Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
783/12.5GAFAF.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
ESPECIAL CENSURABILIDADE OU PERVERSIDADE
MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
FACA DE COZINHA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) Meios particularmente perigosos são todos aqueles que, quando usados, tendo em atenção a experiência comum, ponham em perigo a vida humana ou tenham potencialidade para causar uma lesão grave, segundo as regras da causalidade.
II) No entanto, tais características não podem ver-se em abstracto, mas sim em concreto, não devendo atender-se unicamente à espécie ou características do instrumento, mas a um conjunto de elementos, factos ou circunstâncias de que resulta o modo como o mesmo foi usado, para daí se inferir se tal uso era susceptível e adequado a causar graves danos para a saúde ou fazer perigar a vida.
III) Uma faca embora de características que não foi possível apurar, mas do género de cozinha, racai no âmbito dos vulgares instrumentos cortantes, que podem efectivamente ser utilizados com o objectivo de apenas agredir fisicamente outrem, sem que da sua mera natureza resulte, na perspectiva de um crime de ofensa à integridade física, uma perigosidade muito superior à normal dos meios vulgarmente utilizados para agredir.
IV) Todavia, a utilização de uma faca com essas características no cometimento de um crime de ofensa à integridade física pode revelar-se como meio particularmente perigoso, posto que é adequada, em abstracto, a causar lesões mortais ou ferimentos graves. Mas não se pode considerar tal facto, por si só, como revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
IV) Com efeito, haverá ainda que ponderar todas as circunstâncias que rodearam o caso concreto, porquanto será esse conjunto, no contexto da actuação do agente, que se há-de retirar essa especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, um grau de culpa agravado.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:


I. RELATÓRIO

1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 783/12.5GAFAF, a correr termos na Secção Criminal – J1, da Instância Local de Fafe, da Comarca de Braga, realizado o julgamento, foi proferida sentença, datada de 25-02-2016 e depositada a 26-04-2016, com o seguinte dispositivo (transcrição):
«V – DECISÃO:
Atento tudo o exposto e devidamente ponderado decide-se:
1) Condenar o arguido A. B., como autor material, na foram consumada, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 143º, nº1, 145º, nº1 al. a) e nº2, com referência ao art. 132º, nº2 al. h) do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, que ao abrigo do disposto no art.43.º, n.º1 do C.Penal se substitui por 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €6 (seis euros), perfazendo o montante global de €1080,00 (mil e oitenta euros).
2) Condenar o arguido A. B. nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC’s, nos termos do R.C.P..»
2. Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, concluindo a motivação nos seguintes termos (transcrição):
«CONCLUSÕES
A) Não resulta dos autos e da discussão em audiência de julgamento, prova suficiente que permita concluir com certeza que o arguido incorreu na prática do crime de ofensa à integridade física qualificada pelo qual vem condenado.
B) A prova produzida não permite concluir com segurança que o arguido estive munido de uma faca e a tivesse cravado nas costas do ofendido.
C) O tribunal a quo não observou as regras da normalidade e da experiência na interpretação da matéria provada, daí resultando um manifesto erro de apreciação da matéria de facto e de direito, não logrando fazer uma correcta interpretação acerca da dinâmica e cronologia dos acontecimentos.
D) Compete ao Ministério Público o ónus de reunir provas suficientemente credíveis da apropriação dos montantes em causa, que permitam ao tribunal proferir condenação pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
E) A posição sustentada na decisão recorrida, na fragilidade da sua fundamentação, consubstancia uma violação do princípio processual in dubio pro reo, que é manifestação do direito fundamental consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
F) O tribunal a quo deveria ter desqualificado o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea h), 14.º, n.º 1 e 26.º todos do CP.
G) O que impõe a absolvição do arguido, relativamente à prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1 al. a) e n.º 2, com referência ao artigo 132.º, n.º 2 al. h) do CP.
H) Quando muito, deveria o tribunal a quo condenar o arguido A.B. por um crime de ofensa à integridade física simples.
I) E, bem assim, o Tribunal deveria julgar válida e relevante a desistência de queixa apresentada nos presentes autos a fls. 230, homologando-a nos termos do art.51.º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Penal, e em consequência julgar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido.
Nestes termos e melhores de direito, que serão supridos, deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se a douta sentença recorrida-
E, assim se decidindo, será feita JUSTIÇA!»
3. Em resposta à motivação do recurso, o Exmo. Procurador Adjunto na primeira instância perfilhou o entendimento de que, em suma, a sentença não merece censura no que respeita à apreciação da prova feita em audiência de discussão e julgamento e aos factos de tal prova retirados, não se impondo uma decisão diversa da recorrida, que não decorre da mesma qualquer violação do princípio in dubio pro reo, por não se ter instalado na convicção do julgador qualquer dúvida quanto à forma como os factos ocorreram, e de que se encontram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de ofensa à integridade física qualificada imputado ao arguido, que assume natureza pública, pelo que não é passível de homologação a desistência de queixa formulada pelo ofendido, termos em que se deverá negar provimento ao recurso.
4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido, por entender, em síntese, que o tribunal não teve quaisquer dúvidas que as lesões sofridas pelo ofendido foram provocadas pela faca que o arguido empunhava, encontrando-se a sua convicção alicerçada na prova produzida em audiência, limitando-se este a discordar da forma como o tribunal formou a sua livre convicção e a valoração que efetuou da prova produzida, sem demonstrar onde se fundamenta para retirar a conclusão de que não foi produzida prova suficiente de que empunhava a faca, mais alegando que os factos dados como provados integram a prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada que, atenta a sua natureza pública, não admite desistência de queixa.
5. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu a esse parecer, defendendo que o mesmo deve ser desatendido, dando-se provimento ao recurso, nos termos consagrados nas suas alegações.
6. Após exame preliminar, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de acordo com o disposto no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.


