Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1859/20.0T8BRG.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL DO ADVOGADO
PERDA DE CHANCE
PROBABILIDADE DE CONCRETIZAÇÃO DA VANTAGEM
NEXO DE CAUSALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Entre as obrigações do Advogado não está a de ganhar a causa, mas apenas a de defender os interesses do mandante com todo o seu saber, diligentemente, segundo as regras da arte, com o objetivo de vencer a lide, visto tratar-se de uma obrigação de meios, e não de resultado.
II- O incumprimento dos referidos deveres por parte do Advogado constituído pode implicar responsabilidade civil contratual pelos danos daí decorrentes para o mandante.
III- Na ação destinada a efetivar essa responsabilidade civil do Advogado deve o lesado demonstrar que existia uma probabilidade séria e real de a sua pretensão ter sido reconhecida, caso o mandante tivesse atuado com a diligência devida, o que implica fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento”, atentando no que poderia ser considerado como altamente provável pelo tribunal da causa.
IV- Esse julgamento dentro do julgamento implica dar resposta a uma questão hipotética, no caso a de saber se os Advogados ora réus tivessem, na sua reclamação de créditos, invocado a favor da sociedade mandante o direito de retenção, nos termos supra referidos, qual seria a probabilidade de obterem uma graduação do crédito diferente da que obtiveram?
V- A jurisprudência operou uma interpretação restritiva do disposto no art. 755º,1,f CC, de tal forma que o direito de retenção apenas pode ser reconhecido ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º, se o mesmo puder ser considerado consumidor.
VI- Uma sociedade comercial, a não ser em condições absolutamente excepcionais, não pode ser considerada consumidora, e como tal não beneficia do direito de retenção referido.
VII- Donde, o julgamento dentro do julgamento, como juízo de prognose, inerente à valoração da chance aponta para a inexistência de uma oportunidade de ganhar, consistente, plausível, que se haja perdido pela omissão cometida pelos primeiros réus, enquanto mandatários da sociedade, ao reclamar os créditos desta.
VIII- E assim, mesmo que os Advogados réus tivessem invocado o direito de retenção a favor da sua cliente sociedade, a probabilidade de daí ter emergido um resultado diferente daquele que emergiu era quase nula.
IX- Daí, inexiste nexo de causalidade entre o facto (no caso a omissão) e o dano, pois aquele “dano” em concreto sempre se produziria, mesmo que não tivesse havido omissão por parte dos réus Advogados.
Decisão Texto Integral:
I- Relatório

B. R. e M. F. intentaram acção declarativa de condenação contra X – SEGUROS GERAIS, SA, J. M. e E. P., pedindo a condenação dos réus a pagarem-lhes:

1. a quantia de € 251.316,25, pelos danos sofridos e do quantum indemnizatório;
2. e, pelo contrato de seguro ser a primeira ré Companhia de Seguros condenada a pagar aos autores, até ao limite da cobertura da apólice a favor da Ordem dos Advogados;
3. como os juros moratórios à taxa legal, desde a citação até ao integral pagamento; e
4. em custas e procuradoria condigna

Com esta acção visam os autores a efectivação da responsabilidade profissional de Advogado, requerendo que a 1.ª ré seguradora seja “subsidiariamente” condenada no valor que vá até ao limite da apólice de seguro.
Para fundamentar tal pretensão, alegam os autores que por força da conduta dos réus Advogados, contratados pela sua representada sociedade Y – Construções Imobiliária, Lda., em 2011, a massa insolvente da “J. A. – Soc. Imobiliária, Lda” enriqueceu-se injustificadamente à sua custa, já que nem foi cumprido o contrato-promessa celebrado a 22.11.2008, em face da sua posterior resolução pela Administradora da insolvência e consequente apreensão dos imóveis seu objecto a favor da massa, nem foi pago o crédito por si reclamado nos termos do art. 128.º do CIRE, correspondente ao liquidado sinal e princípio de pagamento em face da tradição dos prédios para a sua esfera, pois o mesmo não foi reconhecido como privilegiado, o que lhe acarretou “graves prejuízos”.

Em contestação, invocaram os réus X – Seguros Gerais, S.A e J. M. a excepção do caso julgado da decisão proferida no âmbito do processo n.º 402/17.3T8BRG, que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Central Cível de Braga – Juiz 4, não obstante a decisão onde foi apreciado o mérito, tenha sido revogada por via da necessidade de suprir a ilegitimidade activa da ali autora, na parte da apreciação de mérito dos factos alegados e da causa de pedir tem valor de caso julgado, nos termos alegados nos arts. 64 e segs., da contestação da 1ª ré e arts. 2 a 66, do 2º réu.
Em resposta os autores defenderam a não verificação da excepção de caso julgado, desde logo, pela falta de conhecimento de mérito da identificada acção (processo n.º 402/17.3T8BRG).
Em sede de despacho saneador, esta excepção de caso julgado foi julgada improcedente.

O Tribunal considerou, ainda na fase de saneamento e condensação, que por força do disposto no artigo 595º,1,b CPC, podia e devia conhecer já do mérito da causa.
Fazendo-o, elaborou sentença que considerou manifestamente improcedente o pedido indemnizatório deduzido nos autos por B. R. e M. F., em representação da sociedade extinta Y, – Construções e Imobiliária, Lda., por dano de “perda de chance processual”, e absolveu os réus J. M., E. P. e Companhia de Seguros “X Seguros, S.A” dos pedidos.

Inconformados com esta decisão, os autores dela interpuseram recurso, que foi recebido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos (art. 645º,1,a CPC), com efeito meramente devolutivo (art. 647º,1 CPC).
Terminam a respectiva motivação com as seguintes conclusões:

