Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
201/16.06GBBCL.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ELEMENTOS DO ILÍCITO
VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA
FUNDAMENTAÇÃO NA SENTENÇA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: I) O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação.
II) O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”.
III) No caso dos autos, tendo-se apurado atos isolados e reiterados que, perspetivados em conjunto, se traduzem num comportamento global do arguido que afeta a dignidade e a integridade física e psíquica da assistente, sua mulher e posteriormente ex-mulher, com efeitos destrutivos na sua vivência pessoal, familiar e social, impõe-se concluir que a atuação do recorrente preenche na sua plenitude o conceito de maus tratos físicos e psíquicos consagrado no artigo 152º, nº 1, do Código Penal.
IV)) A utilização de meios de vigilância eletrónica do cumprimento da medida de vigilância controlada depende, não só da verificação de um concreto juízo de imprescindibilidade dessa medida para a proteção da vítima, mas também da obtenção de consentimento do arguido, da vítima e das pessoas que vivam com o agente ou a vítima e das que possam ser afetadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.
V) A anuência das pessoas afetadas com a restrição da liberdade pode ser suprida se o tribunal, em decisão fundamentada, concluir que na situação concreta e perante a ponderação dos valores e direitos em conflito, a aplicação de meios técnicos de controlo à distância constitui uma medida indispensável para a proteção dos direitos da vítima.
VI) Sendo caso de definição de uma pena acessória, a indicação das concretas razões de facto que subjazem ao juízo de imprescindibilidade de aplicação dos meios eletrónicos e da dispensa do consentimento deve constar da própria sentença.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:


I. RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 201/16.0GBBCL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, os Juízo Local Criminal de Barcelos - J2 (extinta Secção Criminal - J2, da Instância Local de Barcelos), realizado o julgamento, foi proferida sentença, datada e depositada a 19-09-2016, com o seguinte dispositivo (transcrição):
«III. DECISÃO
Pelo exposto, decide-se:
a) condenar o arguido N.C. pela prática, como autor material, na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 13º, 1ª parte, 14º, nº1, 26º, 1ª proposição, e 152º, nº1, alínea a), nº2, todos do Código Penal:
- na pena de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses de prisão;
- na pena acessória de, por qualquer forma, e pelo prazo de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, contactar ou aproximar-se da assistente S. S. , incluindo, obviamente, a proibição de o arguido se aproximar ou deslocar-se à residência desta ou ao seu local de trabalho, não podendo aproximar-se desses espaços a menos de 300m, bem assim como de lhe telefonar, enviar mensagens ou qualquer outra forma de comunicação.
A proibição de contactos será fiscalizada, como determinado pelo nº5, do artigo 152º, do CP, por meios técnicos de controlo à distância (independentemente do consentimento do arguido, face ao superior interesse da vítima – cfr. artigo 36º, nº7, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro).
b) suspender na sua execução e pelo período de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses, a pena de prisão aplicada ao arguido N. C., nos termos do disposto no artigo 50º, nºs1 e 5, do CP, ficando essa suspensão condicionada ao dever de entregar à assistente/demandante S. S. , no mesmo prazo de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses, contados do trânsito em julgado da presente decisão, o montante respeitante ao pedido de indemnização civil por ela formulado, nos termos decididos pelo tribunal (cfr. artigos 50º, nºs1 a 4, e 51º, nº1, alínea a), e nº2, este a contrario, ambos do CP), em 31 (trinta e uma) prestações mensais, iguais e sucessivas, até ao dia 10 (dez) de cada mês, mediante transferência bancária para conta a indicar pela assistente/demandante, devendo-o comprovar nos autos tal pagamento;
c) condenar o arguido N. C. no pagamento das custas processuais, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça devida (cfr. artigo 513º, nº1, do Código de Processo Penal, e 8º, nº9, do Regulamento das Custas Processuais), sem prejuízo do direito a protecção jurídica de que (eventualmente) beneficie;
d) julgar o pedido de indemnização civil formulado pela assistente/demandante S. S. parcialmente procedente, e, em consequência, condenar o arguido/demandado N. C. no pagamento do montante de €2.400,00 (dois mil e quatrocentos euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido dos competentes juros de mora, vencidos e vincendos, calculados à taxa legal e anual em vigor em cada momento, sendo de 4% a actualmente aplicável (cfr. Portaria nº291/2003, de 08 de Abril, ex vi artigo 559º, do Código Civil), calculados desde a prolação da presente decisão e até efectivo e integral pagamento;
e) em concretização do decidido em b), o arguido/demandado N. C., no prazo da suspensão da execução da pena de prisão que lhe foi aplicada, ou seja, no prazo de 2 (dois) anos e 7 (sete) meses, contado do trânsito em julgado da presente decisão, deverá proceder ao pagamento do montante respeitante aos danos não patrimoniais fixados em d), em 31 (trinta e uma) prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de €77,00 (setenta e sete euros), cada uma, com excepção da última, no valor de €90,00 (noventa euros), a efectuar até ao dia 10 (dez) de cada mês, mediante transferência bancária para conta a indicar pela assistente/demandante, devendo comprovar nos autos tal pagamento;
f) absolver o arguido/demandado N. C. do demais peticionado pela assistente/demandante S. S. ;
g) condenar a assistente/demandante S. S. e o arguido/demandado N. C. no pagamento das custas civis, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 4/8 – para a assistente/demandante – e 4/8 – para o arguido/demandado (cfr. artigo 527º, nºs1 e 2, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 523º, este do Código de Processo Penal), sem prejuízo do direito a protecção jurídica de que (eventualmente) beneficie(m).
*
Notifique:
- sendo a assistente/demandante para, no prazo de 5 (cinco) dias, identificar a conta para a qual deverão ser efectuadas as transferências bancárias;
- sendo o arguido advertido de que o incumprimento da pena acessória de proibição de contactos em que foi condenado o fará incorrer na prática de um crime de violação de proibições, p. e p. pelo artigo 353º, do Código Penal.
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Por via da presente decisão foi aplicada ao arguido N. C. uma pena de prisão suspensa na sua execução, bem como pena acessória de proibição de contacto com a assistente.
Dos factos que lograram merecer adesão de prova, resultou apurado que, já após o divórcio, em duas ocasiões em que a mencionada S. S. foi buscar a sua filha a casa do arguido, este insultou-a e ameaçou-a.
Assim, por entendermos que se verifica, in casu, um concreto perigo de continuação da actividade criminosa, decide-se, por se afigurar necessária, adequada e proporcional às exigências cautelares do caso vertente e à luz do que vai preceituado nas disposições conjugadas dos artigos 191º, 192º, 193º, 194º, 200º, nº1, alíneas a) e d) e 204º, alínea c), todos do Código de Processo Civil, e artigo 31º, nº1, alíneas c) e d), este da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro, que, até ao trânsito em julgado da presente decisão, o arguido ficará sujeito à medida de coacção de proibição de contactar ou aproximar-se da assistente S. S., incluindo, obviamente, a proibição de o arguido se aproximar ou deslocar-se à residência desta ou ao seu local de trabalho, não podendo aproximar-se desses espaços a menos de 300m, bem assim como de lhe telefonar, enviar mensagens ou qualquer outra forma de comunicação, sendo o cumprimento da medida ora aplicada fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, independentemente do consentimento do arguido, face ao superior interesse da vítima (cfr. artigo 36º, nº7, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro).
*
Com cópia da presente decisão, oficie, de imediato, à Equipa de Vigilância Electrónica da DGRSP, solicitando a instalação, no mais curto espaço de tempo, dos meios técnicos de controlo à distância, para fiscalização do cumprimento da medida de coacção ora aplicada.
Caso a presente decisão venha a transitar em julgado, o que, oportunamente, deverá ser comunicado pela secção de processos a essa entidade, manter-se-ão instalados os reportados meios, para fiscalização da pena acessória aplicada ao arguido.
Qualquer eventual incumprimento da medida de coacção/pena acessória aplicadas, deverá, prontamente, ser comunicada a esta Instância Local.
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Dê pagamento à Direcção-Geral de Reinserção Social do valor reclamado pela elaboração do relatório social juntos aos autos, caso ainda não tenha sido ordenada a sua liquidação, a entrar, a final, em regra de custas.
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Após trânsito em julgado:
- remeta boletim ao registo criminal (cfr. artigo 5º, nº1, alínea a) e nº3, da Lei nº37/2015, de 05 de Maio);
- comunique a presente decisão, sem dados nominativos, ao organismo da Administração Pública responsável pela área da cidadania e da igualdade de género, bem como à Direcção-Geral da Administração Interna, para efeitos de registo e tratamento de dados, nos termos do artigo 37º, nº1, do Regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei nº112/2009 de 16 de Setembro, tendo presente a Divulgação nº29/2012, do Conselho Superior da Magistratura e o ofício circular nº32 da DGAJ/DSAJ;
- solicite aos serviços da DGRSP, ao abrigo do preceituado no artigo 152º, nº5, do Código Penal, para diligenciar pela manutenção da fiscalização do cumprimento da pena acessória aplicada ao arguido, fiscalização que, desde já, se determina seja feita independentemente da existência do consentimento do arguido, porque imprescindível para assegurar a protecção da vítima (cfr. artigo 36º, nº7, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro).
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Vai proceder-se ao depósito da sentença (cfr. artigos 372º, nºs4 e 5 e 373º, nº2, ambos do Código de Processo Penal).»

2. Inconformado com esta decisão, recorreu o arguido, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição):
«III - CONCLUSÕES:
1. Analisada a motivação da decisão de facto, vemos que quanto à responsabilidade criminal do arguido, o Tribunal fundou a sua convicção nos depoimentos da própria ofendida/assistente e das testemunhas arroladas pela Acusação, F. S. - pai da Assistente, E. S. - mãe da assistente e A. M. - vizinha do extinto casal.
2. Porém, o que resultou do depoimento da Assistente e das testemunhas da Acusação não é suficiente para que a factualidade dos pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14 tivesse sido dada como provada, ocorrendo por conseguinte o vício a que alude o artigo 410.°, n.º 2, alínea a) do C.P.P.
3. A assistente situa as discussões com o arguido num contexto de desavenças familiares e questões relacionadas com a guarda da filha menor, começando por afirmar no seu depoimento que tudo se deve a "rivalidades entre famílias" (minuto 1:26 a 3:33).
4. Para além disso, como se apurou, as discussões tinham um caracter recíproco, isto é, a assistente e o arguido discutiam um com o outro, sendo que, também em grande parte delas, o pai do arguido também estava envolvido.
5. Isso mesmo confirmam os pais da assistente - ver minuto 19:45 a 20:36 do depoimento de F. S., minuto 0:53 a 1:11, 1:24 a 2:26 ("discutiam sempre um com o outro") e minuto 10:58 a 11:17 ("ralhavam um com o outro") do depoimento da testemunha E. S., bem como a própria assistente que a dada altura numa discussão, confessa ter tentado agredir o arguido com um prato, conforme transcrito supra.