II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Sendo entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - Conforme resulta dos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), todos do Código de Processo Penal, e do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995., no presente recurso, incidente sobre matéria de facto e de direito, atentas as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, são as seguintes as questões a decidir:
a) – O erro de julgamento.
b) – A violação do princípio in dubio pro reo.
c) – A desqualificação do crime de ofensa à integridade física.

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1 - O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
«1 No dia 11 de Agosto de 2012, a hora não concretamente determinada (mas situada entre as 10h e as 13h30), junto ao “Café São Lourenço”, sito na Rua Padre Lobo, em Golães, o arguido A. B. empunhando uma faca cujas características não foi possível apurar, mas género de cozinha, cravou a respectiva lâmina metálica da faca nas costas de F. R., tendo nesse momento surgido no local A. S., o qual apercebendo-se do que se encontrava a ocorrer empurrou o arguido impedindo-o de continuar a agredir o ofendido, tendo-lhe exibido uma arma de fogo, tendo o arguido, com medo, fugido do local de carro.
2 O ofendido F. R. antes da agressão, apercebendo-se das intenções do arguido ainda esboçou um gesto no sentido de o manietar e assim evitar ser atingido pela faca, no entanto escorregou e caiu desamparado no chão.
3 Mercê desta agressão sofreu F. R., além de dores e mal estar,orifício de entrada com 2 cm. de comprimento na face posterior média do hemitorax esquerdo com orifício de saída punctiforme cerca de 6 cm. mais abaixo, com hematoma associado, a qual exigiu a sutura do orifício de saída e sutura parcial do orifício de entrada sobre dreno de telha, lesões, essas, que lhe determinaram, como consequência directa e necessária, 07 (sete) dias de doença, com afectação da capacidade de trabalho geral por 03 (três) dias e afectação da capacidade de trabalho profissional por 07 (sete) dias.
4 O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de lesar a integridade física de F. R..
5 Conhecia o arguido as características da faca que empunhava descrita em 1., tendo plena consciência da capacidade de agressão da sua parte metálica e das lesões graves que poderia infligir no ofendido ao cravá-la nas suas costas, não se coibindo, ainda assim, de a usar da forma supra descrita.
6 Tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida por lei.
Mais se provou:
7. No mesmo dia dos factos, pelas 19h30, ao aqui arguido foram apreendidos um punhal no bolso das calças, uma faca no interior do seu veículo em cima do assento do lado do passageiro, visível e uma segunda faca, por baixo do banco do passageiro, da parte de trás e efectuada revista ao arguido foi ainda encontrada uma arma (pistola) de ar comprimido, que o mesmo tinha entre a sua cinta e as calças.
8. O Arguido A. B.:
a) encontra-se actualmente a trabalhar numa campanha agrícola (apanha da laranja) no Algarve, tendo celebrado contrato de trabalho a termo certo por 6 meses;
b) é casado e a sua esposa é embaladeira de roupa;
c) possui a 4ª classe;
d) Do seu CRC junto a fls.190 e ss dos autos, constam averbada a condenação por um crime de desobediência praticado em 07-09-2013 em 65 de multa à taxa diária de €6 e na pena acessória de conduzir veículos motorizados por 4 meses e 15 dias, por decisão proferida no P.955/13.5GAFAF transitada em julgado em 25-09-2014.»
2.2 - Quanto a factos não provados, a sentença recorrida considerou o seguinte (transcrição):
«Não se provou que:
-a hora exacta a que se deram os acontecimentos;
-que a faca utilizada na agressão tivesse uma lâmina com pelo menos 10 cm;
-nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação o arguido não tenha agredido o aqui ofendido, nem que não tivesse na sua posse qualquer faca.
-que foi o ofendido quem, com intenção de agredir o aqui arguido se tenha dirigido ao mesmo empunhando um copo de vidro, tendo no seguimento desse gesto o arguido tentado afastá-lo, evitando ser atingido pelo copo, tendo perante tal reacção de auto-defesa o ofendido se desequilibrado e caído no chão.
- que o ofendido não sofreu nenhuma lesão ou dano provocado pelo arguido.
-que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas o ofendido se encontrasse manifestamente alcoolizado.
Quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa articulados na acusação pública, contestação ou alegados em audiência de discussão e julgamento que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição aos provados ou prejudicados por estes.»
2.3 - O tribunal a quo explicitou assim o processo de formação da sua convicção (transcrição):
«A convicção do tribunal, no que concerne aos factos dados como provados e não provados, baseou-se, fundamentalmente, na apreciação crítica e conjugada da totalidade da prova oferecida, a saber:
-relatório de episódio de urgência de fls.6;
- pericial: exame médico-legal de fls.7-9 e 85-87
-auto de notícia de fls.3
-certidão de fls.27 e ss; 92-105
Nos depoimentos isentos e credíveis das testemunhas de acusação, o aqui ofendido F. R., o qual, quanto a nós, prestou um depoimento isento e credível e que encontra eco e suporte noutros meios de prova oferecidos. Com efeito, o mesmo explicou que no dia em causa foi atacado pelo aqui arguido, o qual lhe espetou nas costas com uma faca de cozinha que tinha na mão.
Mais disse que tal ficou a dever-se a um desentendimento que tiveram na noite anterior relacionado com uma troca de copos, tendo no dia seguinte, quando estava no café, alguém alertado o ofendido para o facto de o arguido se encontrar a furar um dos pneus da sua lambreta, tendo-se o ofendido se deslocado junto do mesmo, tendo-lhe agarrando o braço ao procurar defender-se da faca, acabando por escorregar, altura em que o arguido lha espetou nas costas por uma vez.