I. A sentença proferida pelo Tribunal a quo, julgou ser manifestamente improcedente o pedido indemnizatório deduzido nos autos pelos recorrentes, por dano de “perda de chance processual”, absolvendo os réus dos pedidos.
II. A sentença recorrida entendeu a inexistência de uma oportunidade de ganhar, consistente, plausível, que se haja perdido pela omissão cometida pelos primeiros réus, enquanto mandatários à data da sociedade “Y – Construções e Imobiliária, Lda”. Mas com todo o respeito, não é, exactamente, assim.
III. Quanto à natureza da responsabilidade do advogado, na execução do mandado que lhe é conferido, conforme se refere no Acórdão desta Relação de 23/02/2010, na Apelação n.º 8/04.7TBEPS.G1, relatado pela Desembargadora Eva Almeida, “uns sustentam que ela é de natureza contratual, outros que ela é de natureza extracontratual e ainda há quem conceba que essa responsabilidade é de natureza mista, concorrendo ambas as responsabilidades (contratual e extracontratual) havendo que determinar, em cada caso concreto, qual o regime jurídico a adoptar”.
IV. Seja qual for o entendimento que se tenha das posições indicadas, estando em causa a inexecução ou execução defeituosa do mandato a responsabilidade dos primeiros réus é de natureza contratual.
V. Ora, tratando-se de uma responsabilidade contratual, existe uma presunção de culpa, incumbindo ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação, não procede de culpa sua (art.º 799.º n.º 1 Cód. Civil).
VI. Os primeiros réus redigiram e apresentaram junto da Exma. Administradora de Insolvência, uma petição / reclamação de créditos no valor de € 265.000,00 euros, que tinha subjacente um crédito decorrente do valor de sinal e princípio de pagamento entregue no âmbito de contrato promessa de compra e venda, e desde a outorga do referido contrato entrou na posse dos prédios prometidos vender.
VII. Os primeiros réus, não alegaram nem reclamaram na sua reclamação de créditos remetida à Administradora de Insolvência, o direito de retenção sobre os dois imóveis, com base no facto, de existir um contrato – promessa e a tradição dos dois imóveis e das obras realizadas.
VIII. A omissão dos primeiros réus faz precludir a possibilidade de os recorrentes fazerem valer os seus direitos perante a Administradora da Insolvência, constitui uma actuação que fica aquém do padrão legalmente exigível. Senão vejamos;
IX. E, contrariamente ao decido na douta sentença, o requerimento de reclamação de créditos vincula o próprio credor que a apresenta.
X. A correcta identificação e quantificação dos créditos na reclamação pode fazer a diferença no valor a receber. E, por outro lado, a não identificação correcta das garantias de que beneficiam os créditos pode fazer a diferença entre obter o pagamento total do crédito (100%) e não obter nenhum pagamento (0%).
XI. Em absoluto remate: o reconhecimento do direito de retenção pelo promitente comprador não depende da verificação, por sentença, dos respectivos pressupostos, não sendo exigível que esteja munido de título executivo nem a apresentação daquela sentença, sendo inteiramente admissível que o reconhecimento do crédito e da garantia alegadas seja feita, no contexto da acção de insolvência, no processo de verificação e graduação de créditos – cfr. Ac. da RP de 06.11.12.
XII. A graduação de créditos é especial para o bem objecto da garantia e liquidado esse bem, será feito o pagamento dos credores garantidos de harmonia com a prioridade das respectivas garantias (art.º 140.º n.º 2 do CIRE).
XIII. Assim, contrariamente ao interpretado na douta sentença a correcta identificação das garantias e dos créditos na “Reclamação de Créditos”, consubstancia a omissão do cumprimento de um dever de agir a que o advogado está vinculado ex. contractu, omissão que dá lugar ao dever de indemnizar quando há, por força da lei ou do negócio jurídico, o dever de praticar o acto omitido (art.º 486.º do Cód. Civil).
XIV. No domínio da responsabilidade contratual, a culpa dos réus advogados, concretizada na alegada apresentação da reclamação de créditos com a omissão do direito de retenção, e a natureza do crédito em vez de reclamado como comum, mas garantido e ou privilegiado, resultante do direito de retenção, está processualmente adquirida sem necessidade de qualquer indagação ou julgamento, por ser presunção juris tantum (art.º 799.º n.º 1 do Cód. Civil).
XV. Em consequência de tal conduta, grosseiramente negligente dos Advogados réus, viu a sociedade extinta, gorada a possibilidade de satisfazer o seu crédito na massa insolvente, perdendo a chance naquele processo de reaver aquilo a que tinha direito.
XVI. Os Advogados réus admitiram a sua negligência, quando accionaram uma acção de verificação ulterior de créditos. Tentaram os Advogados réus, corrigir o lapso cometido, sem sucesso.
XVII. Para o Tribunal a quo não tendo ocorrido aquela omissão por parte dos Advogados réus (não alegação do direito de retenção e a natureza do crédito de comum para crédito garantido), não havia uma probabilidade séria da entidade reclamante ver o seu crédito ressarcido.
XVIII. O Tribunal a quo não pode afirmar a provável procedência do crédito ser ressarcido, como também não pode afirmar a sua provável improcedência, do crédito ser ressarcido.
XIX. Da conjugação do facto dado como provado sob o item 9 da sentença: ”Por sentença proferida a 18 de Fevereiro de 2014 (acção de verificação ulterior de créditos, por apenso ao aludido processo de insolvência) transitada em julgado a 5 de Março de 2017, na sequencia de contestação da massa insolvente e do “Banco de Investimento Imobiliário A, S.A.”, que sustentaram que a aqui autora já havia deduzido reclamação de créditos nos termos do art.º 128.º do CIRE, no valor de € 265.000,00 euros (…)”, ao intentarem uma acção de verificação ulterior de créditos pretendiam os Advogados réus “extinguir” a reclamação de créditos anteriormente apresentada.
XX. Tal procedimento, por não estar com o disposto sob o artigo 100.º do n.º 1, al. a) e b) do EOA, que determina que o advogado deve dar a sua opinião conscienciosa sobre o merecimento do direito ou pretensão que o cliente invoca e estudar com cuidado e tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade, pode afirmar-se existir uma forte probabilidade de procedência da acção (reclamação de créditos) que a credora reclamante devia ter apresentado, fazendo-se representar para tanto, por dois Advogados especialistas.
XXI. Os Advogados réus ao não terem apresentado a reclamação de créditos com a devida natureza do crédito – natureza garantido/privilegiado resultante do direito de retenção que a credora reclamante gozava - representa uma perda de oportunidade de a credora reclamante ver a sua pretensão apreciada (perda de chance).
XXII. A perda de chance é um dano autónomo que integra o património da recorrente, passível de indemnização designadamente quanto à frustração das expectativas que fundadamente nela se filiaram, irremediavelmente comprometidas em resultado do acto lesante.
XXIII. A decisão recorrida julgou que a credora reclamante não tinha condições de ver o seu crédito reconhecido, ao invés de julgar a omissão dos réus advogados, concretizada na alegada apresentação da reclamação de créditos não coincidente com a realidade, sabendo de antemão que a reclamação de créditos vincula o próprio credor que o apresenta.
XXIV. Ademais, e para corroborar a sua decisão, entendeu o Tribunal a quo que, a credora reclamante no processo de insolvência, não se integra no conceito de consumidor.
XXV. Por se afigurar com interesse para a decisão, o tribunal a quo também devia ter dado como assentes os seguintes factos alegados:
a) A credora reclamante fez obras no imóvel de modo a torná-lo habitável;
b) O imóvel foi utilizado para fins habitacionais;
c) A credora reclamante pretendeu adquirir os imóveis para uso próprio e não com o escopo de revenda.
XXVI. Os referidos imóveis foram cedidos à sócia gerente e irmã da promitente compradora.
XXVII. E, que nos dois imóveis viviam os agregados familiares da sócia - gerente e irmã, e onde estas tinham a sua morada de família.
XXVIII. A força probatória do fim a que se destinaram os imóveis, quer do supra aludido contrato promessa de compra e venda, como a sentença recorrida reconheceu e fixou (dos Factos Provados in fine), quer ainda do sentido e alcance do caso julgado decorrente dos processos n.º 2927/09.5TBBCL, 2.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Barcelos), em que era exequente A. C. & Cª, Lda (Ponto 2 a) dos Factos Provados), e Processo n.º 945/12.5BEBRG, da Unidade Orgânica 2 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (Ponto 2 b) dos Factos Provados), impõem e exigem que se dê como provado que os imóveis não se destinavam à sua actividade comercial, nem à revenda, mas para morada de família da sócia gerente da promitente compradora e para a irmã da sócia gerente.
XXIX. Ora, se o escopo do contrato promessa de compra e venda fosse a revenda pela promitente compradora, não se justificava contratar serviços de água, electricidade, gás, seguros e IMI (atenta a revenda ficaria isenta do pagamento de IMI por 3 anos – artigo 7.º do CIMT).
XXX. Salvo melhor opinião, estamos perante uma aquisição de dois bens imóveis, sem ser para fins profissionais, ou seja, feita pelo utilizador final, e não se destina a revenda.
XXXI. Este quadro preenche, o conceito de consumidor em sentido estrito, o que faz com que a sociedade extinta e promitente compradora tenha de ser vista como consumidora final.
XXXII. Em face da matéria apurada, é realmente clara a titularidade pela credora reclamante do direito de retenção alegado.
XXXIII. A questão que se suscitava era saber se os créditos reconhecidos como comuns, de acordo com a reclamação de créditos apresentada pelos réus Advogados, e a omissão da alegação do direito de retenção e a natureza do crédito de comum para crédito garantido/privilegiado, alteraria a probabilidade (séria) da entidade reclamante ver o seu crédito ressarcido.
XXXIV. Assim centrada a discussão no regime a aplicar, aos contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional, sinalizados, e nos quais tenha havido tradição da coisa -que se pretendem excluídos, da previsão típica do referido n.º 2 do art.º 106.º-, reconhecendo a controvérsia instalada e consequente dispersão das decisões dos nossos Tribunais, veio o STJ a proferir o acórdão uniformizador 4/2014, de 20 de Março de 2014, publicado no DR I-Série de 19 de Maio de 2014, fixando a seguinte doutrina: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos estatuídos no art.º 755.º, n.º 1, al. f) do Cód. Civil”.
XXXV. Atenta a formulação legal, a qualificação do sujeito como consumidor depende assim, essencialmente, da finalidade do acto de consumo, detendo tal qualidade aquele “que adquire um bem ou serviço para uso privado -uso pessoal, familiar ou doméstico na fórmula da al. a) do art.º 2.º da Convenção de Viena de 1980-, de modo a satisfazer as necessidades pessoais e familiares, mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa” – cfr - Prof. Calvão da Silva, “Compra e venda de coisas defeituosas”, Almedina, 4.ª edição, pág. 118. (sublinhado nosso).
XXXVI. O acórdão da Relação do Porto de 11.10.2017 - Proc. 8892/13.7TBVNG-B.P1, in www.dgsi.pt. Na mesma base de dados, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.5.2016, proc. 3374/07.9TBGMR-C.G2.S1 e da Relação do Porto de 27.11.2017, proc. 909/15.7T8AMT-A.P1. - entende a qualidade de consumidor no sentido de estarmos perante um utilizador final que utiliza o imóvel prometido comprar para uso próprio e não com escopo de revenda.
XXXVII. Sendo esta a noção que perfilhamos, debrucemo-nos agora sobre a matéria de facto elencada em ordem a dar resposta à questão que nos ocupa.
XXXVIII. Atento os fins a que se destinam os imóveis, fixando-se nos imóveis a residência da sócia-gerente da credora reclamante e a irmã desta, sendo o fim a que se destinaram os imóveis, para identificar como consumidor final.
XXXIX. Com efeito, inscrevendo-se a pretendida aquisição pela credora reclamante para a uso particular, porque nos dois imóveis, realizaram-se obras de acabamento, tendo em vista conferir-lhes condições de habitabilidade, após nos imóveis passaram a residir a sócia – gerente da credora reclamante e o seu agregado familiar e no outro imóvel, a irmã desta e o seu agregado familiar.
XL. A verdade é que o apurado uso que foram dado aos imóveis, quer a sócia gerente quer a sua irmã, deram aos imóveis prometidas vender, atendendo às considerações feitas quanto ao acto/relação de consumo (e momento a atender para efeitos da sua caracterização como tal), é de qualificar, aqui, como uso privado, permitindo que lhes seja reconhecida a qualidade de consumidores.
XLI. Perante o quadro descrito não podem subsistir dúvidas de que a credora reclamante exerceu actos possessórios, com as características exigidas para a constituição do direito de retenção, de forma duradoura e consistente.
XLII. Os Advogados réus na reclamação de créditos não invocando o direito de retenção de que era detentora a credora reclamante, atento o incumprimento do contrato promessa de compra e venda e a posse, perderam na graduação de créditos de um direito.
XLIII. Direito esse, que lhe permitia de usufruir de um direito real de garantia, cuja finalidade “é a realização, pelo titular, de certo valor pecuniário à custa da coisa sobre a qual incide”, sofreram por isso, um prejuízo e dano.
XLIV. Ao ver preterido o seu crédito reconhecido e, como tal, graduado, com o direito de retenção, foi-lhe preterido o direito de ser pago, pelo produto da venda dos bens a que tal direito respeita, com preferência aos outros credores.
XLV. Constitui um "ilícito" nos termos da responsabilidade civil profissional, porquanto violaram uma norma jurídica, em defesa da sua constituinte, a sociedade extinta.
XLVI. O facto ilícito que os recorrentes imputam aos Advogados réus, deriva de terem incumprido a formalidade da reclamação de créditos.
XLVII. O crédito da credora reclamante ao ser considerado como crédito comum, significou não ser ressarcida dos valores pagos e ainda, perdeu um direito real das coisas prometidas vender.
XLVIII. Existe como é notório, um prejuízo avultado para a credora reclamante: da perda monetária e a perda dos imóveis.
XLIX. Os recorrentes não podem concordar com a decisão do Tribunal a quo, nem com a leitura, a valorização dos factos e errada apreciação da prova produzida e errada determinação das normas aplicáveis, assim como errónea subsunção dos factos ao direito.
L. Pelo que deverá a sentença recorrida ser revogada e substituída por Acórdão que condene as rés solidariamente em todos os pedidos formulados.

A ré X apresentou contra-alegações, findando com as seguintes conclusões:

