Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3652/11.2TBGMR-C.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO DE RETENÇÃO
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR
PROMITENTE-COMPRADOR
CONSUMIDOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 – De acordo com o Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, de 20/03/2014, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 19/05/2014: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil”.
2 – Não pode considerar-se consumidor uma sociedade que, dedicando-se à gestão de imóveis, destinou a fração prometida comprar ao arrendamento a terceiro, recebendo as respetivas rendas, na prossecução do fim próprio da sua atividade económica.
3 – Pese embora, hoje, a doutrina dos Acórdãos Uniformizadores deva considerar-se meramente orientadora e não vinculativa, a verdade é que a recusa da sua aplicação deve constituir uma exceção, devendo afastar-se apenas quando haja razões profundas para a sua revisibilidade, porque se alteraram as circunstâncias que estiveram presentes no momento do debate colectivo alargado.
4 – Assim se mantém o espírito de unidade jurisprudencial, fundamento da certeza, da segurança da ordem jurídica e da sua unidade, mas compatível com a independência dos tribunais na vertente da autonomia do juiz na interpretação e aplicação do direito.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
Por apenso aos autos de insolvência de J…, e após as reclamações de créditos respetivas, apresentou a administradora judicial, nos termos do artigo 129.º do CIRE, a relação de créditos reconhecidos, com aviso expresso à credora “T…, SA” de que o seu crédito foi impugnado parcialmente face às declarações do insolvente de que o contrato promessa de compra e venda em que baseia a reclamação do dobro do sinal entregue e juros (€ 209.052,05), terá sido simulado, tendo a quantia de € 100.000,00 sido entregue a título de empréstimo, apenas reconhecendo o seu crédito, comum, pelo valor de € 109.052,05.
A credora “T…, SA” veio, nos termos do artigo 130.º do CIRE impugnar a lista de credores reconhecidos e respetiva natureza, pedindo que seja verificado e reconhecido o crédito reclamado da impugnante sobre o insolvente na quantia de € 209.052,05 e graduado com a natureza de garantido pelo direito de retenção sobre a fração “P” do prédio descrito na 2.ª CRP de Guimarães sob o n.º… da freguesia da Costa.
Respondeu a administradora judicial para sustentar que o contrato celebrado entre as partes teve a natureza de empréstimo, sendo o contrato promessa invocado pela reclamante nulo por simulação absoluta e que, ainda que assim não fosse, não gozaria a reclamante do direito de retenção, por não ser consumidor.
Frustrada a tentativa de conciliação, foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a exceção de caso julgado invocada pela credora reclamante, julgou reconhecidos os créditos não impugnados e determinou que os autos prosseguissem para apreciação da impugnação deduzida, definindo os factos assentes e a base instrutória.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença, cujo teor decisório é o seguinte:
“a) Julgar pela parcial procedência da impugnação da credora T…, S.A., reconhecendo-lhe um crédito no montante de € 209.052,05 (duzentos e nove mil e cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), com a natureza de crédito comum;
b) Determinar que se proceda ao pagamento dos créditos através do produto da massa insolvente, pela seguinte ordem e nos seguintes termos:
A) Pelo produto da venda do prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº… e inscrito na matriz sob o artigo …:
1º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda desse bem;
2º - Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito de IMI relativo a esse imóvel, no montante de € 1.817,58 (mil oitocentos e dezassete euros e cinquenta e oito cêntimos);
3º - Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito do D…, garantido por hipoteca voluntária, no montante de € 164.807,22 (cento sessenta e quatro mil oitocentos e sete euros e vinte e dois cêntimos);
4º - Do remanescente dar-se-á pagamento, rateadamente, aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional relativos a IRS e do Instituto da Segurança Social, I.P, nos montantes de, respectivamente, € 1.202,15 (mil duzentos e dois euros e quinze cêntimos) e de € 1.484,31 (mil quatrocentos e oitenta e quatro euros e trinta e um cêntimos);
5º - Do remanescente dar-se-á pagamento, rateadamente, aos restantes créditos reconhecidos.
