Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3879/20.6T8VCT.G1
Relator: JORGE TEIXEIRA
Descritores: RECLAMAÇÃO À RELAÇÃO DE BENS
NULIDADES DA DECISÃO
ABERTURA DA SUCESSÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- De harmonia com o disposto nos art.ºs 205º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e 154º do Código de Processo Civil, deve entender-se que falta a fundamentação se não forem inteligíveis as concretas razões de facto e de direito da decisão.
II- A fundamentação da matéria de facto provada e não provada, com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas da decisão, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e qual a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.
III- Quando a fundamentação de facto ou de direito seja insuficiente, em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito, deve ser equiparada à falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito e, consequentemente, determinar a nulidade do acto decisório.
IV- Se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença - artº 615º, nº 1, al. c) do CPC. -, resultando, assim, como evidente que ao consagrar este regime visou a lei abranger todas aquelas situações em que a construção ou elaboração da sentença se encontra viciada por virtude de os fundamentos nela mencionados conduzirem, inelutavelmente, a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, daquela que foi tomada
V- Na observância do principio do dispositivo, no processo civil comum, o tribunal está impedido de condenar em quantia superior ou em objecto diverso do que for pedido (art. 615 n.º/1, al. d), do CPC), pelo que, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objecto.
VI- A circunstância de um determinado bem não se encontrar, à data do óbito, na posse do de cujus não afasta a obrigação do seu relacionamento em sede de inventário, pois se assim não fosse, que sentido teria o art. 2088.º do Código Civil, que atribui ao cabeça-de-casal o poder de solicitar a herdeiros ou terceiros a entrega e/ou restituição de bens que não estejam na posse da herança, mas que lhe caiba administrar.
VII- No mesmo sentido, ainda que com outro alcance, também se poderá invocar o art. 2096.º do Código Civil, que prevê a sonegação de bens, ou seja, bens que estão na posse de herdeiro ou terceiro, mas que pertençam à herança.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães.

I – RELATÓRIO.

Recorrentes: M. L. e R. G..
Recorrido: A. M..
Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Monção - Juízo C.
Genérica.

Nos presentes autos de Inventário por óbito de A. N. (falecido em -/10/2003, com última residência em Monção) e de E. G. (falecida em -/07/2018, com última residência em Valença) citado o cabeça de casal (artigo 1100º, n.º2, al. b) do CPC) A. M. este apresentou “Relação de Bens”.
Notificados os interessados M. L. e R. G. (art. 1104.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil), estes apresentaram “Reclamação à Relação de Bens” peticionando ser ordenada a remoção da relação de bens da verba n.º 1 do activo (conta bancária n.º ........63 do Banco ...) e todas as verbas indicadas no passivo em que aparece como credor o próprio CC.
Notificado o cabeça-de-casal (art. 1105.º, n.º1, do Cód. Proc. Civil), este apresentou “Resposta”.
*
Realizada audiência de produção de prova, foi proferida decisão em que, respondendo à matéria de facto controvertida, se decidiu julgar a presente acção nos seguintes termos:
“Julgar a reclamação à relação de bens improcedente por não provada e, consequentemente, determinar o relacionamento da Verba n.º 1: Conta bancária n.º ........63 (Banco ...), no valor de € 102.897,97 (cento e dois mil, oitocentos e noventa e sete euros e noventa e sete cêntimos)”.

Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os interessados M. L. e R. G., sendo que, das respectivas alegações desse recurso extraíram, em suma, as seguintes conclusões:

I. A douta sentença de 17.02.2022 incorreu em manifesto erro de julgamento, produzindo, s.m.o., uma decisão profundamente iníqua e que não faz, como se impunha, a necessária justiça que a tutela dos direitos dos recorrentes in casu reclamam, como se demonstrará.
II. Os recorrentes insurgem-se contra a decisão do tribunal de incluir na relação de bens a verba n.º 1, conta bancária número ........63, no valor de 102.897,97€.
III. A sentença prolatada é nula por violação do disposto nos artsº 615º n.º 1 alíneas b) e d) e 607º nº 4 do CPC.
IV. A sentença é absolutamente omissa no que respeita à fundamentação do sentido da decisão, sendo que, a própria matéria dada como provada não é adequada para sustentar tal decisão.
V. O dever de fundamentação das decisões, decorre do art. 208º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, sendo da maior relevância para ser exercido controlo no julgamento da matéria de facto e na decisão de direito.
VI. A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.
VII. É usual a sentença indicar a matéria de facto provada e a fundamentação e, após proceder à indicação dos factos não provado, fazer indicação discriminada com base nos articulados.
VIII. No caso, a sentença recorrida, limita-se a listar alguns factos que considera provados e, em termos vagos, remete-los para os diversos meios de prova.
IX. Contudo, nunca é feita qualquer linha de raciocínio que permita encontra o percurso lógico-dedutivo que levou o tribunal a decidir daquela forma.
X. Não se percebe ainda, de que forma é que a matéria provada contribuiu para a decisão de direito, sendo que nunca refere as razões que levaram o tribunal a decidir pela inclusão da verba n.º 1 na relação de bens.
XI. As decisões que relevam decisivamente para a decisão justa da questão de mérito, devem ser fundamentadas de modo claro e indubitável pois só assim ficam salvaguardados os direitos das partes, mormente, em sede de recurso da matéria de facto, quando admissível, habilitando ao cumprimento dos ónus impostos ao recorrente impugnante da matéria de facto, mormente, quanto à concreta indicação dos pontos de facto considerados incorrectamente julgados e os concretos meios de prova, nos termos das als. a) e b) do nº1 do art. 640º do Código de Processo Civil.
XII. Com o devido respeito, não se pode reconhecer à sentença recorrida tais requisitos de clareza e precisão de fundamentação da decisão, pelo que enferma de nulidade, nos termos do art. 615º, nº1, b) e c), do Código de Processo Civil e, como tal, não pode manter-se devendo ser declarada nula ou anulada.

