Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2499/20.0T8GMR.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
REGIME TRANSITÓRIO DO RJCS
RESOLUÇÃO
FALTA DE PAGAMENTO DOS PRÉMIOS
CLÁUSULA CONVENCIONAL RESOLUTIVA EXPRESSA
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A apreciação pelo Tribunal da Relação da decisão de facto impugnada não visa um novo julgamento da causa, mas sim uma reapreciação do julgamento proferido pelo Tribunal de 1ª Instância com vista a corrigir eventuais erros de julgamento.
II - O Dec.-Lei nº72/2008, de 16/04, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), contém normas de direito transitório nos seus arts. 2º e 3º que ressalvam a aplicação do novo RJCS à formação do contrato, em especial à sua validade, situações que continuam a reger-se pela lei vigente à data da sua celebração.
III - Decorre da norma transitória constante do art. 3º/1 da Lei nº72/2008 que, aos contratos celebrados antes da entrada em vigor do RJCS mas que sejam de «renovação periódica», é aplicável o RJCS a partir da primeira renovação posterior à sua data de entrada em vigor, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato.
IV - O direito de resolução tanto pode resultar da lei como de convenção entre as partes (cfr. art. 432º/1 do C.Civil). A maioria das vezes a resolução assentará num poder vinculado, obrigando-se o autor a alegar e provar fundamento, previsto na convenção das partes ou na lei (cfr. arts. 801º/2 e 802º/1 do C.Civil), que justificação a destruição unilateral do contrato. Mas nada impede que a resolução seja confiada ao poder discricionário do contraente quando a lei assim o estipule ou quando as partes assim o tenham convencionado.
V - Por força do estatuído no art. 58º RJCS, o regime previsto nos seus arts. 59º a 61º (onde, para além do mais, se estabelece que a falta de pagamento do prémio determina a resolução automática do contrato) “não se aplica aos seguros e operações regulados no capítulo respeitante ao seguro de vida”, pelo que, relativamente a este tipo de seguros, importa recorrer ao seu art. 57º que, sob a epígrafe «Mora», dispõe que “1 - A falta de pagamento do prémio na data do vencimento constitui o tomador do seguro em mora. 2 - Sem prejuízo das regras gerais, os efeitos da falta de pagamento do prémio são: a) Para a generalidade dos seguros, os que decorrem do disposto nos artigos 59.º e 61.º; b) Para os seguros indicados no artigo 58.º, os que sejam estipulados nas condições contratuais…”.
VI - A norma das condições gerais do contrato de seguro que estabelece que “O não pagamento dos prémios, dentro dos 30 dias posteriores à data do seu vencimento, concede à Seguradora, nos termos legais, a faculdade de proceder à resolução do contrato ou fazer cessar as garantias conferidas em relação a uma ou mais Pessoas Seguras”, configura uma cláusula convencional resolutiva expressa que autoriza a Seguradora a resolver o contrato de seguro de forma imediata, isto é, no sentido de que não é necessário demonstrar a gravidade do incumprimento ou converter (previamente) a situação de mora num incumprimento definitivo. Esta cláusula resolutiva expressa dispensa (torna desnecessária) a interpelação admonitória prevista no art. 808º do C.Civil.
VII - Atento o teor do art. 334º do C.Civil, o abuso de direito é o exercício do poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé; bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento
VII - No que respeita ao abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, a Jurisprudência tem vindo a entender, de forma unânime, que decorre da violação do princípio da confiança, consubstanciada no facto daquele que demanda agir, de uma forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por ele próprio criadas ao demandado no sentido do não exercício do direito.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada

Os Autores AA e BB intentaram contra a Ré O..., C..., SA e contra o Réu Banco 1..., SA, pedindo que: «a. Declare que o A. se encontra na situação de invalidez total e permanente, desde 28.11.2018; b. Declarem existentes, válidos e eficazes, à data de 16.11.2018, momento da fixação da incapacidade do A., os três seguros do ramo vida celebrados entre os AA. e a R. Seguradora, formalizados, o primeiro em 2004, pela apólice n.º ...16 e titulado pelo certificado n.º...55, o segundo e o terceiro em 2006 e 2007, respetivamente, formalizados pela apólice n.º ...90 e titulados pelos certificados nºs....68 e ...07, emitidos pela R. Seguradora, cobrindo, entre outros, o risco complementar de invalidez total e permanente dos AA.; c. Condene a R. Seguradora, a pagar ao R. Banco 1..., enquanto beneficiário irrevogável dos contratos de seguro referidos, os montantes em dívida à data de 16.11.2018, deduzidos do total das prestações entretanto pagas pela A. ao Banco 1... para cumprimento dos contratos de mútuo descritos dos artigos 1º a 6º da p.i.; d. Condene a R. Seguradora, a restituir à A. as quantias que esta, por força dos referidos créditos, entretanto liquidou ao R. Banco 1..., vencidos desde 16.11.2018 em diante, bem como as que a mesma vier a liquidar até efetivo e integral cumprimento por parte da R. Seguradora, no âmbito dos três contratos de mútuo referidos; e. Condene a R. Seguradora, a devolver aos AA. as quantias que a título de prémios de seguro vencidos desde 16.11.2018, estes, por força dos referidos seguros, entretanto liquidaram e liquidarão; f. Condene a R. Seguradora, a pagar aos AA. juros de mora sobre as quantias referidas em d) e e) supra, desde as datas em que estes as desembolsaram e vierem a desembolsar, até integral pagamento, à taxa de 4%; g. Condene a R. Seguradora, a pagar ao A. o capital de cada um dos mesmos seguros, remanescente ao capital em dívida respectivo, com juros à taxa legal a contar da citação; h. Condene a R. Banco 1... SA, a proceder ao cancelamento das hipotecas constituídas sobre o identificado prédio para garantia do pagamento e liquidação dos três contratos de mútuo, descritos dos artigos 1º a 6º da p.i.; Caso assim não se entenda, j. Declare que o A. se encontra na situação de invalidez total e permanente, desde 16.11.2018; k. Declare existentes, válidos e eficazes, à data de 16.11.2018, data da fixação da incapacidade do A., os seguros ramo vida que os AA. celebraram com a R. Seguradora, formalizados pela apólice n.º ...90, titulados pelos certificados nºs. ..., ... e ..., emitidos pela R. Seguradora, com base nos fundamentos invocados ao longo do articulado; l. Condene a R. Seguradora, a pagar à R. Banco 1... SA, enquanto beneficiário irrevogável dos contratos de seguro indicados, os montantes ainda em dívida à data de 16.11.2018, deduzidos do total das prestações entretanto pagas pela A. àquela para cumprimento dos indicados contratos descritos nos artigos 1º a 6º da p.i.; m. Condene a R. Seguradora, a restituir à A. as quantias que esta, por força dos referidos créditos, entretanto liquidou e que se venceram desde 16.11.2018 em diante, bem como as que a mesma vier a liquidar até efetivo e integral cumprimento por parte da R. Seguradora, no âmbito dos três contratos de mútuo referidos; n. Condene a R. Seguradora, a devolver aos AA. as quantias que a título de prémios de seguro vencidos desde 16.11.2018, estes, por força dos referidos seguros, entretanto liquidaram e liquidarão; o. Condene a R. Seguradora, a pagar aos AA. juros de mora contados sobre as quantias referidas em m) e n) supra desde as datas em que estes as desembolsaram e vierem a desembolsar até integral pagamento, à taxa de 4%; p. Condene a R. Seguradora, a pagar ao A. o capital de cada um dos mesmos seguros, remanescente ao capital em dívida respetivo, com juros à taxa legal a contar da citação; q. Condene a R. Banco 1... SA, a proceder ao cancelamento das hipotecas constituídas sobre o identificado prédio acima identificado para garantia do pagamento e liquidação dos três contratos de mútuo descritos dos artigos 1º a 6º desta petição».

Fundamentaram a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «em 25/05/2004, os AA., para obterem o financiamento da aquisição de um prédio urbano, celebraram com o Réu Banco, um contrato de mútuo com hipoteca sobre o referido prédio, através do qual esta entidade bancária emprestou àqueles o montante de 60.000,00€; em 10/04/2006, os AA., para financiamento de um empréstimo no montante de 25.000,00€, celebraram com o Réu Banco um segundo contrato de mútuo com hipoteca sobre o mesmo prédio; em 04/10/2007, os AA., para financiamento de um empréstimo no montante de 20.000,00€, celebraram com o Réu Banco um terceiro contrato de mútuo com hipoteca sobre o mesmo prédio; os AA. contrataram com a R. Seguradora seguros do ramo vida, que tinham como beneficiário e segurado, ou tomador do seguro, o próprio Réu Banco e, como pessoas seguras, os autores que, como clientes do banco, contraíram três empréstimos, subscrevendo a respetiva adesão, a primeira formalizada pela apólice nº ...16, e a segunda e a terceira formalizadas pela apólice ...90; os seguros tinham como cobertura o risco morte ou invalidez de cada um dos autores e destinavam-se a garantir o pagamento das quantias que lhes foram mutuadas pelo Réu Banco obrigando-se a Ré Seguradora a satisfazer àquele os valores dos mútuos que estivessem em débito à data de qualquer dos eventos, até aos montantes segurados e os remanescentes ao respetivo autor; à data da celebração dos seguros, os AA. eram casados, divorciando-se em 26/11/2014, sendo que, por partilha do património coletivo do extinto casal, o referido imóvel bem como as dívidas subsistentes à data e relativas aos indicados empréstimos foram adjudicados à A., continuando o A., juntamente com aquela, com o ónus do seu pagamento, dado que o credor hipotecário não deu consentimento expresso a tal adjudicação/transmissão da dívida; foi diagnosticado ao A. esclerose múltipla e, por junta médica, de 23/07/2012, foi-lhe fixada uma incapacidade de 41% e, em 16/11/2018, em segunda junta médica, foi-lhe fixado um grau de incapacidade de 70%; nos princípios de fevereiro de 2015, foi comunicado aos AA. e por terceiro que os seguros de vida tinham sido resolvidos pela Seguradora por falta de pagamento dos respetivos prémios e que havia que aderir a novas propostas de seguro, e no dia 4 de fevereiro, assinaram novas propostas de adesão de seguro que vieram a ser formalizadas pela apólice ...90; o A., em 23/11/2018, comunicou à Ré Seguradora a verificação do risco contratado, mas esta veio comunicar que a doença que estava na origem de tal incapacidade fora pelo mesmo ocultada, aquando do preenchimento do questionário médico; os seguros de vida de 2004, 2006 e 2007, continuavam válidos porque jamais a R. Seguradora enviou carta alguma a qualquer dos AA. a comunicar-lhes a existência de quaisquer prémios em dívida bem como a referida resolução, caso não procedessem ao pagamento dos prémios em atraso, ao que estava obrigada para proceder à pretendida resolução, e também não receberam do Réu Banco qualquer informação nesse sentido; é abusivo de direito a maneira ilegal como a R. Seguradora procedeu à resolução dos mencionados contratos de seguro incitando os AA. À celebração de outros quando os primeiros não tinham sido validamente resolvidos; os questionários médicos que estavam plenamente preenchidos mesmo nos locais dados para resposta, não tendo havido preocupação alguma com o real estado de saúde do A., mas ainda assim, quando este ia apor neles a sua assinatura, ocorrendo-lhe, instintivamente, que padecia de esclerose múltipla, de imediato, deu conhecimento, de viva voz, disso mesmo ao funcionário do Réu Banco que os atendeu, o que este apenas tornou que isso não dava nada e que podia assinar na mesma, o que fez, pelo que jamais poderá considerar-se que o segurado possa ter omitido circunstâncias relevantes; ao exercer, passados mais de quatro anos, da subscrição daquelas propostas de adesão, o seu direito de pedir a exclusão da sua responsabilidade com base na existência da indicada doença, a R. Seguradora atua com abuso do mesmo direito».
O Réu Banco contestou, pugnando por «a acção ser julgada não provada e improcedente, absolvendo-se o Banco 1... do pedido».
Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «os prémios devidos em função dos contratos de seguro deviam ser pagos pelo sistema denominado de “débito directo”, o que significa que o pagamento é feito ou é recusado conforme a conta tenha ou não tenha saldo que suporte o pagamento, e, do pagamento ou da falta dele, não tem conhecimento o Banco, justamente porque a operação é feita sem intermediação humana; o Banco, como beneficiário do seguro, podia ter efectuado o pagamento dos prémios que os Autores não satisfizeram, mas era uma mera faculdade; não só o Banco não responde pela falta de pagamento dos prémios nem sobre ele recai qualquer obrigação acessória de avisar os Autores pelo seu não pagamento por insuficiência de saldo na conta indicada para efeito de pagamento por débito directo; posteriormente à anulação dos contratos de seguro por falta de pagamento dos prémios, os AA. propuseram à O... a celebração de outro ou outros, destinados a substituir os anulados; todas as declarações constantes das respectivas propostas foram o resultado do que os Autores livremente e por iniciativa sua disseram aos funcionários que os atenderam, não tendo os funcionários colocado nos documentos senão aquilo que os Autores disseram; sobre o Banco, como beneficiário delas, só cabe emitir as
declarações e não promover, ele próprio, o cancelamento no Registo Predial».
A Ré Seguradora contestou, pugnando por «a ação ser julgada improcedente, por não provada, e a ré O..., S.A. absolvida dos pedidos».
Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «o autor já sofria de esclerose múltipla, pelo menos, desde 2009; à data da subscrição da proposta de seguro, em 04/02/2015, o autor já sofria de esclerose múltipla, mas omitiu, nas respostas ao questionário médico, essa patologia grave; se a ré tivesse tomado conhecimento da doença de que o autor sofria, não teria aceitado a proposta de seguro; em face das declarações inexatas e reticentes prestadas pelo autor nas respostas que forneceu ao Questionário Médico, e que determinaram a decisão de contratar por parte da ré, gozava esta da faculdade de anular o contrato de seguro, o que efetivamente fez, e recusar o pagamento do respetivo capital por invalidade e ineficácia desse contrato; tem ainda a ré direito aos prémios entretanto pagos, porque o autor agiu com má-fé; os autores procederam à dissolução do seu casamento por divórcio e à partilha dos bens comuns do casal em 26/11/2014, foi adjudicado exclusivamente à autora o bem imóvel e todo o passivo contraído junto daquela instituição de crédito para a aquisição do mesmo imóvel ; quando o autor subscreveu a proposta de seguro bem sabia que nenhum interesse pessoal tinha na contratação do mesmo, já que tinha deixado de ser proprietário do imóvel cujo pagamento o mesmo garantia, pelo que o contrato é nulo; os autores não pagaram os prémios dos contratos de seguro, formalizados na apólice ...16 e titulados pelos certificados nºs ...55, ...68 e ...07, com início em 25.5.2004, 9.4.2006 e 4.10.2007, pelo que as apólices foram anuladas com data efeito de 1 de Maio de 2014; os autores tiveram conhecimento da anulação dos contratos, pelo menos, no início de Fevereiro de 2015; a pretensão dos autores de considerar em vigor aqueles contratos constitui abuso do direito; o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso junto aos autos não pode nem deve ser entendido como meio probatório suficiente da incapacidade do autor para efeitos do contrato de seguro».
Em sede de resposta à contestação, os Autores pugnaram por «a exceção invocada ser considerada totalmente improcedente por não provada», alegando, essencialmente, que «no que ao banco respeita, a sua posição com a partilha não se altera, já que para que passasse a existir apenas um devedor tem de haver anuência do banco, o que não acontece, sendo irrelevante ser o proprietário ou não do dito imóvel; ambos os autores continuam obrigados nos empréstimos contraídos perante terceiros visto que a partilha que efetuaram apenas vale nas relações entre ambos».
Foi proferido despacho saneador, no qual, para além do mais, se identificou o objecto do litígio e se enunciaram os temas da prova.

Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte decisório:

“Em face do exposto:
A. Julgo parcialmente procedente o pedido formulado pelos Autores, declarando que o Autor AA se encontra em situação de invalidez permanente desde 28.11.2018.
B. Julgo parcialmente improcedente a presente acção, absolvendo os Réus dos demais pedidos formulados pelos Autores…”.
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1.2. Do Recurso dos Autores

Inconformados com a sentença, os Autores interpuseram recurso de apelação, pedindo que seja “declarados procedentes, por provados, os pedidos formulados pelos AA. nas als a) a i) da P.I.”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

“MATÉRIA DE FACTO
I. Atentos os depoimentos dos AA. bem como os das testemunhas arroladas, constantes das gravações transcritas e acabadas de alegar, conjugados com a legislação pertinente ao caso, deve dar-se como não provado o facto 12 do elenco dos Factos Provados, por manifesta ausência de prova que o suporte.
II. Atento a falta de prova do Facto Provado nº 13 bem como, também, a ausência de prova do Facto Provado nº 12 e aos concretos elementos de prova, chamados à colação, quanto ao Facto Provado nº 14, deverá declarar-se como não provado o facto provado nº 13, passando a integrar a lista dos factos não provados.
III. Em relação ao Facto Provado nº 14, atenta a motivação emitida pelo Meritíssimo Juiz que refere ser resultante do acordo entre as partes assente nos artigos no mesmo citados, é manifesto que os AA. só tiveram conhecimento da anulação dos contratos aludidos em IV do Despacho Saneador no início de fevereiro de 2015.
IV. Em relação ao Facto não Provado nº 4, atenta a falta de consistência dos depoimentos das testemunhas dos RR. transcritos bem como dos elementos concretos de prova aduzidos,nomeadamente, quanto ao Facto Provado número 14, deve o mesmo dar-se como efetivamente provado.

MATÉRIA DE DIREITO
V. Os contratos de seguro de vida a que os autos se reportam e celebrados entre AA. E a R.
Seguradora “O...”, em 2004, 2006 e 2007 cuja resolução operada pela R. Seguradora não foi precedida de qualquer prazo admonitório para o cumprimento, ao que estava obrigada, torna a mesma resolução inválida, mantendo-se os referidos contratos em vigor.
VI. Incumbia à Ré O... a prova de ter procedido à resolução válida do contrato, através do envio da interpelação admonitória prévia, quer da subsequente resolução a ambos os segurados, o que não provou ao que estava obrigada pelo que a propalada resolução operada pela R. “O...” se mostra inválida.
VII. São de considerar válidos à data do sinistro os seguros de vida celebrados em 2004, 2006 e 2007, uma vez que a R. Seguradora violando como violou diversas normas jurídicas, como as assinaladas, não pode, como o fez, depois e sem abuso, prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente ou exercer a posição jurídica violada.
VIII. Foram violados, entre outros, o disposto nos artºs 224º nº1, 342º nº 1, 436º nº 1, 805º, 808º do C.C., artº 7 nº 1 do D.L. 142/02 e 108º nº 4 da LCS”.
A Ré Seguradora apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
O Réu Banco não apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).

Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pela 2ªRé, são três as questões a apreciar por este Tribunal ad quem:

1) Se a sentença recorrida deve ser alterada quanto à matéria de facto provado e não provada nos termos indicados pela Ré Seguradora;
2) Se foi inválida a resolução/anulação promovida pela Ré Seguradora em relação aos contratos de seguro formalizados em 2004, pela apólice nº ...16, e em 2006 e 2007, pela apólice nº ...90;
3) E, caso se responda favoravelmente à segunda questão, quais os direitos que assistem aos Autores em razão de estar verificado o risco coberto pelos referidos contratos de seguro.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:

1. Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca outorgada a 25.05.2004 no Cartório Notarial ..., reproduzida como documento número ... junto com a p.i. – fls. 12 e ss. – CC e mulher DD declararam vender, pelo preço de € 60.000,00 já recebido, a AA e BB que declararam aceitar, o prédio urbano descrito na ... Conservatória do Registo Predial ..., sob o n.º ...82 – ... (...), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...72º, tendo estes, no mesmo acto, declarado constituir a favor do Banco 1..., S.A., no acto representado por EE, hipoteca sobre o identificado prédio para garantia do pagamento da quantia mutuada, juros, sobretaxa em caso de mora e despesas judiciais e extrajudiciais (cfr. certidão de escritura pública junta a fls. 12 e ss.);
2. Por escritura pública de mútuo com hipoteca outorgada a 10.04.2006 na Sucursal do Banco 1..., em ..., reproduzida como documento número ... junto com a p.i. – fls. 18 e ss. – o Banco 1... S.A. declarou conceder a AA e BB, casados sob o regime de comunhão de bens adquiridos, um empréstimo no montante de € 25.000,00 pelo prazo de 30 anos que estes aceitaram, de que se declararam devedores, declarando ainda constituir a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano identificado no facto provado anterior para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, juros, sobretaxa em caso de mora e despesas judiciais e extrajudiciais (cfr. certidão de escritura pública junta a fls. 18 e ss.);
3. Por escritura pública de mútuo com hipoteca outorgada a 04.10.2007 no Cartório Notarial ..., em ..., reproduzida como documento número ... junto com a p.i. – fls. 23 v.º e ss. - o Banco 1... S.A. declarou conceder a AA e BB, casados sob o regime de comunhão de bens adquiridos, um empréstimo no montante de € 25.000,00 pelo prazo de 30 anos que estes aceitaram, de que se declararam devedores, declarando ainda constituir a favor daquele hipoteca sobre o prédio urbano identificado no facto provado anterior para garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada, juros, sobretaxa em caso de mora e despesas judiciais e extrajudiciais (cfr. certidão de escritura pública junta a fls. 23 v.º e ss.);
4. Foram celebrados os contratos titulados pelas apólices de seguro, condições gerais e especiais, com os números de certificado ...55, ...68 e ...07, reproduzidas nos documentos números ... (fls. 30 e ss.), 5 (fls. 36 v.º e ss.) e 6 (fls. 38 e ss.), com início a 25.05.2004, 09.04.2006 e 04.10.2007, respectivamente, todos da p.i. (artigos 11º e 12º da p.i.);
5. Pelo início de 2009, o A. começou a sentir sintomas que vieram a ser identificados como sendo de esclerose múltipla e que se manifestavam na dificuldade de movimentar a perna esquerda, depois, na imobilização de toda a parte esquerda do corpo e, mais tarde, em tremuras e falta de sensibilidade (cfr. artigo 19º da p.i.).
6. O Autor foi a consultas e fez exames tendo-lhe sido diagnosticada esclerose múltipla e, por junta médica, de 23.07.2012, foi-lhe fixada uma incapacidade de 41% (artigo 20º da p.i.)
7. Ficou estabelecido entre as partes que os prémios devidos em função dos contratos de seguro a que se refere o facto provado número 4, deviam ser pagos pelo sistema denominado de “débito directo”, pelo qual os Autores transmitiram à O... instruções para que realizar o respectivo débito na conta do Banco 1... aberta em nome deles (artigos 6º e 7º da contestação do Réu Banco 1...).
8. O pagamento mencionado no facto provado anterior é efectuado automaticamente por instruções previamente introduzidas em sistema informático do Banco, sendo, sem intermediação humana, feito ou recusado conforme a conta tenha ou não tenha saldo que suporte o pagamento (artigo 8º da contestação do Réu Banco 1...).
9. A Seguradora sabe se o pagamento foi feito ou não, por lhe ter entrado ou não ter entrado em conta o montante do respectivo prémio (artigo 10º da contestação do Réu Banco 1...).
10. Os Autores sabiam e aceitaram, desde a celebração dos contratos mencionados no facto provado número 4, que os pagamentos dos prémios eram efectuados por “débito directo” nos termos descritos nos factos provados anteriores (artigos 12º e 13º da contestação do Réu Banco 1...).
11. Os Autores não pagaram os prémios referentes ao período de 01.05.2014 a 01.06.2014, dos contratos de seguro referidos no facto provado número 4, não tendo provisionado a conta bancária respectiva com os fundos necessários para o efeito (artigo 87º da contestação da O...).
12. Nessa sequência, a Ré O... remeteu em nome de AA, para o endereço ... 22, ... ...: i. Em 18 de Junho de 2014, os avisos de pagamento com as respectivas referências multibanco reproduzidos nos documentos ...2 a ...4 da contestação da Ré O... (fls. 139 a 141 dos autos), informando que os recibos haviam sido devolvidos com a informação de “Conta sem saldo ou saldo insuficiente”; ii. Em 19 de Junho de 2014, as cartas reproduzidas nos documentos ...5 a ...7 da contestação da Ré O... (fls. 142 a 144 dos autos) contendo, entre outros, os seguintes dizeres: Na sequência dos avisos de cobrança anteriormente remetidos e, não se tendo verificado até ao momento o pagamento do prémio de seguro da Apólice em referência, informamos que procederemos à anulação da referida Apólice, nos termos legais e contratuais em vigor. Neste contexto, alertamos que a falta de pagamento do presente recibo produzirá o cancelamento da Apólice, deixando esta de garantir as coberturas previstas nas Condições Gerais, Especiais e Particulares, com efeito a dia 01-05-2014 (data de início do recibo) (artigos 88º e 89º da contestação da O...);
13. Os Autores tiveram conhecimento das comunicações referidas no facto provado anterior (artigo 90º da contestação da O...).
14. Os Autores tiveram conhecimento da anulação dos contratos aludidos em iv. supra, em data não posterior ao início de Fevereiro de 2015 (artigos 22º, 28º da p.i., 12º da contestação do Banco 1... e 94º da contestação da O...).
15. A Ré O... comunicou a anulação das apólices mencionadas no facto provado número 4 ao Réu Banco 1... (artigo 92º da contestação da O...).
16. O Réu Banco 1... soube que o pagamento dos prémios não foi efectuado por a conta dos Autores não apresentar saldo suficiente para suportar o débito (artigo 14º da contestação do Réu Banco 1...).
17. No dia 4 de Fevereiro de 2015, os Autores assinaram novas propostas de adesão de seguro cujo teor se reproduz nos documentos números ...1 da p.i. (fls. 52 v.º e ss. dos autos) e 1 da contestação da Ré O... (fls. 114 a 118 v.º dos autos) que vieram a ser formalizadas pela apólice ...90 sujeita às cláusulas gerais e especiais constantes do documento número ... da contestação da Ré O... (fls. 119 e ss. dos autos), tituladas pelos certificados ..., ... e ... cujo teor se reproduz nos documentos números ...2, ...3 e ...4 da p.i. (fls. 54 v.º e ss., 57 e ss. e 59 v.º e ss. dos autos, respectivamente) (pontos v., vi. e vii. da matéria assente).
18. Contactado o Banco 1... pelos Autores para a celebração de novos contratos de seguro, no dia 4 de Fevereiro, pouco depois do meio-dia, os Autores dirigiram-se à respetiva agência bancária do Banco 1..., em ..., onde assinaram, como lhes foi pedido, nos locais que lhes iam sendo apontados, o conjunto de documentos que lhes foi apresentado (artigos 51º e 52º da p.i.);
19. Antes de os Autores subscreverem a proposta de adesão ao contrato de seguro, foram informados, por um trabalhador do tomador do seguro que dispôs a esclarecer as suas dúvidas e questões, dos contornos gerais do contrato de seguro do ramo vida e das coberturas contratadas (artigos 6º e 7º da contestação do Réu Banco 1...).
20. Antes de subscreverem as propostas aludidas no facto provado número 17, os Autores foram informados e esclarecidos pelo funcionário do Réu Banco 1... que deveriam responder ao Questionário Médico com verdade e exatidão (artigo 9º da contestação do Réu Banco 1...).
21. O colaborador do Réu Banco 1... preencheu a proposta de adesão tendo por base as respostas que os Autores lhe forneceram, e deu-a aos Autores para leitura e confirmação (artigo 18º da contestação do Réu Banco 1...).
22. Os Autores, perante as perguntas que lhes foram formuladas sobre o seu estado de saúde, constantes dos questionários médicos reproduzidos no documento número ... da contestação da O... (fls. 116 v.º e 118 frente dos autos), forneceram a resposta “Não” em todas as questões (artigo 20º da contestação do Réu Banco 1...).
23. As declarações constantes das propostas aludidas no facto provado número 17, foram o resultado do que os Autores disseram ao funcionário que os atendeu (artigo 32º da contestação da Ré O...).
24. Os Autores sabem ler e escrever (artigo 13º da contestação do Réu Banco 1...).
25. Subscritas as propostas de adesão ao seguro de grupo, o Banco 1..., S.A. remeteu-as à Ré O... para efeitos de aceitação ou de recusa (artigo 28º da contestação do Réu Banco 1...).
26. Em face das respostas dadas pelos proponentes ao questionário médico, a O..., S.A. aceitou a adesão dos Autores ao seguro de grupo C..., emitindo os respetivos certificados individuais com os nºs ..., ... e ..., associados à apólice ...90 (artigos 58º e 59º da p.i. e 29º da contestação do Réu Banco 1...).
27. O Autor sabia, pelo menos desde 2012, que sofria de esclerose múltipla susceptível de influir na decisão da Ré O... aceitar ou não aceitar aquela proposta (artigo 48º da contestação do Réu Banco 1...).
28. A Ré O... só tomou conhecimento da doença esclerose múltipla padecida pelo Autor, depois de este lhe remeter os elementos clínicos por aquela solicitados para analisar o pedido de acionamento da cobertura complementar de invalidade permanente (artigo 41º da contestação da O...).
29. Se a Ré O... tivesse tomado conhecimento da doença de que o Autor AA sofria à data em que lhe foi apresentada a proposta de adesão ao seguro, não teria aceitado a cobertura da incapacidade permanente e teria aceitado em condições mais gravosas para o Autor a cobertura morte (artigos 37º e 42º da contestação da O...).
30. Não obstante a observância da prescrição médica a que se submeteu, os sintomas da referida doença do Autor continuaram a agravar-se e, em 16.11.2018, em segunda junta médica e em vista das limitações ocasionadas pela mesma doença, foi-lhe fixado um grau de incapacidade de 70% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades, conforme documento ...0 junto (artigos 21º da p.i. e 99º da contestação da O...).
31. Por declaração escrita datada de 23.11.2018, assinada pelo Autor a 26.11.2018, reproduzida no documento número ...5 junto com a p.i. (fls. 67 a 69 dos autos), este comunicou à Ré O... a verificação do risco contratado e anexou o Atestado Médico de Incapacidade Multiuso emitido em .../.../2018, por Junta Médica de 23.07.2012, reproduzido no documento ...0 junto com a p.i. – fls. 52 dos autos (artigo 25º da p.i.).
32. Em 26 de Fevereiro de 2019, a Ré O... enviou aos Autores as cartas reproduzidas nos documentos números ... a ...1 da contestação desta Ré (fls. 130 a 138 dos autos), comunicando a exclusão do Autor dos certificados individuais com os nºs. ..., ... e ..., ficando estes unicamente titulados pela Autora mulher, a quem deu conhecimento desse facto (artigo 43º da contestação da O...).
33. Em 19 de Março de 2019, a Ré O... enviou ao Autor a carta reproduzida no no documento ...6 da p.i. (fls. 70 dos autos) referindo, entre outras coisas, …aquando da do preenchimento da referida Proposta de Adesão e respectivo Questionário Médico, em 04 de Fevereiro de 2015 (cópia em anexo), não foi mencionada patologia pré-existente , conforme atestado médico na nossa posse. Nestas condições verificamos que existia um quadro clínico pré-existente que se tivesse sido declarado teria condicionado a aceitação do risco. (…) (artigo 26º da p.i.).
34. Por decisão proferida a .../.../2014 pela Sr.ª Conservadora-Adjunta no processo de Divórcio por Mútuo Consentimento n.º 14312/2014 da Conservatória do Registo Civil ..., foi decretado o divórcio por mútuo consentimento entre FF e BB e, bem assim, homologado o acordo de partilha do património comum conjugal do extinto casal pelo qual, entre outras coisas, o bem imóvel descrito sob o n.º ...19 na Conservatória dos Registos Predial, Comercial e Automóveis ... e as dívidas ao Banco 1... foram adjudicados a BB (cfr. certidões juntas como documentos números ... e ... da p.i. - fls. 47 e ss. e 48 v.º e ss. dos autos).
35. Os Autores fizeram a partilha mencionada no facto provado anterior, sem conhecimento do Réu Banco 1... e da Ré O... (artigo 77º da contestação da O...).
Na mesma sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos[3]:
1. O Réu Banco 1... não tem conhecimento do pagamento, ou da falta dele (artigos 9º e 10º da contestação do Réu Banco 1...).
2. Na ocasião mencionada no facto provado número 17, os funcionários do Réu Banco 1... puseram na frente dos Autores para estes assinarem, documentos, prévia e integralmente, preenchidos pela R. Banco 1... (artigos 51º e 52º da p.i.).
3. O Réu Banco 1... contactou ambos os Autores dando-lhes conhecimento da anulação daqueles contratos de seguro a partir de 1 de Maio de 2014 (artigo 93º da contestação da O...).
4. Só em princípios de Fevereiro de 2015 foi comunicado aos Autores que os contratos aludidos no facto provado número 4, tinham sido resolvidos pela Seguradora, por falta de pagamento dos respetivos prémios (artigo 22º da p.i.).
5. Na ocasião mencionada no facto provado número 17 não foi dito aos AA. que podiam ler os documentos, nem dada qualquer explicação ou informação por parte de quem os atendeu (artigo 53º da p.i.).
6. Os questionários médicos foram preenchidos nos locais para resposta sem ter sido questionado o estado de saúde do Autor (artigo 55º da p.i.).
7. Quando ia apor nos questionários médicos a sua assinatura, o Autor deu imediato conhecimento, de viva voz, que padecia de esclerose múltipla, ao funcionário que os atendeu, ao que este tornou que isso não dava nada e que podia assinar na mesma (artigos 56º e 57º da p.i.).
8. O Réu Banco 1... entregou aos Autores uma cópia das Condições Gerais e das Condições Especiais do contrato seguro a que aquele se propunha aderir, denominado C..., reproduzidas no documento ... da contestação da Ré O... (artigo 4º da contestação do Réu Banco 1...).
9. Antes de os Autores subscreverem a proposta de adesão ao contrato de seguro, foram informados e esclarecidos por um trabalhador do tomador do seguro, do teor de todas as cláusulas contratuais gerais e especiais do contrato de seguro do ramo vida e das exclusões e limitações das suas coberturas (artigo 6º da contestação do Réu Banco 1...).
10. Antes de subscreverem a referida proposta, os Autores foram informados de que, considerando que as coberturas a garantir e pretendidas com a adesão ao contrato seguro de vida eram a morte e/ou a invalidez total e permanente do proponente/autor, a resposta ao Questionário Médico era um elemento indispensável e essencial para a formação da vontade do segurador, designadamente para recusar a proposta da sua adesão ao seguro, e assim não aceitar a transferência daqueles riscos, ou aceitá-la e, neste caso, sob determinadas condições, agravamentos ou exclusões, tudo consoante as respostas que fossem dadas no Questionário Médico (artigo 8º da contestação do Réu Banco 1...).
11. Foram ainda os Autores informados de que as respostas inexatas ou reticentes poderiam implicar a anulação do contrato de seguro por parte do segurador, e o seguro dado sem efeito desde a data de celebração, com perda dos prémios entretanto pagos (artigo 10º da contestação do Réu Banco 1...).
12. Os Autores leram atentamente o documento e acharam-no conforme, antes de nele aporem as suas assinaturas (artigo 19º da contestação do Réu Banco 1...).
13. O Autor prestou declarações inexactas para enganar a Ré O..., com o intuito de obter uma vantagem, nomeadamente, a celebração do contrato e o pagamento de prémio muito inferior àquele que seria devido (artigo 51º da contestação do Réu Banco 1...).
* * *
4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
    
4.1. Da Alteração da Matéria de Facto
(…)
Consequentemente, impõe concluir-se pela inexistência de qualquer erro de julgamento e, por via disso, terá que improceder, de forma integral, a pretensão recursória da Autores/Recorrentes quanto à alteração da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
*
4.2. Da Invalidade da Resolução/Anulação dos «Primitivos» Contratos de Seguro

