Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
376/11.4TACHV.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: PROVA PROIBIDA
CARTA ROGATÓRIA
VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
INUTILIZAÇÃO DE TESTEMUNHOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RCURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I - No caso vertente, na fase de julgamento, foi determinada a inquirição de testemunhas (residentes na Suíça), através de cartas rogatórias, as quais, constituindo modalidade de comunicação entre vários países, corporizam a prática de actos realizados no estrangeiro [art. 111º, 3, alínea b), do CPP], cuja legalidade resulta do conjunto dos arts. 229º, 230º e 318º, do CPP.
II - Ainda que um documento incluído num processo seja uma prova de cujo conteúdo as partes têm conhecimento e que se considera produzida em audiência e submetida ao contraditório sem necessidade de ser lida para valer em julgamento, neste caso, as mencionadas cartas rogatórias, para o efeito que ora nos ocupa, não podem ser adquiridas como “documento”, no sentido de um «objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto» (art. 362º do CC), ou «declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal» (art. 164º, nº 1, do CPP), antes encerram depoimentos testemunhais que, como quaisquer outras provas, nos termos do art. 355º do CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, se não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, ressalvadas as provas contidas em actos do processo cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos 356º e 357º do CPP.
III – Ainda que considerada a legalidade dos meios de prova obtidos por carta rogatória, o certo é que os mencionados depoimentos se enquadram na previsão do nº 2, alínea c) daquele art. 356º, preceito que não derroga a determinação de que todas as provas que, concretamente, contribuam para a decisão do tribunal de julgar provados ou não provados factos com interesse para a decisão de alguma das questões que integram o objecto da causa sejam produzidos ou examinadas em audiência pública, tendo em vista a contraditoriedade imposta pelo art. 327º, nº 2, do CPP que dispõe que os meios de prova apresentados no decurso da audiência, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal, são submetidos ao princípio do contraditório, acolhido na segunda parte do nº 5 do art. 32º da CRP.
IV - Tendo o Tribunal formado a sua convicção com base, mesmo que não primordial ou essencialmente, pelo menos, também nas ditas declarações não examinadas em audiência, ponderadas em conjunto com outras provas, como ressalta da motivação da decisão sobre a matéria de facto, a violação do princípio da imediação e do seu regime constante dos artigos 355º a 357º, do CPP, inutiliza a prova afectada pelo seu desrespeito que, por isso, não pode ser invocada nem pode valer para o efeito da formação da convicção.
V - Verificando-se o apontado vício, sem que se saiba quais foram os elementos probatórios determinantes para a motivação, não é possível autonomizar ou “expurgar” pura e simplesmente a prova proibida, pelo que deverá ser proferida uma nova sentença, sem a ponderação dos depoimentos extractados nos autos de cartas rogatórias.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

No processo comum singular nº 376/11.4TACHV da Instância Local, Secção Criminal, de Chaves da Comarca de Vila Real, a arguida Sandra C. foi julgada tendo sido proferida decisão a 08/03/2016 com o seguinte teor (transcrição):
«a) Condenar a arguida Sandra C. pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de difamação, com publicidade, p. e p. pelos arts. 180.º, n.º 1 e 183.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código Penal, na pena de 220 (duzentos e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz a multa final de € 1320,00 (mil trezentos e vinte euros).
b) Condenar, ainda, a arguida no pagamento das custas, fixando-se em 2 (três) UCs a taxa de justiça, (artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa ao mesmo) e nos demais encargos do processo.
Quanto à parte cível
c) Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo demandante Mário F. e, em consequência, condenar a demandada Sandra C. a pagar-lhe a quantia de 3 500,00€ (três mil e quinhentos euros) a título de danos de natureza não patrimonial, quantia acrescida de juros de mora, à taxa legal sobre a referida quantia desde a presente decisão e até efectivo e integral pagamento, (cfr. artºs. 804º, 805º nº 3 e 806º do Cód. Civil e 78º do Código de Processo Penal), absolvendo-a do demais peticionado pelo demandante.
d) Custas relativamente ao pedido de indemnização civil por demandante e demandada, na proporção do respectivo decaimento (art.º 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil e art.º 4.º, al. n do Regulamento das Custas Processuais, a contrario).».
