do arguido, concluindo, em nossa síntese, que a sentença é nula nos termos do artigo 379.º,1 c) do CPP já que o tribunal não se pronunciou sobre a questão do arbitramento da indemnização “ punitiva “ oficiosa, matéria de relevante interesse público, de conhecimento oficioso, obrigatória, prevista no art 21º., nºs. 1 e 2 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, o Recorrente não conseguiu demonstrar que se impusesse modificação da factualidade dada como assente, por exclusão ou adição de factos (: i.é, que exista patente necessidade de decisão diversa, os factos modificados constantes dos pontos 5 e 11 não se desviam do aspecto fulcral da situação de vida “histórica” descrita na acusação e são meros factos instrumentais do mesmo pedaço de vida sem influência da incriminação que a pena imposta foi correctamente aplicada e fundamentada, pelo que o recurso não merece provimento em qualquer das suas vertentes (cfr. fls. 339 a 342).

4. Neste Tribunal da Relação de Guimarães, onde o processo deu entrada em 20 de Março de 2013, o Sr. Procurador-Geral Adjunto teve vista dos autos e emitiu parecer sufragando a posição expressa pelo Ministério Público na primeira instância e concluindo no sentido da improcedência do recurso (cfr. fls. 352 e v.º)..

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz adjunto e realizada a conferência na primeira data disponível, cumpre apreciar e decidir.

5. O objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - artigos 402º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Silva, Germano Marques da, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Albuquerque, Pinto de, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª ed. 2009, pag 1027 e 1122, Santos, Simas, Recursos em Processo Penal, 7.ª ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).

As questões suscitadas pelo recorrente são fundamentalmente as seguintes: nulidade da sentença; impugnação da matéria de facto por erro de julgamento, enquadramento jurídico-penal dos factos provados.

6. Como tem sido sublinhado, o princípio da acusação constitui um princípio fundamental do processo penal e beneficia de tutela constitucional – artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República, significando essencialmente que «só se pode ser julgado por um crime precedendo acusação por esse crime por parte de um órgão distinto do julgador, sendo a acusação condição e limite do julgamento» (Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra Editora, 1993, nota IX ao artigo 32º, pág. 205).Uma das consequências da estrutura acusatória do processo criminal consiste precisamente nesta “vinculação temática” (em que se consubstanciam os princípios da identidade, da indivisibilidade e da consunção do objecto do processo penal): os factos descritos na acusação (normativamente entendidos) definem o objecto do processo que, por sua vez, delimita os poderes de cognição do tribunal e o âmbito do caso julgado (J. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1981, p. 144).

A vinculação temática do tribunal é considerada como a “pedra angular de um efectivo e consistente direito de defesa do arguido” e assegura, também, os seus direitos de contraditoriedade e audiência: é indispensável que o arguido saiba com precisão de que factos em concreto se encontra acusado, para que possa apresentar os seus argumentos e o seus meios de contra prova.

O regime da alteração dos factos descritos na acusação ou na pronúncia encontra-se estabelecido nos artigos 303º, 358.º e 359.º do Código de Processo Penal. Aí se distinguindo entre “alteração substancial” e “alteração não substancial” dos factos descritos na acusação ou pronúncia, fazendo apelo à definição constante do artigo 1.º, alínea f), do CPP, segundo a qual se considera alteração substancial de factos “aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.".Se a alteração dos factos não for substancial, então o tribunal pode integrar na decisão factos que não constem da acusação ou pronúncia e que tenham relevo para a decisão do processo. Caso a alteração não tenha resultado de alegação da defesa, a lei exige que seja comunicada ao arguido a alteração e que lhe seja dada a oportunidade de preparação da defesa.

Finalmente, a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos naqueles artigos 358º e 359º, implica a nulidade da sentença (artigo 379º, n.º 1, alínea. b) do Código do Processo Penal).

7. O Ministério Público formulou acusação contra o arguido Raul D..., imputando-lhe o cometimento de um crime de violência doméstica do art.º 152.º n.º 1 e 2 do Código Penal por diversos factos ocorridos em datas compreendidas entre Junho de 2011 e 11 de Março de 2012 (fls. 77 a 82).