Atento o teor das conclusões formuladas no recurso, é inequívoco que os Autores/Recorrentes não impugnaram a sentença recorrida na parte em que o Tribunal a quo apreciou os «segundos» contratos de seguros celebrados entre aqueles e a Ré Seguradora (em 04/03/2015, e formalizadas pela apólice ...90) e conclui que “assiste à Ré O... direito a, por virtude da omissão de informação relevante do Autor na ocasião da celebração dos contratos, excluir a cobertura da incapacidade permanente do segurado Autor contratualmente prevista, circunstância que obsta à procedência das alíneas k) a q) do pedido”.
Portanto, a impugnação judicial da sentença recorrida, em matéria de direito, reporta-se apenas aos contratos de seguro celebrados entre Autores/Recorrentes e a Ré Seguradora em 2004, pela apólice nº ...16, e em 2006 e 2007, pela apólice nº ...90 (com os certificados nºs. ...55, ...68 e ...07), nomeadamente à validade/invalidade da respectiva resolução.
Em geral, o contrato de seguro é aquele através do qual uma das partes (o segurador), em troca do pagamento de uma soma em dinheiro (prémio) por parte do outro contratante (segurado), se obriga a manter indemne o segurado dos prejuízos que podem derivar de determinados sinistros ou casos fortuitos ou ainda a pagar uma soma em dinheiro ao próprio segurado ou a terceiros[4].
Nas palavras de José Vasques[5], seguro “é o contrato pelo qual a seguradora, mediante retribuição pelo tomador do seguro, se obriga, a favor do segurado ou de terceiro, à indemnização de prejuízos resultantes, ou ao pagamento de valor pré-definido, no caso de se realizar um determinado evento futuro e incerto”. Ou, nas palavras de Moitinho de Almeida[6], o contrato de seguro é “aquele em que uma das partes, o segurador, compensando segundo as leis da estatística um conjunto de riscos por ele assumidos, se obriga, mediante o pagamento de uma soma determinada a, no caso de realização de um risco, indemnizar o segurado pelos prejuízos sofridos ou, tratando-se de evento relativo à pessoa humana, entregar um capital ou renda ao segurado ou a terceiro, dentro dos limites convencionalmente estabelecidos, ou a dispensar o pagamento dos prémios tratando-se de pretensão a realizar em data determinada”.
Por via de regra, o seguro apresenta-se como um contrato bilateral, de execução continuada e de adesão. E também é um contrato aleatório pois as partes submetem-se a uma álea, à possibilidade de ganhar ou perder, e oneroso na medida em que apesar de ambas as partes estarem sujeitas ao risco de perder, no final de contas só uma virá a ganhar[7].
O seguro de grupo consiste no seguro de um conjunto de pessoas ligadas entre si e ao tomador de seguro por um vínculo ou interesse comum, podendo ser contributivo (no âmbito do qual as pessoas contribuem, no todo ou em parte, para o pagamento do prémio) ou não contributivo (no âmbito do qual o tomador de seguro contribui, na totalidade, para o pagamento do prémio). Este tipo de seguro é formalizado através de uma única apólice, na qual se garantem as coberturas de acordo com um critério objectivo e uniforme, que não depende exclusivamente da vontade da pessoa segura, sendo que a seguradora, com base nos boletins de adesão dos candidatos à participação no contrato, emite, por cada pessoa segura, um certificado individual ou outro documento comprovativo de inclusão no grupo seguro, do qual constem os elementos de identificação de pessoa segura e a designação dos beneficiários[8].
Sob a denominação “seguro de grupo” incluem-se realidades contratuais muito diferentes, propondo-se a designação mais ampla de “seguros colectivos” de molde a abranger os seguros de grupo em sentido próprio, os seguros de grupo em sentido impróprio, e os contratos-quadros seguidos da celebração de contratos individuais de seguro, sendo que é dentro desta última categoria se integram os seguros de vida do banco que contrata com o segurador os parâmetros dentro dos quais irão celebrar-se os contratos individuais de seguro sobre a vida dos seus clientes, que estes últimos celebrarão com o propósito de os dar em garantia ao próprio banco[9].
Uma das especificidades do contrato de seguro de grupo respeita precisamente ao processo da sua formação, repartido em dois momentos distintos: no primeiro momento, é celebrado um contrato entre o segurador e o tomador do seguro; e no segundo momento, dão-se as adesões dos membros do grupo, com as quais surge o segurado, qualidade que o tomador do seguro não tem. Trata-se de um contrato de seguro que é predisposto pelo tomador e pelo segurador e são estes que modelam o seu conteúdo, sendo que aquele que vêm a assumir a posição contratual de segurado, por virtude de um vínculo que o liga ao tomador, limita-se a aderir ao contrato objecto de predisposição. E, a partir do momento em que se dá a adesão de um dos membros do grupo, constitui-se entre os intervenientes (segurado, tomador do seguro e segurador) uma relação trilateral e, por via disso, o contrato deixou de regular exclusivamente os interesses do tomador e do segurador, passando a regular, de igual modo, os interesses do segurado[10].
Nesta relação trilateral o banco mutuante/tomador do seguro é o beneficiário directo do seguro que, no caso do ramo vida, cobre a morte ou invalidez total e permanente dos mutuários (pessoas seguras), mas também cada um destes últimos é beneficiário do seguro em caso de morte ou de invalidez total e permanente do cônjuge segurado (assim como no caso da sua própria invalidez total e permanente) na medida em que a liquidação das importâncias seguras o desonera perante o banco mutuante.
Trata-se de um contrato em que o tomador de seguro contrata em nome próprio, mas no interesse de um terceiro, mas é claro que a finalidade prosseguida pelo tomador, ao realizar o seguro de grupo, é a de assegurar a restituição da importância emprestada perante a verificação de um sinistro que prejudique o normal cumprimento das obrigações dos mutuários (pagamento das prestações do crédito contraído), mas deste contrato também derivam óbvias vantagens para os mutuários que ficam protegidos perante a ocorrência do infortúnio garantido[11].
Atentas as considerações jurídicas supra expostas, e analisando a factualidade provada relativamente à celebração do contrato de compra e venda com mútuo de 25/05/2004, e os contratos de mútuo de 10/04/2006 e de 04/10/2007, entre os Autores/Recorrentes e o Réu Banco (e, nomeadamente, o teor das cláusulas 10ª de cada um dos documentos complementares de cada uma das respectivas escrituras, sendo estas foram dadas por reproduzidas - cfr. documentos de fls. 12 a 29v dos autos e cfr. factos provados nºs. 1 a 3) e relativamente à celebração dos contratos de seguro entre Autores/Recorrentes e a Ré Seguradora em 2004, pela apólice nº ...16, e em 2006 e 2007, pela apólice nº ...90, com os certificados nºs. ...55, ...68 e ...07 (e, nomeadamente, o teor das actas adicionais ao certificado individual e das respectivas condições gerais e condições especiais, sendo que os respectivos documentos foram dados por reproduzidos - cfr. documentos de fls. 30 a 44 dos autos e cfr. facto provado nº4), é inequívoco que estamos perante três contratos que se têm que qualificar como seguros de grupo do ramo vida, no qual se garante que a Ré Seguradora procede ao reembolso ao Réu Banco dos capitais mutuados caso ocorresse, relativamente aos Autores/Recorrentes, algum dos eventos constantes das respectivas apólices (morte ou invalidez total e permanente), contratos que se destinaram a garantir o pagamento das obrigações contraídas pelos Autores/Recorrentes (mutuários) perante o Réu Banco (mutuante), caso ocorresse a verificação de qualquer um dos riscos garantidos (morte ou invalidez total e permanente). Com efeito:
- o Banco Réu (mutuante) foi o tomador de seguro, entidade que celebrou o contrato de seguro com a Ré Seguradora (como decorre das actas adicionais a que correspondem os documentos de fls. 30 a 31, e 36v a 39 dos autos - cfr. facto provado nº4);
- os Autores/Recorrentes, que foram os mutuários dos três financiamentos concedidos pelo Réu Banco, são o grupo segurável (pessoas ligadas ao tomador do seguro por um vínculo ou interesse comum - no caso, «conjunto de pessoas que, sendo cliente do Tomador que celebrem contratos de mútuo» - art. 2º das «condições especiais – empréstimos» que constituem os documentos de fls. 35v/36 e 43v/44 dos autos - cfr. facto provado nº4), e as pessoas seguras são aquelas cujo risco tenha sido aceite pela seguradora após recepção das respectivas declarações de adesão ao seguro de grupo (art. 3º/1 das «condições especiais – empréstimos» que constituem os documentos de fls. 35v/36 e 43v/44 dos autos - cfr. facto provado nº4);
- e o Réu Banco é beneficiário irrevogável, até ao limite do capital seguro, do montante em dívida à data do reconhecimento da Ré Seguradora do direito ao pagamento das importâncias seguras (art. 5º/1 das «condições especiais - empréstimos» que constituem os documentos de fls. 35v/36 e 43v/44 dos autos - cfr. facto provado nº4), revertendo para ele a prestação debitória da Ré seguradora decorrente do contrato.

Tendo estas três relações contratuais “trilaterais” sido constituídas em 2004, 2006 e 2007, dúvidas não existem que foram celebrados antes da entrada em vigor do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Dec.-Lei nº72/2008, de 16/04, já que, por força do art. 7º desta Lei, este apenas entrou em vigor na data de 01/01/2009.
Porém, este Dec.-Lei contém normas de direito transitório: com efeito, o seu art. 2º/1 estatui que “O disposto no regime jurídico do contrato de seguro aplica-se aos contratos de seguro celebrados após a entrada em vigor do presente decreto-lei, assim como ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, com as especificidades constantes dos artigos seguintes”, e o art. 3º/1 estabelece que “Nos contratos de seguro com renovação periódica, o regime jurídico do contrato de seguro aplica-se a partir da primeira renovação posterior à data de entrada em vigor do presente decreto-lei, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato, nomeadamente as constantes dos artigos 18.º a 26.º, 27.º, 32.º a 37.º, 78.º, 87.º, 88.º, 89.º, 151.º, 154.º, 158.º, 178.º, 179.º, 185.º e 187.º do regime jurídico do contrato de seguro”.
Daqui decorre que as normas de direito transitório constantes dos referidos arts. 2º e 3º, ressalvam a aplicação do novo RJCS à formação do contrato, em especial à sua validade, situações que continuam a reger-se pela lei vigente à data da sua celebração, mesmo que esta já tenha sido revogada quando a questão vier a ser dirimida[12].

