Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2294/10.4TAGMR.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: BURLA TRIBUTÁRIA
ELEMENTOS DO CRIME
NÃO PRONÚNCIA
CONTRA-ORDENAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/30/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) O preenchimento do tipo de crime de burla tributária do artigo 87º nº 1 do RGIT não se basta com o mero aproveitamento de um erro e exige a prática pelo agente de um comportamento fraudulento activo;
II) In casu, é de manter a decisão instrutória de não pronúncia pela prática do referido tipo de ilícito, pois que, apesar de se indiciar o incumprimento do dever de comunicar a colocação laboral aos serviços da segurança social, o certo é que não se indicia que a arguida tenha desenvolvido activamente qualquer conduta que determinasse a entidade pagadora a continuar a pagar-lhe o subsídio de desemprego.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Nos presentes autos com nº 2294/10.4TAGMR, o magistrado do Ministério Público formulou acusação contra Lurdes P., imputando-lhe o cometimento em autoria material e por omissão de um crime de burla tributária qualificada, previsto e punido nos artigos 87.º n.º 1 e n.º 2 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 10.º n.º 1 e n.º 2 do Código Penal e contra Maria A. imputando-lhe o cometimento do mesmo tipo de crime mas como cúmplice, tendo presente ainda as normas dos artigos 27.º e 73.º do Código Penal.

As arguidas requereram a realização da instrução, concluindo que deve ser proferido despacho de não pronúncia

Após a realização do debate instrutório, o Exmo. juiz da 2ª secção de instrução criminal da instância central de Guimarães da Comarca de Braga proferiu decisão instrutória de não pronúncia das arguidas, por concluir que o comportamento imputado às arguidas na acusação pública não integra o cometimento do crime de burla tributária, mas de uma contra-ordenação prevista e punida nos artigos 64.º e 65.º do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3/11.

Inconformado, o Ministério Público representado pelo procurador-adjunto na Comarca de Braga, interpôs recurso e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição) :

1.º O Tribunal a quo considerou que os factos provados em sede de instrução seriam, em tese, suficientes para a imputação às arguidas do crime de burla tributária, praticado por omissão.

2.º De facto, o crime de burla tributária é um crime de execução livre e de resultado e as arguidas desrespeitaram o dever de garante expressamente consagrados nos art.°s 42°/2, al. a), 52°/1 , al. a) e 56°/a) do DL 220/06, pelo que se impõe a aplicação do art° 10°/1 do Código Penal ao crime p. e p. pelo art.° 87°/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, por força do art.° 3°, aI. a) do mesmo diploma.

3.º Porém, o Tribunal a quo afastou essa possibilidade, em nome do princípio da intervenção mínima do Direito Penal e do facto da conduta provada ser punida pelas contra-ordenações previstas no art.° 64°/1 e /2 do DL 220/06, de 03/1 1.

4.º O art.° 20° do Regime Geral das Contra-Ordenações, aplicável por força do art.° 3°, al. b), do Regime Geral das infracções Tributárias, e o art.° 74°/2 do Regime Geral das Infracções Tributárias, aplicável por força do art.° 1°/2 do mesmo diploma, prescrevem, expressamente, solução diametralmente oposta: em caso de concurso entre crime e contra-ordenação, os agentes devem ser punidas a título criminal.

5.ºIndependentemente disso, o crime de burla tributária, praticado por omissão, exige requisitos não previstos pelas contra -ordenações, pelo que tem um âmbito de aplicação mais restrito do que estas, circunscrito às situações com maior danosidade social.

6°Em consequência, relativamente aos comportamentos abrangidos pelo art.° 87°/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias, na perspectiva do sistema jurídico, a tutela contra - ordenacional é insuficiente para a devida protecção dos respectivos bens jurídicos, em consonância com os ditames da consciência ético- jurídica fundamental da comunidade.

7°Por todas estas razões e s.m.o., a aplicação do princípio da intervenção mínima e do art.° 18°/2 da Constituição da República Portuguesa não tem lugar no caso vertente.