Nos pontos 15 a 20 dos factos imputados ao arguido consta o seguinte (transcrição):

“(…)15. No dia 11 de Março de 2012, o arguido dirigiu-se à residência de Maria E... para lhe entregar a menor Leonor D...e, quando a ofendida Maria E... abriu a porta, o arguido forçou a sua entrada para o interior da habitação.
16. Já no interior da residência da ofendida e na presença de Leonor D..., o arguido desferiu-lhe vários murros e pontapés, atingindo-a em várias partes do corpo.
17. Na sequência da conduta do arguido, a ofendida teve que ser assistida, pelas 20h30m, no Hospital de Guimarães.
18. Quando a ofendida se encontrava no interior do Hospital de Guimarães, o arguido dirigiu-se à ofendida munido com um objecto não concretamente apurado.
19. No momento que a ofendida o avistou de imediato gritou para os presentes que se tratava do seu ex-marido e agressor, tendo sido encaminhado para fora do hospital, local onde ficou até às 2h00 a cantar “Ai se te pego”.
20. Como consequência directa e necessária das agressões infligidas, Maria E... sofreu ligeiro edema a nível da mandíbula do lado direito, dor a palpação da grade costal sem crepitação ou sinais clínicos de fractura no terço superior do hemitórax direito, dores a palpação da parede abdominal do andar superior, equimose enegrecida na face posterior-lateral do terço superior do braço com quatro por cinco centímetros e meio de maiores eixos, o que lhe determinou 15 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral (10 dias) e sem incapacidade para o trabalho profissional.” (…)

Realizada a audiência de julgamento, na sentença recorrida, o tribunal julgou provado que:

“1. O arguido e Maria E... contraíram matrimónio no dia 06 de Agosto de 1994, dissolvido por divórcio declarado por decisão transitada em julgado no dia 30 de Março de 2004.
2. Na vigência do casamento nasceram Raul E... e Leonor D..., respectivamente, a 27 de Dezembro de 1995 e 16 de Agosto de 2006.
3. Apesar de se encontrarem divorciados, o arguido e a ofendida permanecerem em comunhão de cama, mesa e habitação pelo menos até Dezembro de 2011.
4. Em meados de Junho de 2011, durante uma discussão, o arguido, no interior da residência do agregado familiar sito na Rua C... e na presença dos seus filhos menores partiu algum mobiliário que se encontrava no interior da habitação, causando receio e inquietação nos menores e na ofendida Maria E....
5. Em data não concretamente apurada, mas situada no ano de 2011, o arguido, por telemóvel, disse à testemunha Diana S..., e referindo-se à ofendida, “quero ver essa filha da puta a penar”.
6. Em dia e hora não concretamente apurados de Fevereiro de 2012, o arguido dirigiu-se à Casa de Saúde de Guimarães, onde estavam a ofendida, juntamente com Leonor D..., filha menor de ambos.
7. No interior do referido estabelecimento de saúde, o arguido abeirou-se da sua filha menor, chamando-a, porém, a menor não cedeu ao chamamento agarrando-se à Maria E....
8. Acto seguido, o arguido desferiu vários murros nas cadeiras daquele estabelecimento, assustando a menor e a ofendida.
9. Em data não concretamente apurada do ano de 2011 ou de 2012, o arguido, quando foi buscar a sua filha menor à residência de Maria E..., tocou incessantemente à campainha.
10. Em dia não concretamente apurado do mês de Março de 2012, e cerca das 20h, o arguido dirigiu-se ao prédio onde se situa a residência de Maria E... para lhe entregar a menor Leonor D...e, quando a ofendida Maria E... abriu a porta de entrada do aludido prédio, o arguido forçou a sua entrada para o interior do dito prédio.
11. Já no interior da entrada do aludido prédio e na presença de Leonor D..., o arguido desferiu vários murros na porta do dito prédio e vários murros no braço da ofendida e empurrou-a e dirigindo-se à mesma apelidou-a de “puta, vaca, filha da puta” e, já na presença da testemunha Nuno S..., vizinho da ofendida que ali acedeu atento o barulho que se fazia no local, o arguido deu um pontapé na barriga da ofendida e apelidou-a de “puta, filha da puta, vaca”;
12. Na sequência da conduta do arguido, a ofendida teve que ser assistida, pelas 20h30m, no Hospital de Guimarães.
13. Quando a ofendida se encontrava no interior do Hospital de Guimarães, o arguido dirigiu-se à ofendida munido com um objecto não concretamente apurado.
14. No momento que a ofendida o avistou de imediato gritou para os presentes que se tratava do seu ex-marido e agressor, tendo sido encaminhado para fora do hospital, local onde ficou até hora não concretamente apurada mas sempre posterior às 24h, e cantando, por algumas vezes, em tom de voz embora não audível para a ofendida, mas audível nomeadamente para o segurança de tal hospital, “Ai se te pego”
15. Como consequência directa e necessária das agressões infligidas, Maria E... sofreu ligeiro edema a nível da mandíbula do lado direito, dor a palpação da grade costal sem crepitação ou sinais clínicos de fractura no terço superior do hemitórax direito, dores a palpação da parede abdominal do andar superior, equimose enegrecida na face posterior-lateral do terço superior do braço com quatro por cinco centímetros e meio de maiores eixos, o que lhe determinou 15 dias para a consolidação médico-legal, com afectação da capacidade de trabalho geral (10 dias) e sem incapacidade para o trabalho profissional.
16. Com o comportamento supra descrito pretendeu e conseguiu o arguido molestar o corpo de Maria E..., sua ex-mulher, causando-lhe dor e as referidas lesões e pretendendo humilhá-la proferindo expressões contra a sua honra e mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixava e praticando tais condutas na presença da sua filha menor Leonor D....
17. Agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as apontadas condutas eram punidas e proibidas por lei.(…)”