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Inconformada com a referida decisão, a arguida interpôs recurso, formulando na sua motivação as seguintes conclusões:
«A. Com todo o respeito que é devido se entende que os factos constantes dos pontos 7, 9, 10, 11, 12, 19, 20, 21, 23 a 30, deveriam ter sido valorados como “não provados”;
B. A arguida nunca disse que o arguido se prostituía, mas apenas que se havia registado num site de prostituição - depoimento, prestado a 13.01.2016 (mn. 05:28 – 05:31);
C. Ao conceder a entrevista objeto dos presentes autos, a Arguida teve como único intuito e propósito “denunciar situações de violência doméstica, contando a sua experiência” - pág. 16, último parágrafo da sentença recorrida; depoimentos da arguida, prestados a 17.12.2015 (mn. 04:51 – 05:20; mn. 10:05 – 10.51; mn. 11:57 – 12:44), a 13.01.2016 (mn. 00:14 – 00:23) e a 03.02.2016 (mn. 18:00 – 19:24; 20:25 – 20:46; 24:14 – 25:25) e depoimento de Fernanda Ferreira, mãe da arguida, prestado a 03.02.2016 (mn. 09:28 – 10:17);
D. A arguida desconhecia que toda a sua conduta era proibida e punida por lei - depoimento prestado a 03.02.2016 (mn. 18:00 – 19:00);
E. A arguida não tinha consciência de que o programa “Praça da Alegria” seria visualizado (se é que o foi) por “milhões de pessoas” em todo o “mundo” - depoimento prestado no dia 03.02.2016 (mn. 19:24 – 19:52);
F. Na entrevista, a arguida nunca referiu o nome do assistente;
G. A arguida nunca teve o propósito de atingir o assistente na sua honra e consideração ou sob qualquer forma;
H. O assistente não se sentiu envergonhado, com a entrevista dada pela arguida e objeto dos presentes autos – depoimento do assistente prestado no dia 06.01.2016 (mn. 10:02 – 11:12; mn. 26:02 – 27:12);
I. A factualidade dada como provada, no que aos pontos supra mencionados diz respeito, carece de fundamentação, tanto mais que, por requerimento apresentado a 27.11.2015, o assistente prescindiu de todas as suas testemunhas;
J. A condenação da arguida consubstancia uma violação ao seu direito constitucionalmente reconhecido, e fundamental para uma sociedade que se quer democrática, à liberdade de expressão – artigo 37.º da Constituição da República Portuguesa;
K. A arguida sempre esteve convicta que estava a exercer um direito legítimo e próprio, em prol da comunidade, assim, “convertido” em direito social, de elevada importância;
L. Não foi dado como provado que os factos imputados pela arguida ao assistente na entrevista sejam falsos e não tivessem correspondência com a verdade (Factos não provados da douta sentença recorrida);
M. O interesse público e social visado com a concessão da entrevista, no sentido de combater a violência doméstica, levando a que as suas vítimas tenham a coragem de falar e denunciar as situações de maus tratos, justificou as declarações da arguida;
N. O princípio da imediação ou produção da prova em julgamento, consagrado no artigo 355.º do Código de Processo Penal, determina que apenas possam valer para a formação da convicção do tribunal as provas que forem produzidas ou examinadas em audiência;
O. O princípio do contraditório estipula que toda a prova deva ser produzida perante o arguido, por forma a ser-lhe permitido o exercício desse mesmo contraditório;
P. Garantindo o contra interrogatório previsto no n.º 4, do artigo 348.º do Código de Processo Penal;
Q. As declarações das testemunhas do assistente, prestadas em sede de inquérito, e que constam das pág. 7 e 8 da “fundamentação da convicção do tribunal”, não foram lidas em sede de audiência de julgamento, nos termos e para os efeitos do vertido no artigo 356.º do Código de Processo Penal;
Sem prescindir,
R. O assistente prescindiu de todas as suas testemunhas por requerimento datado de 27.11.2015 com a referência 644578, do qual consta expressamente, SIC: “Mário F. (…) vem mui respeitosamente prescindir de todas as testemunhas por si arroladas nos presentes autos”;
S. O que determinou tais declarações se tenham tornado prova proibida, não podendo servir para fundamentar a sentença condenatória;
Sem prescindir de tudo o que supra se alegou,
T. O artigo 31.º, do Código Penal prevê as causas “gerais” de exclusão da ilicitude, devendo aplicar-se, in casu, a causa constante da alínea b), do n.º 2, do artigo 31.º do Código Penal;
U. Ao conceder a entrevista alvo do presente processo criminal, a arguida fê-lo no uso de um direito legítimo e perfeitamente válido, de liberdade de expressão;
V. Não houve qualquer tipo de dolo por parte da arguida - artigo 14.º do Código Penal;
W. Faltando ao mesmo o elemento subjetivo (volitivo ou intencional), pois nunca teve intenção do ofender o assistente ou atingi-lo na sua honra e consideração pessoais;
Sem prescindir, ainda,
X. A arguida não tinha consciência de que o seu comportamento poderia ser penalmente condenado, agindo sem culpa - n.º 1, do artigo 17.º do Código Penal e depoimento prestado no dia 03.02.3016 (minutos 18:00 – 19:24);
Y. Razão pela qual se entende que, in casu, e sem prescindir de tudo o que se alegou supra, se verificou um erro sobre a ilicitude do comportamento da arguida, excluindo-se uma eventual culpa que lhe poderia ser imputada;
Z. Por tudo o que supra fica dito se entende, salvo melhor opinião em sentido contrário e sempre com todo o respeito que é devido, que condenando a arguida, a douta sentença recorrida não fez uma correta interpretação dos artigos 13.º, 14.º, 37.º, 132.º, 348.º, 355.º, 356.º, do Código Penal, artigo 37.ª da Constituição da República Portuguesa e artigo 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Nos termos supra mencionados e nos melhores de direito, deverá a douta sentença proferida ser revogada, devendo ser substituída por outra que absolva a arguida.