6. É também a assistente que a dada altura a desvalorizar a questão dos empurrões, esclarecendo que o que na realidade acontecia era numa tentativa do arguido retirar-lhe a filha dos braços, nunca se referindo a dores físicas, tal como o Tribunal a quo concluiu no ponto 5 (minuto 16:55 a 17:20 e minuto 18:00 a 18:08 e minuto 26:30 a 26:43).
7. Já quanto à factualidade constante no ponto 7, em nenhum momento as palavras proferidas pelo arguido "queres ir vai tu e fica lá, mas a minha filha não vai" (que este confessa ter proferido) são suscetíveis de ofender, humilhar e muito menos de integrar o conceito de maus tratos, tal como o configurado no crime de violência doméstica. Trata-se isso sim, de um desabafo do arguido, proferido no contexto de desavenças familiares com os pais da assistente.
8. Relativamente ao ponto 11 dos factos provados, o que se apurou foi que em duas situações o arguido apareceu numa pizzaria e numa pastelaria onde se encontrava a assistente, para tomar café com um dos colegas desta. Em nenhuma medida tal pode ser considerado perseguição à assistente e muito menos integrar o conceito de maus tratos, não se tendo provado em que medida tal contribuiu para vexar, humilhar, amedrontar ou ofender a saúde física e psíquica da assistente.
9. Relativamente ao ponto 13 dos factos provados, importa trazer à colação o provado sob o ponto 21, daqui resultando, que, mesmo a considerar tais expressões como proferidas pelo arguido e as conclusões que a própria assistente delas retira (minuto 24:11 a 24:24), tais expressões não têm a virtualidade de constituir ofensa nos termos previsto para o crime de violência doméstica.
10. No que concerne aos insultos e ameaças que constam da acusação, se bem que a assistente confirme que era insultada, a mãe desta nega ter ouvido o arguido a insultar ou ameaçar a filha durante as discussões que ambos tinham (minuto 3:42 a 3:48).
11. Na verdade, quanto aos insultos e ameaças que constam na matéria dada como provada, haverá que ponderar todas as circunstâncias em que as mesmas terão ocorrido, designadamente as rivalidades familiares, as desavenças quanto à guarda da menor e a divida que a assistente tem para com o arguido.
12. Ora, o crime de violência doméstica pressupõe a existência de maus tratos, físicos ou psíquicos e estes traduzem-se em atos que revelam crueldade, desprezo, vingança, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vítima.
13. Mesmo a considerar que o arguido proferiu as expressões que a acusação imputou ao arguido, tendo estas sido proferidas em contexto de desentendimentos, discussões com a assistente, em que esta também respondia, não revelam a crueldade, o desprezo, a particular vontade de humilhar a assistente, de forma a permitir enquadrá-Ias em maus tratos.
14. Dos factos dados como provados, resulta inequivocamente que as expressões usadas pelo Recorrente contra a assistente foram tomadas no âmbito de discussões familiares, não tendo sido utilizadas de modo voluntário e livre com vontade unívoca de atingir o físico ou o psíquico da ofendida, antes resultaram de uma relação de causa-efeito, discussão alimentada entre ambos os sujeitos, sendo portanto impossível (e injusto) atribuir apenas ao Recorrente o efeito pretendido pela lei, esquecendo-se o âmbito em que a sua conduta foi tomada.
15. É a assistente que admite que o que despoletou todo este processo, que surge mais de 2 anos após o divórcio, não foi nenhum comportamento por parte do arguido, mas sim o receio do que este poderia fazer quando se visse confrontado com a alteração da regulação do poder paternal que aquela queria intentar (minuto 14:34 a 14:50)
16. Impõe-se desta forma, uma apreciação diversa, considerando como não provados aqueles pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15.
17. Perante a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto no que respeita ao arguido, não se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica pelo qual vem condenado, pelo que se impõe absolver o arguido daquele mesmo crime, o que se requer.
18. O Tribunal errou por isso na apreciação da prova, julgando incorretamente os factos dados como provados, pelo que se impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto (artigos 410.a n.º 2 aI. a) e c) do C. P. Penal.).
19. Ao decidir de modo inverso, a sentença recorrida violou assim o disposto no artigo 152.°, n.º 1, alínea a) do C. Penal.
20. A fundamentação da sentença ora recorrida, não contem qualquer referência sobre a imprescindibilidade de aplicação dos meios técnicos de controlo à distância nem tão pouco houve diligência para obtenção do consentimento do arguido e das pessoas diretamente afetadas com o eventual controlo por meios eletrónicos ou se formulou a apreciação e fundamentação de uma concreta situação suscetível de justificar a dispensa desse consentimento, ao abrigo do disposto no n.º 7 do art.° 36.° da Lei 112/2009, de 16 de Setembro.
21. É por isso nula a decisão quanto à imposição ao arguido dos meios eletrónicos para a fiscalização do cumprimento da pena acessória, por falta de fundamentação.
22. Nos termos do n.º 4 do artigo 50.° do Código penal, "a decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições." No caso em apreço, a decisão recorrida é omissa quanto à factualidade subjacente à aposição da condição da suspensão da execução da pena, o que consubstancio o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.° do C.P.P.
23. O arguido entende que a sentença recorrida violou ainda, o princípio da proporcionalidade da sanção criminal e princípio da culpa consagrados nos artigos 152.° n.º 1 e 2, 40.°, 41.°, 70.° e 71.° do Código Penal, pois que, na verdade, a pena de dois anos e sete meses de prisão aplicada ao arguido, afigura-se demasiado pesada e injusta, ultrapassando o juízo de censura que o ora Recorrente merece.
24. As circunstâncias do caso em apreço, nomeadamente as condições sociais e pessoais do Recorrente, deveriam ter sido consideradas e interpretadas em toda a sua extensão pelo Tribunal a quo, sendo que a pena aplicada haveria ter sido bem menos severa.
25. Entende o arguido que a sentença recorrida ao decidir pela aplicação da medida de coação nos termos que constam supra, violou os princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e necessidade a aplicação de tais medidas de coação.
26. No que se refere aos requisitos gerais da aplicação da medida de coação ora imposta ao arguido, a decisão sob recurso invocou o concreto perigo de continuação da atividade criminosa.
27. Sustenta a decisão recorrida que ''já após o divórcio, em duas ocasiões em que a mencionada S. S. foi buscar a sua filha a casa do arguido, este insultou-a e ameaçou-a."
28. Ora, esta afirmação é no entanto conclusiva por parte do Tribunal a quo pois não se baseia em factos concretos. O que resultou provado foi o que consta dos pontos 12 e 13, e aí não se refere se foi antes ou depois do divórcio.
29. Para além disso, não resultou provado que "a demandante se mantivesse a viver num permanente estado de inquietação, nervosismo, ansiedade e depressão, nomeadamente, quando tem de deslocar-se à residência do demandado para ir buscar a sua filha".
30. Daqui resulta uma inequívoca contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, o que consubstancia o vício do artigo 410.°, n.º 2, alínea b) do C.P.P.
31. Assim, não se tendo provado qualquer receio ou inquietação por parte da assistente e de acordo com os princípios de adequação e proporcionalidade, a medida de coação aplicada ao arguido é desajustada, por ser demasiado gravosa face às exigências cautelares que o caso em concreto requer, pelo que não pode subsistir, devendo a mesma ser revogada, o que se requer.
32. Violou também a sentença recorrida, por esta via, o disposto nos artigos 191.°,192.°,193.°,194.°,200.°, n.º 1, alínea a) e d) e 204.°, alínea c), todos do C.P.P.
NESTES TERMOS, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Ex. as, revogando a sentença recorrida e, em sua substituição, proferindo Douto Acórdão absolutório quanto ao recorrente em conformidade com as conclusões supra, farão, como sempre,
JUSTIÇA!!!»

3. A Exma. Procuradora Adjunta na primeira instância respondeu ao recurso, perfilhando o entendimento de que deverá ser negado provimento ao mesmo, porquanto, em suma:
- A apreciação feita pelo tribunal da prova testemunhal não viola as regras de experiência comum e a prova indicada pelo recorrente não impõe diversa decisão da matéria de facto.
- O arguido teve o propósito, conseguido, de maltratar a sua mulher, bem sabendo que das suas condutas poderiam advir problemas, nomeadamente a nível da saúde da mesma, e que tais atos não podem deixar de ser atentatórios da saúde mental da assistente, bem como da sua liberdade e dignidade pessoal, pelo que os factos apurados se subsumem ao crime pelo qual foi condenado.
- Não ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova e os factos provados são suficientes para a decisão de direito.
- A determinação da fiscalização da proibição de contactos, por meios técnicos de controlo à distância independentemente do consentimento do arguido, encontra-se devidamente fundamentada no ponto 11.6 da sentença recorrida.
- A aplicação da condição da suspensão da pena de prisão aplicada mostra-se fundamentada no ponto 11.7 da sentença.
- Nada há a apontar à medida concreta da pena aplicada.
- A sujeição do arguido à medida de coação de proibição de contactar ou aproximar-se da assistente, fiscalizada por meios técnicos de controlo à distância, independentemente do consentimento do arguido, é adequado, proporcional e suficiente para assegurar o afastamento do perigo de continuação da atividade criminosa.
4. Também a assistente respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, por entender, em síntese, que:
- O tribunal a quo valorou a prova por critérios baseados na experiência comum, na lógia do homem médio e no repúdio de meras impressões geradas no espírito do julgador, fundamentando de forma bastante a formação da sua convicção.
- Mostram-se provados todos os factos constitutivos do crime pelo qual o arguido foi condenado.
- Não se verifica qualquer dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal, decorrendo das alegações do recorrente apenas a sua discordância face à decisão do tribunal.
- Na determinação da pena foram observados os princípios da proporcionalidade e da culpa.
- A sentença fundamenta no superior interesse da vítima a aplicação da medida de proibição de contactos, fiscalizada por meios de controlo à distância, sem o consentimento do arguido.
- Não violou a sentença os artigos que presidem à aplicação de medidas de coação.
5. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, entendendo apenas assistir razão ao recorrente no segmento recursório relativo à falta de devida fundamentação da sentença recorrida quanto à imprescindibilidade da utilização de meios técnicos de controlo à distância para a proteção dos direitos da ofendida, por forma a ser dispensado o consentimento daquele, não se verificando, pois, os pressupostos exigidos no n.º 7 do art. 36º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, para a dispensa desse consentimento, acompanhando o que vem respondido pelo Ministério Público junto do tribunal recorrido sobre as demais questões.
6. No âmbito do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÕES A DECIDIR
Em conformidade com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, o objeto dos recursos é delimitado pelas conclusões extraídas da motivação pelo recorrente, não podendo o tribunal de recurso conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cf. art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do mesmo código) - Cf. acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995..