Na sentença consta ainda que o tribunal julgou não provado :

“ (…) 9. que no dia 11 de Março de 2012, o arguido dirigiu-se à residência de Maria E... para lhe entregar a menor Leonor D...e, quando a ofendida Maria E... abriu a porta, o arguido forçou a sua entrada para o interior da habitação;

10. que já no interior da residência da ofendida e na presença de Leonor D..., o arguido desferiu-lhe vários murros e pontapés, atingindo-a em várias partes do corpo.”

A este propósito, consta na motivação da convicção da sentença recorrida que :

“O facto dado como assente no número 5 resultou do depoimento prestado pela testemunha Diana S..., a qual relatou-o de modo que se evidenciou objectivo, isento e credível. (…)
A matéria de facto dada como assente nos números 10 a 12 e 15, alicerçou-se na análise conjunta das declarações da arguida, do depoimento da testemunha Nuno S..., vizinho da mesma, do depoimento da testemunha Elsa Gouveia, amiga da ofendida, conjugados, ainda, com o teor dos registos clínicos juntos aos autos.
A citada testemunha, Nuno S..., relatou de modo que se evidenciou pormenorizado, estruturado, isento, espontâneo e credível, que nas aludidas circunstâncias de tempo, estava a jantar e ouviu um barulho, no exterior da sua residência, que lhe pareceu ser oriundo de murros e pontapés e por isso deslocou-se à entrada do prédio onde reside e é vizinho da ofendida.
Mais disse que ali chegado viu a ofendida no chão e a dizer “chamem a polícia, ele vai-me matar”, e mais ali viu a filha menor da ofendida, completamente aterrorizada e em pânico, por isso saiu de tal prédio e na rua ligou para a GNR e nesse momento o arguido aproximou-se dele e perguntou-lhe o que estava a testemunha a fazer e esta continuou a falar ao telefone dizendo para a GNR ali aceder imediatamente e quando o arguido ouviu tais palavras abeirou-se da testemunha e deu-lhe com a cabeça no lábio da mesma pelo que se gerou uma “confusão” entre eles sendo separados por pessoas que ali entretanto acederam, e que entretanto também ali acederam a mulher da testemunha e a ofendida.
Relatou, ainda, que na sua presença o arguido apelidou a ofendida de “puta, vaca, filha da puta” e que desferiu na mesma um pontapé na barriga e que após a GNR ali chegar o arguido voltou a agredir fisicamente a ofendida, e que tudo se passou na presença da filha do arguido e da ofendida.
Mais disse que ali acedeu entretanto a ambulância e que a ofendida foi, então, transportada para o hospital.
Relatou, ainda, que não apresentou queixa contra o arguido pela agressão perpetrada por este contra si e que após os factos que relatou já se cruzou várias vezes com o arguido e nada de anormal ou de conflituoso se passou então entre eles.
A testemunha Elsa Gouveia relatou, de modo que se mostrou isento e credível, que a ofendida lhe telefonou a dizer que tinha sido agredida pelo arguido e que por isso teria que ser transportada para o hospital pedindo-lhe para ir buscar a sua filha e tomar conta da mesma. Por isso, a testemunha deslocou-se ao prédio onde a ofendida reside e viu a menor a despedir-se daquela, e a ofendida a ir na ambulância para o hospital, e ficou, tal menor, com a testemunha, pernoitando na casa desta.
Mais disse que a ofendida e a filha da mesma estavam, na ocasião, a tremerem, assustadas e a chorarem.