B) Pelo produto da venda do direito de usufruto sobre o prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo…:
1º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda desse bem;
2º - Do remanescente dar-se-á pagamento ao crédito de IMI relativo a esse imóvel, no montante de € 456,83 (quatrocentos e cinquenta e seis euros e oitenta e três cêntimos);
3º - Do remanescente dar-se-á pagamento, rateadamente, aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional relativos a IRS e do Instituto da Segurança Social, I.P, nos montantes de, respectivamente, € 1.202,15 (mil duzentos e dois euros e quinze cêntimos) e de € 1.484,31 (mil quatrocentos e oitenta e quatro euros e trinta e um cêntimos);
4º - Do remanescente dar-se-á pagamento, rateadamente, aos restantes créditos reconhecidos.
C) Pelo produto da venda do quinhão do insolvente no prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº … e inscrito na matriz sob o artigo…:
1º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda desse bem;
2º - Do remanescente dar-se-á pagamento, rateadamente, aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional relativos a IRS e do Instituto da Segurança Social, I.P, nos montantes de, respectivamente, € 1.202,15 (mil duzentos e dois euros e quinze cêntimos) e de € 1.484,31 (mil quatrocentos e oitenta e quatro euros e trinta e um cêntimos);
3º - Do remanescente dar-se-á pagamento, rateadamente, aos restantes créditos reconhecidos.
Custas pela massa insolvente – artigo 304º do C.I.R.E”

Discordando da sentença dela interpôs recurso a credora reclamante “T…, SA”, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:
1. Incide o presente recurso sobre a sentença prolatada no decurso dos presentes autos de reclamação de créditos, que julgou pela parcial procedência da impugnação da credora T…, S.A., reconhecendo-lhe um crédito no montante de € 209.052,05 (duzentos e nove mil e cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), com a natureza de crédito comum;
2. Sucede que, no que concerne ao quantum do direito de crédito reconhecido à aqui Apelante, na cifra de € 209.052,05 (duzentos e nove mil e cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), a decisão a quo não merece qualquer censura.
3. Contudo, a mesma vénia não pode ser feita no que respeita ao reconhecimento da natureza do crédito decidida pelo Tribunal a quo.
4. Com efeito, sustenta a decisão a quo que o direito de crédito da aqui Apelante, acima enunciado, reveste a natureza de crédito comum.
Porém,
5. Tal entendimento jamais pode ser aceite,
Uma vez que,
6. Como resulta dos pontos 3.º a 9.º dos factos provados e, mais, da sentença condenatória descrita em 10.º daquele mesma factualidade, é categórico que, o incumprimento culposo e definitivo do contrato promessa sub judice é imputado aos ora insolventes.
7. Aquele mesmo incumprimento contratual fundamenta a resolução daquele mesmo vínculo contratual (contrato-promessa de compra e venda), conforme deriva em 10.º dos factos em que se estriba a decisão recorrida.
8. Dado que, na sequência da outorga do contrato promessa de compra e venda sub judice, a Apelante entregou aos Insolventes a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) – vide ponto 3.º dos factos provados – é evidente que o regime indemnizatório aplicável e devido à Apelante, em virtude da resolução daquele vinculo contratual é o constante no art. 442.º, n.º 2 do Código Civil.
9. Por conseguinte, tem a Apelante direito de exigir o dobro do sinal que prestou, ou seja, tem a Apelante direito de exigir o direito de crédito no quantum de € 200.000,00 (duzentos mil euros), respeitante ao sinal em dobro, acrescida de juros à taxa legal de 4%, desde 3 de Novembro de 2010 e até integral pagamento, como bem decidiu o Tribunal a quo.
10. Concomitantemente, não se pode ignorar que, a indemnização devida à aqui Recorrente, nos termos do n.º 2 do art. 442.º do Código Civil, por força do incumprimento definitivo do contrato promessa, confere à Apelante o direito de reter o imóvel prometido vender até integral pagamento do seu direito de crédito (€ 200.000,00).