Assim, as questões a apreciar são:
a) - A impugnação da matéria de facto (conclusões 1ª a 16ª e 18ª).
b) - O preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica (conclusões 17ª e 19ª).
c) - A falta de fundamentação da imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e da dispensa do consentimento do arguido, como meio de fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos com a vítima (conclusões 20ª e 21ª).
d) - A falta de fundamentação quanto à aposição da condição da suspensão da execução da pena (conclusão 22ª).
e) - A medida da pena (conclusões 23ª a 24ª).
f) - Violação dos princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e necessidade na aplicação da medida de coação (conclusões 25ª a 32ª).

2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1 - O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):
«1. Do assento de nascimento nº22675 do ano de 2010, da Conservatória do Registo Civil de Barcelos, consta que no dia 08 de Novembro de 2004 a assistente S. S. contraiu casamento com o arguido N. C., tendo posteriormente sido dissolvido, por divórcio, por sentença datada de 17 de Janeiro 2014, transitada em julgado.
2. Deste casamento nasceu uma filha, a 20 de Novembro de 2010, de nome M. C..
3. Após o nascimento da filha de ambos, o relacionamento do (extinto) casal pautou-se por discussões quase diárias, no interior da casa da morada da família, sita na Rua de S. Gonçalo, nº316, da freguesia de Fragoso, do concelho de Barcelos.
4. No âmbito destas discussões, o arguido, de modo quase diário, dizia à assistente, sua mulher: “sua puta”, “tu não mandas, quem manda na minha filha sou eu”, “és uma puta”, “não me dás em casa porque já deste aos de fora”, querendo com esta última expressão dizer – e como tal era entendido pela aludida S. S. – que esta tinha relações sexuais com outros homens.
5. Também no âmbito dessas discussões o arguido, por diversas vezes, desferia empurrões na assistente, causando-lhe, pelo menos, dores físicas.
6. No dia 20 de Novembro de 2013, dia em que a filha do (extinto) casal completava 3 (três) anos de idade, o arguido, que não queria que a menor visitasse os avós maternos, desferiu um empurrão na assistente, causando-lhe, pelo menos, dores físicas.
7. Nas circunstâncias descritas em 6., o arguido disse à assistente: “queres ir vai tu e fica lá, mas a minha filha não vai”.
8. No dia 30 de Dezembro de 2013, no âmbito de mais uma discussão, a assistente disse ao arguido que não aguentava mais viver assim.
9. O mencionado N. C., irado, arremessou um cinzeiro contra a aludida S. S., atingindo-a no cotovelo direito, causando-lhe, pelo menos, dores físicas.
10. Na semana seguinte o arguido disse por diversas vezes à assistente “se me tiras a minha filha meto-te no cemitério”.
11. Depois do divórcio e, pelo menos, em quatro situações distintas, o arguido perseguiu a assistente, aparecendo nos locais onde esta se encontrava, uma das vezes em Viatodos e outra em Arcozelo.
12. Em dia que, em concreto, não foi possível apurar, em Cepães – Esposende, quando a assistente aí se deslocou para ir buscar a sua filha, o arguido disse-lhe “eu mato-te”.
13. Em dia que, em concreto, não foi possível determinar, também em Cepães – Esposende, quando a assistente aí se deslocou para ir buscar a sua filha, o arguido disse-lhe “és uma caloteira, vives no que é meu, andas a gozar com o suor dos outros”.
14. Agiu o arguido N. C. sempre de modo livre, voluntário e consciente, com vontade, concretizada, de vexar, humilhar, amedrontar, ofender a saúde física e psíquica da assistente S. S., não obstante saber que a mesma era sua mulher e mãe da sua filha.
15. Bem sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
16. Do Certificado de Registo Criminal do arguido nada consta.
Provou-se, ainda, que:
17. O arguido, no âmbito das discussões referidas em 3., apodava a assistente de “vaca”.
18. Aquele N. C., nas situações descritas em 3. a 9., inclusive, agiu a coberto do resguardo da casa da morada da família, que aproveitou.
Do pedido de indemnização civil
19. Como resultado das condutas do demandado N. C., supra descritas, a demandante S. S. sentiu-se envergonhada, vexada, humilhada, ansiosa e depressiva.
20. Sentiu, também, medo, inquietação e receio que o demandado atentasse contra a sua integridade física e até contra a sua vida.
Da contestação
21. O arguido, no dia 05 de Março de 2015, instaurou contra a assistente um processo executivo por via do qual peticiona o pagamento da quantia de €75.104,87 (setenta e cinco mil, cento e quatro euros e oitenta e sete cêntimos), a título de tornas.
Provou-se, também, que:
22. O arguido N. C. é o único filho de uma família de recursos económicos médios, fixada na freguesia de S. Paio de Antas, do concelho de Esposende.
23. O pai desenvolveu a actividade profissional por conta própria na área da construção civil e a mãe exerceu durante alguns anos a sua actividade laboral numa unidade fabril, situada na sua área de residência.
24. Beneficiou de um ambiente familiar protector e harmonioso.
25. Manteve-se sempre no agregado familiar de origem até à vivência conjugal.
26. Ao nível escolar, o arguido iniciou a escolaridade ainda não tinha completado os seis anos de idade, na escola primária da sua área de residência.
27. Prosseguiu os estudos até à frequência do 11º ano de escolaridade, tendo abandonado os estudos nesse período, por opção própria.
28. A sua inserção no mundo laboral ocorreu após a saída da escola, no ramo da construção civil, junto do progenitor.
29. Em 2001 passou a trabalhar por conta própria, tendo estado colectado até 31 de Maio de 2011.
30. Desde essa altura, teve curtas experiências de trabalho, sem continuidade, realizando biscates da construção civil.
31. Na comunidade actual de residência, o arguido beneficia de uma imagem positiva, sendo considerado um indivíduo educado, estabelecendo um relacionamento interpessoal adequado com os concidadãos.
32. No ano 2013, o arguido residia com a assistente, numa moradia construída pelo casal, com boas condições de habitabilidade.
33. A situação económica do casal nunca foi motivo de preocupação, dispondo a assistente de um rendimento mensal proveniente da actividade desenvolvida como vendedora comissionista, sendo o arguido também ajudado pelos progenitores, quando era necessário.
34. O arguido não trabalhava regularmente, efectuando biscates quando tinha oportunidade, na área da construção civil.
35. Actualmente, o arguido reside numa moradia unifamiliar, adquirida pelos seus pais, desde Outubro de 2014, dispondo de boas condições de habitabilidade.
36. Realiza alguns biscates na construção civil que lhe proporcionam um rendimento médio na ordem dos €600,00 (seiscentos euros), por mês.
37. Ao nível das despesas tem a assinalar as relativas ao consumo de água canalizada e energia eléctrica, cujo valor varia por mês.
38. Dispõe do apoio dos progenitores, que têm constituído um importante suporte, não só económico mas também emocional e familiar.
39. É tido junto daqueles com quem convive como tratando-se de pessoa calma, pacífica e respeitadora.»

2.2 – Quanto a factos não provados, conta da sentença recorrida o seguinte (transcrição):
«Não se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente:
a) que no âmbito das discussões referidas sob o nº3, dos factos provados, o arguido N. C. apodasse a assistente S. S. de “sua cabra” e lhe dissesse “não vales merda nenhuma”, “se tens uma filha fui eu quem fiz pressão”;
b) que nas circunstâncias descritas sob o nº6, da factualidade provada, o arguido, com o empurrão que desferiu na assistente, a projectasse contra a parede;
c) que tempos depois e quando a assistente se deslocou à residência do arguido, em Esposende, para ir buscar a sua filha, este lhe dissesse “puta, andas a vender-te”;
d) que o arguido perseguisse a assistente em Barcelos;
e) que o descrito sob o nº13, dos factos provados, ocorresse mais do que uma vez;
f) que o sentimento de vergonha e humilhação experimentado pela demandante S. S. continuasse a perdurar e se agravasse por ser do conhecimento dos seus familiares e amigos, e bem assim por ser injuriada e ameaçada na presença da sua filha;
g) que a demandante se mantivesse a viver num permanente estado de inquietação, nervosismo, ansiedade e depressão, nomeadamente, quando tem de deslocar-se à residência do demandado para ir buscar a sua filha;
h) que a assistente tivesse como único propósito utilizar o presente processo como forma de pressionar o arguido a desistir do processo executivo referido sob o nº21, dos factos provados;
i) que quando resultou evidente para a assistente que o arguido não ia desistir da referida execução, aquela firmasse o propósito de se vingar deste de outra maneira, inventado os factos sob apreciação nos presentes autos;
j) que o auto de denúncia que deu origem a este processo-crime fosse imediatamente subsequente a mais uma tentativa por parte da assistente junto do arguido no sentido de este desistir daquela execução;
k) que durante o tempo em que estiveram casados, a assistente e o arguido fossem um casal feliz, dentro e fora de casa;
l) que a assistente e o arguido, mesmo divorciados, mantivessem uma relação bastante cordial, até ao dia em que este decidiu instaurar o mencionado processo executivo;
m) quaisquer outros factos para além dos descritos em sede de factualidade provada, que com os mesmos estejam em contradição ou que revelem interesse para a decisão a proferir.»

2.3 - Para formar a sua convicção, argumentou assim o tribunal a quo:
«A convicção deste tribunal sobre a matéria de facto provada formou-se com base na avaliação de todos os meios de prova produzidos e/ou analisados em audiência de julgamento (cfr. artigo 355º, do Código de Processo Penal), sempre no confronto com as regras gerais da experiência e da norma do artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Antes de mais, importa sublinhar que quando está em causa a questão da apreciação da prova não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador.
Na verdade, a convicção do tribunal é formada, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “linguagem silenciosa e do comportamento”, coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, porventura, transpareçam em audiência das mesmas declarações e depoimentos (para maiores desenvolvimentos sobre a comunicação interpessoal, vide RICCI BITTI/BRUNA ZANI, A comunicação como processo social, Editorial Estampa, Lisboa, 1997).
O juiz deve ter uma atitude crítica de avaliação da credibilidade do depoimento não sendo uma mera caixa receptora de tudo o que a testemunha disser, sem indicar razão de ciência do seu pretenso saber (vide Acórdão de 17 de Janeiro de 1994, publicado na revista Sub Judice, nº6-91).
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, há-de fundar-se numa valoração racional e crítica de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas de experiência e dos conhecimentos científicos, por modo que se comunique e se imponha aos outros mas que não poderá deixar de ser enformada por uma convicção pessoal.