Mais disse que o ataque só ali terminou porque entretanto passou por lá o Sr. A., testemunha- que o Tribunal viria lograr identificar e posteriormente ouvir em audiência de julgamento- que o ajudou, puxando de uma pistola para amedrontar o arguido, fazendo com que o mesmo não prosseguisse na agressão e abandonasse o local, tendo o mesmo acompanhado o ofendido ao Hospital.
Também a testemunha A. S. acabaria por corroborar a história trazida aos autos pelo ofendido, na parte em que da mesma teve conhecimento, ou seja, quando chegou ao local, tendo logrado que o arguido deixasse de agredir o ofendido, empurrando-o e exibindo-lhe uma arma de fogo, o que foi eficaz para o afastar, sabendo dizer que o ofendido tinha sangue nas costas e que o ofendido logo lhe disse ter sido uma facada, pese embora a testemunha não tenha logrado ver a mesma.
Mais disse que a roupa do ofendido se mostrava bastante ensanguentada e que o acompanhou ao Centro de Saúde.
Também a testemunha V. F., militar da GNR soube atestar que no dia em causa, junto às 19h30, foram apreendidas ao arguido as armas acima melhor descritas.
A versão dos factos apresentada pelo ofendido encontra eco desde logo não só nas palavras da testemunha A. S., o qual embora não tendo visto a faca usada soube dizer que logo ali o ofendido se disse vítima de uma facada, jorrando sangue. Por outro lado também encontra eco nos registos clínicos e no exame do IML onde se fala em “ferida corto-incisa na região dorsal com arma branca”, “vítima de facada na face posterior média do hemitorax esquerdo”, não se ignorando-como certamente não ignoram também os profissionais de saúde que socorreram e avaliaram o aqui ofendido- que as lesões infligidas por uma faca e por meros estilhaços de um copo partido, como se quis fazer crer ao Tribunal, têm características bastante diferentes e originam lesões de desenho bastante distinto, tendo até sido feita “exploração sob anestesia local” e apesar disso nada consta de vestígios de vidro encontrados na zona atingida.
Aliás, a favor da imparcialidade do ofendido sublinha-se que foi o próprio quem a fls.230 chegou a apresentar por escrito uma desistência de queixa, não se percebendo que, tendo tido essa intenção-que apenas pelos motivos jurídicos que constam do despacho subsequente não pode ser então entendida-tivesse agora pretendido faltar à verdade para prejudicar o arguido, que imediatamente antes pretendeu beneficiar com a dita apresentação de desistência de queixa.
Depois, a ser verdade que o mesmo se encontrava visivelmente alcoolizado, então certamente tal facto a ser assim certamente constaria igualmente do relatório de urgência, o que não sucede.
Aliás, foi o próprio arguido A. B. quem reconheceu ter tido a iniciativa de tomar satisfações ao ofendido por entender que aquele lhe terá danificado a sua viatura, o que naturalmente indica, independentemente de tal se ter passado ou não- o que se ignora-, o grau de descontentamento que o mesmo teria para com aquele.
Quanto ao negar da faca tal resulta infirmado nos termos já acima expostos, sublinhando-se que no próprio dia o mesmo foi encontrado na posse de armas brancas.
Disse também o arguido, numa altura da audiência onde a testemunha ocular-o Sr. A. S.- ainda não tinha sido identificado e localizado, que foi o ofendido quem se agarrou ao arguido e que ao ser por este repelido caiu ao chão, levantando-se logo a seguir, indo o arguido para casa, o que viria a ser infirmado pelo Sr. A. que explicou ter sido o mesmo a travar a progressão da agressão.
Aliás a pouca credibilidade da versão do arguido ressalta logo do mesmo dizer não ter visto o ofendido sequer magoado, nem a sangrar, o que era visível, como atestou o Sr. A. S. e tem confirmação clínica.
Quanto à testemunha de defesa, o Sr. G. B. ficou o Tribunal com dúvidas que o mesmo estivesse no local, ou que estando, tivesse ângulo de visão suficiente para apreciar o sucedido (alegadamente dentro do café), dado que o mesmo apresenta uma versão que não tem acolhimento nas declarações do próprio ofendido, que sem dúvida presenciou e vivenciou os factos, mencionando expressamente ter sido desferida uma facada, versão esta que tem expressão nos elementos clínicos junto aos autos, enquanto que esta testemunha fala em pontapés no chão e eventuais danos causados por um copo de vidro estilhaçado (e que a própria testemunha que terminou a agressão-Sr. A. S.- e que se encontrava junto dos mesmos não refere) o que sempre causaria, como acima dito, lesões com uma aparência e desenho certamente diferente dos encontrados no corpo do ofendido.
Teve ainda em consideração o Tribunal as declarações do arguido no que concerne à sua situação pessoal, designadamente para justificar a sua ausência a parte da audiência.
Quanto aos factos não provados tal ficou a dever-se a ter ficado demonstrado o contrário, ou a não ter sido feita prova cabal e suficiente dos mesmos, ou a não ter sido feita qualquer prova, nos termos acima melhor explicitados.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO
3.1 – DO ERRO DE JULGAMENTO
O recorrente começa por imputar à sentença recorrida o vício de erro de apreciação da matéria de facto.
3.1.1 - A par da invocação dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal (mediante a chamada revista alargada), o regime processual penal consagra uma segunda forma de impugnar a matéria de facto, através da invocação de erro de julgamento (impugnação ampla) nos termos previstos no art. 412º, n.º 3, al.s a), b) e c), do mesmo código, a que pertencem os demais preceitos citados sem qualquer referência.
Este erro resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
Nesta situação, o recurso visa a reapreciação da prova produzida em primeira instância, impondo-se, tendo sido gravada, a sua audição pelo tribunal de recurso. Os poderes de cognição deste último não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios decisórios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º.
Todavia, conforme jurisprudência constante - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt., esse recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo sobre eles que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o tríplice ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado art. 412º, ou seja, especificar:
a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
b) - As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
c) - As provas que devem ser renovadas (nos termos do art. 430º, n.º 1, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio).