Acresce que,

XIII. Como sabemos, a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor, conforme disposto no art. 2031º do Código Civil.
XIV. O acervo hereditário é o existente na titularidade do autor da herança no momento do óbito, ou seja, apenas inclui posições jurídicas, que, nesse fulcral momento, estivessem efectivamente na esfera jurídica do autor.
XV. Os requerentes/recorridos invocam que deve ser relacionada uma conta bancária do Banco ... com o número ........63, com o montante de 102.897,97€.
XVI. Mas, na realidade, a referida conta, à data do óbito, não tinha qualquer saldo, conforme foi certificado pelo próprio Banco ....
XVII. Este valor não se encontrava na referida conta há mais de 2 anos.
XVIII. Para que este valor integre o acervo hereditário é necessário alegação e prova de que a referida quantia tinha sido ilicitamente subtraída à sua dona.
XIX. E tal não consta alegado, muito menos provado que o montante foi transferido sem o conhecimento e sem o consentimento da inventariada na douta sentença recorrida.
XX. Como tal, a transferência do montante de 102.897,97 € do património da inventariada para os aqui requeridos, em vida da inventaria, só tem que ser considerada lícita e válida.
XXI. Sem desprimor que, como defendem os recorrentes, seja efectuado um acerto de contas, pois eram os requeridos que suportavam todas as despesas da inventariada até finais de 2017.
XXII. O que só poderá ser decidido em acção de prestação de contas.
XXIII. Pelo que, não poderão restar dúvidas de que, no momento da abertura da herança, esta conta não fazia parte dos bens que a constituíam.
XXIV. Logo, o Tribunal não poderia decidir pela sua inclusão na relação de bens, mas sim remeter as partes para os meios comuns para a decisão desta questão.
O Apelado apresentou contra-alegações concluindo pela improcedência da Apelação.
*
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II- Do objecto do recurso.

Sabendo-se que o objecto do recurso é definido pelas conclusões no mesmo formuladas, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso, as questões decidendas são, no caso, as seguintes:

- Analisar da incompetência territorial do tribunal de recurso.
- Analisar da existência ou não de nulidade por falta de fundamentação, oposição entre os fundamentos e a decisão e por excesso de pronúncia, nos termos das alíneas b), c) e e), do n.º 1 do artigo 615.º, do Código de Processo Civil.
- Analisar se os bens que na data do óbito, não estão na posse do de cujus afasta a obrigação do seu relacionamento em sede de inventário.
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III- FUNDAMENTAÇÃO.

Fundamentação de facto.

A factualidade dada como provada e não provada na sentença recorrida é a seguinte:
Factos Provados.

A) FACTOS PROVADOS

1. A. N. faleceu em -/10/2003, com última residência em Monção;
2. E. G. faleceu em -/07/2018, com última residência em Valença;
3. A. N. e E. G. eram casados entre si;
4. Os inventariados A. N. e E. G. tiveram os seguintes filhos:
4.1. A. M. (nascido em -/07/1950 casado, contribuinte fiscal n.º ………, titular do bilhete de identidade n.º ……, natural da freguesia e conselho de Valença, residente na Rua … VALENÇA) e
4.2. M. G. (falecida em -/06/2005, no estado de casada com J. A.), tendo deixado como herdeiros:
4.2.1. J. A. (marido);2.2. R. G. (filho) – nascido em ..-03-1976, contribuinte fiscal n.º ………, com domicílio na Urbanização … MONÇÃO casado com I. C., sob o regime da comunhão de adquiridos; e
4.2.3. M. L. (filho) nascido em ..-06-1978, contribuinte fiscal n.º ………, com domicílio na Rua … PORTO;
5. Os autores da sucessão não deixaram testamento ou qualquer outra disposição de última vontade;
6. Em 19-11-2015 foi movimentado a débito da conta bancária n.º ........63 (titulada por E. G.) para a conta bancária n.º ……… (titulada pelos Interessados R. G. e M. L.) - ambas as contas sediadas no Banco ... - o valor de € 102.897,97 (cento e dois mil, oitocentos e noventa e sete euros e noventa e sete cêntimos); - cfr. doc. 10;
7. Por Sentença proferida em 24-07-2017, no processo n.º 162/16.5T8MNC deste Tribunal, a inventariada E. G. foi declarada interdita por anomalia psíquica, fixando-se o início da interdição em meados de 2016 e, por despacho de 25-09-2017, nomeado Tutor o cabeça-de-casal A. M.;
8. Ainda nos autos identificados em 7., em posterior incidente de remoção de tutor, por sentença de 14/08/2018, foi determinado que “… todos os bens da interdita que se encontram na posse dos netos M. L. e R. G., sejam restituídos à mesma, na pessoa do seu tutor;”.