Sucede que, como resulta claramente do art. 4º/3 das «condições gerais» que constituem os documentos de fls. 31v a 35 e 39v a 42v dos autos - cfr. facto provado nº4), os três referidos contratos de seguro são «automaticamente renováveis por períodos de um ano», pelo que enquadram-se na previsão normativa «nos contratos de seguro com renovação periódica» e, por via disso, nos termos do art. 3º/1 da Lei nº72/2008, é-lhes aplicável o novo RJCS a partir da primeira renovação posterior à sua data de entrada em vigor, com excepção das regras respeitantes à formação do contrato (nesta matéria, continuam a reger-se pelo regime vigente à data da sua celebração). Logo, tendo os mesmos tido início em 25/05/2004, 09/04/2006 e 04/10/2007, tal aplicação ocorreu a partir das renovações ocorridas em 09/05/2009, 09/04/2009 e 04/10/2009 respectivamente.
Assim sendo, não se subscreve a sentença recorrida quando afirma, de uma forma genérica, sem qualquer distinção de matérias e sem atender à natureza «renovável» do contrato e ao momento da ocorrência da situação a regular, no sentido de que “de acordo com o Regime Jurídico aplicável aos contratos de seguro em apreço – com início em 25.05.2004, 09.04.2006 e 04.10.2007 -, anterior à entrada em vigor do actual Regime Jurídico do Contrato de Seguro…” e “Vimos já que, de acordo com o Regime Jurídico aplicável aos contratos de seguro em apreço – com início em 25.05.2004, 09.04.2006 e 04.10.2007 -, anterior à entrada em vigor do actual Regime Jurídico do Contrato de Seguro…”. E também não se concorda, salvo o devido respeito, com a Jurisprudência que, sem ponderar o regime transitório que efectivamente decorre do Dec.-Lei nº72/2008, tem entendido que, aos contratos de seguro de vida celebrados antes da vigência deste Dec.-Lei mas que se renovam após a sua vigência, é aplicável o regime dos arts. 425º a 462º do C.Comercial e do Decreto de 21 de Outubro de 1907 (que foram revogados pelo art. 6º/2 daquele Dec.-Lei nº72/2008) ou é aplicável o regime do Dec.-Lei nº176/95, de 26/07.
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que resultou probatoriamente demonstrado que: «ficou estabelecido entre as partes que os prémios devidos em função dos contratos de seguro a que se refere o facto provado número 4, deviam ser pagos pelo sistema denominado de “débito directo”, pelo qual os Autores transmitiram à O... instruções para que realizar o respectivo débito na conta do Banco 1... aberta em nome deles; o pagamento mencionado no facto provado anterior é efectuado automaticamente por instruções previamente introduzidas em sistema informático do Banco, sendo, sem intermediação humana, feito ou recusado conforme a conta tenha ou não tenha saldo que suporte o pagamento; a Seguradora sabe se o pagamento foi feito ou não, por lhe ter entrado ou não ter entrado em conta o montante do respectivo prémio (artigo 10º da contestação do Réu Banco 1...); e os Autores sabiam e aceitaram, desde a celebração dos contratos mencionados no facto provado número 4, que os pagamentos dos prémios eram efectuados por “débito directo” nos termos descritos nos factos provados anteriores» (cfr. factos provados nºs. 7 a 10).
E mais resultou probatoriamente demonstrado que, apesar da supra discriminada forma convencionada para o pagamento dos prémios, «os Autores não pagaram os prémios referentes ao período de 01.05.2014 a 01.06.2014, dos contratos de seguro referidos no facto provado número 4, não tendo provisionado a conta bancária respectiva com os fundos necessários para o efeito» (cfr. facto provado nº11), sendo que a Ré Seguradora veio a anular estes três contratos de seguro de grupo do ramo vida com base nessa falta de pagamento (cfr. factos provados nºs. 12 a 15).
Na sentença recorrida considerou-se que a Ré Seguradora procedeu «à legitima resolução de tais contratos após converter validamente em incumprimento definitivo a mora dos Autores».
Em sede de recurso, os Autores/Recorrentes colocam em causa a validade de tal resolução (anulação), defendendo, essencialmente, que «a resolução operada pela R. Seguradora não foi precedida de qualquer prazo admonitório para o cumprimento, ao que estava obrigada, torna a mesma resolução inválida, mantendo-se os referidos contratos em vigor», «incumbia à Ré O... a prova de ter procedido à resolução válida do contrato, através do envio da interpelação admonitória prévia, quer da subsequente resolução a ambos os segurados, o que não provou ao que estava obrigada pelo que a propalada resolução operada pela R. “O...” se mostra inválida», e «são de considerar válidos à data do sinistro os seguros de vida celebrados em 2004, 2006 e 2007, uma vez que a R. Seguradora violando como violou diversas normas jurídicas, como as assinaladas, não pode, como o fez, depois e sem abuso, prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente ou exercer a posição jurídica violada» - cfr. conclusões V a VII.
Apreciemos os (três) argumentos/fundamentos aduzidos.
Quanto à inexistência de prazo admonitório.
Na literatura jurídica é corrente imputar os conceitos de resolução, revogação e denúncia à figura do contrato uma vez que, sem que atinjam a validade da declarações de vontade que originaram a formação do contrato, «atacam» os seus efeitos, destruindo em maior o menor extensão a relação contratual.
A resolução é a destruição da relação contratual (validamente constituída), operada por um dos contraentes, com base num facto posterior à celebração do contrato[13]. Como refere Vaz Serra[14], “a resolução é uma declaração dirigida à parte contrária no sentido de que o contrato se considera como não celebrado. A parte, que resolve o contrato, declara que tudo se passa como se ele não tivesse sido realizado”.
O direito de resolução tanto pode resultar da lei como de convenção entre as partes (cfr. art. 432º/1 do C.Civil). A maioria das vezes a resolução assentará num poder vinculado, obrigando-se o autor a alegar e provar fundamento, previsto na convenção das partes ou na lei (cfr. arts. 801º/2 e 802º/1 do C.Civil), que justificação a destruição unilateral do contrato. Mas nada impede que a resolução seja confiada ao poder discricionário do contraente quando a lei assim o estipule ou quando as partes assim o tenham convencionado[15].
A resolução pode ser judicial ou extrajudicial conforme necessite ou não da intervenção do Tribunal para a declarar e operar o seus efeitos, sendo que a resolução goza, em princípio, de eficácia retroactiva (excepto no que concerne aos contratos de execução continuada ou periódica - cfr. art. 434º/1 e 2 do C.Civil) e que pode ser obtida, por via de regra, mediante simples declaração à outra parte, tendo esta declaração verdadeira eficácia constitutiva (cfr. art. 434º/1 e 2 do C.Civil).
A propósito da resolução importa ter presente que este conceito significa o mesmo que rescisão quando falamos de forma de extinção dos contratos, sendo certo que foi àquela primeira que a nossa lei deu consagração[16].
Como se sabe, o não cumprimento de qualquer obrigação é susceptível de desencadear, atento o efeito produzido, designadamente, uma situação de mora, uma situação de cumprimento imperfeito ou defeituoso ou uma situação de incumprimento definitivo.
A mora do devedor, designada também por «mora solvendi», consiste no atraso (demora, dilatação ou retardamento) culposo no cumprimento da obrigação de realização da prestação contratual a que está obrigado/vinculado. E, por força do disposto no art. 804º/2 do C.Civil, o devedor incorre em mora quando, por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, mas apesar disso tal prestação continua a ser ainda efectivamente possível de realizar (satisfazer)[17].
A simples mora do devedor não confere, em princípio, ao credor o direito de resolver o contrato, mas tão-somente o de exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos causados (cfr. art. 804º/1 e 2 do C.Civil), sendo que a resolução só se mostra viável quando ocorra incumprimento definitivo imputável ao devedor (isto é, quando a prestação se torne impossível de realizar em termos definitivos - para sempre) - cfr. art. 801º do C.Civil.
Porém, existem dois casos de mora que o legislador equipara a um incumprimento definitivo. Prescreve o art. 808º/1 do C.Civil: «se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação».
Por força desta disposição legal, a mora transforma-se ou converte-se em incumprimento definitivo, quer mediante a perda (subsequente à mora) do interesse do credor, a apreciar objectivamente, quer em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório que o credor fixe razoavelmente ao devedor relapso («prazo admonitório», «notificação admonitória» ou «interpelação cominatória»)[18].
No caso em apreço, perante a factualidade provada (e é questão aceite por todas as partes), é inquestionável que os Autores/Recorrentes entraram em «mora solvendi» uma vez que não cumpriram, dentro do respectivo prazo, a obrigação de realização da prestação contratual a que estavam vinculados por força dos três contratos de seguro aqui em causa: não pagaram os prémios referentes ao período de 01.05.2014 a 01.06.2014, não provisionando a conta bancária com os fundos necessários (cfr. facto provado nº11).
Embora em tais contratos o tomador de seguro seja o Réu Banco e embora, em princípio, incumba ao tomador a obrigação de pagamento dos prémios [cfr. art. 1º/b) do Dec.-Lei nº176/95, e art. 51º/1 do Dec.-Lei nº72/2008), importa deixar esclarecido que resulta da factualidade provada (cfr. factos provados nºs. 1 a 4 e 7 a 10), nomeadamente das cláusulas 11ª/1 dos documentos complementares de cada uma das respectivas escrituras (cfr. documentos de fls. 12 a 29v dos autos) e das actas adicionais (cfr. documentos de fls. 30 a 31 e 36v a 39 dos autos), que foram os Autores/Recorrentes assumiram a obrigação de pagamento dos respectivos prémios (o que, aliás, nem sequer foi por si questionado).
Uma vez que a constituição em mora no pagamento dos prémios ocorreu em Maio de 2014, ou seja, muito tempo depois dos momentos em que ocorreram as primeiras renovações dos contratos após a entrada em vigor do novo RJCS (ocorridas em 09/05/2009, 09/04/2009 e 04/10/2009 respectivamente) e uma vez que não existem dúvidas que a obrigação de pagamento do prémio respeita ao conteúdo do contrato (como resulta do art. 1º do RJCS, sob a epígrafe de «conteúdo típico») e não à sua formação e validade (aliás, as normas sobre o pagamento e falta de pagamento do prémio estão previstas nos arts. 51º a 61º do RJCS, sendo que nenhum destes preceitos corresponde aos artigos identificados na parte final do art. 3º/1 do Dec.-Lei nº72/2008, e cuja aplicabilidade aos contratos «anteriores» foi excluída), então por força do disposto no nº1 do art. 3º/1, 1ªparte, da Lei nº72/2008, é aplicável a essa situação de mora o novo RJCS, nomeadamente o regime decorrente dos seus arts. 51º a 61º, e não o regime legal vigente anteriormente ao RJCS, como se concluiu na sentença recorrida (aliás, sem grande explicação ou fundamentação, sendo que os Autores/Recorrentes, em sede de recurso, também nada alegam sobre o regime aplicável).
Frise-se que nunca seria aplicável o regime do Dec.-Lei nº142/2000, de 14/07 (com as alterações introduzidas pelos Decs.-Leis nºs 248-B/2000, de 12/10, 150/2004, de 29/096, e 122/2005, de 29/07), que estabeleceu o regime jurídico do pagamento dos prémios de seguro (art. 1º/1) e instituiu a resolução automática do contrato de seguro por falta de pagamento do prémio – cfr. o respectivo art. 8º/1), porque, nos termos do nº2 do seu art. 1º, este regime não se aplica aos seguros do ramo vida.
Também não é aplicável, nesta matéria, o Dec.-Lei nº176/95, de 26/07, porque o mesmo não contém qualquer regime de pagamento dos prémios e de consequências na sua falta.
E o regime que decorria dos arts. 425º a 462º do C.Comercial e do art. 33º do Decreto de 21 de Outubro de 1907 (“O contrato de seguro de vidas somente poderá considerar-se insubsistente por falta de pagamento do prémio, quando o segurado, depois de avisado por meio de carta registada, não satisfaça a quantia em divida no prazo de oito dias ou noutro, nunca inferior a este, que porventura se ache estipulado na apólice. § único: O prazo a que se refere o presente artigo contar-se-á do registo da carta, a qual será redigida para a última residência do segurado, que conste dos registos e documentos da sociedade seguradora”) também deixou de ser aplicável porque foi revogado pelo Dec.-Lei nº72/2008 (cfr. o respectivo art. 6º/2) e porque, como supra se explicou, a partir das renovações dos contratos de seguro aqui em causa, ao seu conteúdo, passou a ser aplicável o novo RJCS (esclareça-se que no já citado Ac. STJ 03/11/2016[19], se defende que «até à Lei do Contrato de Seguro de 2008, a resolução de contrato de seguro do ramo vida era regulada pelo art. 33º do Decreto de 21 de Outubro de 1907, entendendo-se, implicitamente, que essa norma especial não foi revogada pelo art. 18º do Decreto-Lei nº 76/95, de 26 de Julho», mas o contrato de seguro e respectiva adesão tinham ocorrido em 1998 e 2000, e a falta de pagamento verificou-se em 2004, ou seja, até antes da entrada em vigor do Dec.-Lei nº72/2008).
Percorrendo o regime de pagamento de prémios (e consequências da sua falta) consagrado no RJCS, constata-se que, por força do estatuído no seu art. 58º, o regime previsto nos arts. 59º a 61º (onde, para além do mais, se estabelece que a falta de pagamento do prémio determina a resolução automática do contrato) “não se aplica aos seguros e operações regulados no capítulo respeitante ao seguro de vida”.