A referida especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, só se satisfazendo com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida - Cf. o acórdão do TRC proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1. .
De acordo com o n.º 4 do art. 412º, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas al.s b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, cabendo ao tribunal da relação proceder à audição e visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 412º, n.º 6).
Ao recorrente é, assim, exigível que quando efetue a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, remeta para os concretos locais da gravação que suportam a sua tese - Cf. o acórdão do TRC de 24-02-2010 (proc. 138/06.0GBSTR.C1), disponível em http://www.dgsi.pt..
Todas estas especificações deverão constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3).
3.1.2 - Posto isto, analisemos o caso concreto.
O recorrente, cumprindo o ónus de especificação previsto na al. a) do n.º 3 do art. 412º, na conclusão B) indica como tendo sido incorretamente julgado ter empunhado uma faca e ter cravado a respetiva lâmina metálica nas costas do ofendido, conforme foi dado como provado no ponto 1, com reflexos na factualidade elencada nos pontos 2 a 6, onde se descrevem a tentativa daquele para evitar ser atingido, as lesões sofridas pelo mesmo e os factos relativos ao elemento subjetivo do tipo de crime.
Para fundamentar essa impugnação, nas conclusões limita-se o recorrente a alegar que a prova produzida em audiência é insuficiente para dar como provados aqueles factos, não tendo o tribunal a quo observado as regras da normalidade e da experiência, daí resultando o erro de apreciação da matéria de facto.
Tal alegação não contém, pois, a indicação do conteúdo específico dos meios de prova que, no entender do recorrente, impõem que sejam dados como não provados os factos em apreço, nem a explicitação da razão desse entendimento.
Em decorrência do disposto no art. 417º, n.º 3, essas especificações deveriam constar das conclusões do recurso e, tal não sucedendo, o recorrente poderia ter sido convidado a completar ou a esclarecer as conclusões formuladas.
Não obstante, temos entendido que, se da análise da peça do recurso, se constatar que a indicação das especificações legais, embora não constando das conclusões, constam do corpo da motivação de forma suficiente para se compreender o móbil do recorrente, não se deverá ser demasiado formalista ao ponto de atrasar a tramitação de um processo quando existem conclusões e se consegue das mesmas deduzir, mesmo que parcialmente e por recurso ao texto das motivações, as indicações previstas nos n.ºs 2 e 3 do citado art. 412º.
É o que sucede no caso vertente, porquanto o recorrente, no corpo da motivação, indicou as provas que, em seu entender, impõem uma decisão diversa da recorrida, com indicação concreta das passagens da gravação das suas próprias declarações e dos depoimentos das testemunhas F. R. (ofendido), A. S., V. F. e G. B., nos quais funda a impugnação e que inclusivamente transcreve, permitindo a este tribunal de recurso localizar facilmente e ouvir essas declarações e depoimentos.
Nestes termos, conclui-se igualmente pelo cumprimento cabal do ónus de especificação previsto na al. b) do n.º 2 do art. 412º.
3.1.3 - Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Tal não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhe a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido de responsabilidade e bom senso.
Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a primeira instância e a segunda, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando esta limitada à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal. Se a primeira ainda é suscetível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição das gravações (como foi feito), já se fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar a comunicação verbal.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” - Vd. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, pág. 232., confere ao julgador em primeira instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores que só são apreensíveis mediante o contacto direto com os depoentes na audiência: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de primeira instância, com base na imediação e na oralidade, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, embora a reapreciação da matéria de facto esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à exceção da prova vinculada), no processo de formação da sua convicção, deverá o tribunal da relação ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspetos de relevância indiscutível na valoração dos depoimentos pessoais, que melhor são percetíveis pela primeira instância.
A ausência de imediação determina que o tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (cf. art. 412º, n.º 3, al. b)).
Significa isto que se a decisão factual da primeira instância se baseia numa livre convicção, objetivada numa fundamentação compreensível, optando por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem tal convicção. É necessária a demonstração que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que se demonstre não só a possível incorreção decisória, mas a absoluta imperatividade de uma diferente convicção.
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe, sem esquecer as apontadas limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, não devendo ser modificada quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ou seja, o tribunal da relação só pode e deve determinar uma alteração da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão - Cf. o acórdãos do STJ de 25-03-2010 (processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt..
Em suma, a reapreciação da decisão da primeira instância quanto à matéria de facto, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessários, face aos referidos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
3.1.4 - Posto isto, volvamos ao caso concreto, tendo presente o sentido e o alcance da impugnação ampla da matéria de facto, bem como os ónus que recaem sobre o recorrente.
Este impugna os factos, dados como provados, de ter empunhado uma faca e de ter cravado a respetiva lâmina metálica nas costas do ofendido.
As razões da discordância do recorrente relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu essa factualidade prendem-se exclusivamente com a circunstância de essa convicção assentar em elementos probatórios que, no seu entender, não permitem dar como provados tais factos e já não com qualquer discrepância entre o que foi dito e o que foi considerado provado.
Com efeito, analisando a motivação e as conclusões, constata-se que o recorrente sustenta que os depoimentos das testemunhas F. R. (ofendido), A. S., V. F. e G. B. justificavam decisão diversa. E não que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo desses depoimentos não corresponde ao que, na realidade, disseram essas testemunhas.
Na verdade, nenhuma discrepância desta natureza existe, pois, através da audição do registo da prova oral produzida, facilmente se constata que nenhuma daquelas pessoas prestou declarações contrárias à forma como o tribunal a quo demonstrou tê-las percebido, bem como que os meios de prova indicados na motivação como sustentáculo da decisão de facto conferem plausibilidade à forma como foi formada a convicção alcançada.