FACTOS NÃO PROVADOS

Não existem factos não provados.

Fundamentação de direito.

Na contra-alegações apresentadas o Recorrido veio invocar a incompetência territorial do tribunal de recurso, ao abrigo do disposto no art. 31.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (LOSJ), o qual prescreve que «A área de competência dos tribunais da Relação, salvo nos casos previstos na presente lei, é definida nos termos do anexo i à presente lei, da qual faz parte integrante», sendo que, à luz de tal Anexo I do referido diploma, o Tribunal da Relação de Guimarães é o competente para julgar o presente recurso, dado que a acção corre os seus termos no Juízo de Competência Genérica de Monção, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo.
Sucede que os Apelantes dirigiram o seu recurso para o Tribunal da Relação do Porto, o que viola as regras de competência territorial previstas na LOSJ, o que expressamente se invoca à luz do disposto no art. 108.º do CPC, devendo, assim, ser julgada verificada a incompetência relativa e, nessa senda, ser o presente recurso remetido para o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães.
Ora no que concerne a esta incompetência, como consta dos autos os Recorrentes vieram rectificar as sus alegações quanto a este aspecto, tendo requerido que os presentes autos fossem remetidos ao tribunal da Relação de Guimarães e não à do Porto.
Assim sendo, a existir, sanada está tal excepção, realçando que desde que foram alteradas as competências territoriais das Relações este é um lapso de ocorrência frequente, certamente explicável por hábitos adquiridos ao longo dos muitos anos em que a competência territorial não coincidia com a actual.
Aliás, poderemos mesmo dizer que este tribunal está convencido e tem plena consciência de que esta atribuição de competência à Relação do Porto em vez da de Guimarães consubstancia um lapso material e não uma vontade consciente e deliberada de atribuir competência à Relação do Porto, razão pela qual, não raras vezes, tem-se corrigido esse lapso de modo oficioso, aceitando os recursos interpostos.
E assim sendo, nada mais haverá a considerar sobre esta aspecto, além de se considerar o lapso material rectificado e, por decorrência, se aceitar a presente apelação.
Alegam os Recorrentes que a decisão recorrida enferma do vício de nulidade por falta de fundamentação e por excesso de pronúncia, nos termos das alíneas b), c) e e) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Ora começando pela primeira das invocadas nulidades, temos que, estruturalmente, na arquitectura do nosso ordenamento jurídico, a fundamentação das decisões constitui a sua verdadeira e válida fonte de legitimação, e por isso tal específico dever se encontra constitucionalmente plasmado (art. 205º, nº 1 da C.R.P., ao prescrever que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente devem ser fundamentadas na forma prevista na lei).
Como é sabido, o dever de fundamentação (1) cumpre, em geral, duas funções: uma, de ordem endoprocessual, que visa essencialmente impor ao juiz um momento de verificação de controlo crítico da lógica da decisão, permitir às partes o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação, e ainda colocar o tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros, juízo concordante ou divergente; outra, de ordem extraprocessual, que procura tornar possível um controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo e da decisão.
A necessidade de fundamentação radica quer na função dos tribunais como órgãos de pacificação social, o que torna necessária a explicitação dos fundamentos das decisões como forma de persuasão das partes sobre a legalidade da solução encontrada (procurando o convencimento das partes mediante a argumentação dialéctica própria da ciência jurídica), quer na recorribilidade das decisões judiciais, o que implica a necessidade da parte vencida conhecer os fundamentos em que o julgador se baseou para os poder impugnar devidamente (2).
Tal exigência de fundamentação – garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático e do direito fundamental de recurso, que com essa justificação modela a fórmula constitucional e o conteúdo de tal exigência (3) – está expressamente consagrada, em termos gerais, no art. 154º do C.P.C., mostrando-se ainda patente em vários preceitos processais civis – vejam-se o art. 607º, nº 4 do C.P.C. (quanto à exigência de fundamentação do despacho que decida da matéria de facto controvertida), o art. 607º, nº 3 do C.P.C. (relativo à exigência de fundamentação da sentença) e o próprio art. 615º, nº 1, b) do C.P.C. (que comina com a nulidade os despachos ou sentenças que não observem o dever de fundamentação).
A exigência de fundamentação da matéria de facto provada e não provada com a indicação dos meios de prova que levaram à decisão, assim como a fundamentação da convicção do julgador, devem ser feitas com clareza, objectividade e discriminadamente, de modo a que as partes, destinatárias imediatas, saibam o que o Tribunal considerou provado e não provado e a fundamentação dessa decisão reportada à prova fornecida pelas partes e adquirida pelo Tribunal.
Para que a decisão careça de fundamentação “não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito” (4).