Assim sendo, importa recorrer ao seu art. 57º que, sob a epígrafe «Mora», dispõe (na parte que para o presente caso revela): “1 - A falta de pagamento do prémio na data do vencimento constitui o tomador do seguro em mora. 2 - Sem prejuízo das regras gerais, os efeitos da falta de pagamento do prémio são: a) Para a generalidade dos seguros, os que decorrem do disposto nos artigos 59.º e 61.º; b) Para os seguros indicados no artigo 58.º, os que sejam estipulados nas condições contratuais…”.
Daqui resulta que, no caso dos contratos de seguro do ramo vida, e sem prejuízo das regras gerais aplicáveis à mora e suas consequências constantes do C.Civil, os efeitos da mora (na falta) de pagamento do prémio são aqueles que foram estipulados pelas partes nas condições contratuais desses contratos (o que constitui uma consagração do princípio da liberdade contratual na regulação do contrato de seguro - cfr. art. 11º do RJCS).
Ora, percorrendo as condições contratuais dos três contratos de seguro do ramo vida aqui em causa, descortina-se que no respectivos arts. 13º/1 das «condições gerais» que constituem os documentos de fls. 31v a 35 e 39v a 42v dos autos (cfr. facto provado nº4) está consagrado que “O não pagamento dos prémios, dentro dos 30 dias posteriores à data do seu vencimento, concede à Seguradora, nos termos legais, a faculdade de proceder à resolução do contrato ou fazer cessar as garantias conferidas em relação a uma ou mais Pessoas Seguras”.
Perante o teor desta cláusula e interpretando o seu sentido (cfr. art. 236º do C.Civil), verifica-se as partes estipularam nos contratos de seguro em apreço, aos quais os Autores/Recorrentes aderiram, que um atraso de 30 dias no pagamento do prémio (contados da respectiva data de vencimento) atribui e confere à Ré Seguradora o direito (faculdade) de proceder, de imediato e sem qualquer outro procedimento prévio, à resolução de tais contratos.
Estamos, portanto, perante uma cláusula convencional resolutiva expressa (como supra se referiu o direito de resolução tanto pode resultar da lei como de convenção entre as partes - cfr. art. 432º/1 do C.Civil) que autoriza a Ré Seguradora a resolver tais contratos de forma imediata, isto é, no sentido de que não é necessário demonstrar a gravidade do incumprimento ou converter (previamente) a situação de mora num incumprimento definitivo. Assim sendo, esta cláusula resolutiva expressa dispensa (torna desnecessária) a interpelação admonitória prevista no art. 808º do C.Civil.
Recorde-se que, como supra também se referiu, embora a maioria das vezes a resolução assente num poder vinculado que obriga a demonstrar a justificação para a «destruição» unilateral do contrato, inexiste qualquer impedimento para que a resolução possa ser confiada ao poder discricionário do contraente quando a lei assim o estipule ou quando as partes assim o convencionem, sendo este último caso que ocorre no caso em apreço, acrescendo que, como resulta do disposto no referido art. 57º/2b) do RJCS, a lei permite, neste tipo de contratos, que  os efeitos da falta de pagamento do prémio sejam definidos e determinados pelas partes nas respectivas condições contratuais.
No sentido de que se trata de uma cláusula resolutiva expressa e sem necessidade de interpelação admonitória, decidiu o Ac. da RC de 22/09/2021[20], ao analisar uma cláusula com um teor exactamente igual: “… v) Se as partes estipularam que as coberturas garantidas ao abrigo do contrato em apreço cessam quando se verifique a resolução do contrato; e que “O não pagamento dos prémios, dentro dos 30 dias posteriores à data do seu vencimento, concede à Seguradora, nos termos legais, a faculdade de proceder à resolução do contrato ou fazer cessar as garantias conferidas em relação a uma ou mais pessoas.”, trata-se de uma cláusula resolutiva expressa, hipótese onde não é necessária uma interpelação admonitória, bastando, para operar efeitos, que a seguradora faça a devida comunicação ao segurado (artr. 436º, nº 1, do CC)” (o sublinhado é nosso).
E no mesmo sentido também já se havia pronunciado o Ac. da RC de 14/03/2017[21]: “… mas sim perante uma resolução convencional, baseada numa cláusula inserta no contrato, cláusula essa associada ao incumprimento (falta de pagamento do prémio) e que, fixando um termo essencial para o pagamento do prémio em atraso, permite à R/seguradora resolver o contrato sem necessidade de demonstrar a gravidade do incumprimento e evitando as delongas da transformação da mora em incumprimento definitivo. É o que decorre e se extrai do art. 13.º das Condições Gerais do seguro de grupo a que a A. e marido aderiram, segundo o qual «o não pagamento dos prémios, dentro dos 30 dias posteriores à data do seu vencimento, concede à seguradora, nos termos legais, a faculdade de proceder à resolução do contrato (…)»; ou seja, interpretando/determinando o seu sentido, temos que está clausulado, no contrato de seguro a que a A. e o marido aderiram, que um atraso de 30 dias no pagamento do prémio confere à seguradora a faculdade de resolver o contrato. Repetindo, para resolver o contrato, não tinha a R/seguradora que demonstrar a gravidade do incumprimento, nem que começar por converter a mora em incumprimento definitivo (mediante a interpelação admonitória prevista no art. 808.º do C. Civil), uma vez que a cláusula resolutiva convencional logo dizia, insiste-se, que um atraso de 30 dias no pagamento do prémio confere à seguradora a faculdade de resolver o contrato (os sublinhados são nossos).
Neste “quadro”, ao contrário do que defendem (erradamente) em sede de recurso, a resolução/anulação operada pela Ré Seguradora não tinha que ser precedida de qualquer interpelação admonitória aos Autores/Recorrentes para procederem ao pagamento do prémio vencido em 01/05/2014 (como resulta do art. 13ª/1 das «condições gerais» que constituem os documentos de fls. 31v a 35 e 39v a 42v dos autos - cfr. facto provado nº4 -, «os prémios vencem-se na data do início do período a que se referem»).
Logo, independentemente das cartas (avisos) datadas de 18/06/2014 (cfr. facto provado nº12), está probatoriamente demonstrado que a Ré Seguradora exerceu aquele direito convencional de resolução: com efeito, não tendo sido pagos os prémios dos três contratos referentes ao período de 01/05/2014 a 01/06/2014, em 19/06/2014, remeteu ao Autor três comunicações (cartas) nas quais consignou que iria proceder à resolução dos contratos de seguro, comunicações embora remetidas apenas em nome daquele foram conhecidas de ambos os Autores/Recorrentes (cfr. factos provados nºs. 12 e 13), pelo que se verifica que já estavam decorridos os 30 dias de atraso no pagamento desses prémios exigidos pela referida cláusula para conferir à Ré Seguradora o direito em causa. Saliente-se que, embora não se saiba a data concreta em que esta “operou” essa resolução (naquelas cartas de 19/06/2014, afirma-se que se irá proceder à resolução, e não que se procede, nesse momento, à resolução), certo é que, da conjugação dos factos provados nºs. 12 e 14, resulta inequivocamente que tal resolução foi efectivamente concretizada, podendo afirmar-se que, atento o prazo admonitório consignado nas cartas de 18/06/2014 («até 30/06/2014), ocorreu a partir de 01/07/2014 (embora com efeitos à data vencimento dos prémios não pagos – 01/05/2014).
Por via disso, não colhe nem procede este fundamento/argumento recursivo da falta interpelação/prazo admonitório (e consequente invalidade da resolução).
Mas admitindo-se, por mera hipótese de raciocínio, que era necessária tal interpelação admonitória, sempre continuaria a não assistir razão aos Autores/Recorrentes.
Na verdade, ao contrário do que quiseram fazer crer nas alegações de recurso, e embora de forma desnecessária (como supra se explicou em face da existência de cláusula convencional resolutiva expressa), resulta do teor das cartas (avisos) datadas de 18/06/2014 que remeteu ao Autor mas que foram conhecidas de ambos os Autores/Recorrentes (cfr. factos provados nºs. 12 e 13), concedem, clara e de forma inequívoca, um prazo suplementar/extra para pagamento dos prémios vencidos em 01/05/2014 já que está expressamente consignado nas três que «… não foi possível efectuar a cobrança do presente recibo… Neste contexto, solicitamos que proceda à sua liquidação até 30-06-2014… Alertamos que a falta de pagamento do presente recibo produzirá o cancelamento da Apólice…». Nestes termos, através de tais cartas/avisos o credor (Ré Seguradora) concede um prazo que razoável aos devedores em situação moratória (Autores/Recorrentes) e, por via disso, constituem a «interpelação cominatória» prevista na 2ªparte do art. 808º/1 do C.Civil. Uma vez que, na sua sequência, não foi feito qualquer pagamento dos prémios vencidos, a mora daqueles converteu-se em incumprimento definitivo, o que sempre permitiria à Ré proceder à resolução dos três contratos de seguro (como, aliás, nesta parte, bem se concluiu na sentença recorrida).
E sempre se frise que a alegação de que «as comunicações (cartas) de 19/06/2014, porque foram enviadas 24 horas após as cartas (avisos) datadas de 18/06/2014, não concedem qualquer prazo admonitório e contrariam aqueles avisos», mostra-se absolutamente inconsequente uma vez que inexiste no teor das comunicações (cartas) de 19/06/2014 qualquer declaração (ou referência) no sentido de que a Ré Seguradora já não concedia o prazo de pagamento até 30/06/2014, até porque nestas comunicações consignou-se que «procederemos à anulação» (ou seja, futuro e não presente) e não que «se procede à anulação»(nesse momento), mais acrescendo que nenhum facto foi alegado pelos Autores/Recorrentes (e o respectivo ónus incumbia-lhes exclusivamente - cfr. art. 342º/1 do C.Civil) no sentido de que procuram proceder ao pagamento dos prémios até 30/06/2014 mas a Ré Seguradora não o permitiu. E saliente-se que, a quase simultaneidade de ambas as comunicações, ou melhor, a diferença de apenas um dia entre elas, mostra-se juridicamente irrelevante uma vez que, como supra se explicou, não está demonstrado que a Ré Seguradora não tenha efectivamente concedido o prazo até 30/06/2014 (aliás, numa situação em que foi enviada uma só carta, o já citado Ac. do STJ de 03/11/2016[22] decidiu que “V - Mostra-se cumprida a exigência aí prevista - da resolução por falta de pagamento do prémio ser antecedida de aviso, por meio de carta registada, ao segurado para satisfazer a quantia em dívida no prazo de oito dias ou noutro não inferior - no caso da seguradora, por carta registada, declarar a resolução do contrato por falta de pagamento de prémios de seguro, com efeitos em determinada data, mas admitir a «reposição do contrato» mediante o pagamento dos prémios em dívida e respectivos juros até data posterior àquela”).
E chama-se a atenção para a total improcedência da impugnação da matéria de facto, pelo que, ao contrário do que alegaram em sede de petição inicial e do que pretendiam nessa parte do recurso, nos autos ficou mesmo provado que «a Ré remeteu mesmo as cartas (aviso) para pagamento em prazo suplementar e as cartas de aviso da resolução/anulação» (que veio a ocorrer como resulta do facto provado nº14) e que «ambos os Autores tiveram conhecimento de tais cartas» (cfr. factos provados nºs. 12 e 13).
Assim sendo, mesmo que fosse exigível à Ré Seguradora proceder à interpelação admonitória dos Autores/Recorrentes para converter a mora em incumprimento definitivo e poder resolver os contratos (e não era, como supra se concluiu), ainda assim estaria probatoriamente demonstrado que aquela realizou efectivamente tal tipo de interpelação, pelo que, também por esta razão, jamais ser acolhido este fundamento/argumento recursivo da falta interpelação/prazo admonitório (e consequente invalidade da resolução).
Quanto à falta de comunicação da interpelação admonitória e da resolução à Autora/Recorrente.
A conclusão VI formulada pelos Autores/Recorrentes assenta nas alegações de que «ss supostas cartas enviadas para interpelação para pagamento dos prémios em atraso e subsequente resolução apenas foram enviadas para o A. AA, e jamais à A.; uma vez que quem contratou o seguro foram ambos os cônjuges e são os dois devedores, os deveres que oneravam a Ré seguradora obrigavam-na a remeter também à autora a notificação admonitória para efetuar a pagamento dos prémios em dívida, bem como a comunicar-lhe a intenção de resolução do contrato; sendo o contrato de seguro de vida um contrato indivisível e sendo ambos os cônjuges segurados na mesma apólice, não é possível resolver o contrato apenas em relação a um deles; não havendo declaração resolutiva em relação a um dos cônjuges, que foi o caso, isso significa, forçosa e necessariamente, que toda a relação contratual se mantém incólume, válida e vigente (malgrado a falta de pagamento dos prémios), uma vez que a declaração resolutiva efetuada é insuficiente para
extinguir a relação contratual».