O recorrente limita-se a fazer uma leitura, sua, de partes selecionadas dos referidos depoimentos para, a partir de tais elementos, substituir a sua própria convicção à do tribunal a quo, concluindo pela ausência de prova suficiente quanto ao facto de ter empunhado uma faca e de ter gravado a respetiva lâmina nas costas do ofendido, sem apontar em concreto um erro de julgamento. Ou seja, ataca a decisão da matéria de facto pela via da credibilidade que o tribunal a quo deu a esses meios de prova, o que se afigura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto.
Conforme já referimos supra, o recurso da matéria de facto não tem por finalidade, nem pode ser confundido, com a realização de um segundo julgamento, fundado numa nova convicção, mas apenas apreciar a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido em relação aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados, com base na avaliação das provas que considera imporem uma decisão diversa.
Como refere o Tribunal Constitucional - Nomeadamente no acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004., “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.
No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente ao referir que “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” - Cf. acórdãos do TRC de 06-03-2002, Coletânea de Jurisprudência, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44, e do TRP de 04-02-2004 (processo n.º 0211860), disponível em http://www.dgsi.pt..
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório” - Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, pág. 211..
Como resulta da leitura da motivação da decisão de facto, a Exma. juíza a quo norteou-se pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, procedendo à avaliação global da prova produzida, numa perspetiva crítica.
Em relação aos concretos pontos de facto impugnados pelo recorrente, a sua convicção assentou essencialmente no depoimento testemunhal do ofendido, F. R., que considerou isento e credível, tendo confirmado a agressão com uma faca, nas suas costas, por parte do arguido, nas demais circunstâncias dadas como provadas, bem como relatado um desentendimento ocorrido entre ambos no dia anterior e que permite encontrar um enquadramento plausível para a conduta do agressor. Não é de estranhar que o ofendido não consiga descrever as concretas características da faca, nomeadamente o comprimento da lâmina, já que isso é perfeitamente natural, atenta a forma rápida como foi atacado e a zona corporal atingida (costas).
Mais considerou o tribunal a quo que a versão apresentada pelo ofendido teve eco e suporte noutros meios de prova, mormente no depoimento da testemunha A. S., oficiosamente inquirida, tendo afirmado que, ao passar pelo local e ao aperceber-se da agressão, logrou afastar o arguido, empurrando-o e exibindo-lhe uma arma de fogo, sendo que o ofendido jorrava sangue das costas, apresentando-se a sua roupa bastante ensanguentada, logo afirmando que tinha sido uma facada.
Contrariamente ao que parece pressupor o recorrente, o facto de esta testemunha não ter visto a faca nem presenciado a facada não impede a valoração do seu depoimento, enquanto contributo para dar como provados os factos impugnados. Com efeito, quando chegou ao local, imediatamente após a agressão ter ocorrido, assim se compreendendo que não a tenha presenciado, observou sinais objetivos compatíveis com a mesma, como seja a existência de sangue abundante, a jorrar, para além da afirmação espontânea do ofendido sobre o que tinha sucedido.
Acresce que, como assertivamente refere a motivação da decisão de facto, a natureza, a extensão e as características da lesão apresentada por aquele, descritas nos registos clínicos e no auto e de exame médico-legal, são compatíveis com a agressão descrita pelo mesmo e já não com uma agressão por meros estilhaços de um copo partido, como a defesa terá querido fazer crer ao tribunal.
Por outro lado, ainda que a detenção pelo arguido, poucas horas depois dos factos, de um punhal no bolso das calças e de duas facas no interior do seu veículo automóvel, conforme confirmado pela testemunha V. F., militar da GNR que procedeu à sua apreensão, não permita presumir a utilização de uma dessas armas no cometimento da agressão, como sustenta o recorrente, o certo é que revela que o mesmo dispunha de condições para, nas circunstâncias em apreço, ter em seu poder uma faca e ferir com ela o ofendido, constituindo mais um indício para reforçar a versão apresentada por este.
Indício que, contrariamente ao que supõe o recorrente, não é abalado pela alegada inexistência de sangue em nenhuma das facas apreendidas, atenta a facilidade com que esse vestígio poderia ser limpo, tanto mais que aquela conclusão assenta numa mera observação feita pelo militar da GNR G. B., sem sujeição a qualquer exame pericial mais rigoroso, sendo certo que o mesmo se limitou a afirmar que pensava que as facas não tinham sangue, sem garantir que não o tivessem, o que atesta o pouco cuidado colocado nessa observação.
Quanto às declarações prestadas pelo arguido em audiência, ao invés do que o mesmo sustenta, o tribunal a quo explicitou devidamente porque não lhe mereceram credibilidade. Nomeadamente por a sua versão sobre a separação entre ele e o ofendido e sobre o facto de não ter visto este último a sangrar nem ferido, ser frontalmente contrária ao depoimento da testemunha A. S., que o próprio recorrente, refira-se, considera ter sido isento, objetivo e coerente.
O mesmo sucede com o depoimento da testemunha de defesa G. B., que o tribunal a quo duvidou que estivesse no local ou que, estando, tivesse ângulo de visão suficiente para presenciar os factos, uma vez que apenas alude a pontapés e a eventuais lesões causados pelos estilhaços de um copo de vidro, em manifesta contradição com o teor do depoimento do ofendido e com as corroboração derivadas do depoimento da testemunha A. S. e da lesão apresentada por aquele.
A convicção do tribunal a quo baseou-se, pois, essencialmente na prova por declarações, relevando designadamente a razão de ciência e a credibilidade do depoimento do ofendido, corroborado pelo depoimento das testemunhas A. S. e G. B. e pela natureza, características e extensão da lesão sofrida. Para tanto, foi tido em conta a forma como tal prova foi produzida, mormente a isenção, serenidade e distanciamento revelados por aqueles, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem, os sinais e reações comportamentais e a coerência do seu raciocínio.