Assim, por exemplo, Miguel Teixeira de Sousa (5) refere que “... esta causa de nulidade verifica-se quando o tribunal julga procedente ou improcedente um pedido (e, por isso, não comete, nesse âmbito, qualquer omissão de pronúncia), mas não especifica quais os fundamentos de facto ou de direito que foram relevantes para essa decisão. Nesta hipótese, o tribunal viola o dever de motivação ou fundamentação das decisões judiciais (artigo 208º, nº 1 CRP e artigo 158º, n° 1 CPC) ...o dever de fundamentação restringe-se às decisões proferidas sobre um pedido controvertido ou sobre uma dúvida suscitada no processo ( ... ) e apenas a ausência de qualquer fundamentação conduz à nulidade da decisão ( ... ); a fundamentação insuficiente ou deficiente não constitui causa de nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso, se este for admissível".
No mesmo sentido se pronuncia, Lebre de Freitas (6), afirmando que "... há nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto da decisão ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não a constituindo a mera deficiência de fundamentação".
De igual modo, Antunes Varela (7), entende que a nulidade existe quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão e não a mera deficiência de fundamentação.
De tudo o exposto, como evidente resulta que, quer a ausência total de fundamentação, quer a existência de uma fundamentação de facto ou de direito que seja insuficiente e em termos tais que não permitam ao destinatário da decisão judicial a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial, constituirão causas de nulidade da sentença por falta de fundamentação.
Por outro lado, e no que concerne à segunda das invocadas nulidades, temos que, de acordo com esta disposição legal esta causa de nulidade, apenas ocorre naquelas situações em que se verifica uma oposição entre a decisão e os respectivos fundamentos em que se alicerça, ou seja, em todos aqueles casos em que ocorre uma contradição real entre os fundamentos e a decisão, por existência de um vício real no raciocínio do julgador, em que a fundamentação e a decisão não se articulam entre si numa relação de coerência, apontando antes em sentidos ou direcções opostas ou, pelo, menos, diferentes, em que, simultaneamente, os fundamentos não são passíveis de alicerçar a decisão, e esta última também não decorre como uma ilação sustentada e coerente da concreta fundamentação (8).
A sentença será, assim, nula porque entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se na fundamentação da sentença o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.
Verificar-se-á o segundo vício sempre que a sentença seja obscura ou ambígua, ou seja, quando contenha algum passo cujo sentido não seja inteligível, ou quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes, não se sabendo o que o juiz quis dizer, na primeira situação, e hesitando-se entre dois sentidos diferentes e, porventura, opostos, na segunda.
Em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade; se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo qual o pensamento do juiz. (9)
No mesmo sentido vai o acórdão do STJ de 28-3-95, ao considerar que o acórdão será obscuro quando contenha algum passo cujo sentido seja ininteligível e será ambíguo quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. (10)
Resulta assim como evidente que ao consagrar este regime visou a lei abranger todas aquelas situações em que a construção ou elaboração da sentença se encontra viciada por virtude de os fundamentos nela mencionados conduzirem, inelutavelmente, a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, daquela que foi tomada, ou em que seja ininteligível, encontrando-se fora do âmbito deste vício a errada subsunção dos factos à norma jurídica, bem como, a errada interpretação dela, que configuram o erro de julgamento (11).
Na verdade, não deve confundir-se tal nulidade com o erro na de subsunção dos factos à norma jurídica: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade. (12)
Assim, a oposição entre fundamentos de facto e a decisão não constitui o vício ali previsto, mas sim erro de julgamento, sendo que, a existir, o vício que daí resultaria não seria a nulidade da sentença recorrida, mas antes o previsto na alínea c), do nº 2, do artigo 662º do C.P.C., de harmonia com o qual a Relação deve oficiosamente, “anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta.”
A contradição entre factos ou entre fundamentos de facto e a decisão, são, assim, vícios cuja apreciação não está dependente da iniciativa das partes.
Por último, nos termos do artigo 615, nº 1, alínea d) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, a sentença é nula.
A nulidade prevista neste preceito abrange os casos nulidades da “omissão de conhecimento” e do “conhecimento indevido”.
O primeiro desses casos consiste, assim, no facto de a decisão não se pronunciar sobre questões de que o tribunal devia conhecer, por força do disposto no art. 608º, nº 2 do C.P.C..
Daí que se possa afirmar que a nulidade da decisão com fundamento na omissão de pronúncia apenas se verifica quando uma questão que devia ser conhecida nessa peça processual não ter tido aí qualquer tratamento, apreciação ou decisão, sem que a sua resolução tenha sido prejudicada pela solução, eventualmente, dada a outras.
A segunda das referidas hipóteses, a prevista na alínea d) – a do conhecimento indevido ou excesso de pronúncia –, verifica-se em todos aqueles casos em que sejam conhecidas e apreciadas questões que na sentença não podiam ser tratadas ou julgadas, por não terem sido colocadas em causa por qualquer das partes e não serem de conhecimento oficioso.