11. Tanto mais que, a isso se opõe o normativo legal ínsito ao art. 755.º, n.º 1, f) do Cód. Civil, quando estatui que, “Gozam ainda do direito de retenção: o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442.º”.
12. E não se diga, como vinca a decisão a quo, que o direito de retenção apenas deverá ser atribuído quando o promitente-comprador é um consumidor, porquanto, tal não ressuma da teleológica, nem da axiologia inerente ao Decreto-Lei n.º 379/86, de 11 de Novembro, nem do Decreto-Lei n.º 236/80, de 18 de Julho.
13. Na verdade, aquilatado o preâmbulo dos sobreditos diplomas legais, não se constata que a preocupação do legislador e o espírito da Lei se esgote na proteção dos interesses do particular/consumidor no inadimplemento do contrato promessa de compra e venda de imóveis, em que o promitente-comprador é um particular/consumidor.
14. Ou seja, dos referidos preâmbulos, exsuda inelutavelmente que o Legislador estabeleceu a estatuição consagrada no art. 755.º, n.º 1 al. f) do Código Civil, mormente para a proteção do promitente-comprador particular/consumidor cumpridor, todavia não vedou tal garantia, em exclusivo, àqueles,
15. O que equivale por dizer que, a axiologia inerente ao sobredito diploma legal consiste em dotar o consumidor de uma garantia especial em caso de promitente-comprador cumpridor, não vendando, porém, tal garantia as demais entidades jurídicas, nomeadamente aos não consumidores/pessoas colectivas.
16. Tanto assim é que, não só do preâmbulo do sobredito diploma legal não resulta a exclusão de tal garantia a não consumidores, como também o regime jurídico constante nos artigos 754.º e seguintes do Código Civil apregoa tal exclusão.
17. Sendo, aliás, tal entendimento aceite pela Jurisprudência mais acreditada dos nossos tribunais, mormente pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães prolatado a 11/07/2013, no âmbito do processo n.º 1551/12.0TBBRG-U.G1 e disponível in www.dgsi.pt, ou mesmo pelo Acórdão proferido a 29/05/2014, pelo Supremo Tribunal de Justiça, atinente ao processo n.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1, igualmente disponível in www.dgsi.pt.
18. O que desde logo evidencia que, a garantia inerente ao direito de retenção consagrado no art. 755.º do Código Civil, é aplicável não só aos consumidores, como também às pessoas coletivas, mormente à aqui Apelante, no caso sub judice.
19. Destarte, deve a decisão a quo ser revogada e substituída por uma outra que julgue procedente a impugnação apresentada pela Apelante e, por via disso, reconheça que o direito de crédito da Apelante no quantum de € 209.052,05 (duzentos e nove mil, cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), se encontra garantido por direito de retenção sobre o imóvel prometido vender, devidamente identificado nos presentes, nos termos do art. 442.º e 755.º do Código Civil.
20. Porquanto, só assim de subsume a factualidade por assente ao direito que lhe é aplicável, alcançando-se assim a Verdade e a Justiça, enquanto fim último do Direito.
21. Tanto mais que, as presentes alegações de recurso apresentam suporte legal nos artigos 440.º, 441.º, 442.º, 754.º, 755.º, 799.º, 801.º do 808.º do Código Civil e, bem assim, em todas as demais disposições legais que V/Exas. considerem aplicáveis in casu.
Nestes termos e nos melhores de direito que V/Exa. proficuamente suprirá, devem as presentes alegações de recurso ser recebidas e julgadas procedentes, por provadas e, por via disso, seja reconhecido que o direito de crédito da Apelante no quantum de € 209.052,05 (duzentos e nove mil, cinquenta e dois euros e cinco cêntimos), encontra-se garantido por direito de retenção sobre o imóvel prometido vender, devidamente identificado nos presentes, só assim se fazendo inteira e sã JUSTIÇA!