Obviamente que essa apreciação de prova está sujeita ao dever de fundamentação, desde logo, como decorrência do disposto no artigo 205º, nº1, da Constituição da República Portuguesa, pelo que o princípio da livre apreciação das provas, previsto no artigo 127º, do Código de Processo Penal, não tem carácter arbitrário, nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, estando antes vinculado às regras da experiência e da lógica comum, bem como às provas que não estão subtraídas a esse juízo, sendo imprescindível que este seja motivado.
Cumpre, ainda, salientar, na sequência do que vem de expor-se, que a tarefa do julgador na decisão da matéria de facto está necessariamente condicionada pelos limites do conhecimento humano.
A vivência social e conhecimento da realidade, ainda que consubstanciando sempre uma certa margem de risco relativamente ao apuramento da verdade, mas com o qual se deve conviver, sempre temperam a decisão sem excessivos dramatismos e sem descurar os cuidados que necessariamente se impõem.
Outro sistema, que não este, que tem consagração no já referido princípio da livre apreciação e convicção do julgador, que não admitisse este risco conflituaria com direitos fundamentais ou poderia conduzir a situações de verdadeira denegação de justiça.
Deste modo, a matéria de facto tida como provada pelo tribunal resultou da análise da prova produzida em audiência de julgamento, tendo em conta os parâmetros vindos de referir.
O tribunal atendeu, desde logo, ao teor do assento de nascimento de fls.15-16, onde consta averbado o casamento e o divórcio do arguido N. C. e da assistente S. S..
Este elemento documental foi conjugado com a apreciação crítica das declarações do arguido N. C. e da assistente S. S. e o depoimento das testemunhas F. S. – pai da assistente –, E. S. – mãe da assistente –, A. M. – vizinha do (extinto) casal –, A. T. – prima do arguido –, J. P. – casado com esta testemunha –, J. C. – pai do arguido – e M. F. C. – mãe do arguido.
A convicção do tribunal formou-se em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões, parcialidade, coincidências e mais inverosimilhanças que transpareceram em audiência, dessas mesmas declarações e depoimentos.
Escreve-se no Acórdão da Relação de Lisboa, de 06 de Junho de 2001, que a criminalização das condutas inseridas na chamada “violência doméstica”, e consequente responsabilização penal dos seus agentes, resulta da progressiva consciencialização da sua gravidade individual e social, sendo imperioso prevenir as condutas de quem, a coberto de uma pretensa impunidade resultante da ausência de testemunhas presenciais, inflige ao cônjuge (...) maus tratos físicos ou psíquicos. Assim, neste tipo de criminalidade, as declarações das vítimas merecem uma ponderada valorização, uma vez que maus tratos físicos e psíquicos infligidos ocorrem normalmente dentro do domicílio conjugal, sem testemunhas, a coberto da sensação de impunidade dada pelo espaço fechado e, por isso, preservada da observação alheia, acrescendo a tudo isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada dum casal (sublinhado nosso; acessível em www.dgsi.pt/jtrl, número convencional JTRL00033358, relator ADELINO SALVADO).
As declarações da assistente S. S. assumiram-se essenciais para o apuramento da verdade.
De forma espontânea, segura, linear, clara, contextualizada, coesa e coerente, relatou os factos que a envolveram, de que possui conhecimento directo e pessoal, nomeadamente, os episódios descritos no libelo acusatório, localizando-os cabalmente no tempo e no espaço – dentro do possível do que a memória consentiu.
Descreveu de modo consistente a actuação do arguido no período posterior ao nascimento da filha de ambos e, em particular, nos dias 20 de Novembro e 30 de Dezembro de 2013, bem como aquando das deslocações que fez a Cepães – Esposende, para ir buscar a filha de ambos, vivendo o aludido N. C. já fora da casa da morada da família.
No seu discurso não se denotou qualquer pretensão vingatória ou retaliação em relação ao arguido.
Pelo contrário, a sua postura em julgamento foi de inegável simplicidade e genuinidade, almejando tão-só o esclarecimento do tribunal quanto à factualidade sob discussão nos autos.
Não se logrou descortinar que procurasse ampliar os factos sobre que depôs, nem que pretendesse prejudicar o arguido, como seria até tentador, atenta a natureza humana e considerado o contexto e a gravidade das situações que se apreciam.
Em momento algum procurou denegrir aquele N. C..
A abordagem da assistente não se revelou de maneira alguma hostil, o que contribuiu, decisivamente, para que o tribunal se convencesse da veracidade do seu relato.
Negou frontalmente que o presente processo-crime se tratasse de uma retaliação à instauração, pelo arguido, de uma execução (cfr. fls.153-159) em que é executada, esclarecendo que os presentes autos surgem na sequência de um pedido de alteração das responsabilidades parentais que requereu e em virtude do medo que teve da reacção do arguido, o que, para além da sinceridade que se lhe reconheceu, se mostra congruente com o teor das respectivas declarações, na medida em que, como descreveu, em duas ocasiões em que foi buscar a sua filha à residência do identificado N. C. foi por este ameaçada e insultada, a que acresce as expressões de “posse” que verbalizou nas várias discussões que tiveram após o nascimento da menor, quando afirmava que “quem manda na minha filha sou eu”, tendo inclusivamente proibido que no aniversário dos 3 (três) anos visitasse os avós maternos.
Poder-se-á argumentar – e é legítimo que se faça – que as declarações da assistente devem ser apreciadas com bastante precaução, pois que tem um interesse natural no desfecho do processo, até porque, no caso decidendo, deduziu um pedido de indemnização civil.
Não pode deixar de reconhecer-se que, verificado que seja algum tipo de interesse, directo ou indirecto, no desfecho de qualquer causa – o que se verifica, em geral e pela natureza das coisas, relativamente à pessoa do ofendido, não sendo, porém, apanágio singular dele –, devem as declarações de quem se encontre nessa indicada posição merecer especiais cautelas.
Não significa, no entanto, que isso possa, ou deva, retirar-se, sem mais, ou seja, aprioristicamente, credibilidade aos relatos produzidos.
É que tudo depende, como é evidente, dos termos em que as declarações são prestadas.
E se o forem de forma devidamente circunstanciada e coerente, nenhuma razão de princípio pode determinar a não atendibilidade de qualquer meio de prova previsto na lei, seja ele qual for.
E as declarações do ofendido são, como é sabido, um meio de prova como outro qualquer.
Acresce que, conforme se alude no acórdão da Relação de Lisboa, supra citado, muitas das situações de violência doméstica ocorrem a coberto da casa da morada da família, longe dos olhares indiscretos de vizinhos e amigos.
Nestes casos, o apuramento dos factos depende, sobretudo, das declarações da própria vítima.
Ora, no caso de que nos ocupamos, grande parte das condutas violentas imputadas ao arguido ocorreram no domicílio conjugal.
E quanto a estas, sem prejuízo das naturais reservas que devem merecer as declarações da assistente, a verdade é que foram prestadas de forma devidamente circunstanciada e de modo concordante com a possibilidade de ocorrência de factos da natureza daqueles que descreveu e que se mostram alegados na acusação pública.
Acresce que tais declarações mostram-se sustentadas em outros elementos de prova, em concreto, nos relatos das testemunhas F. S., E. S. e A. M.
O pai da assistente prestou um depoimento que se afigurou escorreito, genuíno e verdadeiro, não obstante o nervosismo que evidenciou, sem que, contudo, tal aspecto fosse interpretado como denotando algum carácter tendencioso e subjectivo.
Esclareceu que “eu vivo desviado deles [do extinto casal] perto de 20 metros”, “é tudo no mesmo quintal”, razão pela qual, atenta a curta distância existente entre as habitações, apercebeu-se de discussões “regulares” (“acho que era quase o dia a dia”) entre o arguido e a assistente, destacando-se, sobretudo, a voz do aludido N. C., sem que, contudo, conseguisse perceber o que era dito.
Como consequência dessas discussões via a filha mudada, muito abatida e sempre triste.
Mais referiu que no princípio de Janeiro de 2014 apercebeu-se que a assistente encontrava-se marcada com um hematoma no braço, tendo a mencionada S. S. confidenciado à testemunha que o arguido lhe atirou com um cinzeiro.
Acrescentou, ainda, ter ouvido o arguido ameaçar de morte a assistente, nomeadamente, que a “ia pôr no cemitério”, deixando-a receosa, de tal modo que, a pedido da filha, e por esta temer o arguido, chegou a acompanha-lha a Cepães – Esposende para ir buscar a neta.
A testemunha E. S. corroborou o marido, afirmando que todos os dias ouvia discussões, sobressaindo a voz do identificado N. C., embora não conseguisse perceber o que era dito.
Também reparou que a filha tinha um braço muito aleijado, sabendo por esta que tinha sido agredida com um cinzeiro.
Fez, ainda, alusão a uma expressão que ouviu do arguido, referindo-se à própria testemunha e à assistente, dizendo que havia de metê-las no cemitério.
Contou que a assistente mencionou-lhe que andava a ser perseguida pelo arguido e que, por temê-lo e ter-lhe medo, pediu ao pai e ao irmão para a acompanharem a Esposende quando ia buscar a sua filha.
Prestou um depoimento que se pautou por sério, coeso e honesto.
A testemunha A. M., por ser vizinha da assistente e do arguido, confirmou o que relataram os pais da aludida S. S., pois que todos os dias ouvia discussões, evidenciando-se a voz do identificado N. C. (“ele discutia muito com ela”).
Centrando-se no dia 30 de Dezembro de 2013 esclareceu que quando foi dar de comer aos animais viu o arguido entrar num anexo e, logo de imediato, ouviu um objecto a partir, vindo mais tarde a verificar que o braço da assistente “tinha manchas negras”.
Acrescentou que esta última chegou a confidenciar-lhe que tinha medo do arguido e que este lhe desferia empurrões.
O relato desta testemunha, a par das declarações da assistente, assumiu-se fulcral, evidenciando um discurso cuja genuinidade não sofre qualquer reparo, tendo logrado convencer o tribunal da veracidade das afirmações que produziu, não lhe sendo possível apontar contradições, pelo menos flagrantes, mesmo quando sujeita a interpelações que a poderiam induzir nesse sentido.
Em face do exposto, da mobilização probatória supra enunciada resultou demonstrada a factualidade sob discussão nestes autos.
E se relativamente às testemunhas F. S. e E. S. poder-se-ia aventar terem interesse em defender a posição da filha, o certo é que não foi o que transpareceu na audiência de julgamento.
Acresce que o que referiram não assumiu um carácter isolado, pelo contrário, já que mostra-se inteiramente consensual com o que, a propósito, esclareceu a testemunha A. M., cuja imparcialidade jamais foi posta em causa.
Por sua vez, as declarações do arguido N. C., negando frontalmente os factos que lhe são imputados, foram desconsideradas, em face da demais prova produzida.
Os depoimentos prestados pelas testemunhas A. T., J. P., J. C. e F. C. em nada contrariaram a factualidade sob apreciação nestes autos, na medida em que, tal como referiu a primeira e se estende às demais: “eu não vivo com eles… nem sequer vizinha sou”.