Este tipo de nulidade, tal como a omissão de pronúncia, está também directamente relacionada com o comando legal fixado no nº 2, do artº 608º, do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras”.
Esta norma suscita o problema de se saber qual o sentido exacto da expressão «questões» nele empregue, sendo elucidativos os ensinamentos de Alberto dos Reis, o qual refere que “(…) assim como a acção se identifica pelos seus elementos essenciais (sujeitos, pedido e causa de pedir) (…) também as questões suscitadas pelas partes só podem ser devidamente individualizadas quando se souber não só quem põe a questão (sujeitos), qual o objecto dela (pedido), mas também qual o fundamento ou razão do pedido apresentado”.
E, assim sendo, óbvio resulta que o conceito (questões) terá de ser considerado num sentido amplo, ou seja, englobando tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das excepções e da causa de pedir e às controvérsias que sobre elas as partes hajam suscitado.
De tudo decorre, assim, que não basta à regularidade da decisão a fundamentação que contém, revelando-se ainda necessário que trate e aprecie a divergência jurídica carreada para autos pelas partes, podendo assim considerar-se que esta causa de nulidade da decisão complementa a da nulidade por falta de fundamentação, pois que, o contraditório proporcionado às partes com relação aos aspectos jurídicos da causa não pode deixar de encontrar a devida expressão e resposta na decisão.
Destarte e, sintetizando, estando defeso ao Juiz ocupar-se de questões não suscitadas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso, a nulidade da decisão por pronúncia indevida (conhecimento indevido), constituindo hipótese inversa à da omissão de pronúncia, apenas ocorre nos casos em que na decisão se conhece questão de que não se podia tomar conhecimento.
Acresce ainda que, na observância deste princípio, no processo civil comum, o tribunal está também impedido de condenar em quantia superior ou em objecto diverso do que for pedido (art. 666.º/1 do CPC, anterior).
Deste modo, o juiz não só não pode conhecer, por regra, senão das questões que lhe tenham sido apresentadas pelas partes, como também não pode proferir decisão que ultrapasse os limites do pedido formulado, quer no tocante à quantidade quer no que respeita ao seu próprio objecto.
Como salienta M Teixeira de Sousa “um limite máximo ao conhecimento do tribunal é estabelecido pela proibição de apreciação de questões que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se forem de conhecimento oficioso (art. 660°, n° 2, 2.ª parte), e pela impossibilidade de condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (art. 661°, n.° 1). A violação deste limite determina a nulidade da sentença por excesso de pronúncia (art. 668°, n° 1, al. d) 2.ª parte) ou por conhecimento de um pedido diferente do formulado (art. 668°, n° 1, al. e)” (13).
No que respeita ao pedido, enquanto conclusão lógica do alegado na petição e manifestação da tutela jurídica que o autor pretende alcançar com a demanda, é, pois, de grande importância o modo como se mostra formulado, por, como se viu, o juiz não dever deixar de proferir decisão que se contenha nos estritos limites em que foi delineado pelo autor”. (14)
Aqui chegados, vejamos então se a decisão recorrida enferma ou não dos apontados vícios, ou seja, se existe falta de fundamentação, contradição entre os fundamentos e a decisão ou se o tribunal conheceu do que não, como pretendem os Recorrentes.
Como fundamento e, em síntese, das aludidas nulidades, invocam os Recorrentes que a sentença recorrida se limita a elencar uma seria de factos que considera provados, ou a remeter para diversos meios de prova, em termos absolutamente vagos, sem que, contudo, seja apresentada qualquer linha de raciocínio que permita encontrar o percurso lógico-dedutivo que levou o tribunal a decidir neste sentido.
Na verdade, em seu entender, de forma alguma se percebe e a sentença nada diz quanto a este aspecto, de que forma é que a matéria considerada provada contribuiu para a decisão de direito, já que nada na sentença é dito quanto às razões que levaram o tribunal a decidir-se, e mal, pela inclusão da verba n.º 1 da relação de bens.
A formulação constante da sentença recorrida reportada ao dever de fundamentação constante do art. 607º, nº 4, do Código de Processo Civil: “Foram considerados como factos não provados: todos os demais alegados que contrariam ou excedem os acima expostos [os 28 indicados como provados], nomeadamente os alegados em 6° a 11°, 58° a 77° da petição de embargos” é complexa, obscura, não permitindo a imediata exigível compreensão e apreensão dos factos que a sentença considerou não provados, pois implica uma indagação analítica e especiosa sobre quais são os factos não provados, com referência à formulação complexa “todos os demais alegados que contrariem ou acima expostos, nomeadamente os alegados nos arts. 6º a 11º, 58º a 77º da petição dos embargos”.
Ora, tecidas estas breves considerações e revertendo agora à análise da situação vertente, temos que, analisada a decisão recorrida com relação à sua fundamentação, não se nos afigura que aos Recorrentes assista qualquer razão, pois dúvidas não podem restar de que a decisão embora contenha uma fundamentação exígua e que poderia ter sido dotada de uma fundamentação mais completa e aprofundada, contem uma fundamentação suficiente e adequada à compreensão dos seus fundamentos, sendo igualmente certo que inexiste também qualquer oposição entre os fundamentos e a decisão ou excesso de pronúncia