O credor reclamante “D…” apresentou contra alegações onde pugna pela manutenção da sentença recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
A única questão a resolver traduz-se em saber se o crédito da apelante se encontra garantido por direito de retenção sobre o imóvel prometido vender.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Na sentença foram considerados os seguintes factos:
1. Por petição inicial entrada em juízo em 03/10/2011 (fls. 45 dos autos principais), J… veio requerer a sua declaração de insolvência, tendo sido declarado insolvente por sentença proferida em 18/10/2011, já transitada em julgado (fls. 73 e ss. dos autos principais). – al. A)
2. J… e T…, S.A. subscreveram o documento junto a fls. 285 e ss. (que aqui se dá por integralmente reproduzido), datado de 08/01/2008 e intitulado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, nos termos do qual:
- o primeiro declarou ser proprietário da fracção autónoma designada pela letra “P”, correspondente a uma habitação, no segundo andar, com garagem no n.º 25 no rés-do-chão, inscrita na matriz sob o art.º …, parte do prédio sito no Lugar das Casas Velhas ou Devesas da Estrada, freguesia de Costa, concelho de Guimarães, descrito na 2.ª Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º…;
- o primeiro declarou prometer vender à segunda, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, o prédio referido anteriormente, pelo preço de 125.000,00€, a pagar da seguinte forma: 100.000,00€ a título de sinal e princípio de pagamento, na data da celebração do contrato, dando o primeiro a correspondente quitação; 25.000,00€ na data da celebração da escritura pública;
- foi acordado que a escritura deveria ser realizada até ao dia 31/12/2008, em dia, hora e notário a designar pelo primeiro, devendo para o efeito comunicar à segunda com 10 dias de antecedência;
- foi acordado que o primeiro deveria registar, a expensas suas, o cancelamento de uma hipoteca que incidia sobre o prédio;
- foi acordado que a segunda poderia a partir dessa data ocupar o prédio, “com o propósito de antecipar um dos resultados práticos do negócio prometido, a transmissão e entrega da propriedade, obrigando-se assim o primeiro outorgante a ceder à segunda as respectivas chaves do imóvel”. – al. B)
3. T…, S.A. entregou a J… a quantia de 100.000,00€ (cem mil euros), nas datas e pelos modos referidos nos documentos juntos de fls. 358 a 370 (que aqui se dão por integralmente reproduzidos). – al. C)
4. J… nunca agendou a escritura referida em B) e não procedeu ao registo do cancelamento da hipoteca também aí mencionado. – al. D)
5. Apesar de interpelado por diversas vezes, J… recusou-se a celebrar a escritura, tendo-lhe a T…, S.A. enviado, e ele recebido, as cartas juntas a fls. 289 e 291 (que aqui se dão por integralmente reproduzidas). – resp. ao quesito 1º
6. A T…, S.A. chegou a propor a J… a rescisão por mútuo acordo do contrato referido em B), mediante a restituição imediata da quantia de 100.000,00€, acrescida dos juros de mora vencidos desde 08/01/2008, proposta à qual aquele não respondeu. – resp. ao quesito 2º
7. A T…, S.A. celebrou com M… o contrato junto a fls. 292 e ss. (que aqui se dá por integralmente reproduzido), denominado “Contrato Promessa de Arrendamento Habitacional”, nos termos do qual prometeu ceder à segunda o gozo do prédio referido em B), mediante o pagamento por esta da quantia mensal de 400,00€, tendo acordado que a segunda passaria a poder usar o prédio a partir dessa data e sendo o contrato definitivo celebrado um ano após a celebração da escritura de compra e venda do prédio por parte da primeira. – resp. ao quesito 3º
8. Em cumprimento do contrato referido em 3.º, M… pagou a T…, S.A. um total de 6.400,00€ (seis mil e quatrocentos euros). – resp. ao quesito 4º
9. A T…, S.A. pagou as despesas de condomínio que constam dos documentos juntos de fls. 271 a 348 (que aqui se dão por integralmente reproduzidos). – resp. ao quesito 5º
10. A sociedade T…, S.A. moveu acção declarativa contra o insolvente, que correu termos pela 1ª Vara de Competência Mista de Guimarães sob o nº 407/10.5TCGMR, tendo na mesma sido proferida sentença a 25 de Fevereiro de 2011 onde se decidiu declarar a resolução do contrato promessa de compra e venda a que se alude em 2. e condenar o insolvente a restituir à autora a quantia de € 200.000,00 respeitante ao sinal em dobro, acrescida de juros à taxa legal de 4% desde 3 de Novembro de 2010 até integral pagamento, sentença essa transitada em julgado a 04/04/2011 – certidão de fls. 211 a 219 desde apenso.