Ora, como se expôs supra, a grande maioria dos acontecimentos sob discussão nos presentes autos ocorreram, precisamente, a coberto do resguardo da casa da morada da família.
Por outro lado, a violência, seja física, seja verbal, que ocorra entre um casal não será objecto de comentário dos envolvidos junto do seu círculo de amigos, pelo contrário, o usual é ocultar o sucedido, manter em segredo, e caso tenham sido deixado marcas, imputá-las a um qualquer outro acontecimento banal, que não a própria agressão.
Daí que não se estranhe que os mencionados A. T., J. P., J. C. e F. C. tenham descrito o relacionamento entre o arguido e a assistente como “normal” (segundo este J. P.), “era um casal como qualquer um… parecia um casal feliz” (segundo aquela A. T.).
No que respeita aos factos atinentes ao foro volitivo do arguido, insusceptível de percepção sensorial, importa salientar que, conforme ensina GERMANO MARQUES DA SILVA, na valoração da prova intervêm deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios, sendo certo que se as inferências não dependem substancialmente da imediação, terão de basear-se na correcção do raciocínio, o qual se alicerçará nas regras da lógica, princípios da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (vide Curso de Processo Penal, Volume II, p.127).
A este propósito, a convicção do tribunal formou-se em virtude da conjugação dos comportamentos desenvolvidos pelo arguido N. C. com as consequências que, segundo é adequado e esperado – atentas as regras da experiência –, dela decorrem, podendo concluir-se, com segurança, que agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito, concretizado, de vexar, molestar fisicamente e amedrontar a assistente, não desconhecendo o carácter reprovável da sua conduta.
Quanto às repercussões que os comportamentos do arguido tiveram na pessoa da assistente, o tribunal considerou as declarações que esta prestou e conjugou-as com o que esclareceram as testemunhas F. S. – que via a filha mudada, muito abatida, sempre triste, com receio do arguido –, E. S. – que referiu que a assistente “tinha vergonha”, sofreu muito, andava depressiva e necessitou de ajuda médica – e A. M. – que afirmou que a aludida S. S. tinha vergonha, “estava muito humilhada”, “triste” e que deixou de ser a pessoa “airosa” que antes era.
Apelou-se, também, ao que ditam as regras gerais da experiência corrente e da normalidade do acontecer, que corroboram o que foi referido pela assistente e pelas testemunhas supra identificadas.
Quanto às condições pessoais, familiares, profissionais, económicas e sociais do arguido, valorou-se o relatório social junto a fls.184-188, expurgando-o dos aspectos nele mencionados que expressam a posição do arguido e da assistente face à factualidade sob apreciação nestes autos.
A convicção do tribunal, quanto à ausência de antecedentes criminais do arguido, alicerçou-se no respectivo Certificado de Registo Criminal, junto a fls.134.
*
A não demonstração dos factos não provados resultou, sempre sem prejuízo do exposto em sede de motivação dos factos provados, de, sobre os mesmos, não se ter logrado fazer prova (documental e/ou testemunhal), tendente a permitir concluir pela sua verificação, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º, do Código de Processo Penal.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - Da Impugnação da matéria de facto
3.1.1 - Em sede de recurso sobre a matéria de facto, o recorrente insurge-se contra a decisão da primeira instância ao dar como provada a factualidade vertida nos pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15, defendendo que sobre ela se impõe uma apreciação diversa, devendo ser considerada como não provada.
Porém, fá-lo em termos que revelam alguma confusão sobre as duas formas perfeitamente distintas que existem de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto: por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, al.s a), b) e c) - a chamada revista alargada - e, por outro, a impugnação (ampla) da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3, al.s a), b) e c), e 4, ambos do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência.
No primeiro caso, o recurso pode ter como fundamento qualquer dos seguintes vícios, previstos nas várias alíneas do n.º 2 do art. 410º: - a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a); - a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão (al. b); - ou o erro notório na apreciação da prova (al. c).
Esses vícios são de conhecimento oficioso - Conforme jurisprudência fixada pelo acórdão n.º 7/95, de 19 de outubro, in Diário da República, I Série-A, de 28-12-1995. e, constituindo um defeito estrutural da decisão, têm de resultar do respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento - Vd. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pág. 77 e ss... Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, quanto a eles, esta terá que ser autossuficiente, não se podendo recorrer à prova documentada.
Aqui, no âmbito da revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).
Alega o recorrente, na conclusão 2ª, que o que resultou das declarações da assistente e do depoimento das testemunhas de acusação não é suficiente para dar como provada a factualidade que impugna, imputando por conseguinte à sentença recorrida o vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. a), acrescentando na conclusão 18ª que o tribunal a quo errou na apreciação da prova, julgando incorretamente os factos dados como provados, pelo que impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, ao abrigo do art. 410º, n.º 2, al.s a) e c).
O primeiro desses vícios - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na citada al. a) - ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito ou quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão. Este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, não sindicável em reexame restrito.
O conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem: absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. E isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, dada a sua importância para a decisão, por exemplo, para a escolha ou determinação da pena.
Por seu lado, o erro notório na apreciação da prova, vício previsto na aludida al. c) do n.º 2 do art. 410º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. E verifica-se igualmente quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis.
Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente - Vd. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 341..
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido - Vd. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74. . É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova.
Neste aspeto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410º, n.º 2, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
3.1.2 - No caso vertente, ao invocar os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto e de erro notório na apreciação da prova, o recorrente não se atém ao texto da decisão recorrida, para demonstrar que da mera leitura da mesma resulta que o Exmo. juiz a quo incorreu em erro ao dar como provados determinados factos, como se impunha que fizesse, o que afasta liminarmente a existência de tais vícios.
Pelo contrário, recorre às declarações da assistente e aos depoimentos das testemunhas de acusação, prestados em audiência de julgamento, remetendo inclusivamente para determinados excertos dos mesmos, para concluir que, em face do seu teor, não poderia o tribunal recorrido ter dado como provados os factos impugnados, pelo que valorou erradamente a prova, visando, pois, a reapreciação desta pelo tribunal de recurso.
Ora, tal erro, a existir, traduzir-se-á antes num erro de julgamento, objeto da impugnação alargada de decisão de facto ao abrigo do art. 412º, n.ºs 3 e 4, e não da impugnação restrita ao abrigo do art. 410º, n.º 2.
Aquilo que o recorrente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da prova, sem apontar à decisão recorrida qualquer insuficiência da matéria de facto nem nenhum erro notório na apreciação da prova, no sentido em que estes vícios devem ser entendidos, ou seja, como resultando do próprio texto da decisão recorrida.
Com efeito, o recorrente invoca os apontados vícios como corolário da sua apreciação da prova produzida, chamando à colação elementos externos ao texto da decisão recorrida, confundindo, pois, vícios da decisão judicial com o erro de julgamento.
De todo o modo, uma vez que esses vícios são de conhecimento oficioso, sempre diremos que, do texto da sentença recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação de qualquer deles, mormente o erro notório na apreciação da prova e a insuficiência para a decisão da matéria de facto invocados pela recorrente.
Recorde-se que, contrariamente ao que o recorrente parece supor, o apontado vício da insuficiência não é uma insuficiência da prova produzida para dar como provada a matéria de facto em causa, mas sim a insuficiência dessa matéria de facto para a decisão de direito.
Com efeito, a insuficiência para a decisão (de direito) da matéria de facto provada não se confunde com a insuficiência da prova para os factos que erradamente foram dados como provados. Na primeira critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo. Consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente. Por seu lado, na insuficiência da prova para os factos provados censura-se a errada apreciação da mesma levada a cabo pelo tribunal: teriam sido dados como provados factos sem prova para tal - Cf. acórdão do TRL de 18-07-2013 (proc. 1/05.2JFLSB.L1-3), disponível em www.dgsi.pt..
Da leitura da sentença não resulta a invocada insuficiência da matéria de facto dada como assente, uma vez que o tribunal tomou posição sobre todos os factos da acusação e da contestação, não decorrendo também do texto da decisão recorrida que tenham surgido factos relevantes para a discussão da causa (para além daqueles que constam da matéria de facto) sobre os quais devesse recair um juízo de provado ou não provado, sendo os factos dados como assentes bastantes para se poder decidir a questão da culpabilidade do arguido e da determinação na pena a aplicar-lhe.
Por outro lado, não se deteta ostensivamente qualquer equívoco resultante de factos do conhecimento geral ou do funcionamento das leis da lógica, da física, da mecânica ou de conhecimentos científicos criminológicos e vitimológicos.
Improcede, portanto, a invocação dos referidos vícios.
3.1.3 - Como já referimos e claramente resulta das conclusões 3ª a 16ª, o recorrente estrutura o recurso sobre a matéria de facto com base na referida forma de impugnação ampla, traduzida na invocação de erro no julgamento, ao abrigo do art. 412º, n.ºs 3 e 4.
Tal erro de julgamento resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. O erro de julgamento pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi.
Nesta situação, o recurso visa a reapreciação da prova gravada em primeira instância, impondo-se a sua audição pelo tribunal de recurso. Os poderes de cognição deste último não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º.
Todavia, conforme jurisprudência constante - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt., esse recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição de gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, antes constituindo um remédio para obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo sobre eles que foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso como remédio e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o tríplice ónus de especificação previsto nas alíneas do n.º 3 do citado art. 412º, ou seja, especificar:
a) - Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
b) - As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.
c) - As provas que devem ser renovadas (nos termos do art. 430º, n.º 1, apenas quando se verificarem os vícios da sentença e existam razões para crer que a renovação permitirá evitar o reenvio).
A referida especificação dos concretos pontos de facto traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, só se satisfazendo com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas provas impõem decisão diversa da recorrida - Cf. o acórdão do TRC proferido no processo nº 72/07.7JACBR.C1. .
De acordo com o n.º 4 do art. 412º, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas al.s b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado em ata, nos termos do n.º 2 do art. 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, cabendo ao tribunal da relação proceder à audição e visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa (art. 412º, n.º 6).
Ao recorrente é, assim, exigível que quando efetue a indicação concreta da sua divergência probatória, fazendo-o para os suportes onde se encontra gravada a prova, remeta para os concretos locais da gravação que suportam a sua tese - Cf. o acórdão do TRC de 24-02-2010 (proc. 138/06.0GBSTR.C1), disponível em http://www.dgsi.pt..
Todas estas especificações deverão constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3).
3.1.4 - Posto isto, volvamos ao caso concreto, tendo presente o sentido e o alcance da impugnação ampla da matéria de facto, bem como os correspondentes ónus que recaem sobre o recorrente.