Na verdade, da fundamentação da decisão consta o seguinte:
(…)

O Tribunal baseou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada de todos os meios de prova produzidos nos autos, independentemente da parte de que emanaram (art. 413.º do CPC), designadamente os seguintes:

i. Documentos:
- Certidões óbito e nascimento (fls. 35 a 42);
- Sentença de interdição e nomeação de tutor proc. n.º 162/16.5T8MNC (fls. 44 a 51);
- Sentença em incidente de remoção de tutor (fls. 53 a 63)
- Documentos bancários (fls. 52)
- Cartas e registo dos … (fls. 64 a 74);
- Cópia de queixa crime (69 a 74);
- Certidão habilitação (fls. 75)
- Recibos e facturas (fls. 79v e ss).

ii. Declarações do Cabeça casal
A. L. (nascido em ..-7-50, casado, reformado bancário, residente em Valença);

iii. Testemunhas
1. M. C. (nascida em ..-1-53, casada, reformada empregada comercial, residente em Valença) – esposa do o cabeça-de-casal;
2. F. J. (nascido em ..-9-76, casado, motorista, residente em Monção) – amigos dos interessados R. G. e M. L.;
3. L. D. (nascida ..-4-61, solteira, empregada domestica, residente em Monção) – funcionária da inventariada E. G.;
4. J. C. (..-10-75, casado, electricista, Monção);
5. O. M. (nascida em ..-7-53, viúva, reformada, domestica, Monção - Moreira) – funcionária da inventariada E. G.;
*
Tudo analisado de forma crítica de acordo com as regras da experiência e da lógica, respeitando ainda:

i. Os factos admitidos por acordo – confissão tácita ou presumida (“confessio ficta”) - resultante do efeito cominatório pleno ou semi-pleno ou do incumprimento do ónus de impugnação especificada, por não terem sido impugnados pela outra parte, quer os alegados quer pela Autora na petição inicial, quer os factos novos alegados pela Ré na Contestação se os mesmos se encontrarem especificados separadamente (artigos 574.º, n.º2, e 587.º do CPC);
ii. Os factos confessados pelas partes, judicial ou extra-judicialmente (nos termos do artº 352º do Código Civil a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária, sendo que, em relação à confissão judicial feita nos articulados a mesma não se confunde com os factos admitidos por acordo pois consiste em «…o réu reconhecer, na contestação, como verdadeiros, factos afirmados pelo autor na petição inicial, ou em o autor reconhecer, na réplica, como verdadeiros, factos afirmados pelo Réu, na contestação, ou em o réu reconhecer, na tréplica, factos afirmados pelo autor na réplica» (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, anotado, IV, pg. 86), sendo que em relação à confissão feita nos articulados pelo mandatário da parte e aceite pela contraparte, de forma expressa, clara e inequívoca, nos termos e para os efeitos do artigos 46º do Código de Processo Civil, a mesma adquire força probatória plena contra o confitente, nos termos do artigo 358º, nº1 do Código Civil, como modalidade de confissão judicial escrita.; e
iii. Os factos provados com base nos documentos juntos aos autos, não impugnados e/ou arguida falsidade, e que, nessa medida, fazem prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor nos termos do artigo 376.º, n.º1, do Código Civil.
Subtraídos à livre apreciação do julgador, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, do CPC; e
- As regras de funcionamento e distribuição do ónus da prova (nos termos do artigo 342.º e ss do CC), e o princípio consagrado no art. 414.º do CPC.
*
Desta forma, tendo presente os meios de prova referidos, isoladamente ou conjugados entre si, conforme infra se explicitará, cumpre concretizar em que precisos termos se formou a convicção do tribunal.
FACTOS PROVADOS 1 – 5: Assim, o Tribunal assentou a sua convicção relativamente aos 1.º a 5.º factos provados no teor dos seguintes documentos: Certidões óbito e nascimento (fls. 35 a 42) e Certidão de habilitação (fls. 75) – que são documentos autênticos e, nessa qualidade, fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador(art. 371.º do Cód. Civil), força probatória que apenas pode ser posta em causa sendo arguida a sua falsidade (art. 372.º do Cód. Civil).
FACTOS PROVADOS 6: O 6.º facto provado resulta dos documentos bancários (fls. 52), confirmado pelo cabeça de casal e testemunha M. C..
FACTOS PROVADOS 7 e 8: Encontram-se demonstrados com base no teor da Sentença de interdição e nomeação de tutor proc. n.º 162/16.5T8MNC (fls. 44 a 51); e Sentença em incidente de remoção de tutor (fls. 53 a 63).
(…)

À evidência perece-nos resultar, e de modo incontornável, do exposto, que a decisão recorrida não enferma de nenhum dos apontados vícios, ou seja, a decisão contém uma fundamentação suficiente, não se pronunciou sobre qualquer questão de que não pudesse conhecer e também não contém qualquer oposição entre os fundamentos, como pretendem os Recorrentes.