Mais relatou que tais factos ocorreram na sequência do episódio em que a testemunha Nuno S... interveio.
A ofendida também relatou os aludidos factos, agora em apreço, e como os mesmos vieram a ser dados como provados.
Igualmente a testemunha Lídia T..., amiga que foi da ofendida à data dos factos e que está actualmente, e desde Agosto deste ano de 2012, de mal com a mesma porque, segundo disse, a ofendida lhe pediu que viesse mentir na audiência destes autos, pedido a que a testemunha não anuiu, relatou, de forma que se mostrou isenta e credível, que em data que não soube concretizar, mas do ano de 2012, estava com a ofendida na casa desta e que o arguido tocou à campainha, para entregar a filha Leonor, e que a ofendida se dirigiu à porta do prédio onde reside, e entre eles iniciou-se uma discussão e que no decurso da mesma o arguido deu um pontapé na barriga da ofendida, facto este presenciado pela filha daqueles e pela citada testemunha – relato, este, que corrobora as declarações da ofendida e da testemunha Nuno S..., prestadas em relação a tal episódio e como acima se deixaram exaradas.”

8. Pela enunciação das circunstâncias de tempo e de local e até pelas evidentes relações com o mesmo exame médico pericial (fls. 11 a 13 do apenso 96/12.2GCGMR), dúvidas não existem de que os acontecimentos constantes dos pontos 10 a 12 da sentença correspondem aos mesmos eventos relacionados nos pontos 15 a 20 da acusação.

Procedendo ao confronto entre a descrição de acontecimentos constante da acusação pública e a decisão da matéria de facto constante da sentença, logo concluímos que o tribunal julgou não provada a descrição constante dos pontos 15 e 16 (ou seja que o arguido desferiu os murros e pontapés no corpo da ofendida no interior da residência da vítima).

Contudo, da acusação para a decisão do tribunal sobre a matéria de facto provada foram adicionados os seguintes factos: Em data não apurada do ano de 2011, o arguido disse a Diana S... referindo-se à ofendida “quero ver essa filha da puta a penar”, que em dia não apurado de Março de 2012, cerca das 20 h, o arguido empurrou a ofendida e desferiu-lhe um pontapé na barriga, que na mesma ocasião, o arguido apelidou a ofendida de “puta, vaca e filha da puta” e que, posteriormente mas ainda no mesmo dia voltou a apelidar a vitima “puta”, “filha da puta” e vaca” , agora na presença da testemunha Nuno S....

Os factos adicionados, longe de significarem uma mera concretização ou especificação de outros maus tratos já constantes da acusação pública, podem assumir relevo próprio na valoração global do comportamento do arguido e, assim, na ponderação acerca do preenchimento do tipo de crime da violência doméstica. Ainda que assim não fosse, quer o “empurrão”, quer a circunstância de um dos pontapés ter atingido uma zona muito sensível do corpo da vítima, quer ainda a conduta repetida e persistente dos impropérios, mesmo na presença da filha Leonor e de outras pessoas, alteram a imagem global do facto e permitem agravar a intensidade do juízo de censurabilidade da conduta, com reflexos específicos na avaliação da personalidade do arguido e nas consequências jurídicas do crime. Também a matéria de facto constante do ponto 5 da matéria de facto provada, nos seus concretos contornos, não se enquadra especificada em nenhum dos pontos da acusação pública.