8.º Pelo exposto, o Tribunal a quo deveria ter proferido despacho de pronúncia das arguidas pelos factos que considerou provados e que consubstanciam a prática, por omissão, de um crime de burla tributária, p. e p. pelo art.° 87°/1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e pelo art.° 10°/1 do Código Penal, sendo a arguida Mónica Monteiro enquanto autora e a arguida Maria M. enquanto cúmplice.

9.º Ao não ter decidido desta forma, o Tribunal a quo violou os dispositivos legais acima citados.

Termos em que se requer o provimento do presente recurso, substituindo-se o despacho recorrido por despacho de pronúncia, sustentado nos documentos de fls. 412 e 566 a 577 e na prova indicada na acusação, à excepção dos documentos de fls. 538, 539, 541, 546 a 551, 553 a 556, 558 e 560 a 565, assim se fazendo Justiça.

As arguidas formularam resposta concluindo que a decisão recorrida não merece reparo e deve improceder o recurso.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público, agora representado pelo procurador-geral-adjunto, emitiu fundamentado parecer no sentido de que o recurso do Ministério Público não merece provimento, “pois que pretendendo-se com ele a pronúncia das arguidas pela autoria de um crime de fraude tributária estando em causa prestações de subsídio de desemprego pagas pela Segurança Social, tendo em conta a não contestada factualidade dada como suficientemente indiciada, em causa não se encontra o tipo-base previsto no art.º 87.º, n.º 1 do RGIT, mas sim o especial previsto no art.º 106 do mesmo RGIT, não assumindo relevo penal a conduta daquelas, por a vantagem ilegitima auferida se inferior a 7500 euros, constituindo a conduta indiciada apenas ilícito de mera ordenação social.

Recolhidos os vistos do juiz desembargador presidente da secção e da juíza desembargadora adjunta, cumpre decidir em conferência.

2. A decisão recorrida considerou como suficientemente indiciada a seguinte factualidade (transcrição parcial):

«1. Em 2 de Janeiro de 2006, a arguida Lurdes P. dirigiu-se ao Centro de Emprego da Segurança Social de Guimarães e requereu a concessão de subsídio de desemprego.

Para tanto, a arguida invocou cessação do contrato de trabalho por iniciativa do empregador.

2. A pretensão da arguida foi deferida em função da situação de desemprego por si invocada.

3. Em consequência, entre Janeiro de 2006 e Abril de 2008, a Segurança Social pagou à arguida subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego subsequente.

4. A Segurança Social pagou um total de €13.401,50, correspondente a uma remuneração diária de €19,47 durante 540 dias (entre 03/01/2006 e 02/07/2007), €10,61 durante 178 dias e €10,86 durante 92 dias (estes montantes entre 03/07/2007 e 02/04/2008).

5. Desde 2001 que a arguida Maria M. é gerente da sociedade “----, Lda.”, até 2013 com sede social na Rua M….

A arguida Maria M. é prima da arguida Lurdes P..

Pelo menos entre Setembro de 2007 e data não apurada posterior a 2008, as arguidas viveram em comunhão habitacional e económica.

6. Desde pelo menos Setembro de 2007 que a arguida Lurdes P. trabalha por conta e no interesse da sociedade arguida, e sob subordinação hierárquica da arguida Maria M..

De facto, desde essa altura que a arguida Lurdes P. trabalha nas instalações da sociedade gerida pela arguida Maria M. e nas exposições do ramo em que a mesma participa.

A arguida Lurdes P. realiza as tarefas de acordo com as determinações da arguida Maria M., normalmente de apoio nas áreas financeira, administrativa e comercial da sociedade arguida e de apoio às exposições.

7. Em contrapartida, e entre pelo menos Setembro de 2007 e Abril de 2008, a arguida Lurdes P. recebeu um salário mensal de pelo menos €586,00, pago normalmente em cheque, depositado e o seu valor creditado em conta bancária titulada por aquela.

9. De acordo com os artigos 42.º, n.º 2, alínea a), 52.º, n.º 1, alínea a), e 56.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 220/06, a arguida Lurdes P. tinha o dever de comunicar à Segurança Social a relação de trabalho encetada com a sociedade arguida.

A arguida foi pessoalmente informada desse dever quando apresentou o requerimento aludido em 1º.

A arguida nunca comunicou essa situação, limitando-se a percepcionar os valores mensais de subsídio que lhe foram depositados.