Com efeito, como consta da decisão recorrida, a questão a solucionar é a de “Saber se deve ser relacionado o seguinte bem: Verba n.º 1: Conta bancária n.º ........63 (Banco ...), no valor de € 102.897,97 (cento e dois mil, oitocentos e noventa e sete euros e noventa e sete cêntimos)”, sendo certo que, no entender dessa decisão, “Em relação ao passivo, não é esta a sede própria para o Tribunal se pronunciar, uma vez que a reclamação contra a relação de bens destina-se a acusar a falta de bens que devam ser relacionados, a requerer a exclusão de bens indevidamente relacionados por não fazerem parte do acervo a dividir ou a arguir qualquer inexactidão na descrição dos bens que seja relevante para a partilha, não se destinando a verificar da existência das verbas incluídas no passivo da relação de bens, sendo a aprovação do passivo, quer haja sido relacionado pelo cabeça de casal ou reclamado pelo respectivo, tem lugar na Conferência de Interessados”

Mais se refere na decisão recorrida o seguinte:
“FACTOS PROVADOS 6: O 6.º facto provado resulta dos documentos bancários (fls. 52), confirmado pelo cabeça de casal e testemunha M. C..
FACTOS PROVADOS 7 e 8: Encontram-se demonstrados com base no teor da Sentença de interdição e nomeação de tutor proc. n.º 162/16.5T8MNC (fls. 44 a 51); e Sentença em incidente de remoção de tutor (fls. 53 a 63)”.

Por último, atentando em que tais factos se sustentam em prova documental, conclui a decisão recorrida que “Face aos factos provados 6 a 8, deverá a reclamação à relação de bens ser julgada improcedente, mantendo-se relacionada a Verba n.º 1: Conta bancária n.º ........63 (Banco ...), no valor de € 102.897,97 (cento e dois mil, oitocentos e noventa e sete euros e noventa e sete cêntimos), cuja restituição à posse da inventariada foi já determinada por sentença”.
Assim sendo, embora, como se disse, exígua, parece-nos, no entanto, que a fundamentação da decisão é perfeitamente suficiente e perceptível nos seus fundamentos, de molde a permitir às partes “o recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação” e o “controlo externo e geral sobre a fundamentação factual, lógica e jurídica da decisão, garantindo a transparência do processo e da decisão”.
Isto porque se não verifica a total ausência de fundamentação que possa conduzir à invocada nulidade da sentença, pois a prova que a sustenta até é, no essencial, documental e vem mencionada na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto como prova na qual o tribunal recorrido fundou a sua convicção.
Com efeito, os documentos, depoimentos e declarações valoradas são satisfatoriamente esclarecedoras e suficientes para permitir e fundamentar a decisão proferida, do ponto de vista da demonstração e indemonstração dos factos que o foram e que sustentaram a decisão proferida.
Sendo, por outro lado, incontroversa a inexistência de qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, bem como, a existência de qualquer excesso de pronúncia, que nem são consistentemente alegados, nos seus fundamentos, pelos Recorrentes.
Destarte, na inexistência das invocadas nulidades, improcede, neste aspecto, a presente apelação.
Por último alegam ainda os Recorrentes que a sucessão se abre no momento da morte do seu autor, conforme disposto no art. 2031 do Código Civil, sendo que, a sucessão consiste no chamamento de terceiros à titularidade das relações jurídicas patrimoniais da pessoa falecida (art. 2024 CC).
O acervo hereditário é, portanto, o existente na titularidade do autor da herança no momento do óbito, ou seja, apenas inclui posições jurídicas, que, nesse fulcral momento, estivessem efectivamente na esfera jurídica do autor, pois ninguém pode transmitir por herança aquilo que não tem.
Os requerentes/recorridos invocam que deve ser relacionada a conta bancária no Banco ... com o número ........63, com o montante de 102.897,97€, e esta conta bancária, conforme certificado pelo Banco, estava, à data do óbito, provisionada com ZERO euros, pelo que, o valor de 102.897,97€ não se encontrava nesta conta há mais de 2 anos.
Para que as quantias que, à data do óbito, que não estavam depositadas em contas da inventariada, mas que, em momento anterior, tinham sido suas, fossem integradas no acervo hereditário, teria sido necessária a alegação e prova de que as mesmas quantias tinham sido ilicitamente subtraídas à sua dona, e tal não consta alegado, muito menos considerado provado na sentença recorrida, pelo que a transferência dessas quantias do património da inventariada para os aqui requeridos, em vida da inventariada, se tem de ter como lícita e válida.
Por outo lado, mais alegam que, ainda que se permita, como defendem os recorrentes, a realização de acertos de contas, tanto mais que eram estes quem suportavam todas as despesas com a inventariada até finais de 2017, isso só poderá ser decidido em acção de prestação de contas.
De tudo resulta, assim, no entender dos Recorrentes, que não podem restar dúvidas de que, no momento da abertura da herança, esta conta não fazia parte dos bens que a constituíam, logo, estava vedado ao tribunal decidir pela sua inclusão na relação de bens, devendo, ao invés, remeter as partes para os meios comuns para a decisão desta questão.
Ora, vejamos então se isto assim é.
E a propósito desta questão como, e em nosso entender, assertivamente refere o Recorrido, “O argumento que suporta a alegação dos Apelantes, assenta no facto do montante não estar depositado na conta da Inventariada E. G. na data do seu óbito, o que, por si só, não pode prevalecer.
Nesse sentido e mutatis mutandis: «Deve ser levado à relação de bens o saldo de duas contas bancárias, ainda que solidárias, cujos titulares eram o de cujus e o cônjuge sobrevivo, e que uma das filhas de ambos, autorizada a movimentar as contas, levantou, duas horas e meia antes da hora em que foi declarada a morte daquele, depositando numa conta poupança, da qual ela própria e outra sua irmã eram as únicas titulares, todo o dinheiro que levantara das supramencionadas contas.»
O Apelado apenas sabe que, em Novembro de 2015, os valores relacionados na Verba n.º 1 foram transferidos para uma conta dos Apelantes, que o assumiram em várias sedes e, para o que aqui releva, também não contestaram tal alegação nos presentes autos.
Sabe também Apelado que o Tribunal que julgou a acção de interdição deu como provado aquele facto e determinou a devolução dos quantitativos à Inventariada E. G..
E assim sendo, conclui, não se vê como poderia considerar-se excluído tal montante do Inventário pelo facto de tais quantitativos não estarem depositados na conta da Inventariada E. G. na data do seu falecimento.
De facto, a circunstância de um determinado bem não se encontrar, à data do óbito, na posse do de cujus não afasta a obrigação do seu relacionamento em sede de inventário, pois se assim não fosse, que sentido teria o art. 2088.º do Código Civil, que atribui ao cabeça-de-casal o poder de solicitar a herdeiros ou terceiros a entrega e/ou restituição de bens que não estejam na posse da herança mas que lhe caiba administrar.
No mesmo sentido, ainda que com outro alcance, também se poderá invocar o art. 2096.º do Código Civil, que prevê a sonegação de bens ou seja, bens que estão na posse de herdeiro ou terceiro mas que pertençam à herança.
Caso assim não se entenda, o que apenas se concebe por diligente dever de ofício, in extremis, deverão tais montantes ser considerados como crédito da herança, com obrigação de restituição a impender sobre os Apelantes, que deverão ser havidos como devedores solidários, tudo nos termos e para os efeitos do disposto no art. 1098.º do CPC.
Com efeito, das duas uma: Se o dinheiro existe e está à guarda dos Apelantes - como estes declararam no processo de interdição — então não há dúvida que deve figurar como activo da herança, devendo ser restituído para partilha; Se não existe, deve ser havido como crédito da herança sobre os identificados Apelantes, porquanto foi por estes utilizado em seu benefício pessoal.
Como conclui o Recorrido, «Age com a intenção de ocultar dos demais herdeiros, evitando que entre em partilha, o herdeiro que, estando autorizado a movimentar as contas bancárias do inventariado, duas horas e meia antes dele falecer, procede ao levantamento dos saldos de duas das contas, encerrando-as, e deposita o dinheiro levantado numa conta poupança, da qual é o único titular, e ao longo de todo o processo de inventário (e mesmo na acção declarativa para a qual foram remetidos os interessados) toma uma atitude de total negação da existência do referido dinheiro, de encobrimento absoluto das operações bancárias que efectuou, movendo oposição a todas as diligências, designadamente junto dos Bancos, que visavam averiguar da existência de contas bancárias e do respectivo saldo à data do óbito do inventariado, invocando o sigilo bancário, e recorrendo dos despachos que as ordenaram, e mesmo quando, obtida a informação, do Banco, da existência das referidas duas contas bancárias e do respectivo saldo, do levantamento efectuado, do encerramento dessas contas, da hora em que ocorreu o levantamento, e do destino dado ao valor dos saldos, vêm alegar que o saldo era nulo quando o inventariado faleceu.» (15)