O Ministério Público, em 1ª Instância, apresentou resposta à motivação, pugnando pela improcedência do recurso com as conclusões seguintes:
«A) Não foi violado o disposto no art. 127º do C.P. Penal.
B) A sentença recorrida fez uma correcta determinação da matéria de facto com interesse para a decisão da causa, sendo a sua fundamentação perfeitamente clara sobre o processo lógico a que conduziu.
C) O recurso interposto pela recorrente é, em nosso entender, destituído de fundamento
D) Do exposto e salvo o devido respeito por opinião contrária, deve o recurso improceder, assim fazendo, a habitual Justiça.».
Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu fundamentado parecer, sustentando que apesar de o Tribunal de 1ª Instância se ter socorrido de prova proibida para formar a sua convicção, tal nulidade apenas afecta a decisão proferida sobre a parte cível, não beliscando a parte penal, na medida em que o mencionado meio de prova acabou por não servir para alicerçar aquela convicção na parte penal, pugnando assim, pela improcedência do recurso.
Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
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Discordando ainda do despacho proferido a fls. 316 e 317, que indeferiu a arguição de nulidades suscitadas na sua contestação, interpôs também a arguida o recurso intercalar de fls. 349 a 358, alegando, em suma, que carecia o Ministério Público de legitimidade para acrescentar factos à acusação particular e que tal aditamento consubstancia uma alteração substancial de factos, pugnando pela revogação do despacho recorrido e sua substituição em que se declare a nulidade da acusação particular.
Notificada a arguida nos termos do art. 417º, nº 3, do CPP, para que completasse as conclusões respeitantes ao recurso da sentença, indicando se continuava interessada no conhecimento do recurso intercalar, sob pena de não o fazendo, o mesmo não ser conhecido, a mesma nada disse ou fez (cfr. fls. 1223). Assim, nos termos da citada disposição, não se conhecerá de tal recurso intercalar.
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Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscitam-se, no recurso principal, as questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência, de saber se:
1ª- Foram valoradas, contra o disposto nos arts. 355º, 356º e 348º, nº 4, do CPP, as declarações constantes das cartas rogatórias, não lidas nem examinadas em audiência a fim de garantir o contra interrogatório;
2ª- Foram valoradas declarações de testemunhas que haviam sido prescindidas e que, assim sendo, consubstanciam prova proibida;
3ª- Foi incorrectamente julgada a matéria de facto constante dos pontos 7, 9, 10, 11, 12, 19, 20, 21, 23 a 30, que deveria ter sido considerada como não provada;
4ª- A actuação da recorrente correspondeu ao exercício legítimo de um direito;
5ª- A recorrente agiu sem consciência da ilicitude.
Importa apreciar tais questões e decidir. Para tanto, deve considerar-se como pertinentes ao conhecimento do objecto do recurso os factos considerados provados na decisão recorrida e respectiva motivação (transcrição):
«1) No dia 12-01-2011 a Arguida foi entrevistada no programa Praça da Alegria emitido pela Rádio e Televisão Portuguesa.
2) A arguida disse ter sido sistematicamente agredida e até violada pelo seu então marido, ora assistente, inclusivamente na presença da segunda filha do então casal.
3) A Arguida imputou ao Assistente maus tratos físicos e psicológicos constantes às suas três filhas.
4) A arguida diz que o queixoso tinha e tem perturbações psicológicas, padecendo inclusivamente de dupla personalidade.
5) Referiu que o ora assistente proferia palavras grosseiras dirigidas à denunciada e às filhas do então casal.
6) A arguida referiu que o queixoso destruía o recheio da sua casa quando se encontrava com alterações de humor,
7) Disse que o Assistente angariava clientes com vista a prostituir-se por dinheiro.
8) Tais factos foram imputados ao queixoso pela denunciada e repetidos sistematicamente na referida entrevista.
9) A Arguida agiu livre, voluntária e consciente e intencionalmente no manifesto propósito de Difamar e Caluniar o assistente imputando-lhe uma mescla de factos, publicitando os mesmos através dos meios televisivos, ciente de que toda a sua conduta era proibida e punida por lei.
10) A arguida sabia que o programa “Praça da Alegria” referido em 1.º (da acusação particular em causa) é de produção nacional mas de visionamento e acessibilidade internacional, com publicação directa online, a que qualquer pessoa através da internet se pode inteirar e visionar o seu conteúdo diário.