Ora, analisando o teor da petição inicial e o teor do articulado de resposta à contestação (às excepções), verifica-se que em nenhum momento os Autores/Recorrentes suscitaram a questão da invalidade da resolução dos primeiros («primitivos») três contratos de seguro do ramo vida em razão da comunicação da interpelação admonitória e da declaração resolutiva apenas terem sido realizadas ao Autor marido e não ter sido realizada à Autora mulher: com efeito, percorrendo o articulado inicial, e atento nomeadamente o teor dos seus arts. 22º, 27º, 28º, e 33º a 39º,  a alegação foi apenas e tão só no sentido de que a Ré Seguradora não enviou nenhuma carta a qualquer dos segurados a comunicar-lhes a existência de quaisquer prémios em dívida e/ou a resolução caso não procedessem ao pagamento dos prémios em atraso», ou seja, não suscitou qualquer questão de invalidade da resolução em razão da falta da sua comunicação a apenas um dos cônjuges segurados (a questão que suscitou, em razão da alegada «falta de cartas», foi apenas da invalidade da resolução pela absoluta ausência de comunicação a ambos os segurados); e, apesar de, na respectiva contestação, a Ré Seguradora ter invocado que «remeteu a ambos as cartas de aviso de pagamento» e que «remeteu, apenas endereçadas ao Autor as cartas de aviso da anulação», sendo que apenas juntou documentos (cartas) em nome deste, percorrendo o articulado de resposta (de fls. 150 a 152 dos autos) verifica-se que os Autores/Recorrentes não invocaram qualquer questão relativamente à falta de interpelação admonitória e à falta de comunicação da resolução no que concerne à cônjuge Autora e, muito menos, invocaram como nova causa de invalidade da resolução a falta de declaração de resolução relativamente a um dos segurados e a indivisibilidade do contrato de seguro.
E, na sequência dessa ausência absoluta da invocação desta questão por parte dos Autores/Recorrentes, como resulta do teor da sentença ora recorrida, o Tribunal a quo não apreciou (nem podia apreciar) a questão invalidade da resolução em razão da falta de declaração de resolução relativamente a um dos segurados e a indivisibilidade do contrato de seguro, mais se salientando que aqueles, no presente recurso, não invocaram qualquer nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre tal questão, o que, por si só, comprova que tal questão não foi suscitada em momento processual anterior ao da apresentação do presente recurso.
Nestas circunstâncias, este fundamento/argumento recursivo (falta de comunicação da interpelação admonitória e da resolução à Autora/Recorrente) configura, nítida e manifestamente, a dedução de uma questão nova.
No nosso sistema processual civil, os recursos constituem um mecanismo destinado a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, não sendo lícito invocar questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.
Como explica Luís Filipe Espírito Santo[23], “No conhecimento do objecto do recurso é basicamente apreciada a legalidade da decisão recorrida, em concreto o juízo de facto e de direito que incidiu sobre pretensão submetida ao veredicto judicial, naquele único e singular circunstancialismo, e não a tomada em consideração (pelo tribunal superior) de questões novas não suscitadas nem discutidas em 1ª instância. Está em causa a avaliação em segundo grau de uma decisão judicial pré-existente e não a possibilidade de iniciar uma nova e diversa discussão sobre temas não versados (que se viesse a reabrir originariamente). Trata-se de sindicar a valoração do juízo de facto e de direito emitidos pelo juiz de 1ª instância e não o conhecimento de novos factos ou de novas questões de direito que as partes - podendo fazê-lo - entenderam não apresentar, nem configurar ou esgrimir, no processo que decorreu na instância inferior. Com efeito, são as partes que definem, no âmbito da sua liberdade de actuação, predominante e decisiva no campo do direito privado, os termos enformadores da causa, por via da causa de pedido e pedido que nessa sede expõem, não fazendo sentido que, uma vez apreciadas em 1ªinstância as questões jurídicas que dividem os litigantes e obtida a decisão que sobre elas incide (esgotando-se nessa altura o poder jurisdicional do julgador, nos termos do artigo 613º, nº 1, do Código de Processo Civil), venham a suscitar-se, por via do recurso, questões que extravasam aquilo que constituiu o objecto da discussão travada perante o juiz a quo. A natureza da fase recursiva revela-se, assim, enquanto continuação da instância e não como configuração de uma nova instância, o que baliza, delimitando o objecto do recurso a conhecer pelo tribunal superior” (os sublinhados são nossos).
E tem sido este o entendimento unânime da jurisprudência do STJ: para além do já citado Ac. de 07/07/2016[24], refere-se também o Ac. de 29/09/2016[25], no qual se decidiu que “Os recursos não visam criar e emitir decisões novas sobre questões novas (salvo se estas forem de conhecimento oficioso), mas impugnar, reapreciar e, eventualmente modificar as decisões do tribunal recorrido sobre pontos questionados e «dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu»” e se concluiu que “não pode o tribunal de recurso “conhecer de questões que não tenham sido objeto da decisão recorrida ou que as partes não suscitaram perante o tribunal recorrido (arts. 627º, n.º 1 e 635º, n.º 2 e 4 do CPC)”. E mais se realça que no Ac. do STJ de 07/10/2021[26] decidiu-se que “Não é lícito que um recorrente invoque, em qualquer recurso, questões que não tenham sido objeto de apreciação pela decisão recorrida, pois os recursos são meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação  e consequente alteração e/ou revogação”.
Deste modo, porque este concreto fundamento/argumento baseia-se na dedução de uma questão nova, não pode ser objecto de conhecimento e apreciação por este Tribunal ad quem, até porque também não constitui matéria do conhecimento oficioso do Tribunal, o que, por si só, implica a sua improcedência.
Mas sempre importa esclarecer que, ainda que não configurasse uma questão nova, o que só se admite por mera hipótese de raciocínio, este fundamento/argumento jamais poderia merecer acolhimento.
Com efeito, mesmo que se viesse a entender que a resolução não operou relativamente a ambos os Autores/Recorrentes e que não podia operar apenas quanto ao Autor/Recorrente, o que só se admite por mera hipótese de raciocínio, ainda assim o fundamento/argumento em apreço continuaria a não merecer acolhimento, porque, como bem se refere na sentença recorrida, a reclamação daqueles relativamente à “validade e eficácia, à data de 16.11.2018, dos três seguros do ramo vida celebrados entre os AA. e a R. nos anos de 2004, 2005 e 2007… sempre esbarraria na figura do abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium (artigo 334º do CC)”.
O nº2 do art. 762º do mesmo diploma legal estipula que “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé”.
O princípio da boa fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e diretrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos: “O conceito normativo de boa fé é utilizado pelo legislador em dois sentidos distintos: no sentido de boa fé objetiva, enquanto norma de conduta, ou seja, no plano dos princípios normativos, como base orientadora e fundamento de efetivas soluções reguladoras dos conflitos de interesses, alcançadas através da densificação, concretização e preenchimento pelos Tribunais desta cláusula geral; e no sentido de boa fé subjetiva ou psicológica, isto é, como consciência ou convicção justificada de se adotar um comportamento conforme ao direito e respetivas exigências éticas”[27].
E dispõe o art. 334º do C.Civil: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Atento o teor deste preceito legal verifica-se que o abuso de direito é o exercício do poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa fé; bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento[28].
Consagrou-se uma concepção objectiva, nos termos da qual não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que se excedam esses limites. No entanto, ao conceito de abuso de direito não são alheios factores subjectivos (como, por exemplo, a intenção com que o agente tenha agido), já que a consideração destes factores pode interessar, quer para determinar se houve ofensa da boa fé ou dos bons costumes, quer para decidir se se exorbitou do fim social ou económico do direito. Acresce que, por um lado, se exige que o excesso cometido seja manifesto (os Tribunais podem fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso), e que, por outro lado, para determinar os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes há que atender de modo especial às concepções ético-jurídicas dominantes na colectividade (mas no que respeita ao fim social ou económico do direito deverão considerar-se os juízos de valor positivamente consagrados na colectividade). Por fim, importa atentar o abuso de direito pressupõe logicamente a existência do direito (direito subjectivo ou mero poder legal), embora o titular se exceda no exercício dos seus poderes[29].
Como refere Almeida Costa[30]: “Como se verifica, o nosso legislador aceitou a concepção objectiva do abuso de direito. Não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido. Basta que na realidade esse acto se mostre "contrário. Exige-se, todavia, um abuso nítido: o titular do direito deve ter excedido manifestamente esses limites impostos ao seu exercício. A lei refere-se ao exercício de direitos - o caso paradigmático de actuação do instituto. A sua letra, portanto, não abrange imediatamente quaisquer hipóteses de inércia ou omissão de exercício que possam também considerar-se abusivas. Mas parece que isso não deve constituir obstáculo insuperável, contanto que se encontrem soluções do segundo tipo clamorosamente ofensivas da boa fé, dos bons costumes ou do fim social e económico do direito...”.
Nesta mesma linha de entendimento, sustentou-se no Ac. STJ de 27/04/2017[31] que “I - Para que ocorra o abuso do direito, é necessário que o titular do direito o exerça de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social ou económico do direito. Não é necessária a consciência de que se excederam os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. É suficiente que esses limites sejam ultrapassados. O excesso deve ser manifesto”.
Analisando detalhadamente o instituto do abuso de direito, Meneses Cordeiro[32] enuncia seis tipos característicos em que se pode manifestar o «abuso de direito»: a exceptio doli (que permitia no Direito Romano deter uma posição jurídica do adversário, num caso, invocando o defendente a prática, pelo autor, de dolo no momento da formação da situação jurídica levada a juízo e, noutro, contrapondo o defendente o incurso do autor em dolo no próprio momento da discussão da causa); o venire contra factum proprium (ablação do brocardo latino "venire contra factum proprium nulli concidetur", significando, que a ninguém é permitido agir contra o seu próprio acto, expressando a reprovação social e moral que recai sobre aquele que assume comportamentos contraditórios); as inalegabilidades formais (consistente na alegação, em contradição com a boa fé, de nulidade derivada da inobservância da forma prescrita por lei para certos negócios); a supressio (posição jurídica que não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais o pode ser, pois, tal exercício atenta contra a boa fé) e a surrectio (caso em que uma pessoa vê surgir na sua esfera jurídica, por força da boa fé, uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria); o tu quoque (expressão que visa cobrir os casos em que aquele que viole uma norma jurídica não pode tirar partido da violação exigindo, a outrem, o acatamento das consequências daí resultantes); e o desequilíbrio no exercício (ou seja, aquelas situações em que ocorre desequilíbrio no exercício de várias posições jurídicas, nos diversos casos em que tal desequilíbrio se pode manifestar: exercício danoso inútil; dolo agit qui petita quod statim redditurusest; e a desproporcionalidade).
Resumindo, como se explica no Ac. do STJ de 21/09/93[33], “a complexa figura do abuso do direito é uma cláusula geral, uma válvula de segurança, uma janela por onde podem circular lufadas de ar fresco, para obtemperar à injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, à injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico inoperante em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido; existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito; dito de outro modo, o abuso do direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo mas este poder formal é exercido em aberta contradição, seja com o fim económico e social a que esse poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico (boa-fé e bons costumes) que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento”.
No que concretamente respeita ao abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium, a Jurisprudência tem vindo a entender, de forma unânime (quanto se julga saber) que decorre da violação do princípio da confiança, consubstanciada no facto daquele que demanda agir, de uma forma claramente ofensiva, contra as fundadas expetativas por ele próprio criadas ao demandado no sentido do não exercício do direito[34]. Entre outros:
- Ac. STJ de 11/12/2012[35] - “Esta vertente do abuso de direito inscreve-se no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adota uma conduta inconciliável com as expetativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes atuara”;
- o já citado Ac. STJ de 27/04/2017[36] - “II - Como modalidade do abuso do direito, a doutrina e a jurisprudência, apontam o venire contra factum proprium, abuso que ocorre quando o exercício do agente contradiz uma conduta antes presumida ou proclamada pelo mesmo”;
- e Ac. STJ de 07/03/2019[37] - “O abuso de direito, na modalidade do venire contra factum proprium, tem como pressuposto a existência de uma situação objetiva de confiança, cuja relevância é aferida pelo necessário para convencer uma pessoa normal e razoável, colocada na posição do confiante, e de um elemento subjetivo, ou seja, a criação, na pessoa do confiante, de uma confiança legítima e justificada”.
Revertendo ao caso em apreço, atento o manancial factual provado, verifica-se que, como supra já se referiu, na sequência da falta de pagamento dos prémios dos três contratos de seguro do ramo vida (celebrados em 2004, 2006 e 2007), referentes ao período de 01/05/2014 a 01/06/2014, a Ré Seguradora remeteu cartas (avisos) de interpelação admonitória (18/06/2014) e cartas de aviso de resolução/anulação (19/06/2014), as quais, ainda que endereçadas apenas em nome do Autor/Recorrente, foram do efectivo conhecimento de ambos os Autores/Recorrente (cfr. factos provados nºs. 12 e 13).
E ainda mais se verifica, apesar deste conhecimento da situação de mora e iminente resolução dos três contratos de seguro, nenhum dos Autores/Recorrentes procedeu ao pagamento dos prémios em dívida, sendo que, perante o conhecimento de que os contratos foram efectivamente resolvidos/anulados (cfr. facto provado nº14), aqueles nada questionaram sobre a causa e/ou validade de tais resoluções nem procuram proceder ao pagamento dos prémios em falta (nada alegaram em sede de petição inicial e/ou em sede de resposta à excepções, nesse sentido) e, no dia 04/02/2015, celebraram novos contratos de seguro do ramo vida, para garantir os mesmos contratos de mútuo (cfr. facto provado nº14).
Este comportamento é absolutamente inequívoco no sentido de que os Autores/Recorrentes reconheceram e aceitaram a extinção, por resolução, de tais contratos promovida pela Ré Seguradora e fundada precisamente na falta de pagamento dos respectivos prémios
E qualquer dúvida que ainda pudesse subsistir, foi totalmente dissipada quando, perante a situação de invalidez total e permanente que afectou o Autor/Recorrente (em Novembro de 2018) mais de quatro depois do incumprimento, as participações da verificação do risco (alegadamente) coberta foram apresentadas à Ré Seguradora ao abrigo dos contratos de seguro celebrados em 04/02/2015 (ou seja, foram accionar os segundos seguros), e não os contratos de seguro que haviam sido celebrados em 2004, 2006 (ou seja, não accionaram os primitivos seguros), tal como decorre dos factos provados nºs. 31 e 32 (e, nomeadamente, do teor dos documentos/participações de fls. 67 a 70 dos autos). Tudo isto configura mais um comportamento totalmente concludente de que os Autores/Recorrentes continuavam a reconhecer e aceitar que estes “primeiros” contratos de seguros estavam extintos, configurando uma inequívoca assunção de que, em Novembro de 2018, tais contratos não mantinham qualquer eficácia e/ou validade jurídica.
Ora, este “quadro” de comportamentos dos Autores/Recorrentes durante mais de quatro anos, com a celebração de novos contratos atenta a extinção dos anteriores e com o accionamento daqueles novos contratos, e não dos primitivos, é de molde a criar, objectiva e subjectivamente, uma situação de confiança para a Ré Seguradora de que os primitivos contratos de seguro estavam efectiva e validamente extintos e que jamais seriam invocados para efeitos de pagamento dos contratos de mútuo: por um lado, a celebração dos novos contratos, após a resolução dos primitivos por falta de pagamento de prémios, é absolutamente adequado e lógico para convencer uma pessoa normal e razoável de que os segurados aceitavam que esses primeiros contratos já não vigoravam, convencimento esse que mais ainda é acentuado e reforçado quando, se quis accionar os seguros, se participou o “sinistro” aos novos contratos, e não aos antigos; e, por outro lado, todo este conjunto de comportamento é adequado e lógico para criar na Ré Seguradora uma convicção    legítima e justificada da não vigência dos primitivos contratos.
Assim sendo, a conduta dos Autores/Recorrentes virem, na presente acção, exigir à Ré Seguradora o pagamento ao Réu Banco dos capitais financiados ao abrigo dos primitivos contratos, porque agora entendem que a resolução dos mesmos foi inválida por falta da respectiva declaração à Autora/Recorrente, quando anteriormente reconheceram e aceitaram como extintos e que nem sequer foram accionados quando se verificou o risco/sinistro relativamente ao Autor, configura a adopção de um conduta manifestamente contraditória com aquela que anteriormente proclamaram e manifestamente inconciliável com as legítimas expectativas adquiridas pela Ré Seguradora em função do modo como antes actuaram.
Mais: os Autores/Recorrentes apenas vieram invocar a invalidade de resolução dos primitivos contratos por falta da respectiva declaração à Autora/Recorrente, porque a Ré Seguradora considerou o Autor/Recorrente excluído dos segundos contratos de seguro (que são os que estão em vigor), em razão de doença pré-existente, situação que aqueles também aceitam e reconhecem, nem sequer discutindo no presente recurso.
E sempre se deixe claro que as alegações produzidas, em sede de recurso, de que «O que se extrai do respetivo comportamento é uma atitude de: não nos importa que vocês considerem o contrato anulado ou que vocês façam o que quiserem com ele, desde que, com a celebração de um novo contrato, nós consigamos o mesmo resultado que resultaria daquele. Não temos tempo, nem dinheiro, nem vontade de nos envolvermos em conflito com alguém que tem tudo isto, pelo que, se conseguirmos o que queremos sem nos envolvermos na discussão da questão, ótimo», mostram-se absolutamente destituídas de mínimo de coerência e lógica, sendo mesmo ininteligíveis: se não se importam que a Ré Seguradora considere os contratos anulados, como é que agora pretendem invocar a invalidade dessas anulações? Se quiseram celebrar novos contratos, como é que agora querem invocar a manutenção da validade dos primitivos contratos?
Por conseguinte, a invocação de tal causa de invalidade da resolução dos primitivos contratos, mesmo que tivesse fundamento, no caso em apreço, sempre configuraria o exercício de um direito de forma clamorosamente ofensiva da justiça e dos limites impostos pela boa fé, consubstanciando um abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium.
Independentemente da verificação do deste abuso de direito, no caso em apreço, sempre se mostraria discutível se a resolução operou, ou não, relativamente a ambos os Autores/Recorrentes e se podia, ou não, operar apenas quanto ao Autor/Recorrente. Não se colocando em causa que a Jurisprudência (nomeadamente, a do STJ) tem entendido que a resolução de contrato de seguro de vida, conexo com o contrato de mútuo bancário, em que são aderentes ambos os cônjuges, exige que a declaração de resolução, enquanto declaração receptícia, seja dirigida a ambos os segurados[38], também não se pode esquecer que a Autora/Recorrente tomou efectivo conhecimento das cartas de interpelação admonitória e das cartas de aviso de resolução/anulação que foram endereçadas apenas em nome do Autor/Recorrente (cfr. facto provado nº13), pelo que teve conhecimento de que não foram pagos os prémios dos três contratos de seguro vencidos (se já não tinha antes…) e de que, se não fossem pagos até 30/06/2014, tais contratos seriam resolvidos pela Ré Seguradora, sendo certo que nada pagou e que, tendo tido conhecimento de que os contratos estavam resolvidos/anulados (cfr. facto provado nº14), também ela (conjuntamente com o Autor/Recorrente) celebrou novos contratos de seguro do ramo vida, para garantir os mesmos contratos de mútuo, na data de 04/02/2015 (cfr. facto provado nº14), o que pode significar que a Autora/Recorrente reconheceu e aceitou que tal resolução operou igualmente quanto à sua qualidade de pessoa segura e, por via disso, afastar a aplicação do referido entendimento jurisprudencial.
Acresce ainda que, apesar do aludido entendimento jurisprudencial, como resulta de certas decisões, ainda assim, no caso de só um deles ser objecto da declaração de resolução, então a mesma pode operar e ser válida quanto a este, mantendo-se apenas o contrato de seguro quanto ao cônjuge co-segurado que não foi “alvo” da declaração. Como se decidiu no já citado Ac. do STJ de 03/11/2016[39], “VII - Tendo a carta de resolução do contrato de seguro sido apenas endereçada ao cônjuge marido, entretanto falecido, e não à autora, cônjuge mulher e co-segurada no contrato de seguro, deve a declaração de resolução ser considerada inválida e ineficaz em relação à mesma (o sublinhado é nosso), ou seja, admite-se a extinção do contrato, por resolução, apenas quanto a um dos cônjuges. Também no Ac. do STJ de 11/12/2018[40], “I. No contrato de seguro do ramo vida, sendo aderentes os mutuários de financiamento bancário para aquisição de casa própria, a resolução do contrato pela seguradora, por alegado incumprimento do pagamento dos prémios do seguro, deve ser comunicada a ambos os cônjuges. II. Sendo tal contrato de seguro resolvido apenas quanto a um dos cônjuges,…” (o sublinhado é nosso), admitindo-se, também aqui, a extinção do contrato, por resolução, apenas quanto a um dos cônjuges. Logo, sempre se poderia colocar a questão se os três contratos de seguro foram efectivamente resolvidos quanto ao Autor/Recorrente, e, por isso, mesmo que se mantivessem eficazes e válidos quanto à pessoa da Autora/Recorrente, jamais assistiria a esta qualquer direito de exigir da Ré Seguradora qualquer pagamento porque a situação de invalidez total e permanente do Autor ocorreu muito depois da extinção de tais contratos quanto à sua pessoa (ou seja, já não era segurado quando tal se verificou).
Quanto ao último fundamento/argumento consistente na validade dos primitivos contratos «uma vez que a R. Seguradora violando como violou diversas normas jurídicas, não pode, como o fez, depois e sem abuso, prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente ou exercer a posição jurídica violada», dir-se-á, apenas e tão só, não tem qualquer sustentação jurídica já que: 1) ao contrário do que erradamente se quis fazer crer, como resulta de tudo o que anteriormente se expôs, a Ré Seguradora não violou qualquer norma jurídica relativamente à interpelação admonitória (que nem sequer era juridicamente necessária); 2) a invalidade da resolução dos primitivos contratos por eventual falta de declaração da resolução à Autora/Recorrente, constitui uma questão nova que não pode ser apreciada por este Tribunal ad quem; 3) e, ainda que assim não fosse, sempre seriam os Autores/Recorrentes que estariam a incorrer em abuso de direito, e não a Ré Seguradora.
Consequentemente, e sem necessidade de outras considerações, perante tudo o que supra se expôs e concluiu, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que não foi inválida a resolução/anulação dos contratos de seguro formalizados em 2004, pela apólice nº ...16, e em 2006 e 2007, pela apólice nº ...90 promovida pela Ré Seguradora com base fundamento na falta de pagamento dos prémios por parte dos Autores/Recorrentes (embora a fundamentação deste Tribunal ad quem seja, em parte, diversa da fundamentação do Tribunal a quo).    
Por via disso, o recurso tem que improceder também quanto a esta questão.
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4.3. Dos Direitos dos Autores em Razão da Verificação do Risco Coberto pelos Seguros
Tendo-se concluído negativamente quanto à questão anterior, isto é, que não se verifica a invalidade da resolução/anulação dos contratos de seguro formalizados em 2004, pela apólice nº ...16, e em 2006 e 2007, pela apólice nº ...90 promovida pela Ré Seguradora, então ficou absoluta e definitivamente prejudicada a apreciação desta terceira questão, uma vez que, não se mantendo em vigor tais contratos, nenhum direito assiste aos Autores/Recorrentes com base em contratos de seguro estavam extintos antes de verificação do alegado risco.
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4.4. Do Mérito do Recurso