Este, cumprindo o ónus de especificação previsto na al. a) do n.º 3 do art. 412º, afirma discordar da apreciação da prova efetuada pelo tribunal a quo relativamente aos factos vertidos nos pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 da matéria de facto provada, pretendendo que seja dado como não provado, em suma, que manteve discussões quase diárias com a assistente, em cujo âmbito a injuriou, bem como por diversas vezes lhe desferiu empurrões e, numa ocasião, lhe arremessou um cinzeiro, atingindo-a no cotovelo, e ainda, por duas vezes a ameaçou de morte e em quatro situações distintas a perseguiu.
Para tanto, o recorrente invoca não terem sido devidamente valoradas as declarações da assistente e os depoimentos das testemunhas de acusação F. S. e E. S., pais daquela, e A. M., vizinha do casal, indicando nas conclusões, por referência ao consignado na ata, a respetiva passagem da gravação em que se baseia, excertos esses que inclusivamente transcreve no corpo da motivação, donde resulta, em seu entender, a imposição de uma decisão diversa da recorrida, mostrando-se, pois, igualmente cumprido o ónus de especificação previsto na al. b) do n.º 2 do art. 412º.
Vejamos se lhe assiste razão:
Da leitura das conclusões e da motivação do recurso constata-se que o recorrente, em relação às declarações da assistente, alega o seguinte: - que esta situa as discussões com ele num contexto de desavenças familiares relacionadas com a guarda da filha menor de ambos, afirmando que tudo se deve a “rivalidades entre famílias”; - que a mesma admite que, numa dada discussão, ela própria tentou agredi-lo com um prato, que desvaloriza a questão dos empurrões, esclarecendo que aconteciam nas tentativas do arguido retirar-lhe a filha dos braços, nunca se referindo a dores físicas; - que, relativamente às perseguições, o que se apurou foi que em duas situações o arguido apareceu numa pizaria e numa pastelaria onde a assistente se encontrava, para tomar café com um dos colegas dela, o que não pode ser considerado perseguição; - e que a mesma admite que o que despoletou o processo, mais de dois anos após o divórcio, não foi nenhum comportamento por parte do arguido, mas sim o receio do que este poderia fazer quando se visse confrontado com a alteração da regulação do poder paternal que ela queria intentar.
Relativamente aos depoimentos das testemunhas F. S. e E. S., pais da assistente, alega o recorrente que ambos confirmam a reciprocidade das discussões, afirmando que eles discutiam e ralhavam um com o outro.
Quanto ao depoimento da testemunha A. M., alega que está repleto de contradições, acabando por confessar que não viu o arguido a arremessar o que quer que fosse à assistente, contrariamente ao que havia afirmado em inquérito.
Porém, em relação a tais declarações, refira-se que as razões da discordância do recorrente relativamente à forma como o tribunal a quo decidiu a factualidade em apreço prendem-se com a circunstância de essa convicção assentar em elementos probatórios que, no seu entender, não permitem dar como provados tais factos e já não com qualquer discrepância entre o que foi dito e o que foi considerado provado.
Com efeito, analisando a motivação e as conclusões, constata-se que o recorrente sustenta que o tribunal a quo valorou indevidamente essas declarações, sem alegar que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo das mesmas não corresponde ou contraria o que, na realidade, disseram os declarantes. E efetivamente inexiste tal discrepância, porquanto, após audição do registo da prova produzida oralmente, constata-se que nenhuma dessas pessoas prestou declarações contrárias à forma como o tribunal a quo demonstrou tê-las percebido, forma essa que verteu cristalinamente na motivação da decisão de facto.
O recorrente limita-se a fazer uma leitura, que é sua, de partes selecionadas dos referidos depoimentos e declarações para, a partir de tais elementos, substituir a sua própria convicção à do tribunal a quo, concluindo pela ausência de prova suficiente quanto aos factos impugnados, ou seja, atacando a decisão factual pela via da credibilidade dada a esses meios de prova, sem apontar um verdadeiro erro de julgamento, o que se mostra inadequado em termos de impugnação da matéria de facto.
Como refere o Tribunal Constitucional - Nomeadamente no acórdão n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004., “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.
No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente ao referir que “quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum” - Cf. acórdãos do TRC de 06-03-2002, Coletânea de Jurisprudência, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44, e do TRP de 04-02-2004 (processo n.º 0211860), disponível em http://www.dgsi.pt..
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo, sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência, não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Com efeito, ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Tal não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária da prova, impondo-lhe a lei que extraia delas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido de responsabilidade e bom senso.
Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
Porém, nessa tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a primeira instância e a segunda, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando esta limitado à prova documental e ao registo de declarações e depoimentos.
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não-verbal. Se a primeira ainda é suscetível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição das gravações (como foi feito), já se fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar a comunicação verbal.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como “a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão” - Vd. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, pág. 232., confere ao julgador em primeira instância certos meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe.
É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reações humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de fatores que só são apreensíveis mediante o contacto direto com os depoentes na audiência: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc.
As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de primeira instância, com base na imediação e na oralidade, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Assim, embora a reapreciação da matéria de facto esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à exceção da prova vinculada), no processo de formação da sua convicção, deverá o tribunal da relação ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspetos de relevância indiscutível na valoração dos depoimentos pessoais, que melhor são percetíveis pela primeira instância.
A ausência de imediação determina que o tribunal superior, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (cf. art. 412º, n.º 3, al. b)).
Significa isto que se a decisão factual da primeira instância se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível, optando por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma revisão da convicção alcançada pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção era possível, sendo imperioso demonstrar que as provas indicadas impõem uma outra convicção. É necessária a demonstração que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que se demonstre não só a possível incorreção decisória, mas a absoluta imperatividade de uma diferente convicção.
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe, sem esquecer as apontadas limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, não devendo ser modificada quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ou seja, o tribunal da relação só pode e deve determinar uma alteração da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão - Cf. o acórdãos do STJ de 25-03-2010 (processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt..
Em suma, a reapreciação da decisão da primeira instância quanto à matéria de facto, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessários, face aos referidos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
Conforme já referimos supra, o recurso da matéria de facto não tem por finalidade, nem pode ser confundido, com a realização de um segundo julgamento, fundado numa nova convicção, mas apenas apreciar a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido em relação aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorretamente julgados, com base na avaliação das provas que considera imporem uma decisão diversa.
3.1.5 - No caso vertente, como resulta da leitura da motivação da decisão de facto, o Exmo. juiz a quo norteou-se pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, procedendo à avaliação global da prova produzida, numa perspetiva crítica, que registou de uma forma exemplar que aqui se impõe assinalar e louvar.
Em relação aos concretos pontos de facto impugnados, essa convicção assentou essencialmente nas declarações da assistente, como não podia deixar de ser, atenta a natureza dos factos em apreço, a maior parte deles ocorridos no interior do domicílio conjugal, sem testemunhas, esclarecendo que a mesma relatou os factos de forma espontânea, segura, linear, clara, contextualizada, coesa, coerente e consistente, descrevendo os vários episódios e localizando-os no tempo e no espaço dentro do possível permitido pela memória.
Consciente das cautelas com que devem valoradas as declarações da assistente, dado o seu interesse natural no desfecho do processo, o Exmo. Juiz a quo revelou um especial cuidado e atenção à forma como foram prestadas, tentando perscrutar uma qualquer pretensão de vingança ou retaliação da mesma para com o arguido, mormente relacionada com a pendência da ação executiva que este lhe moveu.
Nessa avaliação, e para além das já apontadas características da forma como a assistente depôs, o julgador concluiu em sentido negativo, atenta a inegável simplicidade e genuinidade reveladas pela mesma, a qual visou tão só esclarecer o tribunal quanto à factualidade em apreço, sem procurar ampliar os factos a que depôs nem prejudicar ou denegrir o arguido, como até poderia ser tentada a fazer, o que tudo contribuiu para que o tribunal se convencesse da veracidade do seu relato.
Isso mesmo pôde ser constatado por este tribunal de recurso, ao proceder-se à audição das declarações da assistente, não se tendo detetado quaisquer elementos que nos levem a divergir das considerações tecidas pelo tribunal a quo sobre a respetiva credibilidade.
A própria justificação por ela apresentada para a instauração do presente processo, argumento que o recorrente invoca para lhe retirar credibilidade, nada tem de estranho. Com efeito, centrando-se a origem dos desentendimentos entre ambos na relação possessiva do arguido em relação à filha menor do casal, aliás patente na expressão dada como provada no ponto 7, que o próprio admite ter proferido, bem como no facto de dizer que quem mandava na filha era ele e de ter impedido que esta visse os avós maternos no dia do seu terceiro aniversário, apresenta-se como natural e congruente que, pretendendo requerer uma alteração da regulação das responsabilidades parentais, no sentido de passar mais tempo com a filha, a assistente receasse pela reação do arguido, que anteriormente a tinha ameaçado de morte, pelo que decidiu prevenir-se. Trata-se de um receio fundado e humanamente compreensível para a apresentação da queixa que deu origem aos presentes autos, conforme foi por ela explicitado (a partir do minuto 14 das suas declarações).
Por outro lado, não se vê em que medida pode servir para descredibilizar as declarações da assistente, como pretende o recorrente, antes reforçando a sua isenção, o facto de a mesma, a partir do minuto 17 das suas declarações, aludir a “empurrõezitos” e admitir que, numa ocasião, atirou com um prato ao chão só para não o atirar ao arguido (o que é diferente de o ter tentado agredir dessa forma, como ele alega). De todo o modo, noutras passagens, a assistente já emprega a palavra empurrões e não o respetivo diminutivo, esclarecendo que, uma vez, o arguido a empurrou pela porta fora, depois de lhe ter tirado a filha dos braços, o que não é de modo algum consentâneo com uma pretensa desvalorização dos empurrões. O que é natural é que umas vezes estes fossem mais intensos do que noutras, nada havendo a censurar ao facto de ter sido dado como provado que, por diversas vezes, o arguido desferiu empurrões à assistente, causando-lhe, pelo menos, dores físicas, ainda que ela não se tenha referido expressamente a tais dores, por serem inerente ao facto de ser empurrada, particularmente com a intensidade que ocorreu no episódio supra mencionado.
Por seu turno, contrariamente ao que sustenta o recorrente, não foram apenas duas as vezes em que ele, já depois do divórcio, apareceu no restaurante em que a assistente se encontrava a almoçar, pois que a mesma aludiu a um número superior (a partir do minuto 11). Acresce que, encontrando-se a assistente, em quatro ocasiões e já depois do divórcio, a almoçar com colegas, o facto de o arguido aí aparecer, alegando que tinha combinado tomar café com um deles, não pode deixar de ser encarado como forma de perseguição (conforme foi dado como provado) e de perturbação da assistente, como esta convincentemente explicitou (a partir do minuto 12).