Esta conjugação só pode ser alcançada, pelo menos no grau desejável, através da imediação e da oralidade da prova. Só o contacto direto do julgador com a prova, o “frente a frente” entre o juiz e a testemunha, o coloca em perfeitas condições de proceder, primeiro, à avaliação individual, e depois, à avaliação global da prova.
Refira-se que não detetamos na audição do depoimento do ofendido o carácter interesseiro, incoerente, dúbio e contraditório que o recorrente lhe assaca. Aliás, como assertivamente se refere na motivação da decisão e facto, qualquer intenção de prejudicar a posição do arguido seria contraditória com a desistência de queixa apresentada pelo ofendido e que apenas não foi homologada por o crime ser de natureza pública.
De todo o modo, sempre se dirá que a circunstância de um depoimento conter imprecisões ou incongruências não justifica que o juiz ponha em causa a credibilidade de quem o presta.
O interrogatório, como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras.
Com efeito, os juízes não se limitam a aceitar ou a recusar os depoimentos na sua globalidade, antes lhes cabe uma tarefa mais árdua que é a precisamente a de conseguir descobrir, em cada um deles, a parte que lhes merece crédito, recorrendo, para o efeito, às regras da experiência da vida e das coisas aferidas por critérios de razoabilidade.
Não obstante serem inúmeros os fatores que contribuem para a falibilidade do testemunho humano, o certo é que este continua a ser um dos fundamentais meios de prova em processo penal.
Como narração de factos percebidos através dos sentidos, é normal que os testemunhos contenham imprecisões decorrentes de deficiências dos próprios sentidos. Os testemunhos prestados de modo não coincidente não serão forçosamente “falsos”, pois mostra a experiência que será antes a concertação de versões enganadoras que mais facilmente dará lugar a descrições de factos perfeitamente análogas e coincidentes entre si, assim não sucedendo nos depoimentos mais espontâneos e verdadeiros.
Conclui-se, assim, que a decisão do tribunal recorrido se encontra devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão dos factos resultante do depoimento do ofendido, em detrimento das declarações do arguido, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional subjacente à convicção do julgador.
Através da motivação da decisão da matéria de facto fica-se ciente do percurso efetuado pelo tribunal de primeira instância, onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, permitem, espelhando aquela decisão o confronto crítico das versões dos factos, explicitando o resultado desse confronto e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa, em termos perfeitamente percetíveis e assimiláveis.
Assim, a prova produzida em audiência permite claramente concluir pela verificação dos factos ora impugnados, não impondo decisão diversa da recorrida, pelo que nada há a alterar.
Aliás, mesmo do ponto de vista do recorrente, não existem provas que imponham decisão diversa da proferida. O que o recorrente afirma, em última análise, é que a prova produzida não deveria ter merecido credibilidade, pelo que a decisão se deveria quedar pela sua absolvição em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Como já ficou dito, o tribunal da relação, porque não beneficia da imediação e da oralidade de que gozou a primeira instância, apenas pode alterar o decidido quanto à matéria de facto quando existirem provas que imponham decisão diversa da proferida, o que não acontece, nem na perspetiva do recorrente.
Assim, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância.
Improcede, pois, a questão da impugnação ampla da matéria de facto.

3.2DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
Invoca também o recorrente a violação do princípio in dubio pro reo, alegando que a prova produzida não induz qualquer facto positivo que o faça autor material dos factos que lhe são imputados, tendo a decisão recorrida dado principal enfoque ao depoimento do próprio ofendido, em detrimento das declarações do arguido, quando este esperava que o tribunal procedesse precisamente ao contrário.
O art. 127º do Código de Processo Penal consagra o princípio da livre apreciação da prova, o qual pressupõe que esta seja considerada segundo critérios objetivos que permitam estabelecer o substrato racional da fundamentação da convicção.
Por seu lado, o princípio in dubio pro reo constitui um limite normativo a esse outro princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos: em tal situação, impõe-se que o tribunal decida pro reo, ou seja a favor do arguido.
Decorre desse princípio que todos os factos relevantes para a decisão que sejam desfavoráveis ao arguido e que, face à prova, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador, não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.
Porém, não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio. Mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio - Cf. acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265..
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente.
Daí que o tribunal de recurso só possa censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido.
O princípio in dubio pro reo encerra, portanto, uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa, pelo que a sua violação exige que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
À semelhança do que sucede com os vícios consagrados no n.º 2 do art. 410º, em sede de recurso, a violação do princípio in dubio pro reo apenas ocorre quando tal vício resulte da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, pois o recurso não constitui um novo julgamento, antes sendo um remédio jurídico - Cf. acórdão do TRC de 14-01-2015 (processo n.º 72/11.2GDSRT.C1) disponível em http://www.dgsi.pt..
No caso em apreço, o recorrente apela ao princípio in dubio pro reo essencialmente como corolário da sua apreciação da prova, sendo que, em momento algum resulta da sentença recorrida que relativamente aos factos provados e objeto dos autos, o tribunal a quo se defrontou com dúvidas que resolveu contra o recorrente ou demonstrou qualquer dúvida na formação da convicção.
Claramente não ficou a Exma. Juíza a quo em estado de dúvida, bastando para tal atentar na motivação da decisão de facto, particularmente quando procede ao exame crítico da prova, dando a conhecer o processo de formação da sua convicção.
Na verdade, aí se procede a uma explicitação aprofundada das declarações e dos demais elementos probatórios que foram acolhidos, em sentido perfeitamente convergente, bem como das razões porque lhes foi atribuída credibilidade e porque foram desconsideradas outras declarações e depoimentos.
Pelo exposto, não tem cabimento invocar aqui o princípio constitucional in dubio pro reo.
Improcede, portanto, esta questão.