11) Mais sabia a arguida que as afirmações e imputações que dirigiu ao assistente nesse programa não só têm teor objectiva e subjectivamente insultuoso como atentatório do seu bom nome, hombridade, reputação e decoro, ciente que estava que com essas expressões fazia impender sobre o assistente suspeições desprimorosas, também elas desde logo susceptíveis de porem em causa a sua honorabilidade, consideração, honra e dignidade.
12) Sabia ainda a arguida que esta sua conduta era proibida e punida por lei.
Condições socioeconómicas e antecedentes criminais
13) A arguida está desempregada.
14) Vive com os pais e as três filhas menores de idade, em casa daqueles, embora tenha um apartamento, pagando 250,00€ de renda.
15) O seu rendimento mensal é de 300,00€ de prestação de alimentos, relativas às filhas, e 126,00€ de abono de família.
16) Vive da ajuda dos pais.
17) Tem o 9.º ano de escolaridade.
18) Nada consta no seu certificado de registo criminal.
Do pedido de indemnização civil
19) Sendo o Assistente uma pessoa sensível ficou muito triste, desgostoso e envergonhado por tais factos lhe terem sido imputados pela Arguida num programa de televisão.
20) Sabendo a Arguida que este programa é visto por milhões de pessoas em Portugal e no resto do mundo até mesmo pela comunidade Portuguesa na Suíça onde o Arguido reside e trabalha.
21) Foi o Arguido confrontado inclusivamente por diversas vezes, quer em Portugal enquanto cá se encontrava de férias, quer na Suíça, no seio da comunidade portuguesa ali residente com comentários e olhares vexatórias.
22) Tudo na sequência dos comentários proferidos pela Arguida no sobredito programa televisivo.
23) O Assistente era confrontado com estas imputações quer pelos seus familiares quer pelos seus amigos.
24) Viu a sua imagem social suja e denegrida.
25) Nas pequenas localidades, como Chaves, em geral e na aldeia de Loivos, em
26) Especial, local de nascimento do Assistente, toda a gente se conhece, e os comentários e olhares foram inevitáveis face ao sucedido.
27) O mesmo se processou no seio da comunidade portuguesa na Suíça.
28) Os factos tiraram o sono ao assistente.
29) Sempre que tenta esquecer todos os factos que lhe foram imputados sente angústia, desespero e impotência face a este enredo tão injusto.
30) O Assistente encontra-se deprimido face a todo o sucedido.
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B. Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a boa decisão da causa e, designadamente, que:
a) Os factos imputados pela arguida ao assistente são falsos, não correspondendo à verdade.

Fundamentação da matéria de facto:
«O Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade acima apurada com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e criticamente analisada, do modo que se passa a expor, nos termos do art.º 127.º do Código de Processo Penal.
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios que regem a matéria, da prova produzida e/ou examinada em audiência de julgamento, designadamente e no essencial, com base nas declarações prestadas pela arguida e pelo assistente e nos depoimentos prestados pelas testemunhas que depuseram em Tribunal e as que foram inquiridas por carta rogatória.
A arguida, nas suas declarações, referiu que as agressões físicas intensificaram-se desde o nascimento da terceira filha. Houve uma violação à frente de uma das filhas, sendo que depois da queixa o processo não prosseguiu por ter desistido. O médico de família disse-lhe que o assistente poderia ter problemas psicológicos. O assistente dizia asneiras, chamava nomes impróprios, partia coisas. Descobriu mensagens em que pessoas se propunham pagar actos sexuais, considerando ser prostituição. Esclareceu que se inscreveu no programa em causa, para denunciar a violência doméstica de que foi vítima.
Já o assistente, Mário F., explicou que o divórcio ocorreu em 14 de Janeiro de 2010. Anteriormente tinham acordado que a arguida viesse com as crianças em 2009. Em Outubro desse ano veio passar uns dias com elas, mas percebeu que a arguida estava a colocar as crianças contra si. O motivo do divórcio foi o facto de a arguida ter conhecido outra pessoa, tendo vindo de propósito a Portugal estar com a mesma.
Viu o programa de televisão, defendendo que nunca agrediu a arguida, nem a violou. Numa ocasião, confessa que deu um murro num computador, tendo a arguida vindo a queixar-se à polícia, mas nega que a tenha a ela agredido. Nunca foi chamado à polícia, desconhecendo se existiu algum processo criminal. Não lhe foi diagnosticado qualquer problema do foro psicológico, negando que se prostituísse. Ficou com a sensação de que se tratava de uma vingança, querendo a arguida destruir a sua imagem. Passou dias muito maus por causa da entrevista em causa, sendo que os familiares também o questionavam sobre o sucedido.