No entanto, para além da credibilidade das declarações da assistente, o tribunal recorrido encontrou sustentáculo para as mesmas noutros elementos probatórios, concretamente os depoimentos das testemunhas F. S., E. S. e A. M., respetivamente pais daquela e vizinha do casal.
Com efeito, os primeiros, em depoimentos que pareceram escorreitos, genuínos, verdadeiros, sérios, coesos e honestos, confirmaram a existência de discussões frequentes, quase diárias, entre a filha e o genro, em que se destacava a voz deste, das quais se apercebiam por viveram a uma distância de 20 metros, ainda que não conseguissem perceber o que era dito, segmento este que contribui para reforçar a sua credibilidade, pela isenção demonstrada. No entanto, já confirmaram a ameaça de morte, por terem ouvido o arguido dizer à assistente que a ia por no cemitério, mais aludindo às marcas que a mesma apresentava na sequência do episódio do cinzeiro, que esta lhes confidenciou, bem como ao receio manifestado pela mesma relativamente ao arguido, a ponto de pedir ao pai e ao irmão para a acompanharem quando ia buscar a filha.
Contrariamente ao que parece faze crer o recorrente, estes depoimentos não se ficaram por aludir a meras discussões recíprocas entre o casal, antes revelando as testemunhas conhecimento direto de factos fortemente corroboradores da versão da assistente, conforme o tribunal a quo bem considerou e explicitou na motivação da decisão de facto.
Por seu lado, a testemunha A. M., na qualidade de vizinha, confirmou que todos os dias ouvia discussões entre o casal, evidenciando-se a voz do arguido, e que, no episódio do dia 30 de dezembro de 2013, ouviu um objeto a partir, vindo mais tarde a constatar que nessa sequência o braço da assistente tinha manchas negras e que a mesma lhe chegou a confidenciar que tinha medo do arguido e que este lhe desferia empurrões.
Trata-se de um depoimento que o tribunal a quo considerou fulcral, atenta a genuinidade do discurso e a ausência de contradições, mesmo quando a testemunha foi sujeita a interpelações que a poderiam induzir nesse sentido.
Refira-se que também em relação aos três referidos depoimentos testemunhais não detetámos na audição dos mesmos quaisquer elementos que nos levem a divergir das considerações tecidas pelo tribunal a quo sobre a respetiva credibilidade, sendo, pois, de subscrever esse juízo.
Note-se que a alegada contradição apontada pelo recorrente entre o depoimento em audiência da testemunha A. M. e as declarações prestadas pela mesma em sede de inquérito sobre o arremesso do cinzeiro se apresenta como irrelevante, na medida em que não consta da ata da audiência a leitura de tais declarações ao abrigo do disposto no art. 356º, pelo que não pode o respetivo teor ser invocado, mormente para o confrontar com o depoimento prestado em audiência.
Em face do que fica exposto, conclui-se que a convicção do tribunal a quo baseou-se, pois, essencialmente na prova por declarações, relevando designadamente a razão de ciência e a credibilidade das declarações e dos depoimentos que a mereceram, tendo em conta a forma como tal prova foi produzida, mormente a isenção, imparcialidade e sinceridade reveladas, as suas certezas, hesitações e contradições, a sua linguagem, os sinais e reações comportamentais e a coerência do seu raciocínio.
Em relação às testemunhas arroladas pelo arguido, não deixou o tribunal recorrido de, com toda a pertinência e assertividade, explicitar por que razão entendeu que não contrariaram a factualidade em apreço nos autos, designadamente por não viverem perto do casal e por ser perfeitamente natural a afirmação de que este tinha um relacionamento normal, como qualquer casal, e que parecia feliz, uma vez que a violência, física ou verbal, ocorrida entre um casal não será objeto de comentários dos envolvidos junto do respetivo círculo de amigos, sendo até usual ocultar o sucedido, manter em segredo e, caso tenham sido deixadas marcas, imputá-las a um qualquer acontecimento banal, que não a agressão.
Conclui-se, assim, que a decisão do tribunal recorrido se encontra devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional subjacente à convicção do julgador.
Através da motivação da decisão da matéria de facto fica-se ciente do percurso efetuado pelo tribunal de primeira instância, onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, permitem, espelhando aquela decisão o confronto crítico das versões dos factos, explicitando o resultado desse confronto e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa em termos perfeitamente percetíveis e assimiláveis, não tendo este tribunal de recurso, depois de proceder à audição integral da prova produzida em audiência encontrado motivos suficientes para divergir dessa motivação.
Assim, a prova produzida em audiência permite claramente concluir pela verificação dos factos ora impugnados, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, não se impondo decisão diversa da recorrida, nada havendo a alterar.
Improcede, por conseguinte, nesta parte o recurso interposto pelo arguido, mantendo-se os factos provados sob os pontos 3, 4, 5, 6, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 nos termos que constam da sentença recorrida.

3.2 – Do preenchimento dos elementos típicos do crime de violência doméstica
Nas conclusões 17ª e 19ª alega o recorrente que, perante a modificação da decisão proferida sobre a matéria de facto por si propugnada, não se mostram preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica pelo qual foi condenado, tendo sido violado o disposto no art. 152º, n.º 1, al. a), do Código Penal, impondo-se absolvê-lo.
3.2.1 - Porém, tendo-se mantido inalterada a matéria de facto provada fixada na primeira instância, fruto da improcedência da impugnação deduzida pelo recorrente, dúvidas não existem de que a conduta deste para com a assistente, que resultou apurada, preenche objetiva e subjetivamente o crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nºs. 1, al. a), e 2, do Código Penal, tal com se considerou na sentença recorrida.
Nos termos desse preceito, comete o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdades e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge.
Como refere Nuno Brandão - In A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica, Julgar, 12 (Especial), pág. 9-24., o crime de violência doméstica assume “não a natureza de crime de dano mas de crime de perigo, nomeadamente de crime de perigo abstrato. É, com efeito, o perigo para a saúde do objeto de ação alvo da conduta agressora que constitui motivo de criminalização, pretendendo-se deste modo oferecer uma tutela antecipada ao bem jurídico em apreço, própria dos crimes de perigo abstrato (…) Sendo dado o devido relevo a este último aspeto justificativo da criminalização da violência doméstica, poderão superar-se eventuais objeções opostas a esta conceção fundadas na dificuldade em explicar por que razão a violência doméstica é punida mais severamente que a ofensa à integridade física se ambas protegem o mesmo bem jurídico e esta constitui crime de dano e aquela mero crime de perigo abstrato, com a concomitante pos­sibilidade de por esta razão a ofensa à integridade física ter prevalência sobre a aplicação da violência doméstica em caso de concurso. Reservas que todavia se mostrarão infundadas se os maus tratos forem encarados na perspetiva da ameaça de prejuízo sério e frequentemente irreversível que os mesmos em regra comportam para a paz e o bem-estar espirituais da vítima. Acresce que, aqui sim e para este efeito, deve entrar em cena a desconsideração pela dignidade pessoal da vítima imanente ao comportamento violento próprio dos maus tratos. Esse desprezo do agressor pela sua dignidade revela um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto. Tudo o que empresta à violência doméstica um grau de anti juridicidade que transcende o da mera ofensa à integridade física e assim justifica a sua punição mais severa e a sua prevalência em sede de concurso”.
Designa-se, pois, por violência doméstica todo o tipo de agressões que existem no seio de uma relação familiar ou de união de facto ou somente de namoro, podendo tomar a forma de violência psicológica e mental (maus tratos psíquicos), que inclui agressões verbais, ameaças, humilhações, provocações, perseguições, clausura, privação de recurso físicos e financeiros, dificultação de contactos com familiares ou amigos, ou de violência física (maus tratos físicos), que pode ir das violações, empurrões, beliscões, pontapés, murros até espancamentos, ou ainda de privações da liberdade ou ofensas sexuais. O bem jurídico por ele protegido é a saúde da vítima nas suas vertentes física, psíquica e mental.
Com efeito, a conduta típica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.
O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. Está em causa a dignidade humana da vítima, a sua saúde física e psíquica, a sua liberdade de determinação, que são brutalmente ofendidas, não apenas através de ofensas, ameaças ou injúrias, mas essencialmente através de um clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança, infelicidade, fragilidade e humilhação - Vd. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 132, e Conde Fernandes, in Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, n.º 8, pág. 305..
O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é suscetível de ser classificada como “maus tratos”.
Conforme já vinha sendo salientado antes da referida revisão do Código Penal pela Lei n.º 59/2007, de 04/09, o preenchimento deste tipo legal de crime não se basta, em princípio, com uma ação isolada, embora também não se exija a habitualidade da conduta. Na verdade, o crime realiza-se normalmente com a reiteração do comportamento de maus tratos físicos ou psíquicos, em determinado período de tempo. Caso não se verifique essa reiteração, recair-se-á, pelo menos, no domínio das ofensas à integridade física. Todavia, a verificação de tal crime não exige uma conduta plúrima e repetitiva ou a reiteração da conduta agressiva, já que a punição sempre ocorrerá quando a gravidade das agressões se assumir como suficiente para poder ser enquadrada na figura de maus tratos físicos ou psíquicos, enquanto violação da pessoa individual e da sua dignidade humana, com afetação da sua saúde (física ou psíquica). Aliás, atualmente o texto da lei é expresso a esse ponto, ao incluir o segmento alternativo “de modo reiterado ou não”.
3.2.2 - No caso vertente, resultou provado que durante um período de tempo superior a três anos, com uma frequência quase diária, no âmbito de discussões, o arguido dirigiu à assistente as seguintes expressões: "vaca", “sua puta”, “tu não mandas, quem manda na minha filha sou eu”, “és uma puta”, “não me dás em casa porque já deste aos de fora”, querendo com esta última expressão dizer – e como tal era entendido por aquela – que a mesma tinha relações sexuais com outros homens.
Também no âmbito dessas discussões, por diversas vezes, o arguido desferiu-lhe empurrões, causando-lhe dores físicas, concretamente no dia do 3º aniversário da filha do casal, por não querer que esta visitasse os avós maternos, tendo dito à assistente: “queres ir vai tu e fica lá, mas a minha filha não vai”.
Por outro lado, numa ocasião, irado por a assistente lhe ter dito que não aguentava viver mais assim, o arguido arremessou-lhe um cinzeiro, atingindo-a no cotovelo direito e causando-lhe dores físicas.
Acresce que também ameaçou de morte a assistente, dizendo-lhe por diversas vezes numa semana “se me tiras a minha filha meto-te no cemitério” e, noutra ocasião, quando ela se deslocou para ir buscar a filha “eu mato-te”.
Para além disso, já depois do divórcio, em pelo menos quatro situações distintas, o arguido perseguiu a assistente, aparecendo nos locais onde esta se encontrava.
Por fim, provou-se que em determinado dia lhe disse “és uma caloteira, vives no que é meu, andas a gozar com o suor dos outros”.