10. A arguida Maria M. sabia dessa obrigação legal, não só pela convivência íntima tida com a arguida Lurdes P., mas também porque só comunicou à Segurança Social a relação de trabalho dependente com Lurdes P. em Outubro de 2010.

11. A não comunicação atempada da relação de trabalho com a sociedade arguida impediu a Segurança Social de suspender e cessar o pagamento das prestações mensais dos subsídios posteriores a Setembro de 2007, que totalizaram o montante de €2.251,10.

12. A arguida Lurdes P., sabendo que estava legalmente obrigada a comunicar à Segurança Social a relação de emprego com a sociedade arguida, agiu com o propósito de o não fazer, a fim de induzir a Segurança Social em erro quanto à existência de condições que obrigavam à suspensão e cessação do pagamento dos subsídios, e assim determinar a Segurança Social a continuar os pagamentos e enriquecer ilegitimamente com os mesmos, o que conseguiu.

A arguida Maria M., apesar de conhecer a obrigação da outra arguida, agiu com o propósito de auxiliar a satisfação dos intentos da arguida, não declarando ao ISS a relação de trabalho desta com a sociedade arguida e mascarando o pagamento de salários através de cheques emitidos por familiares.

As arguidas agiram livre, deliberada e conscientemente, apesar de saberem que a respectiva conduta era proibida e punida penalmente.».

3. Em conformidade com as conclusões da motivação, que delimitam o objecto do recurso e os poderes de cognição deste tribunal, a questão a decidir consiste fundamentalmente em saber se preenche os elementos objectivos do tipo de crime de burla tributária a conduta de um beneficiário de subsídio social que omite a comunicação aos serviços da Segurança Social da verificação de uma circunstância que tenha de determinar a suspensão ou cessação do pagamento dessas prestações sociais.

Este problema tem merecido respostas distintas e mesmo contraditórias na jurisprudência e na doutrina, como bem ressalta da exaustiva apreciação constante da decisão recorrida, da motivação de recurso e do fundamentado parecer do procurador-geral-adjunto neste Tribunal da Relação de Guimarães.

Segundo uma das teses em confronto, o comportamento meramente omissivo do beneficiário nunca será suficiente para constituir burla tributária, sublinhando-se a necessidade de se indiciar a prática pelo agente de um meio fraudulento activo e de um nexo de causalidade entre a conduta do agente e a atribuição da prestação social (neste sentido os acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 8/11/2005 proc. n.º 1598/05.1 em www.dgsi.pt, de 31/1/2006 (CJ, I, p. 257), de 1/4/2008 (proc. 2284/07-1 na Colectânea “on line”), de 13/01/2009 (CJ Ano, T. I, pág. 277, de 7/12/2012 (proc. 312/11.8TAABF) e de 28/01/2014 (proc. 16/12.4TDEVR.E1) e no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/01/2011 (proc. 370/06.7TACBR.C1), acessíveis in www.dgsi.pt.

Numa perspectiva diferente, a eventualidade de um comportamento meramente omissivo integrar o crime de burla tributária foi aceite nos acórdãos do Tribunal da Relação de Évora de 7/2/2006 (C.J., I, p. 258) e de 8/01/2013 1298/11.4TAABF.E1 e no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28/5/2014 no proc 1152/09.0TDPRT.P1 in www.dgsi.pt., citado pelo recorrente

São elementos constitutivos do crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º, nº 1 do RGIT, (1) o uso de erro ou engano sobre factos, provocado por meios fraudulentos como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante, (2) que sejam aptos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais (3) resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.

Independentemente da questão de saber, em tese geral, se a burla pode ser cometida por omissão quando o dever de agir derive de uma posição de garante, acompanhamos o entendimento da jurisprudência indicado em primeiro lugar, que realça a diferente configuração do processo de execução na burla tributária, por confronto entre as descrições típicas dos artigos 217º do Código Penal e 87º, nº 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT).

Com se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 13/01/2009, se não subsistem dúvidas de que quer a burla comum, quer a burla tributária constituem crimes de resultado e de execução vinculada, é igualmente certo que “o legislador tributário, diferentemente do legislador do C. Penal, concretizou a "matriz" dos meios fraudulentos tendentes a induzir o erro ou engano, e ao fazê-lo, fê-lo com referência a condutas astuciosas comissivas activas e não já a meras condutas omissivas do agente, aspecto que obsta à tese da equiparação da omissão à acção, nos termos do art. 10º do Código Penal.