Destarte, e por decorrência de tudo o exposto, improceda a presente apelação, com a consequente manutenção da decisão recorrida.

IV- DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos Apelantes.
Guimarães, 13/07/2022.
Processado em computador. Revisto – artigo 131.º, n.º 5 do Código de Processo Civil.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relator: Jorge Alberto Martins Teixeira.
Adjuntos: Desembargador José Manuel Alves Flores.
Desembargadora Sandra Melo.



1. Como foi salientado já no Ac. TC nº 304/88, de 14/12 no BMJ 382/230 e no DR, II Série, de 11/04/1989.
2. Cfr. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 688 e 689.
3. Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional de 11/01/2000, na sítio http://w3.tribunalconstitucional.pt.
4. Cfr. A. Varela e outros, obra citada, p. 687.
5. Cfr. Estudos Sobre o Processo Civil. pg. 221.
6. In Código de Processo Civil Anotado, vol. 2º, pg. 669.
7. In Manual de Processo Civil, pg. 667.
8. Cfr. A. Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada, pp. 689/690.
9. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, pág 152.
10. Cfr. Acórdão do STJ de 28-3-95, in BMJ nº 445, pág 388 e R. Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, 1972, vol. III, pág. 249.
11. Cfr. Fernando Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 9ª edição, p. 56.
12. Cfr. Lebre de Freitas CPC anotado, 2008, vol II, pag. 704.
13. In Estudos sobre o Novo Processo Civil, pg 362.
14. Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 26/11/2009, proferido no processo nº 996/05.6TCLRS.L1-6, in www.dgsi.pt
15. Cfr. acórdão TRG de 26/04/2018, Proc. n.º 1056/05.5TBFAF.G2, disponível em www.dgsi.pt.