1. O presente recurso vem interposto da douta Sentença proferida no âmbito do processo supra identificado, a qual julgou totalmente improcedente a pretensão dos Recorrentes, tendo absolvido todos os Réus de todos os pedidos deduzidos.
2. Muito embora não concordem os Autores com o teor da douta sentença, a aqui Ré entende que a mesma não merece qualquer censura, seja a que título for.
3. Refira-se primeiramente que da matéria factual carreada para os autos não se verifica qualquer anti-juridicidade na actuação profissional dos Réus Advogados, quando representaram a sociedade Y – Construções e Imobiliária, Lda, no âmbito do processo de insolvência n.º 3456/12.5TBBCL.
4. Na verdade, no âmbito da autonomia técnica dos Réus, enquanto Advogados, estes entenderam que a sociedade Y, Lda. não preenchia os requisitos que permitissem a sua caracterização enquanto “consumidor”.
5. Tendo concluído, nessa sequência, que a Y não podia beneficiar do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, o qual alterou o conteúdo do artigo 755.º do CC, o qual se tem a sua razão de ser na protecção dos adquirentes finais, ou consumidores, no mercado da habitação.
6. Ora, tal opção técnico-jurídico insere-se plenamente na autonomia técnica do Advogado enquanto mandatário forense, sendo certo que o advogado é “livre de qualquer pressão […] abstendo-se de negligenciar a deontologia profissional no intuito de agradar ao seu cliente…”, cfr, artigo 89.º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
7. Pelo que se deve concluir que os Réus Advogados analisaram a questão que lhes foi colocada pela sociedade Y, Lda com o devido cuidado e diligência, tendo a reclamação de créditos sido submetida à Sra. Administradora de Insolvência com o cumprimento de todas as formalidades e tempestivamente.
8. Concluindo-se pela inexistência de culpa e ilicitude na actuação dos Réus Advogados.
9. Ademais, os AA. fundam a sua pretensão numa verdadeira impossibilidade!
10. Com efeito, alegam os AA. que por não ter sido reclamado o crédito de € 251.316,25 como privilegiado que viram o seu crédito graduado como comum, sendo que do rateio não puderam satisfazer o referido crédito.
11. Porém, mesmo que o crédito tivesse sido caracterizado pelos Réus Advogados como privilegiado (o que não podiam fazer), o resultado seria exactamente o mesmo.
Senão vejamos,
12. Refere a sentença que “evolução legislativa consagrou este mecanismo, do direito de retenção a favor dos beneficiários da promessa de transmissão ou de constituição de direito real com tradição da coisa, como meio de tutela do consumidor, normalmente mais débil, perante um credor hipotecário, por regra, bem mais forte. Por isso, tem sido defendido que, embora a letra da lei não faça essa precisão, essa disposição legal é, materialmente, uma norma de tutela do consumidor, o que permite restringir ao consumidor final a aplicabilidade do direito de retenção caracterizado pelo artigo 755.º, n.º, al. f)”.
13. Sendo certo que o próprio Supremo Tribunal de Justiça, através do AUJ n.º 4/2014 decidiu que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil”.
14. E é neste erro que os AA. continuam a laborar, porquanto tentam incessantemente que seja reconhecido à extinta sociedade Y – Construções e Imobiliária, Lda. o estatuto de consumidor.
15. Ignorando que a referida sociedade tinha como objecto social a construção civil, empreitadas de obras públicas e a compra, venda e permuta de imóveis, pelo que a celebração do contrato-promessa de compra e venda do referido imóvel se insere claramente no objecto social da sociedade Y, reforçando ainda mais a sua natureza de comerciante e não de consumidor.
16. Na verdade, os AA. estão a reclamar para a sociedade comercial a titularidade de direitos e obrigações que são inseparáveis da personalidade singular, isto é, a susceptibilidade de uso de um imóvel para habitação, é algo que, por força da natureza, apenas é possível a pessoas singulares e nunca a pessoas colectivas.
17. Além disso, “não basta qualquer acto ou omissão do advogado no exercício do mandato que lhe foi cometido pelo cliente para que surja a obrigação de indemnizar os prejuízos que este diz ter sofrido”, cfr. Ac. Do STJ de 28-09-2006, proc. n.º 06B3243.
18. Ainda assim, e uma vez que estamos no âmbito do dano de privação de uso, não basta o estabelecimento do nexo de causalidade, pelo que será sempre necessário considerar o grau de probabilidade do lesado sair vitorioso, caso a conduta (alegadamente lesiva) se não tivesse verificado.
19. Sendo certo que os AA. nunca teriam hipótese de estabelecer tal juízo de probabilidade, pois, como se disse, tendo em consideração a doutrina e jurisprudência mais relevantes, o direito de retenção enunciado no artigo 755.º, n.º 1, al. f) do CC, aproveita apenas a consumidores finais e nunca a sociedades comerciais, muito menos a sociedades que se dedicam ao mercado imobiliário, cujo escopo é precisamente a compra e venda de imóveis.
20. E foi essa mesma conclusão que o STJ tem alcançado sucessivamente.
Senão vejamos,
21. A propósito do AUJ de 3/10/2017, no âmbito do processo n.º 212/11.1T2AVR-B.P1.S1, considerou a mais alta instância jurisdicional que “do conceito de consumidor inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua actividade profissional de comerciante de imóveis”, negrito e sublinhado nossos.
22. Pelo que, considerada a doutrina e a jurisprudência que se expuseram, não sobram dúvidas de que os Causídicos actuaram diligentemente e que mesmo que tivessem requerido a graduação do crédito de € 251.316,25 como privilegiado, só muito remotamente haveria sucesso nessa pretensão.
23. Pelo que não se verifica qualquer juízo de probabilidade póstuma entre a alegada ilicitude cometida pelos Réus Advogados.
24. Sendo certo que “se a conduta violadora do dever do mandatário não trouxer qualquer alteração à situação dos autores, não implica perda dessa chance, não sendo causa adequada de qualquer dano, então não tem cabimento a indemnização”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 02-02-2017, sublinhado e negrito nosso.
25. Nessa medida, e considerando tudo quanto se expôs, não viola a douta sentença recorrida qualquer norma. Pelo contrário, decidindo-se nos termos em que apelam os Autores, o que não se admite, ficarão irremediavelmente violados, entre outras normas e princípios do ordenamento jurídico, os artigos 442.º, n.º 2, 483.º, 563.º, 733.º, 755.º, n.º al. f), todos do CC e artigos 47.º, n.º 4, al. a) e 128.º, ambos do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando as referidas conclusões, as questões a decidir consistem em saber se:

a) devem ser aditados factos à matéria de facto provada
b) estão reunidos os requisitos para os réus serem condenados a indemnizar os autores

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. No ano de 2011 os réus, Dr. J. M. e Dra. E. P., no exercício da sua actividade profissional de Advogados, foram contactados pela representante legal da sociedade Y – Construções Imobiliária, Lda.”, M. F., para que patrocinassem a sociedade.
2. No uso do mandato forense que foi conferido a ambos os Advogados, foram deduzidos embargos de terceiro em nome da “Y – Construções e Imobiliária, Lda.”, NIPC ………:
a) no âmbito da execução n.º 2927/09.5TBBBCL, então pendente no 2.º juízo cível de Barcelos, em que era exequente “A. C. & C.ª, Lda.” e executada a “J. A. – Sociedade Imobiliária, Lda.”, onde se alegou estarem penhorados dois imóveis pertença da executada, mas que haviam sido objecto de contrato-promessa de compra e venda, com tradição, a favor da embargante;
b) no âmbito da execução fiscal n.º 945/12.5BEBRG, então pendente na Unidade Orgânica 2 do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em que era exequente “A. C. & C.ª, Lda.” e executada a “J. A. – Sociedade Imobiliária, Lda.”, onde se alegou estarem penhorados dois imóveis pertença da executada, mas que haviam sido objecto de contrato-promessa de compra e venda, com tradição, a favor da embargante;
2.1- Os embargos foram julgados procedentes.
3. A empresa, J. A. – Soc. Imobiliária, Lda. foi declarada insolvente em processo de insolvência nº 3456/12.5TBBCL, do 1º Juízo cível do Tribunal Judicial de Barcelos e actualmente, a correr termos na 2ª secção de comércio J3 da Instância Central de Vila Nova de Famalicão (Comarca de Braga).
4. Os Advogados aqui réus redigiram e apresentaram junto da Exma. Administradora de Insolvência, no aludido processo, uma petição / reclamação de créditos no valor de € 265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros), que tinha subjacente um crédito alegadamente decorrente de um valor de sinal e princípio de pagamento entregue no âmbito de contrato promessa de compra e venda celebrado entre a empresa “J. A. - Sociedade Imobiliária, Lda.” e a sociedade extinta a 22 de Novembro de 2008, que teve por objecto as verbas n.º 1 e 2 do inventário de bens móveis feito nos termos do art. 153.º do CIRE (v. anexo I – Inventário de fls. 29 e 29/verso e lista de créditos reclamados de fls. 30 a 31/verso).
5. Por documento escrito denominado “contrato-promessa de compra e venda”, datado de 22 de Novembro de 2008, a “J. A. – Sociedade Imobiliária, Lda.”, na qualidade de primeira outorgante ou promitente vendedora, declarou prometer vender, livre de quaisquer ónus, encargos e responsabilidades à segunda outorgante ou promitente compradora, a “Y – Construções Imobiliária, Lda.”, os dois prédios urbanos, vivendas destinadas a habitação, sitos no Lugar …, na freguesia de …, do concelho de Barcelos, prédios estes descritos na Conservatória do Registo Predial sob os n.ºs … e … da freguesia de … e inscritos matriz predial urbana sob os arts. … e …, que esta declarou prometer comprar por €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), sendo €175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros) por cada prédio;
5.1. Nesse mesmo documento ficou consignado (cláusula terceira): “a) Com a assinatura do presente contrato-promessa, a Segunda Outorgante entregará à primeira Outorgante, por conta daquele preço e a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros), do que é dada quitação com o presente documento; b) O remanescente do preço, no valor de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), será pago no acto da escritura definitiva de compra e venda dos prédios urbanos descritos na Cláusula 1ª”;
5.2. E no mesmo ficou ainda consignado (cláusula décima): “3. A Segunda Outorgante nesta data entra na posse dos prédios prometidos vender, tendo recebido as respectivas chaves. 4. A partir desta data, correm por conta da Segunda Outorgante todas as despesas inerentes aos prédios, designadamente água, electricidade, gás, seguros, IMI.”(v. contrato-promessa de fls. 24 a 25/verso)”.
6. A 20 de Dezembro de 2016 o aqui Ilustre Mandatário da Y – Construções Imobiliária, Lda., foi notificado nessa mesma qualidade pelo Serviço de Finanças de Barcelos, para que procedesse à liquidação, em 10 dias, do imposto municipal sobre as transmissões onerosas (IMT), calculado no valor de €4.520,00 (quatro mil quinhentos e vinte euros) por cada prédio, acrescido do valor de €2.882,90 (dois mil oitocentos e oitenta e dois euros e noventa cêntimos) de juros compensatórios, em face da celebração do aludido contrato-promessa com tradição a 28.11.2008. (v. ofício/notificação de fls. 35 a 36. dos autos).
7. O crédito referido em 4. no valor de € 265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros) veio a ser admitido, verificado e graduado como comum pela Sra. Administradora de Insolvência;
7.1 Por sentença proferida a 8 de Maio de 2014, transitada em julgado a 27 de Maio de 2014, no respectivo apenso do processo de insolvência, foi homologada a lista dos credores reconhecidos, sem quaisquer alterações quanto à aqui autora, e foi o mesmo crédito graduado, quanto aos dois imóveis da seguinte forma:
A) quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 1 do auto de apreensão:
-o reconhecido à Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de €1.105,56 (mil, cento e cinco euros e cinquenta e seis cêntimos);
-o reconhecido ao “Banco de Investimento Imobiliário A, S.A”, no montante de € 677.578,77 (seiscentos e setenta e sete, quinhentos e setenta e oito euros e setenta e sete cêntimos);
-o reconhecido à Segurança Social, no montante de € 3.103,49 (três mil, cento e três euros e quarenta e nove cêntimos);
-os demais créditos reclamados, que são comuns, rateadamente; - o crédito subordinado.
B) quanto ao imóvel descrito sob a verba n.º 2 do auto de apreensão:
-o reconhecido à Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de €1.178,19 (mil, cento e setenta e oito euros e dezanove cêntimos);
-o reconhecido ao “Banco de Investimento Imobiliário A, S.A”, no montante de € 677.578,77 (seiscentos e setenta e sete, quinhentos e setenta e oito euros e setenta e sete cêntimos);
-o reconhecido à Segurança Social, no montante de €3.103,49 (três mil, cento e três euros e quarenta e nove cêntimos);
-os demais créditos reclamados, que são comuns, rateadamente; - o crédito subordinado.
(v. lista de créditos reclamados de fls. 30 a 31/verso, certidão de fls. 37 a 41/verso, onde consta entre o mais a mesma lista, o auto de inventário e a sentença de verificação e graduação de créditos proferida a 8.5.2014, que faz fls.43 a 47).
8. Os Advogados réus não invocaram direito de retenção a favor da autora no âmbito do citado processo de insolvência.
9. Por sentença proferida a 18 de Fevereiro de 2014 (acção de verificação ulterior de créditos, por apenso ao aludido processo de insolvência), transitada em julgado a 5 de Março de 2017, na sequência de contestação da massa insolvente e do “Banco de Investimento Imobiliário A, S.A”, que sustentaram que a aqui autora já havia deduzido reclamação de créditos nos termos do art. 128.º do CIRE, no valor de €265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros), decorrente do pagamento do aludido sinal e princípio de pagamento do preço fixados no contrato-promessa, que indicou como comum, foi julgada improcedente a acção, considerando-se precludido o direito de invocar a retenção, e absolveram-se os réus massa insolvente e os demais credores da mesma dos pedidos formulados.
10. Foi realizada a venda dos bens arrolados na massa insolvente, tendo os dois imóveis objecto do aludido contrato-promessa sido adjudicados ao credor hipotecário “Banco de Investimento Imobiliário A, S.A”, a verba n.º 1 pelo valor de €129.000,00 (cento e vinte e nove mil euros) e a verba n.º 2 pelo valor de €124.600,00 (cento e vinte e quatro mil e seiscentos euros);
a. A 28 de Outubro de 2015 foi lavrada a escritura de compra e venda dos aludidos imóveis a favor do credor hipotecário;
b. A liquidação do activo da insolvente, que corre termos sob o apenso B do processo, aguarda o desfecho da acção executiva n.º 25928/17.5T8PRT, do Juízo de Execução do Porto – J5. (v. escritura de fls. 49/verso a 53 e a certidão de fls. 53 ).
11. Foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil profissional entre a “X Seguros Gerais, S.A.”, e a Ordem dos Advogados de Portugal, titulado pela apólice de seguro n.º .................58/2;
a. Nos termos das condições particulares que regem tal apólice de seguro, são segurados os “Advogados com inscrição em vigor na Ordem dos Advogados que exerçam a actividade em prática individual ou societária, por dolo, erro, omissão ou negligência profissional”;
b. Tal apólice integra a cobertura dos riscos inerentes à actividade segura, no caso, o exercício da advocacia, conforme regulado no estatuto da Ordem dos Advogados e garante o eventual pagamento de indemnizações resultantes da responsabilização civil dos segurados, em decorrência de erros e/ou omissões profissionais incorridas no exercício da sua actividade;
c. O limite indemnizatório máximo contratado para o período de vigência/ “período seguro” (0,00 horas do 01 de Janeiro de 2016 às 0,00 de 1 de Janeiro de 2017) da apólice foi fixado em € 150.000,00, sendo a esta quantia, deduzida a correspondente franquia contratual aplicável, no valor, por sinistro, de € 5.000,00 (v. fls.75 a 86, contestação da ré seguradora).
12. Os Advogados réus tinham a sua inscrição em vigor na Ordem dos Advogados aquando da propositura da presente acção.