Pelo exposto, foram, assim, apresentadas duas teses, em confronto, sobre a veracidade do afirmado pela arguida na entrevista ao programa Praça da Alegria, sendo que a própria confirma ter dito o que consta da acusação particular e que se mostra inequívoco face ao visionamento do referido programa (cfr. fls. 208 e 905 – 906).
Resulta também inequívoco que as expressões usadas são atentatórias da honra e consideração do visado, ex-marido da arguida, aqui assistente e aptas a ferir as mesmas.
Tratando-se de matéria da esfera da intimidade da vida privada e familiar do ex-casal e, em particular, do assistente, não constitui objecto dos presentes autos apurar da veracidade das afirmações ali produzidas pela arguida, atento o conteúdo das mesmas.
Com efeito, não se trata de apurar se efectivamente correspondem à verdade os factos imputados ao assistente, atenta a protecção legal da matéria da esfera da intimidade da vida privada e familiar, como melhor se verá na fundamentação de direito.
Não é possível afirmar que os factos são falsos, motivo pelo qual se deu como não provado esse facto alegado, pois que se precipitaram as duas teses em confronto.
Nem a prova documental, designadamente a junta a fls. 927-1007, 1020-1044 e 1052-1088 (por serem documentos produzidos num certo contexto), pode assegurar que os factos relatados pela arguida correspondem à verdade, estando na sua base toda uma relação conflituosa entre a arguida e o assistente, em vários processos, sendo que as filhas Cristiana C. e Mónica C., como foi patente na audiência de julgamento, apenas relatam a versão trazida pela arguida, de forma quase mecânica, o mesmo acontecendo com os pais da arguida F… F. e A… A. que vieram, em audiência de julgamento, naturalmente fazer valer a versão da sua filha.
Do mesmo modo as demais testemunhas quanto ao conteúdo das afirmações realizadas, posicionaram de um lado e de outro, designadamente S. Carneiro, sobrinho da arguida, e L..., irmã da arguida, do lado desta, e as demais evidenciando igual falta de conhecimento directo que não as consequências produzidas no assistente com a entrevista dada pela arguida.
Com efeito, S. Carneiro, sobrinho da arguida, a fls. 571 e ss. descreve o que soube através da mesma, tendo confirmado a versão apresentada pela mesma, embora só tivesse presenciado um empurrão ao avô e pai da arguida por parte do assistente.
Já R. C…, irmã da arguida, a fls. 593 e ss., referiu que soube de maus-tratos físicos e psicológicos pela sua irmã, aqui arguida, tendo as filhas do casal dito que também foram agredidas e tendo visto na arguida hematomas num braço. Mais referiu que a polícia se deslocou à residência, tendo o assistente sido obrigado a sair de casa por um tempo, mas a arguida não permitiu que o processo prosseguisse
Assim, quanto ao facto de serem ou não verdadeiras as afirmações, o Tribunal não podendo afirmar uma coisa ou outra, deu como não provado que fossem falsos, face à dúvida irremovível que se instalou no espírito do Tribunal.
Já quanto aos factos relativos ao pedido de indemnização social, tomou em consideração o Tribunal, as declarações do assistente, as quais se afiguraram sérias, neste particular, por corresponderem às consequência naturais dos factos, designadamente tendo em consideração o conteúdo das afirmações da arguida, causando-lhe tristeza, sentindo-se deprimido.
No entanto, o Tribunal tomou, ainda, em consideração os depoimentos das demais testemunhas.
Manuel T., a fls. 562 e ss., por carta rogatória, referiu que as pessoas ficaram admiradas, quer na Suíça, quer na aldeia, tendo afirmado que o assistente sofreu imenso com esta situação.
Jorge A., amigo do assistente, a fls. 581, apenas referiu que tomou conhecimento da entrevista através da esposa, entendendo que é falso o que foi dito pela arguida, sendo que o assistente ficou naturalmente triste com o sucedido.
Rafael B., amigo do assistente, a fls. 584 e ss, referiu que ficou “em choque com a entrevista”, por considerar que este não é como ali foi exposto, entendendo que tais factos não correspondem à verdade. Depois da entrevista, o assistente ficou deprimido, sentindo-se mal.
Z… F…, a fls. 600, residindo na Suíça, referiu conhecer o casal, tendo visto a entrevista, acrescentando que muitas pessoas da associação portuguesa viram a mesma, tendo ficado o assistente envergonhado, sentindo-se mal, tendo causado danos a nível psicológico para o mesmo.
A… S., a fls. 606 e ss., referiu que foi director e secretário no escritório da associação portuguesa, na Suíça, dizendo ter visto a entrevista, acrescentando que não lhe parece que o assistente fosse pessoa para praticar os factos em causa, tendo inclusivamente ligado ao canal em causa, manifestando o seu desagrado, pois que “ela podia prestar declarações e ele não”. Afirmou, ainda, que a entrevista foi vista por muitos portugueses, tendo o assistente sofrido no seu interior.