Assentes os factos, que não foram contestados pela apelante, vejamos a questão jurídica que lhes está subjacente.
Na sentença sob recurso considerou-se que somente o promitente-comprador consumidor goza da especial proteção que é conferida pelo artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil, ou seja, só o promitente-comprador consumidor goza do direito de retenção sobre a coisa a que se refere o contrato prometido. Baseou-se, especificamente, no argumento histórico que foi buscar ao Preâmbulo dos DL n.º 236/80 de 18/07 e n.º 379/86 de 11/11 (visando a proteção do promitente comprador de fração para sua habitação própria), aceitando as razões expendidas ao longo do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ n.º 4/2014, proferido em Plenário das Secções Cíveis, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 19/05/2014 e citando, a propósito, inúmera jurisprudência e doutrina para concluir que, não sendo a credora reclamante uma consumidora, terá o seu crédito que ser graduado como crédito comum, não beneficiando da garantia conferida pelo direito de retenção.
Já a apelante entende que o seu crédito beneficia do direito de retenção sobre o imóvel pretendido vender, considerando que tal direito não deve ter em conta apenas a proteção dos interesses do particular/consumidor, não resultando da melhor interpretação da lei, a exclusão de tal garantia a não consumidores.

Esta questão foi durante muito tempo debatida na jurisprudência, sendo exemplos dessa querela os Acórdãos citados na sentença e nas alegações e contra alegações juntas aos autos.
Hoje, contudo, é impossível não nos atermos à uniformização de jurisprudência levada a cabo pelo Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, de 20/03/2014, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 19/05/2014, nos seguintes termos: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil”.
É certo que este Acórdão foi polémico e suscitou vários votos de vencido de ilustres Conselheiros que discordaram da inserção do consumidor, por entenderem que o direito de retenção teria lugar mesmo que o promitente-comprador não fosse consumidor. Contudo, a tese vencedora foi a que ficou a constar da uniformização de jurisprudência supra referida.

Ora, quanto à vinculação dos tribunais aos Acórdãos Uniformizadores de Jurisprudência (após a revogação do artigo 2.º do CC que conferia força obrigatória geral aos assentos) é ela hoje entendida como meramente orientadora e não vinculativa. «Quis-se implantar um sistema de uniformização jurisprudencial assente na autoridade dos acórdãos, que se devem impor por si, pelos seus fundamentos, de molde a que consigam a adesão de todos os intervenientes judiciários. O que quer dizer que a unidade da jurisprudência passa pela força da razão dos fundamentos invocados nesse acórdãos e não pela razão da força imposta pela lei. Pretendeu-se manter o espírito de unidade jurisprudencial, fundamento da certeza, da segurança da ordem jurídica e da sua unidade, mas compatível com a independência dos tribunais na vertente da autonomia do juiz na interpretação e aplicação do direito (que apenas está vinculado à constituição e à lei, como resulta do artigo 206 da CRP e do artigo 4º da seu estatuto), como garantia dos cidadãos e da criatividade do direito, que é algo que está em permanente evolução, face à dinâmica social, económica e política da ordem jurídica» - Acórdão da Relação de Guimarães de 06/03/2008, in www.dgsi.pt/jtrg.