IV
Conhecendo do recurso.

1. Em primeiro lugar, devemos averiguar se deve ser introduzida alguma alteração à matéria de facto provada.

Os recorrentes afirmam que “por se afigurar com interesse para a decisão, o tribunal a quo também devia ter dado como assentes os seguintes factos alegados:

a) A credora reclamante fez obras no imóvel de modo a torná-lo habitável;
b) O imóvel foi utilizado para fins habitacionais;
c) A credora reclamante pretendeu adquirir os imóveis para uso próprio e não com o escopo de revenda.

Isto porque os referidos imóveis foram cedidos à sócia-gerente e irmã da promitente compradora, e neles viviam os agregados familiares da sócia - gerente e irmã, e onde estas tinham a sua morada de família.
Vejamos: os factos em causa estão alegados nos arts. 10º, 19º, 25º, 26º, 34º, 35º, e 39º da petição inicial. E estão todos eles impugnados pela contestante X (art. 36º da sua contestação), e também estão impugnados pelo contestante J. M. (art. 161º da sua contestação). Assim, é óbvio que tais factos não poderiam, como não foram, dados como provados.
Questão diferente é a de saber se tais factos seriam relevantes para a decisão, o que, se fosse o caso, poderia levar a mandar prosseguir o processo para a audiência de julgamento para ser produzida prova sobre os mesmos.
Porém, os recorrentes não o pedem,
E, mesmo que o fizessem, entendemos que tal não se justificaria, porque consideramos que tais factos não são necessários para a decisão. Como veremos supra, na apreciação do aspecto jurídico da causa.
Assim, esta parte do recurso improcede.

2. A solução jurídica para a causa

O enquadramento jurídico dado pela sentença recorrida ao presente caso, nos seus traços largos, não é questionado pelos recorrentes. A discordância surge apenas no concreto ponto da existência ou não do alegado direito de retenção.
No caso em apreço, ainda que o Tribunal pudesse imputar os valores indicados que, no entender dos autores, correspondem ao valor da sua oportunidade perdida, ou à denominada “perda da chance”, por reporte ao valor do pedido e ao valor do activo apreendido/liquidado, abatido o passivo (incluindo as custas e outros créditos com preferência sobre o da autora), sempre a presente acção estaria condenada ao total fracasso.

Podemos acompanhar a sentença recorrida quando afirma que “nos termos do art. 483.º do Código Civil, para que seja gerada uma obrigação de indemnizar em decorrência da responsabilidade civil, é necessário que os prejuízos verificados na esfera patrimonial dos lesados, estejam directamente relacionados com a conduta lesiva, devendo haver um nexo de causalidade adequado entre o acto ilícito (e culposo) e os prejuízos sofridos. Nestes termos, para que surja uma obrigação de indemnizar em decorrência daquela responsabilidade (seja ela de natureza contratual ou extracontratual), deverão estar cumulativamente preenchidos os seguintes pressupostos: a) o facto ou acto humano voluntário, por acção ou omissão; b) a ilicitude do mesmo; c) a imputação do facto ao lesante ou agente, ou seja a sua culpa (sendo a culpa apreciada em abstracto, na falta de critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos arts. 487.º, nº. 2 e 799.º, n.º 2 do Código Civil); d) a ocorrência de um dano ou lesão; e por fim, e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Acresce que, nos termos do art. 563.º do Código Civil, “a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”.
A pretensão indemnizatória deduzida inscreve-se no âmbito de um contrato de mandato celebrado entre a sociedade “Y” e o 1.º réu e a 2.ª ré, na qualidade de Advogados”.
O contrato em causa rege-se pelas normas gerais constantes do Código Civil e pelo regime especial do Estatuto da Ordem dos Advogados vigente à data da sua celebração (no caso, o aprovado pela Lei n.º 12/2010, de 20 de Novembro).
Por força do estatuto e da regulamentação próprios da actividade profissional dos mandatários forenses, o Advogado, no cumprimento do mandato forense, está sujeito, para além de outras obrigações, ao dever específico constante do art. 95.º, n.º 1, al. b) do referido Estatuto de «tratar com zelo a questão de que seja incumbido, utilizando para o efeito todos os recursos da sua experiência, saber e actividade».
Resumindo, como se sumariza no Acórdão do STJ de 17.5.2018 (Maria da Graça Trigo), o contrato de mandato forense, com atribuição de poderes de representação, é regulado pelo Estatuto da Ordem dos Advogados (EOA), aplicando-se subsidiariamente o regime do contrato de mandato civil dos arts. 1157º e segs. do Código Civil. Assim, além das obrigações gerais do mandatário enunciadas no art. 1161º do CC, deve ter-se em especial consideração as obrigações específicas resultantes do EOA, designadamente o dever de praticar os actos de execução do mandato com zelo e diligência, sendo que o não cumprimento de tais deveres pode gerar responsabilidade civil obrigacional.
Até aqui não há qualquer controvérsia.
Assim como é também aceite pacificamente que entre as obrigações do Advogado não está a de ganhar a causa, mas apenas a de defender os interesses do mandante diligentemente, segundo as regras da arte, com o objectivo de vencer a lide, visto tratar-se de uma obrigação de meios, e não de resultado.
Por outro lado, é também incontroverso que o incumprimento dos referidos deveres por parte do Advogado constituído pode implicar responsabilidade civil contratual pelos danos daí decorrentes para o mandante (cfr. autores citados na sentença recorrida).
Os recorrentes chamam a atenção, nesta parte, e com razão, para que tratando-se de uma responsabilidade contratual, existir uma presunção de culpa, incumbindo ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação, não procede de culpa sua (art. 799º,1 CC).
Como sabemos, a pretensão indemnizatória dos autores assenta no facto de os réus, Advogados, não terem invocado a existência de direito de retenção a seu favor sobre os dois imóveis apreendidos para a massa, no âmbito da reclamação de créditos apresentada no processo de insolvência da “J. A. – Sociedade Imobiliária, Lda.”, sociedade que lhe prometeu vender esses imóveis e que, na qualidade de promitente vendedora, lhe transmitiu a posse deles na data da celebração do contrato, isto é, a 22 de Novembro de 2008, em troca do recebimento de €265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento do preço.
É esta não invocação do direito de retenção, na reclamação de créditos referida, que configura, para os autores, o acto ilícito e culposo do qual decorreram os prejuízos que os recorrentes pretendem ver ressarcidos. Com efeito, alegam, o crédito reclamado foi verificado e graduado como crédito comum, e consequentemente, nada receberam nesses autos, em fase de liquidação.
Estamos perante o que a sentença recorrida designa, segundo a terminologia corrente na jurisprudência e na doutrina, de perda de oportunidade ou “perda de chance” processual, traduzida num dano aferível pela probabilidade séria e real de a pretensão dos autores vir a ser reconhecida, em sede de processo de insolvência, nomeadamente de o seu crédito ser reconhecido e graduado como garantido, por força do direito de retenção, e, consequentemente, de ser pago antes dos demais credores da massa.
A sentença recorrida segue jurisprudência sedimentada do STJ (Acórdãos do STJ de 09.07.2015 no processo nº 5105/12.2TBSXL.L1.S1); de 30.11.2017, no processo n.º 12198/14.6T8LSB.L1.S1; de 17.05.2018, no processo n.º 236/14.7TBLMG.C1.S1; e de 15.11.2018, no processo n.º 296/16.6T8GRD.C1.S2), entendendo que para se fazer operar tal responsabilidade, impõe-se, perante cada hipótese concreta, num primeiro momento, averiguar da existência, ou não, de uma probabilidade, consistente e séria (ou seja, com elevado índice de probabilidade), de obtenção de uma vantagem ou benefício (o sucesso da acção ou do recurso) não fora a chance perdida, importando, para tanto, fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento”, atentando no que poderia ser considerado como altamente provável pelo tribunal da causa. E, num segundo momento, caso se conclua afirmativamente pela existência de uma perda de chance processual e pela verificação de todos os demais pressupostos da responsabilidade contratual (ocorrência do facto ilícito e culposo e imputação da perda de chance à conduta lesiva, segundo as regras da causalidade adequada), proceder à apreciação do quantum indemnizatório devido, segundo a teoria da diferença, nos termos do art. 566º,2 CC, lançando-se mão, em última instância, do critério da equidade ao abrigo do n.º 3 deste mesmo artigo.