A… B., a fls. 613 e ss., referiu que não assistiu ao programa televisivo em causa, mas comentou-se na associação que o mesmo estava a ser acusado de ter violado a arguida e de obrigar as filhas a comer comida vomitada, o que provocou tristeza no assistente
No que concerne à matéria de facto sobre a situação económica, social e familiar da arguida, tomaram-se em consideração as declarações por ela a esse propósito prestadas, as quais se nos afiguraram, neste particular, coerentes por não contrariadas por qualquer outro elemento de prova.
A ausência de antecedentes criminais resultou provada com base no teor do certificado de registo criminal junto aos autos.».
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Da valoração proibida de prova testemunhal.
A recorrente vem insurgir-se contra a decisão proferida sobre a matéria de facto por a mesma se ter fundamentado nas declarações prestadas pelas testemunhas por meio de cartas rogatórias, não lidas nem examinadas em audiência contra o disposto nos arts. 355º, 356º e 348º, nº 4, do CPP. Vejamos.
Sendo óbvio que as cartas rogatórias constituem modalidades de comunicação entre vários países, as mesmas corporizam a prática de actos realizados no estrangeiro (art. 111º, 3, alínea b), do CPP), cuja legalidade resulta do conjunto dos arts. 229º, 230º e 318º, do CPP.
No caso vertente, foi esta a modalidade de inquirição adoptada, cuja execução foi determinada na fase de julgamento, perante a impossibilidade de as testemunhas, arroladas quer pela recorrente/arguida quer pelo assistente, residentes na Suíça, se deslocarem a este País.
Tem sido jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça que os documentos constantes do processo consideram-se produzidos em audiência independentemente da sua leitura, sendo irrelevante que as actas sejam omissas quanto aos que contribuíram para a formação da convicção do tribunal. Os documentos juntos aos autos são provas que, forçosamente, estão presentes na audiência e submetidas ao contraditório, sem necessidade de serem lidas, já que as partes têm conhecimento do seu conteúdo.
Todavia, não podemos olvidar, que as mencionadas cartas rogatórias, para o efeito que ora nos ocupa, não podem ser adquiridas como “documento”, no sentido de um «objecto elaborado pelo homem com o fim de reproduzir ou representar uma pessoa, coisa ou facto» (art. 362º do CC), ou «declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal» (art. 164º, nº 1, do CPP), antes encerram depoimentos testemunhais ( Para destrinçar os conceitos processuais de documento e de auto (art. 99.º do CPP), «deve partir-se da ideia de que o objecto representado pelo documento é um acto realizado fora do processo ao qual ele vem a ser junto. Se, pelo contrário, o objecto representado é um acto do processo em causa, qualquer que ele seja, então estamos perante um auto que é nele lavrado e que está sujeito a um regime diferente do reservado à prova documental. Um auto não pode, nomeadamente, ser valorado para a formação da convicção do tribunal a não ser nos apertados limites traçados pelos arts. 356.º e 357.º ambos do CPP» [Ac. da RL de 18-05-2011 (199/07.5GHSNT.L1-3 - Carlos Almeida)].) que, como quaisquer outras provas, nos termos do citado art. 355º, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, se não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, ressalvadas as provas contidas em actos do processo cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos 356º e 357º, do CPP.
Considerada, como se disse, a legalidade da sua obtenção por carta rogatória, o certo é que os mencionados depoimentos se enquadram na previsão do nº 2, alínea c) daquele art. 356º. Ora, esse preceito, embora confira relevância jurídica a tais meios de prova, não derroga, como é evidente, a determinação de que todas as provas que, concretamente, contribuam para a decisão do tribunal de julgar provados ou não provados factos com interesse para a decisão de alguma das questões que integram o objecto da causa sejam produzidos ou examinadas em audiência pública ( O citado normativo permite a leitura em audiência das declarações de testemunhas obtidas mediante precatórias legalmente permitidas, tendo sido prestadas perante o juiz.), tendo em vista a contraditoriedade imposta pelo art. 327º, nº 2, do CPP que dispõe que os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao princípio do contraditório, mesmo que tenham sido oficiosamente produzidos pelo tribunal ( Princípio a que a produção da prova, nomeadamente a testemunhal, se deve submeter, concedendo-se ao arguido a possibilidade de contestar todo o elemento de prova produzido perante o tribunal e invocado por este para fundamentar a sua decisão, de modo a combater eficazmente as acusações que lhe são feitas. Assim, o Ac. do STJ de 7-12-2007 (07P3630 - Henriques Gaspar), salienta que o princípio do contraditório «impõe que seja dada oportunidade a todo o participante processual de ser ouvido e de expressar as suas razões antes de ser tomada qualquer decisão que o afecte, designadamente que seja dada a efectiva possibilidade de contrariar e contestar as posições da acusação». Também o Sr. Procurador-Geral Adjunto deste Tribunal Dr. Vinício Ribeiro, realça que o princípio do contraditório, «constitui uma das garantias de defesa, tem consagração constitucional (art. 32º, n.º5 da CRP) e processual penal e consiste no direito que, quer a acusação, quer a defesa, têm de se pronunciar sobre os actos processuais da iniciativa de cada um deles, por forma que a audiência e os actos instrutórios revistam a forma de debate ou discussão entre a acusação e a defesa, parificando o mais possível o respectivo posicionamento jurídico ao longo do processo, o qual deve ter uma estrutura basicamente acusatória mitigada pelo princípio da investigação» (Código de Processo Penal – Notas e Comentários, Coimbra. 2008, pág. 678).).