Daí que, se na burla comum se pode considerar a existência de “uma analogia substancial entre o induzir outrem em erro e o silêncio doloso sobre um erro preexistente, a solução é necessariamente distinta na burla tributaria, em que a configuração do tipo exige o uso de um meio fraudulento "activo" e não só o aproveitamento de um erro" – RGIT Anotado Jorge Lopes de Sousa, Manuel Simas Santos, 4ª edição, p. 600 e 601

4. As condições de atribuição do subsídio de desemprego e dos deveres dos respectivos beneficiários encontram-se estabelecidas no Decreto-Lei n.º 220/06 de 3/11.

Nos termos do n.º 2 do artigo 42.º, desse diploma legal, os beneficiários das prestações de desemprego estão obrigados, durante o período de concessão das prestações, a comunicar ao serviço da segurança social da área de residência ou instituição de segurança social competente qualquer facto susceptível de determinar a suspensão ou a cessação das prestações. Subsequentemente, prescreve o n.º 1 do artigo 52.º do mesmo diploma que o exercício de actividade profissional por conta de outrem ou por conta própria, por período consecutivo inferior a três anos determina a suspensão do pagamento das prestações de desemprego.

Não há dúvida de que a arguida Lurdes P. tinha o dever de comunicar aos serviços da Segurança Social a colocação laboral e que, segundo se indicia, a arguida recebeu um benefício patrimonial que deixara de lhe ser devido.

Contudo, para continuar a receber esse subsídio de desemprego e subsídio social de desemprego entre Setembro de 2007 e Abril de 2008, nenhuma das arguidas desenvolveu activamente qualquer conduta que seja susceptível de preencher os requisitos do nº 1 do art. 87º do RGIT, nem usou, activamente, de qualquer outro meio fraudulento que determinasse a entidade pagadora a continuar a pagar-lhe

Omitindo o dever de informar a administração da segurança social, a arguida valeu-se do desconhecimento da realidade mas não determinou esses mesmos serviços a entregar-lhe prestações a que já não tinha direito.

Nestes termos, a indiciada conduta da arguida Lurdes P., visando e obtendo recebimento indevido de prestações de segurança social, seria susceptível de integrar o crime de fraude à segurança social descrito no artigo 106.º do RGIT. A co arguida poderia ser responsabilizada em comparticipação. Contudo, a indiciada vantagem patrimonial auferida (€2.251,10) é inferior ao limite mínimo de 7500 €, pelo que também a fraude não merece neste caso tutela penal.

A omissão da comunicação do início de uma actividade profissional constitui um tipo contra-ordenacional. Com efeito, dispõe-se no artigo 64º, nº 1 do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3/11, que “constitui contra-ordenação punível com coima de € 100 a € 700 o incumprimento dos deveres para com os serviços ou instituições de segurança social previstos no nº 2 do artigo 42º” (ou seja da comunicação de uma causa de suspensão ou cessação da prestação social). E, “no caso de violação do dever de comunicação do início de actividade profissional determinante da suspensão do pagamento das prestações previsto no nº 2 do artigo 42º, e tendo em conta a gravidade da infracção, pode ser aplicada ao beneficiário, simultaneamente com a coima a que houver lugar, a sanção acessória de privação de acesso às prestações de desemprego pelo período máximo de dois anos (…)” – artº 65º do mesmo diploma.

Em conclusão: a conduta indiciada nos autos é susceptível de integrar a prática de uma contra-ordenação, prevista e punida pelos artigos 64º e 65º do Decreto-Lei nº 220/2006, de 3/11, mas não a prática do crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º, nº 1 do RGIT, como pretende o recorrente. Nenhuma censura merece a decisão recorrida, que deve ser mantida.

5. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso do Ministério Público e em manter a decisão instrutória.

Guimarães, 30 de Novembro de 2015.

Documento elaborado pelo relator e integralmente revisto por quem o subscreve

João Carlos Lee Ferreira

Alcina Costa Ribeiro