Mais recentemente, podemos recorrer ao acórdão do STJ de 30 de Maio de 2019, relatado pelo Conselheiro Manuel Tomé Soares Gomes, no qual se pode ler:

“A possibilidade desse tipo de pretensão encontra suporte doutrinário e jurisprudencial, mormente no quadro actual da jurisprudência deste Supremo Tribunal.
Não obstante as divergências quanto à caracterização ou não da perda de chance como dano autónomo, não vemos que exista obstáculo a que essa perda de chance ou de oportunidade de obter uma vantagem ou de evitar um prejuízo, impossibilitada definitivamente por um acto ilícito, não possa ser qualificada como um dano em si, posto que sustentado num juízo de probabilidade tido por suficiente em função dos indícios factualmente provados. Assim, desde que se prove, desse modo indiciário, a consistência de tal vantagem ou prejuízo, ainda que de feição hipotética mas não puramente abstracta, terá de se reconhecer que ela constitui uma posição favorável na esfera jurídica do lesado, cuja perda definitiva se traduz num dano certo contemporâneo do próprio evento lesivo.
É certo que se poderá colocar a questão de saber se, em tais casos, estamos ainda em sede de identificação do dano ou já no plano do estabelecimento do seu nexo de causalidade, sabido como é que a definição da chance perdida terá de ser feita sempre na perspectiva do resultado final para que tende.
De todo o modo, uma coisa será, em primeira linha, identificar a própria perda de chance com consistência suficiente, em função do resultado final hipotético definitivamente perdido, para ser qualificada como dano emergente e certo, outra algo diferente será depois imputar essa perda à conduta lesiva, segundo as regras da causalidade adequada. Embora se reconheça que essa dicotomia seja discutível, se concentrarmos o juízo de probabilidade na aferição da consistência necessária à identificação do dano, já o estabelecimento do seu nexo de causalidade com a conduta ilícita se revela facilitado.
Nesse conspecto, o juízo de probabilidade sobre a consistência da perda de chance deve “ser encarado com grandes cautelas e apenas nas situações em que a privação da probabilidade de obtenção de uma vantagem se possa caracterizar, com mais evidência, como um dano autónomo”.
Problemático será saber quais os índices de probabilidade para o reconhecimento da perda de chance como dano autónomo, ou seja, se a própria probabilidade de vantagem perdida pode ser reconhecida como juridicamente relevante, não obstante a impossibilidade de demonstração do respectivo resultado final.
Assim, no campo da responsabilidade civil contratual por perda de chances processuais, em vez de se partir do princípio de que o sucesso de cada acção é, à partida, indemonstrável, parece mais curial ponderar, perante cada hipótese concreta, qual o grau de probabilidade segura desse sucesso, pois pode muito bem acontecer que o sucesso de determinada acção, à luz de um desenvolvimento normal e típico, possa ser perspectivado como uma ocorrência altamente demonstrável, à face da doutrina e jurisprudência então existentes.
Nessa base, será de aceitar que uma vantagem perdida por decorrência de um evento lesivo, desde que consistente e séria, ou seja, com elevado índice de probabilidade, possa ser qualificada como um dano autónomo, não obstante a impossibilidade absoluta do resultado tido em vista.
De resto, a jurisprudência do STJ tem vindo a admitir a relevância de situações pontuais, desde que a prova permita, com elevado grau de probabilidade, ou verosimilhança, concluir que o lesado obteria certo benefício não fora a chance perdida. Isto mais não é do que admitir afinal o dano por perda de chance na base de um juízo de probabilidade elevado e que só poderá ser aferido em cada caso concreto. O que parece discutível é se deve ser feito de forma categorial ou se em função da espécie do caso, como propendemos a admitir.
Em suma, afigura-se razoável aceitar que a perda de chance se pode traduzir num dano autónomo existente à data da lesão e, portanto, qualificável como dano emergente, desde que ofereça consistência e seriedade, segundo um juízo de probabilidade suficiente, independente do resultado final frustrado.
Demonstrada assim essa espécie de dano, questão diferente será já a avaliação do quantum indemnizatório devido, segundo o critério da teoria da diferença nos termos prescritos no artigo 566º, nº 2 do CC. Será também neste plano de avaliação que se poderá lançar mão, em última instância, do critério da equidade ao abrigo do n.º 3 do mesmo normativo, o qual não pode, pois ser utilizado em sede de determinação da própria consistência da perda de chance.
No caso de perda de chances processuais, como é a tratada nos presentes autos, a primeira questão está em saber se o hipotético sucesso do desfecho processual, decorrente do recurso que o R. deixou de interpor, assume um padrão de consistência e de seriedade que, face ao estado da doutrina e jurisprudência se revela suficientemente provável para o reconhecimento do dano.
Para tanto, importa fazer o chamado “julgamento dentro do julgamento” no sentido da solução jurídica altamente provável que o tribunal da acção em que a parte ficou prejudicada viesse a adoptar.
O ónus de prova de tal probabilidade impende sobre o lesado, como facto constitutivo que é da obrigação de indemnizar (art.º 342.º, n.º 1, do CC)”.

Podemos então avançar para o concreto.
Recordando: na perspectiva dos autores, como os Advogados não invocaram o direito de retenção sobre os imóveis em causa, e nas quais a sociedade realizou obras “para que os imóveis tivessem condições de habitabilidade para as suas sócias” (art. 19.º da pi), os créditos da sociedade Y. – Construções e Imobiliária, Lda., sobre a massa insolvente do vendedor foram graduados como comuns, não obtendo pagamento, o que lhe causou um prejuízo que computa nos presentes autos no valor global de €336.100,00 (cfr. arts. 20º).

Cumpre então fazer o chamado julgamento dentro do julgamento, o qual implica dar resposta a uma questão hipotética: se os Advogados ora réus tivessem, na sua reclamação de créditos, invocado a favor da sociedade mandante o direito de retenção, nos termos supra referidos, qual seria a probabilidade de obterem uma graduação do crédito que permitisse à sociedade mandante ser ressarcida ?

Como é pacífico, dentro do quadro clássico dos requisitos da responsabilidade civil, para que surja uma obrigação de indemnizar em decorrência daquela responsabilidade (seja ela de natureza contratual ou extracontratual), deverão estar cumulativamente preenchidos os seguintes pressupostos: a) o facto ou acto humano voluntário, por acção ou omissão; b) a ilicitude do mesmo; c) a imputação do facto ao lesante ou agente, ou seja a sua culpa (sendo a culpa apreciada em abstracto, na falta de critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, nos termos dos arts. 487º,2 e 799º,2 do Código Civil); d) a ocorrência de um dano ou lesão; e por fim, e) o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Estamos em crer que no caso sub judice, a especialidade da situação trazida aos autos (que envolve a prática de actos jurídicos e processuais no âmbito de um litígio pendente em Tribunal) leva a que dois desses requisitos surjam sobrepostos. Assim, a questão de saber se existe culpa do sujeito, ou seja, se ele pode e deve ser censurado por ter agido de determinada maneira (no caso, se os réus Advogados podem ser censurados por não terem invocado o direito de retenção quando reclamaram o crédito), está umbilicalmente ligada à questão de saber se existe nexo de causalidade entre o facto e o dano. E a aferição do nexo de causalidade, neste caso, é tarefa muito mais complexa do que é na generalidade dos casos em que está em análise a responsabilidade civil. É que, enquanto na esmagadora maioria dos casos, o nexo de causalidade envolve a realidade exterior, o mundo objectivo, e como tal a subjectividade subjacente ao raciocínio é sempre reduzida a um mínimo (1), aqui, ao invés, o nexo de causalidade envolve um raciocínio estritamente jurídico, o tal “julgamento dentro do julgamento” de que falam os citados Acórdãos do STJ. O que nos coloca numa situação bem mais “movediça”, não sendo o Direito uma ciência exacta, e sabendo que para uma mesma questão podem surgir na Doutrina e na Jurisprudência, duas, três ou quatro soluções divergentes, todas sustentadas em douta argumentação. Daí que a jurisprudência do Supremo fale, nesta matéria, em “elevado grau de probabilidade ou verosimilhança” que o lesado obteria certo benefício não fora a chance processual perdida” (Acórdão do STJ de 17.5.2018 – Maria da Graça Trigo).

Dito isto, vamos directamente à questão que separa os recorrentes dos recorridos: a eficácia ou não da invocação do direito de retenção, ou, dizendo de outra forma, saber se, caso os réus Advogados tivessem invocado o direito de retenção, o crédito da mandante teria, com elevada probabilidade, sido graduado em primeiro lugar, e, logo, satisfeito.
E antecipando já a solução, diremos que a resposta é necessariamente negativa.
Daí que assista inteira razão à sentença recorrida quando afirma que ”ainda que os seus Advogados tivessem alegado a existência de direito de retenção sobre os imóveis apreendidos, nomeadamente aquando da apresentação da reclamação de créditos no âmbito da insolvência da “J. A. – Sociedade Imobiliária, Lda.”, não havia uma probabilidade séria da sociedade Y. – Construções e Imobiliária, Lda., ver o seu crédito ressarcido, desde logo porque não lhe seria reconhecido esse mesmo direito”. E isto porque a sociedade “Y. – Construções e Imobiliária, Lda” não estava em condições de lhe ser reconhecido o direito de retenção sobre os imóveis.
Tudo gira à volta da questão de saber se havia uma elevada probabilidade de o referido direito de retenção, caso os Réus/Advogados o tivessem invocado, ser como tal reconhecido, com a consequente graduação do crédito reclamado em primeiro lugar.
Ora bem.
Gozava a sociedade Y – Construções Imobiliária, Lda” de direito de retenção, atentos os factos provados?
Esta é a questão central e, como seria de esperar, decompõe-se em várias partes, ou subquestões.
Começando por traçar uma breve noção desta figura jurídica, o direito de retenção está consagrado no art. 754º CC nos seguintes termos: “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.
Esta é a definição básica da figura em causa. Mas interessa-nos agora um dos casos especiais previstos no art. 755º,1,f CC: gozam ainda do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º”.
Vê-se pois que o direito de retenção consiste na faculdade de o detentor de uma coisa móvel ou imóvel não a entregar a quem lha pode exigir, enquanto não cumprir a obrigação a que está adstrito para com o seu titular. É um direito que resulta directamente da lei e não de negócio jurídico, e não está sujeito a registo (A. Santos Justo, Direitos Reais, fls. 505 e seguintes).
A norma do art. 755º,1, f CC, introduzida pelo DL 236/80 de 18/7 foi, como é por demais sabido, fortemente criticada pela Doutrina. Vamos dar a palavra ao Prof. Antunes Varela (2), um dos autores que com mais contundência e com a clareza que o caracteriza apontou as falhas ao texto legal:

“a terceira das inovações introduzidas pelo DL 236/80 de 18 de Julho, no regime do sinal (ligado ao contrato-promessa), foi a concessão ao promitente-comprador, nos termos do novo preceito incluído no nº 3 do art. 442º do Código Civil, de um direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato prometido (que lhe tivesse sido entregue), como garantia do crédito resultante do não cumprimento do contrato pelo promitente-vendedor. (…) Apesar de a occasio legis da modificação legislativa ter sido a fácil e frequente frustração das expectativas do promitente-comprador do imóvel destinado a habitação própria, certo é que o texto da lei (art. 442º, nº 3) se estendia indiscriminadamente a todos os casos de contrato-promessa de compra e venda, fosse qual fosse o seu objecto, contanto que tivesse havido tradição da coisa objecto do contrato, abrangendo por conseguinte tanto a promessa bilateral de venda de imóveis, como de venda de móveis, e no âmbito da promessa de imóveis, sem nenhuma distinção entre a promessa de venda de imóveis para habitação própria e as promessas de venda adstritas a qualquer outro fim”.