Trata-se de assegurar o princípio do contraditório, segundo o qual assiste ao arguido o direito de contestar e impugnar não só os factos iniciais já conhecidos ou quaisquer outros que surjam e que o tribunal pretenda levar em consideração, assim como as provas que sobre eles incidam, de modo a que não seja proferida qualquer decisão surpresa contra o mesmo, por factos ou provas dos quais não teve oportunidade de se defender ( Tal princípio tem acolhimento constitucional como decorre da segunda parte do nº 5 do art. 32º da Constituição da República, que assegura o contraditório a todos os sujeitos processuais que possam vir a ser afectados pela decisão, de forma a garantir-lhes uma influência efectiva no desenvolvimento do processo. E, particularmente no que respeita ao arguido, estão em causa as «garantias de defesa» a que alude o nº 1 do mesmo art. 32º. Perante os direitos fundamentais, o processo penal mostra-se orientado, neste domínio, para a defesa, não indiferente ou neutral. O contraditório funciona, assim, como instrumento de garantia desses direitos e corrige assimetrias processuais susceptíveis de pôr em causa o estatuto jurídico do arguido moldado pelo sistema garantístico constitucionalmente exigido, como sistematicamente vem afirmando o Tribunal Constitucional. Com efeito, a amplitude de exigência do exercício do direito de contraditório e a conformação concreta da garantia das possibilidades efectivas para a defesa e pronúncia do arguido, não poderão deixar de corresponder proporcionalmente ao particular relevo e à importância da aquisição das provas para o objecto de uma decisão. ).
Lida a motivação da matéria de facto, fica a perceber-se, claramente, o modo como se formou, no essencial, a convicção formulada naquela decisão, quanto ao núcleo fundamental da controvérsia verificada nos autos, ou seja, aos factos que fundamentaram a condenação, alegadamente cometidos pela recorrente em ofensa à honra e consideração do assistente.
Concretizando, escreveu-se naquela decisão que a «convicção do Tribunal alicerçou-se (…) com base nas declarações prestadas pela arguida e pelo assistente e nos depoimentos prestados pelas testemunhas que depuseram em Tribunal e as que foram inquiridas por carta rogatória». Ou seja, não obstante o uso de uma formulação genérica, constata-se que essa convicção se formou, essencialmente, com base no confronto entre as declarações prestadas pela arguida/recorrente e pelo assistente, coadjuvadas pelo resultado do visionamento do teor do vídeo junto aos autos, que continha a gravação das declarações prestadas pela recorrente no dito programa de televisão, mas também nos depoimentos de testemunhas, designadamente os extractados nos autos das cartas rogatórias, ainda que, de entre estes, os das testemunhas S… e L…, apenas tenham sido referenciados para ser desconsiderada a respectiva relevância probatória.
A ser assim, a convicção do Senhor Juiz ter-se-á fundado, também, nos depoimentos encerrados em tais autos, que, como quaisquer outras provas, nos termos do citado art. 355º, não poderiam valer em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, sem que tivessem sido examinadas em audiência porque, embora não tivessem sido aí produzidas, tratava-se de provas contidas em actos do processo cuja leitura, visualização ou audição em audiência teriam sido permitidas, nos termos do falado art. 356º.
Parece, pois, insustentável a ponderação de tais declarações, cujo teor não foi examinado em audiência, ou assim se terá de entender porque na respectiva acta nada se diz.