3.3 – DA DESQUALIFICAÇÃO DO CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
Por fim, em decorrência da propugnada alteração da matéria de facto provada, entende o recorrente que o tribunal a quo deveria ter desqualificado o crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.s 143º, n.º 1, 145º, n.º 1, al. a), e 2, com referência ao art. 132º, n.º 2, al. h), do Código Penal, devendo ser absolvido dele e considerado que cometeu apenas um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, n.º 1, do mesmo código, com a consequente homologação, porque juridicamente relevante, da desistência de queixa manifestada pelo ofendido e por ele aceite, julgando-se extinto o procedimento criminal.
Porém, tendo improcedido a referida impugnação da matéria de facto, mantendo-se como provado que o arguido empunhava uma faca e que cravou a respetiva lâmina metálica nas costas do ofendido, cai por terra a argumentação subjacente à pretensão em apreço do recorrente.
De todo o modo, cumpre averiguar se essa factualidade provada e as demais circunstâncias que rodearam os factos revelam uma especial censurabilidade ou perversidade que permita a integração da conduta do arguido na previsão do art. 145º do Código Penal, cujo n.º 1 qualifica “as ofensas à integridade física que forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente”, dispondo o n.º 2 que “são suscetíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do art. 132º”.
O sinal distintivo da qualificação é a especial censurabilidade ou perversidade da conduta do agente. O termo “especial” significa que a conduta há de revelar algo que transcenda a censurabilidade inerente ao tipo de crime em questão.
Nas palavras de Teresa Serra - In Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 63., revelam especial censurabilidade as circunstâncias que refletem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal de acordo com os valores. A especial censurabilidade refere-se, assim, às componentes da culpa relativas ao facto, isto é, funda-se naquelas circunstâncias que podem revelar um maior grau de culpa como consequência de um maior grau de ilicitude.
Como se refere no Comentário Conimbricense do Código Penal - Tomo I, pág. 29., a lei pretende imputar à especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à especial perversidade aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. A especial perversidade supõe, assim, uma atitude profundamente rejeitável no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade, que revelam um egoísmo abominável. O acento tónico ou componente da culpa refere-se aqui ao agente.
As circunstâncias enumeradas no n.º 2 do art. 132º, suscetíveis de revelar esse “algo de especial”, são meros indícios, indicadores ou referenciais que poderão ser afastados ante condutas que, embora identificando-se com as mesmas, não revelam, contudo, a exigida especial perversidade ou censurabilidade, por ocorrerem circunstâncias extraordinárias que destaquem claramente a sua ilicitude ou culpa do exemplo padrão (a que não se reconduzem circunstâncias como o bom comportamento anterior, a confissão, o arrependimento o ressarcimento do dano, etc., que são circunstâncias atenuantes gerais). Do mesmo modo, outras circunstâncias não previstas mas substancialmente análogas, refletidas no facto ou na personalidade do agente, poderão assumir tal relevância especial aos olhos do julgador.
Significa isto que tais circunstâncias não constituem elementos do tipo legal do crime, mas sim da culpa. Subjacente à especial censurabilidade e perversidade está um maior grau de culpa que o agente manifesta e que motiva a agravação. Esta tem, assim, a ver com a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui em relação à desconformidade, já de si grande, subjacente à prática de um crime simples. Todavia, não é pelo facto de se verificar em concreto uma qualquer das circunstâncias referidas nos exemplos padrão ou noutras substancialmente análogas que fica preenchido o tipo, deduzindo-se daquelas a especial censurabilidade ou perversidade; é preciso que, autonomamente, o intérprete se certifique de que, da ocorrência de qualquer daquelas circunstâncias resultou em concreto a especial censurabilidade ou perversidade. Como inversamente, não será um maior desvalor da atitude do agente ou da personalidade documentada no facto que dará origem ao preenchimento do tipo de culpa agravado, sendo necessário que essa atitude ou aspetos da personalidade mais desvaliosos se concretizem em qualquer dos exemplos padrão ou em qualquer circunstância substancialmente análoga.
O crime de ofensa à integridade física imputado ao recorrente é qualificado com fundamento na previsão da al. h) do n.º 2 do art. 132º, no segmento de utilização de meio particularmente perigoso.
Como pondera Figueiredo Dias - In Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 37., a propósito do crime de homicídio, a exigência legal de que o meio seja particularmente perigoso determina, por um lado, que ele revele uma perigosidade muito superior à normal nos meios usados para matar – não cabendo no exemplo padrão e na sua estrutura valorativa os revólveres, pistolas, facas ou vulgares instrumentos contundentes – e por outro, é necessário determinar, com particular rigor, se da natureza do meio utilizado – e não de outras circunstâncias coexistentes – resulta já uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.
Todavia, importa ter presente que estando em causa o crime de ofensa à integridade física, a especial censurabilidade ou perversidade do agente, para cujo preenchimento o art. 145º, n.º 2, do Código Penal remete para as circunstâncias previstas a propósito do tipo legal de homicídio no n.º 2 do art. 132º do mesmo diploma, terá que ser apreciada em função do bem jurídico aí tutelado – a integridade física – e não do bem jurídico tutelado por este último – a vida. Com efeito, a apetência do meio para ser particularmente perigoso tem de ser aferida e correlacionada com o ato ofensivo ou lesivo da integridade física e não com o ato ofensivo ou lesivo da vida - Cf. acórdão do TRC de 15-01-2003 (processo n.º 3447/02), disponível em http//www.dgsi.pt..
Daí a conclusão de que, se uma arma de fogo ou uma navalha não revelam uma perigosidade muito superior à normal dos meios geralmente utilizados para atentar contra a vida, o certo é que já revelam tal perigosidade relativamente aos meios normalmente usados para ofender a integridade física de outrem, que são geralmente as mãos, os pés, a luta corporal ou a utilização de objetos de uso corrente e não letal.