E, mais adiante (fls. 129): “quanto ao direito de retenção, o Decreto-Lei nº 379/86 manteve a sua atribuição ao promitente-comprador nos termos em que o consagrou o diploma de 1980 mas deslocando a sede da solução. Eliminou-se o texto do nº 3 incorporado pelo Decreto-Lei nº 236/80 na disposição do artigo 442º, mas incluiu-se, em contrapartida, uma nova alínea (a alínea f) no nº 1 do art. 755º do Código Civil, destinada a fixar, no lugar sistemático mais adequado, o direito de garantia concedido ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real (…). A verdade é que o direito de retenção, com os caracteres de verdadeiro direito real de garantia privilegiado (cfr. art. 759º, nº 2 do Cód. citado) se pode justificar nos casos excepcionais a que se referem o artigo 755º (em termos específicos) e o artigo 754º (em termos genéricos), atenta a origem e o pequeno montante da generalidade dos créditos garantidos. Mas não tem a menor justificação (sobretudo com a exagerada amplitude que lhe foi atribuída, abrangendo a promessa de alienação ou oneração de bens imóveis ou móveis, seja qual for a afectação negocial de uns e outros), como oportunamente se salientou, em relação ao promitente-comprador. Note-se que o direito de retenção prodigamente atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, com base na tradição da coisa objecto do contrato prometido, acaba por revestir, na prática, uma eficácia superior àquela de que goza a promessa com eficácia real -o que não deixa de ser profundamente chocante, sobretudo quando, havendo conflito entre os dois promissários, a tradição da coisa feita a um tenha sido posterior ao registo da promessa com eficácia real a favor do outro”.
É pacífico que o incumprimento definitivo (imputável ao promitente-vendedor) da promessa de compra e venda, que importe a extinção do contrato promessa antes da declaração de insolvência, com traditio da coisa prometida vender gera a aplicação das regras civilistas e as seguintes consequências gerais, quais sejam o pagamento do sinal em dobro (art. 442º, nº 2 CC) e a atribuição ao promitente-comprador do direito de retenção (art. 755º, n.º 1, alínea f) do CC).

Mas então, de onde veio a complicação de que estamos agora a tratar ?

Da leitura do artigo 755.º n.º 1 alínea f) CC não se vê de onde vem o requisito de o promitente-comprador ser um consumidor. A circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não parece ser argumento decisivo nesse sentido.

É porém sabido que várias das soluções que a reforma de 1980/1986 veio introduzir na disciplina do contrato-promessa suscitaram violentas críticas de vários autores, de tal forma que parte da Jurisprudência e da Doutrina têm vindo a defender uma interpretação restritiva da norma do art. 755º,1,f CC, para fazer o seu texto coincidir com a respectiva ratio (cfr. vg. Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/01/2016 (processo 728/14.8TBFIG-C.C1) e de 06/12/2016 (processo 3296/14.7T8VIS-A.C1).

É sempre útil, para se ter uma ideia da intenção do legislador, a leitura do preâmbulo do diploma que se está a analisar. No caso, no preâmbulo do DL 379/86 de 11/11 pode ler-se:

“O legislador de 1980, para o caso de tradição antecipada da coisa objecto do contrato definitivo, concedeu ao beneficiário da promessa o direito de retenção sobre a mesma, pelo crédito resultante do não cumprimento (artigo 442.º, n.º 3). Pensou-se directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas deles. Nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites. A existência do direito de retenção nesse quadro não repugna à sua índole. Repare-se que, em diversas previsões do artigo 755.º, n.º 1, do Código Civil, desaparece ou dilui-se a conexão objectiva que o precedente artigo 754.º pressupõe, em termos gerais, entre a coisa e o crédito. Mas será uma garantia oportuna no contrato-promessa e, por isso, de conservar? A análise da questão conduziu a uma resposta afirmativa. Tem de reconhecer-se que, na maioria dos casos, a entrega da coisa ao adquirente apenas se verifica com o contrato definitivo. E, quando se produza antes, não há dúvida de que se cria legitimamente, ao beneficiário da promessa, uma confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio. A boa-fé sugere, portanto, que lhe corresponda um acréscimo de segurança. O problema só levanta particulares motivos de reflexão precisamente em face da realidade que levou a conceder essa garantia: a da promessa de venda de edifícios ou de fracções autónomas destes, sobretudo destinados a habitação, por empresas construtoras, que, via de regra, recorrem a empréstimos, maxime tomados de instituições de crédito. Ora, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor. Não que se desconheçam ou esqueçam a protecção devida aos legítimos direitos das instituições de crédito e o estímulo que merecem como elementos de enorme importância na dinamização da actividade económico-financeira. Porém, no caso, estas instituições, como profissionais, podem precaver-se, por exemplo, através de critérios ponderados de selectividade do crédito, mais facilmente do que o comum dos particulares a respeito das deficiências e da solvência das empresas construtoras”.

Perante divergentes interpretações jurisprudenciais, surgiu então o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 4/2014, de 20/03/2014, (Publicado no D.R.-I, de 19/05/2014).

No processo que levou a essa uniformização de jurisprudência estava em causa saber se em contrato promessa incumprido pela promitente vendedora insolvente, o promitente-comprador que seja consumidor e a quem foram transmitidos os imóveis objecto do contrato meramente obrigacional, goza do “direito de retenção” sobre os mesmos para pagamento dos seus créditos, prevalecendo assim sobre o crédito hipotecário da Caixa … que sobre eles incidia. E isto porque tal questão não obteve resposta uniforme das instâncias. Na 1ª instância reconheceu-se ao crédito do reclamante o “direito de retenção” e consequente prevalência perante o hipotecário; já na Relação, partindo do princípio de que estando em causa um crédito emergente de um contrato-promessa, sustentou-se que havia que fazer, em sede geral, a destrinça consoante o contrato tenha eficácia real ou meramente obrigacional; tratando-se da primeira hipótese - sendo pois a promessa oponível a terceiros, nos termos do artigo 413º nº 1 do Código Civil e se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador - o administrador da insolvência não poderá negar o cumprimento do contrato de harmonia com o estatuído no artigo 106º nº 1 do CIRE; caso contrário sujeitar-se-á às consequências previstas no artigo 104º nº 5 do mesmo Diploma Legal. Na segunda hipótese, estando em causa um contrato-promessa com eficácia apenas obrigacional em que o promitente-comprador obteve a tradição da coisa, o Acórdão que analisamos revogou o decidido em 1ª instância, propendendo para a prevalência da hipoteca face ao crédito do reclamante, conferindo assim na graduação de créditos prioridade ao direito da Caixa ….
E o Supremo Tribunal de Justiça uniformizou a Jurisprudência da seguinte forma: “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil.”
Parece-nos da maior importância recordar aqui o voto de vencido do Conselheiro Abrantes Geraldes, quando escreve: “a minha discordância relativamente ao decidido circunscreve-se apenas à explicitação de que o direito de retenção conferido pelo art. 755º, nº 1, al. f), do CC, apenas pode ser invocado no processo de insolvência nos casos em que o promitente-comprador, titular do crédito reclamado, tem a qualidade de consumidor. Como decorre dos preâmbulos do Dec. Lei nº 236/80, de 18 de Julho, e do Dec. Lei nº 379/86, de 11 de Novembro, o objectivo fundamental das modificações que foram introduzidas no regime do contrato-promessa de compra e venda, designadamente no que se reporta à atribuição do direito de retenção em situações de traditio do bem, foi o de tutelar os interesses dos promitentes -compradores em geral, sem que o legislador tenha assumido formalmente a aludida limitação subjectiva. Por isso, não encontro motivos para a sua inscrição num acórdão de uniformização de jurisprudência proferido num processo em que, aliás, nem sequer foi discutida a qualidade em que o reclamante interveio no contrato-promessa de compra e venda. Por conseguinte, além de sustentar a exclusão dessa limitação da fundamentação do acórdão, considero que a súmula jurisprudencial deveria ser a seguinte: “No âmbito da graduação de créditos em processo de insolvência, o crédito do promitente-comprador emergente de contrato-promessa, ainda que com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, goza do direito de retenção, nos termos previstos no art. 755º, nº 1, al. f), do CC”.
A esta luz, supomos poder afirmar que a questão de saber se o promitente-comprador não faltoso, com traditio do imóvel, só goza de direito de retenção para efeitos de graduação de créditos em processo de insolvência se for consumidor não foi formalmente uniformizada pelo referido acórdão, porque não foi objecto de análise específica, e porque não teve na base duas decisões divergentes sobre essa mesma concreta questão.
Porém, dito isto, não há como fugir à constatação de que a esmagadora maioria das decisões do Supremo Tribunal (e o acórdão uniformizador não é excepção) vão no sentido da interpretação restritiva.
Donde podermos dele retirar de relevante o acolhimento da já mencionada interpretação restritiva do art. 755º,1,f CC, no sentido de, apesar de a letra do preceito não fazer referência à figura do “consumidor”, a interpretação e aplicação correcta do mesmo passar pela já referida restrição interpretativa, de excluir a aplicabilidade do regime em causa a todos os casos em que o promitente-comprador não possa ser classificado de “consumidor” (3).
Recordemos o que no supra citado preâmbulo se escreve: “o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada (artigo 759.º, n.º 2, do Código Civil). Logo, não faltarão situações em que a preferência dos beneficiários de promessas de venda prejudique o reembolso de tais empréstimos. Neste conflito de interesses, afigura-se razoável atribuir prioridade à tutela dos particulares. Vem na lógica da defesa do consumidor”.
O legislador não faz uma referência directa à aplicação do conceito de consumidor. Faz uma afirmação mais vaga e difusa, mas que não deixa de ser perceptível, de justificar esse novo regime dizendo que ele vem na lógica da defesa do consumidor.

Assim, o que devemos entender por “consumidor”, para este fim ?

A noção de consumidor resultava da Lei de Defesa do Consumidor (Lei n.º 24/96 de 31 de Julho, com as alterações decorrentes do DL nº 67/2003, de 08 de Abril, do DL nº 84/2008, de 21 de Maio e da Lei nº 10/2013, de 28 de Janeiro), mais concretamente no seu art. 2º,1: “considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios".
Paralelamente, o DL nº 24/2014, de 14/02, define consumidor como “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, ou artesanal”.
No acórdão desta Relação de Guimarães de 26 de Janeiro de 2017 (Relatora Lina Castro Baptista), escreve-se que “em face destas definições, afigura-se-nos que estamos na presença de um conceito de consumidor em sentido estrito, sendo dois os elementos que delimitam a respectiva noção: o elemento relacional (sujeito de uma relação jurídica de consumo) e o elemento teleológico (aquisição de bens ou serviços para fins não profissionais)”.