Foi o que bem se sintetizou no Ac. deste Tribunal de 31-05-2010 ( P. 670/07PBGMR.G1 - Cruz Bucho). V. os Acs., também, deste Tribunal de 6-03-2008, CJ, 2º-298 e de 08-04-2013 (p. 168/04.7TAGMR.G3 - Lee Ferreira).): «Se a prova é proibida, o juiz deve ignorá-la. Ressalvado o caso previsto no n.º4 do art. 126.º do CPP, a prova proibida não pode ser aproveitada ou utilizada para qualquer outro fim processual: é como se não existisse». Para tanto, foi aduzida nessa decisão uma fundamentação em que se salientam os seguintes excertos:
«(…) Num processo de estrutura acusatória, como é o português (artigo 32º, n.º4 da Constituição da República), “a audiência de julgamento, e em especial a produção de prova, assume o lugar central no processo penal. A produção da prova, que deva servir para fundar a convicção do legislador, tem de ser a realizada na audiência e segundo os princípios naturais de um processo de estrutura acusatória: os princípios da imediação, da oralidade e da contraditoriedade na produção dessa prova. Não é, de resto, outra a solução que está prevista no artigo 355º” (Damião da Cunha, O Regime Processual de Leitura de Declarações, cit., pág. 405).
(…) E, no entanto, aquelas declarações fundamentaram a convicção do tribunal.
Não está em causa a simples nulidade prevista no n.º 9 do citado artigo 356º cominada para a permissão de uma leitura e sua justificação legal.
No caso em apreço o vício é bem mais forte: aquelas declarações “não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal”
Ocorreu, por conseguinte, flagrante violação do artigo 355º, n.º 1 do CPP respeitante à proibição de valoração de provas.».
Assim sendo, no caso vertente, o Tribunal formou a sua convicção com base, mesmo que não primordial ou essencialmente, pelo menos, também nas ditas declarações não examinadas em audiência, como ressalta dos averbados excertos da motivação da decisão da matéria de facto. Ora, a consequência da violação do princípio da imediação e do seu regime constante dos artigos 355º a 357º, do CPP, consiste fundamentalmente na inutilização da prova afectada pelo seu desrespeito que, por isso, não pode ser invocada nem pode valer para o efeito da formação da convicção ( Num breve parêntesis, regista-se que as cartas rogatórias em causa foram expedidas na fase da audiência de julgamento, ultrapassadas que estavam as anteriores fases processuais, pelo que a tomada de declarações, por tal via, deveria obedecer às formalidades estabelecidas para a audiência, à semelhança do que se encontra previsto para as cartas precatórias (art. 318º nº 4 do CPP). Contudo, uma vez que se conclui que deve ser desconsiderado esse meio probatório, fica prejudicada a apreciação sobre a validade ou regularidade das provas através dele obtidas, designadamente quanto às consequências jurídicas do facto de o assistente ter prescindido dos depoimentos das testemunhas (cfr. fls 893 e 896, cujo alcance não se queda inteiramente esclarecido), bem como o de as respectivas inquirições terem sido produzidas sem que o arguido estivesse assistido por defensor e, por isso, sem a garantia do contraditório.).
«Perante a verificação de algum vício decisório, o julgador pode fazer uma de duas coisas: ou não tem elementos disponíveis, como será a regra, e reenvia o processo para julgamento, ou decide da causa, se estiver de posse dos elementos necessários e imprescindíveis à nova solução, dando uma nova versão ao conjunto dos factos provados e não provados, se for caso disso» ( Ac. do STJ de 11-06-2014 (p. 14/07.0TRLSB.S1 - Raul Borges).).
Donde, o desrespeito da proibição de valoração da prova por violação de regras processuais, que é o que aqui está em causa, não implica, inevitavelmente, a inutilização total e definitiva da prova contaminada, antes impõe que se decida em cada situação concreta quais os efeitos ou consequências processuais daquela violação «na decisão proferida sobre a matéria de facto e, concomitantemente, qual a via processual adequada a essas mesmas consequências ou efeitos, de modo a definir-se os termos a seguir no processo em resultado da procedência do recurso e que tanto podem consistir na modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos do artigo 431º do CPP, como no reenvio do processo para repetição total ou parcial do julgamento ou na repetição da sentença pelo tribunal recorrido, sem a ponderação da prova proibida, dependendo da situação processual concretamente verificada» ( Ac. da RE 02-02-2016 (135/14.2GBABF.E2 - João Latas).).
Verificando-se o apontado vício e uma vez que na economia da sentença recorrida, os questionados depoimentos testemunhais constituíram elementos probatórios que o Tribunal analisou e ponderou em conjunto com outros, designadamente com o resultado do já referenciado visionamento e com outro elementos, sem que se saiba quais foram os determinantes para a motivação, não é possível autonomizar ou “expurgar” pura e simplesmente a prova proibida, pelo que deverá ser proferida uma nova sentença.
Nessa restrita medida, assiste, pois razão à recorrente, ficando prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas.
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Decisão:
Pelos fundamentos expostos, julgando-se o recurso parcialmente procedente, nos indicados termos, decide-se anular a sentença recorrida e determinar a remessa do processo para a prolação de uma nova sentença pelo Tribunal de primeira instância, sem a ponderação dos depoimentos extractados nos autos de cartas rogatórias.
Sem tributação.
Guimarães, 15/12/2016

Ausenda Gonçalves

Fátima Furtado