Com interesse para a apreciação desta questão, será de ter em conta que o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 674/99, adoptou como critério orientador a necessidade de garantir a defesa eficaz do arguido para concluir que são relevantes os novos factos que se reportem a um distinto modo de comissão ou execução do crime, bem como à intenção de praticar esses factos e de atingir o resultado penalmente ilícito (com eventuais consequências a nível da graduação da pena). Em consequência deste entendimento, o Tribunal julgou inconstitucionais, as normas contidas nos artigos 358º e 359º do CPP, quando interpretados no sentido de se não entender como alteração dos factos a consideração, na sentença condenatória, de factos atinentes ao modo de execução do crime que, embora constantes ou decorrentes dos meios de prova juntos aos autos, para os quais a acusação e a pronúncia expressamente remetiam, no entanto aí se não encontravam especificadamente enunciados, descritos ou discriminados (in www.tribunalconstitucional.pt )

Concluímos deste modo que se verificou nos presentes autos uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação. Sendo manifesto o interesse do arguido em se defender destas concretas imputações, em invocar as suas razões de facto e de direito e eventualmente em oferecer provas, devia ter havido comunicação nos termos do artigo 358.º, n.º 1, do Código do Processo Penal.

Assim não procedeu o tribunal e a inclusão desses eventos na matéria de facto provada da sentença não pode deixar de ser considerado como uma decisão surpresa que contraia o princípio do acusatório e põe em causa as garantias de um processo leal e equitativo. A falta dessa comunicação implica a nulidade da sentença, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do Código do Processo Penal, tal como tempestivamente suscitada neste recurso.

Deve assim declarar-se a nulidade da sentença, impondo-se a reabertura da audiência de julgamento, a fim de ser efectuada a comunicação omitida e concedido prazo para a defesa, se requerido, quanto aos factos a que se atribui sentido jurídico-criminal, sendo, depois, proferida nova sentença, se possível pelo mesmo juiz.

9. Apesar do exposto, que prejudica o conhecimento dos restantes fundamentos do recurso do arguido, entende-se útil apreciar desde já a verificação de uma outra nulidade da sentença, nos termos suscitados pelo magistrado do Ministério Público no Tribunal de primeira instância.

Na verdade, preceitua o artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro (diploma legal que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas), sob a epígrafe “direito a indemnização e a restituição de bens” que

“1- À vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.

2 - Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser (…)´”.

Estabelece o artigo 82.º-A do Código do Processo Penal, sob a epigrafe Reparação da vítima em casos especiais” que “1. Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.º e 77.º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.

2 - No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.

3 - A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.”

Nestes autos, a ofendida Maria E... de Jesus Esteves formulou pedido de indemnização civil que foi rejeitado liminarmente por intempestividade, mas a previsão da norma da Lei 112/2009, prevê o arbitramento oficioso de indemnização “em todo o caso”, desde que na ocasião da sentença não exista um pedido de indemnização civil pendente e processualmente válido, com uma única excepção: a de se verificar a oposição da própria vítima.

Afigura-se-nos assim que em caso de condenação do arguido pelo cometimento de um crime de violência doméstica, se mantinha um dever oficioso de pronúncia do tribunal sobre o arbitramento de uma quantia a título de reparação da vítima pelos prejuízos sofridos.

A sentença recorrida não contém qualquer referência a esta matéria da reparação civil, sendo assim de concluir que o tribunal deixou de se pronunciar sobre uma questão que devia apreciar.

Nestes termos, verifica-se uma relevante omissão de pronúncia que constitui nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 379.º n.º1, alínea c) do Código do Processo Penal

10. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso, em declarar a nulidade da sentença nos termos acima expostos, determinando a reabertura da audiência a fim de ser comunicada ao recorrente a alteração não substancial dos factos e, se requerido, concedido prazo para a defesa, em relação a tais factos, após o que deverá ser proferida nova sentença onde, se for o caso de condenação do arguido, conste também a apreciação e decisão de eventual arbitramento oficioso de indemnização.

Sem tributação.

Guimarães, 22 de Abril de 2013.