Da jurisprudência do STJ podemos retirar o seguinte apoio interpretativo:

-“o conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja, de utilizador final, com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito restrito adoptado pelo ordenamento jurídico português” (Acórdão do STJ de 24/05/2016, proferido no Processo n.º 3374/07.9TBGMR-C.G2.S1, tendo como Relator Nuno Cameira);
-“a alteração legislativa que redundou no aditamento da al. f) ao n.º 1 do art. 755.º do CC foi introduzida tendo em vista a defesa do consumidor, mas visando também, em alguma medida, dinamizar o mercado de construção” (acórdão do STJ de 20/05/2010, tendo como Relator Alberto Sobrinho);
-“segundo o AUJ nº 4/2014, de 20.03.2014, no âmbito da graduação de créditos em insolvência, o promitente-comprador apenas goza do direito de retenção, previsto no art. 755º, nº 1, al. f), do CC, se tiver a qualidade de consumidor. Apesar desta exigência, o conceito de consumidor não foi objecto de uniformização. É consumidor aquele que adquirir bens ou serviços para satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado) e para outros fins que não se integrem numa actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável. O conceito tem assim subjacente a necessidade de protecção da parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente. Tendo em atenção esse fim, não deve ser considerado consumidor aquele que, sendo comerciante de ourivesaria, promete comprar três apartamentos, que vem a dar de arrendamento (depois de adquirir um outro para habitação própria). A capacidade económica assim revelada, evidencia que esse promitente-comprador não se encontrava perante a contraparte dos negócios numa situação de fraqueza ou vulnerabilidade. Nem essa aquisição e afectação têm a ver propriamente com "consumo", isto é, com satisfação de necessidades privadas, visando antes a obtenção de rendimentos que essa afectação propicia” (Acórdão do STJ de 13 de Julho de 2017, Relator Pinto de Almeida);
-“não reveste tal conceito -de consumidor- aquele que celebra como promitente-comprador um contrato promessa de aquisição de loja que destina a nela instalar uma loja comercial que efectivamente instala, constituindo, para o efeito, uma sociedade comercial. E também não reveste essa qualidade o credor que celebra contrato promessa, como promitente-comprador de três fracções prediais, sendo duas lojas comercias e a restante um aparcamento na cave de apoio, lojas essas que o referido credor destina, uma, a nela instalar um estabelecimento comercial que efectivamente veio a instalar, por sua conta, e a outra dá de arrendamento a uma instituição bancária, recebendo as respectivas rendas” (acórdão do STJ de 2017/02/14, Relator João Camilo);
-“a Lei n.º 24/96 define no seu artigo 2º,1 consumidor como todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios. Por seu turno o DL 24/2014, de 14 de Fevereiro ao transpor a Directiva 2011/83/EU do Parlamento e do Conselho, de 25.10.2011, no artigo 2º, define, para efeitos dela mesma “consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;», veio a fazer constar como consumidor “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”. No caso, apesar de se ter apurado que o promitente comprador cedeu o uso do imóvel a uns amigos que o utilizam para fins habitacionais, esta «cedência» configura a aplicação do objecto a um fim não profissional, consubstanciando um uso privado do sujeito, sendo pois, nesta asserção, consumidor” (Acórdão do STJ de 5 de Julho de 2016, Relatora Ana Paula Boularot);
-“o conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja, de utilizador final, com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito estrito adoptado pelo ordenamento jurídico português. Tendo-se provado, no caso dos autos, (i) que os recorridos, promitentes-compradores, são pessoas singulares que adquiriram a fracção fora do âmbito da sua actividade profissional; (ii) que o arrendamento para habitação celebrado foi um acto isolado (não se provaram arrendamentos de outros imóveis seus); (iii) que não exercem com carácter profissional actividade económica lucrativa; e (iv) que ao prometerem comprar a fracção à sociedade insolvente não a destinaram a uma actividade profissional, nem agiram no âmbito de uma actividade dessa natureza, é de concluir que são consumidores, na acepção que o AUJ teve em vista e adoptou ao interpretar o disposto no art. 755.º, n.º1, al. f), do CC” (Acórdão do STJ de 24/05/2016, Relator Nuno Cameira);
-“segundo o AUJ n.º 4/2014, a qualidade de consumidor refere-se ao utilizador final dos imóveis, que faz destes um uso próprio, ao qual é alheio o escopo de revenda, mas não implica que o prédio seja urbano e se destine a habitação permanente do promitente-comprador” (Acórdão do STJ de 16 de Fevereiro de 2016, Relatora Maria Clara Sottomayor);
-“o conceito de consumidor que o referido AUJ acolheu foi o conceito restrito, funcional, segundo o qual consumidor é a pessoa singular, destinatário final do bem transaccionado, ou do serviço adquirido, sendo-lhe alheio qualquer propósito de revenda lucrativa” (Acórdão do STJ de 17 de Novembro de 2015, Relator Fonseca Ramos);
-“tem a qualidade de consumidor o promitente-comprador que, tendo embora arrendado o imóvel prometido comprar, não desenvolve qualquer actividade profissional ou empresarial relacionada com o mercado imobiliário” (Acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 29/01/2015, proferido no P. 4227/11.1TBGMR-A.G1, tendo como Relator Manual Bargado);

Desta resenha jurisprudencial podem retirar-se as várias características que têm vindo a ser consideradas essenciais para surpreender a figura do consumidor, no sentido estrito do termo:

1. aquisição de bens ou serviços para fins não profissionais;
2. vendedor tem de ser pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios;
3. utilizador final;
4. ausência de intenção de revenda lucrativa;
5. satisfação de necessidades pessoais e familiares (uso privado)
6. fins que não sejam uma actividade económica levada a cabo de forma continuada, regular e estável.

No caso destes autos, em resumo, a sociedade “Y – Construções Imobiliária, Lda” outorgou num contrato-promessa, como promitente compradora, cujo objecto eram dois prédios urbanos, vivendas destinadas a habitação, que declarou prometer comprar por €350.000,00 (trezentos e cinquenta mil euros), sendo €175.000,00 (cento e setenta e cinco mil euros) por cada prédio; no contrato ficou consignado (cláusula terceira): “a) Com a assinatura do presente contrato-promessa, a Segunda Outorgante entregará à primeira Outorgante, por conta daquele preço e a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €265.000,00 (duzentos e sessenta e cinco mil euros), do que é dada quitação com o presente documento; b) O remanescente do preço, no valor de €85.000,00 (oitenta e cinco mil euros), será pago no acto da escritura definitiva de compra e venda dos prédios urbanos descritos na Cláusula 1ª”; e no mesmo ficou ainda consignado (cláusula décima) “3. A Segunda Outorgante nesta data entra na posse dos prédios prometidos vender, tendo recebido as respectivas chaves. 4. A partir desta data, correm por conta da Segunda Outorgante todas as despesas inerentes aos prédios, designadamente água, electricidade, gás, seguros, IMI” (v. contrato-promessa de fls. 24 a 25/verso).
Aqui chegados, temos como certo que a sociedade “Y – Construções Imobiliária, Lda” é beneficiária da promessa de transmissão de direito real e obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido. Mas para beneficiar do direito de retenção sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º, nos termos do art. 755º,1,f CC, teria, como vimos, de ser qualificada como consumidora.

E é aí que a pretensão naufraga.
Como se escreve, e bem, na sentença recorrida, “no caso em apreço, não está em causa um mero consumidor. É que a promitente-compradora era à data uma sociedade comercial que tinha por objecto social a indústria de construção civil e a empreitada de obras públicas, bem como a compra e venda de bens imóveis, e foi esta sociedade que prometeu adquirir os imóveis à insolvente e que se obrigou através da respectiva sócia-gerente M. F., com poderes para o acto, que o assinou, sob o carimbo da própria sociedade e nessa qualidade, a pagar o preço.
É certo que do teor do contrato-promessa e do alegado nos articulados da acção resulta, sem qualquer controvérsia, que com a assinatura daquele ocorreu a tradição da posse dos imóveis para a sociedade autora, e que a sociedade promitente-vendedora/insolvente autorizou que as fracções fossem de imediato utilizadas pela promitente-compradora. Foi a sociedade quem se vinculou nos termos do contrato, e não M. F., em seu nome pessoal e enquanto pessoa singular, e foi a sociedade quem obteve a posse das fracções objecto do contrato, sendo indiferente que posteriormente possa ou não ter autorizado aquela sócia ou terceiro a usar as fracções, para habitação ou outro fim”.
E ainda: “no caso, não só figurou no contrato como promitente-compradora a sociedade “Y – Lda.” como foi ela quem obteve a tradição da posse, pelo que, mesmo que se provasse ter a sociedade cedido a terceiros (à sua gerente e à irmã daquela, o que a ré seguradora impugnou), a título gratuito, a utilização das fracções, não se confundindo a personalidade jurídica daquelas pessoas físicas e a da sociedade comercial, jamais poderia a autora beneficiar do direito de retenção, tendo em conta o cariz comercial que prosseguia”.
E é esta natureza de pessoa colectiva que inviabiliza, definitivamente, a pretendida qualificação da sociedade comercial em causa como consumidor, e que, ao mesmo tempo, torna irrelevantes os aditamentos à matéria de facto que como vimos os recorrentes pretendiam.
Como se afirma na sentença recorrida: “é consabido que com a aprovação da Directiva 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Outubro de 2011, relativa aos direitos dos consumidores, foi dado mais um passo na consolidação da abordagem à protecção dos direitos e interesses dos consumidores. Porém, e para efeitos da mesma, no art. 2º, nº 1, continuou a entender-se por «Consumidor» apenas a “pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com fins que não se incluam no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional. Por sua vez, a Lei n.º 47/2014, de 28/07, procedeu à quarta alteração à Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, que estabeleceu o regime legal aplicável à defesa dos consumidores, e à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, transpondo parcialmente para a ordem interna portuguesa a aludida Directiva n.º 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho. E segundo o art. 2.º, n.º 1 deste diploma “Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios. Ora, pese embora a letra da lei (interna), ao contrário da Directiva, não exclua, de modo expresso, as pessoas colectivas, entendemos que a aplicação a estas do aludido conceito contenderia com a sua incapacidade para realizar negócios fora do âmbito da prossecução dos seus fins, de acordo com o princípio da especialidade do escopo, consagrado no art. 160.º do Cód. Civil e no art. 6.º do C.S.Comerciais”.

Convém deixar consignado que o aqui Relator já, anteriormente (4), defendeu em voto de vencido, que o facto de o promitente-comprador ser pessoa colectiva não era impedimento a que, caso se verificassem todos os requisitos exigidos por lei e de acordo com a interpretação jurisprudencial dominante, fosse considerado consumidor, para os efeitos de reconhecimento do direito de retenção.
Tal interpretação, porém, não obteve acolhimento junto do Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 17.10.2019, decidiu em sentido contrário.
Vamos aqui reproduzir grande parte da argumentação ali usada, que consideramos convincente, e que nos leva a inflectir a interpretação anterior, a que acresce a função essencial daquele Supremo Tribunal de uniformizar a jurisprudência, o que, só por si, já seria razão suficiente para seguir a mesma interpretação:

É certo que, vista a orientação estabelecida no AUJ nº 4/2014, a qualidade de consumidor é imprescindível para a qualificação do crédito como garantido pelo direito de retenção.

Deverá a recorrente (pessoa colectiva) ser havida como consumidor ?