Perante as respostas alcançadas quanto às questões que se impunham decidir, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelos Autores/Recorrente, devendo ser mantida a decisão recorrida.
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4.5. Da Responsabilidade quanto a Custas

Improcedendo o recurso, porque ficou vencida, deverão os Autores/Recorrentes suportar as respectivas custas - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pelos Autores/Recorrentes e, em consequência, confirmar e manter a sentença recorrida.
Custas do recurso de apelação pelos Autores/Recorrentes.
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Guimarães, 11 de Maio de 2023.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Optou-se por atribuir letras a cada um dos factos não provados referidos na decisão recorrida com vista a facilitar a sua identificação para efeitos de apreciação do presente recurso.
[4]Neste sentido, Guerra da Mota, in O Contrato de Seguro Terrestre, 1º, p.271.
[5]In Contrato de Seguro, 1999, p. 94.
[6]In O Contrato de Seguro no Direito Português e Comparado, Lisboa, p. 23/24.
[7]Cfr. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 4ªedição, Coimbra, 2005, p. 403.
[8]Cfr. Ac. RP 30/10/2012, Juiz Desembargador Henrique Araújo, proc. nº992/10.1TBAMT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.
[9]Cfr. Margarida Lima Rego, in Contrato de Seguro e Terceiros, 2010, p. 811 e ss.
[10]Neste sentido, entre outros, Ac. STJ 03/11/2016, Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. nº3248/09.9TBVCD.S1 e Ac. STJ 14/07/2015, Juíza Conselheira Maria Clara Sottomayor, proc. nº294/2002.E1.S1, ambos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.
[11]Cfr. o citado Ac. RP 30/10/2012, Juiz Desembargador Henrique Araújo, proc. nº992/10.1TBAMT.P1.
[12]Cfr. Ac. STJ 30/11/2017, Juíza Conselheira Maria do Rosário Morgado, proc. nº608/14.7TVLSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[13]Cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. 2, 5ªedição, p. 265.
[14]In Resolução do Contrato, 1957, p. 47.  
[15]Cfr. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. 2, 5ªedição, p. 266/267.
[16]Neste sentido, vidé Ana Prata, in Dicionário Jurídico, p. 461; e Galvão Teles, in Manual dos Contratos em Geral, 3ªedição, p. 352 e 354.
[17]Neste sentido, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. 2, 5ªedição, p. 109.
[18]Cfr. Almeida Costa, in RLJ, 124º, p. 95 e 96.
[19]Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. nº3248/09.9TBVCD.S1.
[20]Juiz Desembargador Moreira do Carmo, proc. nº5213/18.6T8VIS.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[21]Juiz Desembargador Barateiro Martins, proc. nº209/13.7TBMGR.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc.
[22]Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. nº3248/09.9TBVCD.S1.
[23]In Recursos Civis, Edição CEDIS, Set. 2020, p. 7 e 8.
[24]Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1.
[25]Juiz Conselheiro Ribeiro Cardoso, proc. nº291/12.4TTLRA.C1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[26]Juiz Conselheiro Jorge Dias, proc. nº235/14.9T8PVZ.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[27]Ac. STJ 17-05-2012, Juiz Conselheiro Lopes do Rego, Proc. nº2841/03.8TCSNT.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[28]Cfr. Antunes Varela, in RLJ, 114º, p. 75.
[29]Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in C.Civil Anotado, Vol. I, 4ªedição, p. 298 a 301.----
[30]In Direito das Obrigações, 5ª edição, p. 65.----
[31]Juiz Conselheiro Garcia Calejo, Proc. nº1192/12.1TVLSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[32]In Tratado de Direito Civil Português, Vol. I, 1999, p. 199 a 213.----
[33]In RLJ, 111º, p. 296.
[34]Ac. STJ 10/12/2019, Juiz Conselheiro Acácio das Neves, Proc. nº7571/17.0T8CBR.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[35]Juiz Conselheiro Fernandes do Vale, Proc. nº116/07.2TBMCN.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[36]Juiz Conselheiro Garcia Calejo, Proc. nº1192/12.1TVLSB.L1.S1.
[37]Juíza Conselheira Rosa Tcing, Proc. nº499/14.8T8EVR.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[38]Entre outros, refere-se o já citado Ac. STJ 03/11/2016, Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. nº3248/09.9TBVCD.S1, no qual se mencionam várias decisões do mesmo Tribunal Superior no mesmo sentido.
[39]Juíza Conselheira Maria da Graça Trigo, proc. nº3248/09.9TBVCD.S1.
[40]Juiz Conselheiro Fonseca Ramos, proc. nº3049/15.5T8STB-B.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.