Posto isto, vejamos então o que é que se deverá entender por “meio particularmente perigoso” para efeitos do crime de ofensa à integridade física.
Como é sabido, são muitos e variados os instrumentos suscetíveis de serem usados na prática desse crime. Todos eles são meios comuns e usuais de agressão e possuem, em abstrato e em potência, características que podem tornar perigosa a sua utilização. Mas não é dessa perigosidade, dita normal, que a lei fala, mas sim de utilizar um instrumento, um método ou um processo que dificulte exponencialmente a defesa da vítima e que crie ou seja suscetível de criar perigo de lesão de outros bens jurídicos importantes.
Meio particularmente perigoso é, assim, sinónimo de meio muito desproporcional a causar o resultado pretendido pelo agente, ou seja, que para além deste resultado visado, coloca ou tem virtualidade de colocar em perigo outros bens jurídicos, em enorme desproporção com aqueles que era necessário e suficiente colocar em perigo para obter o fim pretendido pelo agente. É, pois, meio diferente dos instrumentos usuais de agressão, que são aptos a produzir o resultado querido pelo agente e que são insuscetíveis de colocar em perigo outros bens que não são objeto de referência do dolo do agente. É aquele meio que, quando usado na prática de ofensa à integridade física, encerra uma potencialidade de dano muito superior aos meios e instrumentos normalmente usados na prática de agressões físicas.
Por outro lado, meio particularmente perigoso é ainda o meio excessivamente eficaz a produzir o resultado típico, resultando essa sua enorme eficácia num perigo enorme e desnecessário para o bem jurídico visado e/ou para outros bens jurídicos não compreendidos no tipo em causa.
Em suma, meios particularmente perigosos são todos aqueles que, quando usados, tendo em atenção a experiência comum, ponham em perigo a vida humana ou tenham potencialidade para causar uma lesão grave, segundo as regras da causalidade. Dito de outra forma, meio particularmente perigoso é o que tem potencialidade bastante para causar a morte ou ferimentos graves - Vd. acórdãos do STJ de 05-03-1997, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, Tomo I, pág. 241, e do TRC de 10-01-1991, in Coletânea de Jurisprudência, Tomo I, pág. 88..
No entanto, tais características não podem ver-se em abstrato, mas sim em concreto, não devendo atender-se unicamente à espécie ou características do instrumento, mas a um conjunto de elementos, factos e circunstâncias de que resulta o modo como o mesmo foi usado, para daí se inferir se tal uso era suscetível e adequado a causar graves danos para a saúde ou fazer perigar a vida - Cf. acórdão do TRE de 19-04-1991, in Coletânea de Jurisprudência, Tomo II, pág. 351..
Volvendo ao caso concreto, uma faca, embora de características que não foi possível apurar, mas do género de cozinha, recai no âmbito dos vulgares instrumentos cortantes, que podem efetivamente ser utilizados com o objetivo de apenas agredir fisicamente outrem, sem que da sua mera natureza resulte, na perspetiva de um crime de ofensa à integridade física, uma perigosidade muito superior à normal dos meios vulgarmente utilizados para agredir.
Todavia, a utilização de uma faca com essas características no cometimento de um crime de ofensa à integridade física pode revelar-se como meio particularmente perigoso, posto que é adequada, em abstrato, a causar lesões mortais ou ferimentos graves. Mas não se pode considerar tal facto, por si só, como revelador de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente. Com efeito, haverá ainda que ponderar todas as circunstâncias que rodearam o caso concreto, porquanto será desse conjunto, no contexto da atuação do agente, que se há de retirar essa especial censurabilidade ou perversidade, ou seja, um grau de culpa agravado. Em suma, haverá sobretudo que ter em conta a forma como foi utilizada a faca e a zona corporal visada.
Ora, no caso em apreço, a forma de perpetração da agressão (cravando a lâmina), a zona corporal atingida (face posterior média do hemitorax esquerdo) e o tipo e a extensão das lesões causadas (orifício de entrada com 2 cm de comprimento e orifício de saída punctiforme cerca de 6 cm mais abaixo, exigindo sutura deste último e sutura parcial daquele, sobre dreno de telha, determinando 7 dias de doença, todos com afetação da capacidade de trabalho profissional e 3 com afetação da capacidade de trabalho geral), constituem elementos que revelem uma especial perigosidade do instrumento utilizado, para além do que resulta da sua própria natureza (cortante). Efetivamente, esses elementos permitem concluir, com a necessária segurança, que a concreta agressão perpetrada pelo arguido era suscetível e adequada a causar graves danos para a saúde ou fazer mesmo perigar a vida do ofendido.
Assim, não subsistem dúvidas sobre o preenchimento da circunstância qualificativa em apreço, traduzida na utilização de meio particularmente perigoso para perpetrar a ofensa à integridade física, mostrando-se, pois, correta a qualificação jurídica dos factos feita na sentença recorrida, com a consequente irrelevância da desistência de queixa apresentada pelo ofendido.
Nestes termos, improcede este segmento do recurso.
Por fim, esclareça-se que, apesar de no corpo da motivação, o recorrente ter mencionado que o tribunal a quo não decidiu bem no que concerne à medida da pena, não tendo ponderado devidamente o estabelecido no art. 71º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, dando, pois, a entender que também pretendia recorrer dessa parte da decisão, o certo é que as conclusões são completamente omissas a esse respeito.
É sabido que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar. Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o tribunal superior só conhecerá das que constam das conclusões - Cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume III, 2ª edição, 2000, pág. 335..

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, A. B., confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a quatro unidades de conta (art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal, art. 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Elaborado em processador de texto pelo relator e revisto pelos signatários - art. 94º, nº 2, do CPP)
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Guimarães, 09 de janeiro de 2017
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(Jorge Bispo)

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(Pedro Cunha Lopes)