Cremos que não.
A diversidade de entendimentos acerca do conceito de consumidor acabou por levar à prolação do AUJ 4/2019 (publicado no DR 1ª série, de 25/7/2019). Este AUJ, depois de expressar que seria preferível a adopção de um conceito de consumidor que atendesse às notas tipológicas consagradas no art. 2º,1 da Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96), definiu a seguinte orientação: “na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para os efeitos do disposto no Acórdão 4/2014, o promitente-comprador que destina o imóvel, objecto da traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afecta a uma actividade profissional ou lucrativa”.
Tal AUJ adoptou pois um conceito restritivo de consumidor, de modo que será consumidor apenas o promitente-comprador de imóvel que destina o bem a uso particular (não profissional), o que, nas próprias palavras do acórdão, “corresponde dominantemente ao sujeito que o pretende adquirir para habitação”, ficando de forma todas aquelas situações em que o bem é destinado a revenda, a uso comercial ou a qualquer outra finalidade lucrativa ou profissional.
Já ia nesta linha Calvão da Silva (Compra e venda de coisas defeituosas, conformidade e segurança, p. 11 e seguintes) ao aduzir que consumidor é a pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado -uso pessoal, familiar ou doméstico (…) de modo a satisfazer necessidades pessoais e familiares, mas já não aquele que obtém ou utiliza bens ou serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa”.
Questão conexa, mas diferente (e que o dito AUJ não solucionou, até porque tal não era objecto de decisão) é a de saber se no conceito de consumidor devem também caber as pessoas colectivas. Calvão da Silva (ob e loc cit) defendeu que não, esclarecendo que “a letra da lei [Lei de Defesa do Consumidor] não especifica que o consumidor seja uma pessoa física ou pessoa singular. Normalmente, porém, a doutrina e as Directivas comunitárias excluem as pessoas colectivas ou pessoas morais. E cremos ser esta também a melhor interpretação do nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96: “todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional -ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto, por oposição a uso profissional -será uma pessoa singular, com as pessoas colectivas a adquirirem os bens ou serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais (art. 160º CC e art. 6º CSC)”. Mais esclarecia que está subjacente à dita Lei a “ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa”. O autor concluía que “nos termos do nº 1 do art. 2º da Lei 24/96 deve considerar-se “consumidor todo aquele (pessoa singular) a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados (exclusivamente) a uso não profissional (…)”.
Miguel Pestana de Vasconcelos (Cadernos de Direito Privado, nº 33, pp 3 e seguintes) sustenta que é ponderada e equilibrada, devendo orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito, a definição resultante dos arts. 10º,1 e 11º,1,2 do anteprojecto do Código do Consumidor. Assim, será consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito de uma actividade profissional. O autor mais aduz que pode estender-se o conceito às pessoas colectivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência específica para a transacção em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade.
O ponto de vista destes dois autores parece dever ser acolhido, de sorte que apenas as pessoas singulares poderão ser havidas, pelo menos em princípio, como consumidores, nos termos e para os efeitos em presença. De resto, em vária outra legislação tendente à protecção do consumidor (por exemplo, nos casos dos Decretos-Leis nºs 133/2009 (contratos de crédito aos consumidores), 74-A/2017 (regime dos contratos de crédito relativos a imóveis), 57/2008 (práticas comerciais enganosas) e 24/2014 (contratos celebrados à distância), a lei confina declaradamente a qualidade de consumidor às pessoas singulares. E, segundo se informa na Revista de Direito da Insolvência, nº 2, pp 136 e 137, a nível internacional a generalidade dos diplomas europeus respeitantes ao direito do consumo define consumidor como “pessoa singular que actua com fins alheios às suas actividades comerciais ou profissionais”.
Deste modo, sendo a ora recorrente uma sociedade comercial, não será passível de ser havida como consumidora. O que afasta a possibilidade de gozar do direito de retenção por que pugna.
Mas uma outra razão sempre afastará a pretendida qualificação da recorrente como consumidor. E essa razão está adequadamente exposta no acórdão recorrido, tal como resulta da seguinte passagem: “verifica-se que a recorrente possui como objecto social a realização de instalações eléctricas, montagem de redes eléctricas de baixa, média e alta tensão, instalações de iluminação, sinalização e segurança, telecomunicações, ventilação, aquecimento e condicionamento de ar, reparação de artigos eléctricos e electrodomésticos. Mais se provou que com a celebração do contrato-promessa, a recorrente pretendeu a futura aquisição do imóvel para aí viver o seu gerente. Poder-se-ia daqui inferir que a promitente-compradora não destinou a fracção prometida comprar a uma finalidade comercial, nem actuou na prossecução do seu objecto social, o que legitimaria a sua subsunção à qualidade de sujeito final na transacção do bem, ou seja, ao preenchimento da noção de consumidor. Todavia, ao alocar a fracção prometida comprar à residência do seu gerente, essa afectação não deixa de traduzir a satisfação de um interesse societário da própria empresa, o que não se compagina com um mero uso privado ou um uso não profissional da coisa objecto do contrato prometido”.
Exactamente como se significa nessa passagem, o fim visado com o contrato-promessa em presença, embora não se identifique, na aparência, ou directamente, com o objecto social da sociedade recorrente, tem, contudo, a ver com a actividade profissional da sociedade. Efectivamente, visou-se necessariamente com tal contratação satisfazer um interesse funcional ou organizacional da sociedade, na medida em que a fracção em causa, ao ser destinada à residência do gerente, destinava-se também a ser afectada aos interesses ou aos fins inerentes à actividade da própria sociedade (vem a propósito observar que no art. 6º do CSC, a capacidade da sociedade compreende os direitos e as obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, e não todos e quaisquer direitos e obrigações). O que, portanto, se reconduz a uma afectação que tem ainda a ver com o âmbito empresarial da recorrente. Ora, como parece óbvio, nada disto é identificável com o uso privado, familiar ou doméstico subjacente ao conceito restrito de consumidor, tal como adoptado no citado AUJ 4/2019.
Além disso, e na melhor das hipóteses para a recorrente -posto que a admitir como bom o entendimento do segundo dos autores acima citados- é de dizer que não há na matéria de facto provada o menor indício que leve a supor que a recorrente, que é uma sociedade da mesma natureza (sociedade por quotas) da sociedade insolvente, funcionou como parte fraca, leiga, profana, débil, economicamente ou menos preparada tecnicamente na relação que estabeleceu com a promitente-vendedora. Ou seja, que lhe faltou competência específica para a transacção em causa”.
Assim, a conclusão final a tirar, com a máxima relevância para o caso dos autos, é que se o promitente-comprador for uma sociedade comercial, não lhe poderá ser atribuído -a não ser em casos absolutamente excepcionais- o rótulo de “consumidor”, para efeitos de beneficiar do direito de retenção atribuído pelo art. 755º,1,f CC.

E, aqui chegados, resta-nos subscrever as palavras da sentença recorrida: “não se justifica, pois, estender à sociedade “Y. – Construções e Imobiliária, Lda” a protecção conferida ao promitente-adquirente consumidor, posto que ela não actuou, aquando da formalização do contrato-promessa, naquela qualidade. E mesmo que, após a celebração do contrato-promessa, tenha destinado as fracções a uso pessoal da sua sócia-gerente e/ou familiar, tal sucedeu por razões de mera conveniência e desconsiderando a vocação comercial da sociedade promitente-adquirente, não merecendo, por isso, a tutela própria do promitente consumidor”.
Daqui seguia-se a outra conclusão que a sentença recorrida tirou: “a pretensão da sociedade “Y. – Construções e Imobiliária, Lda.” naquele processo de insolvência, mesmo que se verificasse uma proficiente actuação processual dos segundo e terceira réus, sempre seria gorada, pois sempre o seu crédito seria graduado como comum, o que significa que não havia uma ‘chance’ consistente e real de satisfação do crédito que tenha sido frustrada pela actuação inadimplente dos referidos réus”.
Igualmente podemos subscrever a afirmação seguinte: “o julgamento dentro do julgamento, como juízo de prognose, inerente à valoração da chance claramente aponta para a inexistência de uma oportunidade de ganhar, consistente, plausível, que se haja perdido pela omissão cometida pelos primeiros réus, enquanto mandatário da sociedade “Y. – Construções e Imobiliária, Lda.”, naquele processo de insolvência”.
E ainda: “mesmo concedendo que o segundo e terceiro réus incumpriram os seus deveres de diligência, sempre terá de concluir-se que de tal incumprimento não resultou para a sociedade “Y. – Construções e Imobiliária, Lda.”, a perda de qualquer oportunidade séria e consistente de ver satisfeito o seu crédito”.

Ou, numa formulação nossa, de síntese:

a) o comportamento dos Réus Mandatários envolveu um incumprimento do dever de diligência, pois apesar de a orientação que expusemos ser claramente maioritária na Jurisprudência e Doutrina, há sempre a possibilidade de surgirem outras interpretações e outras decisões, e o Advogado, quanto mais não seja por uma questão de cautela, deve invocar sempre todos os direitos que entende que podem assistir ao seu cliente, pedindo sempre o mais e nunca o menos;
b) apesar disso, se os réus Advogados tivessem invocado que assistia à sua cliente o direito de retenção, a probabilidade de o resultado final nesse processo ter sido diferente daquele que foi é quase inexistente.
c) Falha assim o nexo de causalidade entre o facto (no caso a omissão) e o dano, pois aquele “dano” em concreto sempre se produziria, mesmo que não tivesse havido omissão por parte dos réus Advogados.

E temos ainda de dizer que, desta forma, os réus ilidiram a presunção de culpa que, como vimos, sobre eles impendia.
Só não acompanhamos a sentença recorrida quando, no final da mesma, se pode ler: “a manifesta improcedência dos pedidos consubstancia uma excepção peremptória (inominada) de direito material, que vem definida na lei como uma das que “importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo Autor” (artº 576º nº2 do CPC). Nestes termos, à luz dos princípios e normas indicadas, julgo verificada a excepção peremptória inominada da manifesta improcedência os pedidos indemnizatórios deduzidos nos autos por dano de “perda de chance processual” deduzidos pelo Autor, que obsta a apreciação do mérito da acção, é de conhecimento oficioso e por força do disposto no artº 576º n3 do CPC importa a absolvição dos réus dos pedidos”.
É uma questão pouco relevante, mais de correcção técnica, mas que não interfere em nada na decisão. É que as excepções peremptórias importam a absolvição total ou parcial do pedido e consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor (art. 576º,3 CPC).

No caso, não vemos que tenha sido invocada uma excepção peremptória, e muito menos, que tenha impedido a apreciação do mérito da acção. O que o Tribunal recorrido fez foi apreciar justamente a substância da causa, considerando o pedido formulado e a causa de pedir que o sustentava, ou seja, o pedido de indemnização formulado pelos autores, para concluir que não lhes assistia esse direito. Decidiu sobre o mérito do pedido, concluindo que a pretensão dos autores não era acolhida pelo ordenamento jurídico positivo. Isto não é julgar procedente uma excepção peremptória, é declarar que dos factos articulados pelo autor não decorre o efeito jurídico que ele peticionou.

Assim, a improcedência do recurso é total.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide julgar o recurso totalmente improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes (art. 527º,1,2 CPC).
Data: 23/6/2021

Relator (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Boavida)


1. Por exemplo, aferir que o embate entre dois veículos deu origem aos ferimentos graves e morte dos ocupantes, ou que se o dono do animal tivesse tido o cuidado de o prender, ele não teria mordido a vítima, etc, etc
2. Sobre o contrato-promessa, 2ª edição, fls. 106.
3. Solução que é suportada pensamos que de forma claramente maioritária pela jurisprudência do Supremo: vejam-se, vg, os acórdãos de 14/10/2014, proferido no Processo n.º 986/12.2TBFAF-G.G1.S1, Relator -João Camilo; Acórdão do STJ de 14/06/2011, Relator Fonseca Ramos); Acórdão do STJ de 13/7/2017 (Relator Pinto de Almeida); Acórdão do STJ de 25/11/2004, Relator Fernandes do Vale;
4. P. 1012/15.5T8VRL-BD.G1, deste Tribunal da Relação de Guimarães