Entendemos que, dentro deste novo sistema, o juiz deve acatar a jurisprudência uniformizada, para que não se caia numa situação de caos jurisprudencial, em que sobre a mesma questão, que já teve uma decisão qualificada, se mantenham duas ou mais correntes jurisprudenciais, criando-se a incerteza, a imprevisibilidade nos meios judiciários, que perturbará os cidadãos em geral, que deixam de acreditar na justiça.
Daí que a recusa de aplicação da doutrina uniformizada seja uma excepção. O juiz, antes de tomar um posição de recusa ou rejeição desta doutrina, deve analisar bem os fundamentos do acórdão, das questões jurídicas em conflito, da posição vencida, e só quando surjam circunstâncias supervenientes, capazes de imporem uma nova interpretação, isto é, quando haja razões profundas para a sua revisibilidade, porque se alteraram as circunstâncias que estiveram presentes no momento do debate colectivo alargado, é que deve afastar-se da doutrina uniformizada.
Não vemos, assim, qualquer motivo para nos afastarmos da jurisprudência uniformizada, pelo que, sem necessidade de estarmos a repetir os fundamentos da mesma – remetemos para o Acórdão Uniformizador – aliás já em grande parte referidos na sentença sob recurso, temos como certo que só o consumidor final, e cumpridos os demais requisitos ali enunciados, goza do direito de retenção.

Veja-se, a este propósito, e neste sentido, o recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/11/2014 (processo n.º 7617/11.6TBBRG-C.G1.S1), onde se pode ler: “E, muito embora tal não conste expressamente do texto do transcrito segmento de uniformização, irrecusável é que, tomada em atenção a respectiva fundamentação e, mesmo, o teor de alguns dos votos de vencido apostos em tal acórdão, não pode deixar de entender-se que a uniformização estabelecida se reporta, exclusivamente, ao promitente-comprador que detenha, simultaneamente, a qualidade de consumidor. Como, em caso similar, se pondera, doutamente, no Ac. deste Supremo, de 09.07.14, de que foi relator o Ex. mo Cons. Nuno Cameira, trata-se de “entendimento que, muito embora não integre o segmento de uniformização, encerra o valor de premissa lógica necessária que o antecede e, nessa medida, deverá assumir o mesmo carácter vinculativo””.

Não é o caso dos autos em que o credor promitente-comprador é uma sociedade de gestão de imóveis (como resulta da sua designação) que, logo que celebrado o contrato, arrendou a fração em causa a terceiro, com o escopo de lucrar com as rendas pagas, ou seja, para a prossecução de fins próprios da sua atividade económica, não sendo, portanto, um utilizador final.
Em face do exposto, haverá que julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Sumário:
1 – De acordo com o Acórdão Uniformizador n.º 4/2014, de 20/03/2014, publicado no Diário da República, 1.ª Série, de 19/05/2014: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º n.º 1 alínea f) do Código Civil”.
2 – Não pode considerar-se consumidor uma sociedade que, dedicando-se à gestão de imóveis, destinou a fração prometida comprar ao arrendamento a terceiro, recebendo as respetivas rendas, na prossecução do fim próprio da sua atividade económica.
3 – Pese embora, hoje, a doutrina dos Acórdãos Uniformizadores deva considerar-se meramente orientadora e não vinculativa, a verdade é que a recusa da sua aplicação deve constituir uma exceção, devendo afastar-se apenas quando haja razões profundas para a sua revisibilidade, porque se alteraram as circunstâncias que estiveram presentes no momento do debate colectivo alargado.
4 – Assim se mantém o espírito de unidade jurisprudencial, fundamento da certeza, da segurança da ordem jurídica e da sua unidade, mas compatível com a independência dos tribunais na vertente da autonomia do juiz na interpretação e aplicação do direito.

III. DECISÃO
Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 17 de dezembro de 2014
Ana Cristina Duarte
Fernando Freitas (revejo a anterior posição, atenta a vinculação ao A.U.J. n.º 4/2014)
Purificação Carvalho (revejo a anterior posição considerando o Acórdão Uniformizador n.º 4/2014 de 20/03/2014)