Sustenta o recorrente que esta última expressão, conjugada com o facto de ele ter instaurado conta a assistente um processo executivo por via do qual peticiona o pagamento da quantia de € 75.104,87, devida a título de tornas relativas à partilha dos bens do casal, não tem a virtualidade de constituir ofensa nos termos previstos para o crime de violência doméstica.
Dando-se de barato que assim possa ser, pelo menos numa consideração isolada dessa conduta, o certo é que os restantes comportamentos do arguido se traduzem numa reiteração de maus tratos físicos (empurrões e arremesso do cinzeiro) e psíquicos (injúrias, ameaças de morte, perseguições e privação do contacto da filha menor do casal com os avós maternos), com uma gravidade tal para poderem ser enquadrados no crime de violência doméstica, na medida em que são claramente atentatórios da dignidade humana e violadores da pessoa da assistente, com afetação da sua saúde física e psíquica.
Claramente não tem razão o recorrente quando afirma que a expressão por ele dirigida à assistente quando esta, no dia do terceiro aniversário da filha do casal, a quis levar a casa dos avós maternos (“queres ir vai tu e fica lá, mas a minha filha não vai”), não integra o conceito de maus tratos, tratando-se antes de um mero desabafo, proferido no contexto de desavenças familiares com os pais da assistente.
Na verdade, tal comportamento, dirigido à privação de contactos da filha menor com os avós maternos, é claramente suscetível de perturbar a assistente, causando-lhe sofrimento moral.
De igual modo, não é pelo facto de as expressões dadas como provadas terem sido proferidas pelo arguido em contexto de desentendimentos e discussões recíprocas com a assistente, como, aliás, é usual suceder, que as mesmas deixam de revelar crueldade, desprezo e vontade de a humilhar. Basta atentar na carga pejorativa e ameaçadora de tais expressões, bem como na frequência com que foram ditas.
Em suma, apuraram-se atos isolados e reiterados que, perspetivados em conjunto, se traduzem num comportamento global do arguido que afeta a dignidade e a integridade física e psíquica da assistente, sua mulher e posteriormente ex-mulher, com efeitos destrutivos na sua vivência pessoal, familiar e social, termos em que a atuação do recorrente preenche na sua plenitude o conceito de maus tratos físicos e psíquicos consagrado no artigo 152º, nº 1, do Código Penal.
O enquadramento jurídico-penal dos factos feito na sentença recorrida revela-se, assim, irrepreensível, motivo qual também nesta parte improcede o recurso.

3.3 - Da falta de fundamentação da imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e da dispensa do consentimento do arguido, como meio de fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos com a vítima
Nas conclusões 20ª e 21ª, invoca o recorrente que a sentença recorrida não contém qualquer referência sobre a imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância da pena acessória de proibição de contactos com a vítima que foi aplicada, bem como que não houve diligências para a obtenção do consentimento do arguido e das pessoas diretamente afetadas com esse controlo nem se fundamentou a dispensa do mesmo, pelo que a decisão é nula por falta de fundamentação.
Nos termos do n.º 1 do art. 205º da Constituição, as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
Concretizando, o Código de Processo Penal, no n.º 5 do art. 97º, impõe que os atos decisórios dos juízes sejam sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
Especificamente quanto à sentença, o art. 374º estabelece os respetivos requisitos, entre os quais a fundamentação, capítulo que se segue ao relatório, a qual, nos termos do nº 2 do mesmo preceito e no que agora interessa, consiste na exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de direito que fundamentam a decisão.
No caso de decisão condenatória, acrescenta o nº 1 do art. 375º que a sentença "especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada".
Por sua vez, os arts. 379º e 380º estabelecem as consequências da inobservância daqueles requisitos: a nulidade ou a mera irregularidade da sentença, consoante os casos. De acordo com a al. a) do n.º 2 daquele primeiro preceito, é nula a sentença que não contiver, entre outras, as menções referidas no nº 2 do art. 374º (onde naturalmente se inclui a especificação do nº 1 do art. 375º).
Porém, a propósito da exigência de fundamentação em análise, a doutrina vai no sentido de que só a sua falta absoluta é que conduz à nulidade da decisão. A fundamentação insuficiente, deficiente ou não convincente não constitui nulidade da decisão, embora justifique a sua impugnação mediante recurso - Vd. Alberto do Reis, Código de Processo Civil, anotado, vol. 5, pág. 140; Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III (1972), pág. 246; Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, pág. 669 e Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 221..
Também a jurisprudência se orienta no mesmo sentido, entendendo que só a falta absoluta de fundamentação, "por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira" determina a nulidade do despacho/sentença. A "insuficiência ou a mediocridade da motivação [que] é espécie diferente [da falta absoluta de motivação] afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade" - Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 26-03-2014 (processo n.º 15/10.0JAGRD.E2.S1), disponível em disponível em http//www.dgsi.pt., e de 30-04- 2014, (processo n.º 330.08.3PATNV.C2.S1), disponível na Coletânea de Jurisprudência online, com a referência 8895/2014..
No caso vertente, a sentença recorrida fundamenta o segmento decisório em apreço do seguinte modo: “A proibição de contactos será fiscalizada, como determinado pelo nº5, do artigo 152º, do CP, por meios técnicos de controlo à distância (independentemente do consentimento do arguido, face ao superior interesse da vítima – cfr. artigo 36º, nº7, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro).”
A fundamentação desse segmento decisório, apesar de extremamente sintético e feito por recurso a uma expressão algo conclusiva e aos preceitos legais aplicáveis, não é, porém, inexistente, pelo que não se verifica a apontada nulidade.
Posto isto, cumpre então apreciar se se encontram preenchidos os pressupostos de que depende a utilização de meios técnicos de controlo à distância para a fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos e de aproximação com a vítima, bem como para dispensar o consentimento do arguido.
Para tanto, e tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, importa convocar o art. 152º n.ºs 4 e 5 do Código Penal, em conjugação com os art.s 35º e 36º do regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, aprovado pela Lei 112/2009, de 16 de Setembro.
Na redação da Lei n.º 59/2007, de 04 de Setembro, preceituava aquele primeiro preceito que:
“…
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento pode ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
Por seu turno, o art. 35º, n.º 1, da citada Lei n.º 112/2009 dispunha que “O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, pode, sempre que tal se mostre imprescindível para a protecção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.”
E o art. 36.º do mesmo diploma preceituava que:
1 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta.
2 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende ainda do consentimento das pessoas que o devam prestar, nomeadamente das pessoas que vivam com o arguido ou o agente e das que possam ser afectadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.
Entretanto, a Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, alterou, por um lado, a redação do n.º 5 do art. 152º do Código Penal, estabelecendo-se agora que o cumprimento da pena acessória deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, e, por outro lado, alterou a Lei n.º 112/2009, cujo art. 35º passou a prescrever, em termos semelhantes aos da norma do Código Penal, que “O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância."
E o art. 36.º do mesmo diploma passou a dispor o seguinte:
1 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta.
2 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende ainda do consentimento das pessoas que o devam prestar, nomeadamente das pessoas que vivam com o arguido ou o agente e das que possam ser afectadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.
(…)
7 - Não se aplica o disposto nos números anteriores sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima.”
Aos presentes autos são já aplicáveis estas novas redações, uma vez que a entrada em vigor das mencionadas alterações introduzidas pela Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, ocorreu a 21 de março de 2013, ou seja, em momento anterior à consumação do crime pelo qual o arguido foi condenado, cujo último ato de execução, traduzido nas perseguições à assistente, teve seguramente lugar posteriormente a 30 de dezembro de 2013.
Constata-se que, apesar da substituição do termo “pode” por “deve” na previsão da fiscalização de cumprimento pelos meios de controlo à distância, o legislador não prevê a fiscalização por meios eletrónicos como o “regime regra”, muito menos “impõe” que assim se proceda, mantendo-se a exigência, em todo o caso, de um juízo positivo sobre a imprescindibilidade da utilização desses meios para a proteção da vítima, conforme claramente resulta do texto do citado art. 35º, n.º 1.
Com efeito, na redação original do Projeto de Lei n.º 194/XII-1ª, donde resultou a mencionada alteração legislativa, constava a revogação de todo o artigo 36º, desse modo se pretendendo suprimir as exigências de consentimento para a implementação dos meios de controlo - Vd. http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/s2a/12/01/136/2012-03-07/47?pgs=47-48&org=PLC..
No entanto, aquando da audição parlamentar nesse processo legislativo, o Professor Germano Marques da Silva, discordou do projeto, nos seguintes termos:
C) Revogação do artigo 36° da lei n° 112, de 16 de setembro
O consentimento para a utilização de meios técnicos de controlo à distância não respeita apenas ao arguido, mas também à própria vítima e das pessoas que vivam com o agente ou a vítima. Não é razoável impor medidas restritivas da liberdade à própria vítima ou a terceiros inocentes sem o seu consentimento. Também a necessidade de consentimento do arguido pressupõe que na falta de consentimento são aplicáveis medidas alternativas mais gravosas.
Parece-me de todo inaceitável a revogação deste artigo 36° porque a medida seria então inconstitucional por imposição de uma medida restritiva de liberdade à própria vítima ou a terceiros inocentes. No que respeita ao arguido poder-se-ia prescindir do seu consentimento, considerando que a imposição da medida constitui uma pena, mas a experiência da vigilância eletrónica mostra a ineficácia da medida quando não é aceite pelo arguido.
Se a medida de vigilância controlada for imposta sem consentimento é necessário prever a sanção para o seu incumprimento, sanção que há-de ser equivalente à que seria aplicável na falta de consentimento. Por isso que também relativamente ao arguido não pareça justificar-se a revogação do art. 36°, embora neste caso não se suscitem questões de inconstitucionalidade.” - Vd. http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheAudicao.aspx?BID=93762.
Esta apreciação mereceu parcial concordância na comissão parlamentar da especialidade, surgindo então a redação final do atual n.º 7 do art. 36º.
Assim, a utilização de meios de vigilância eletrónica do cumprimento da medida depende, não só da verificação de um concreto juízo de imprescindibilidade dessa medida para a proteção da vítima, mas também da obtenção de consentimento do arguido, da vítima e das pessoas que vivam com o agente ou a vítima e das que possam ser afetadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.
A anuência das pessoas afetadas com a restrição da liberdade pode ser suprida se o tribunal, em decisão fundamentada, concluir que na situação concreta e perante a ponderação dos valores e direitos em conflito, a aplicação de meios técnicos de controlo à distância constitui uma medida indispensável para a proteção dos direitos da vítima.
Sendo caso de definição de uma pena acessória, a indicação das concretas razões de facto que subjazem ao juízo de imprescindibilidade de aplicação dos meios eletrónicos e da dispensa do consentimento deve constar da própria sentença.
O tribunal a quo, depois de decidir aplicar ao arguido a pena acessória de proibição de contactar ou de aproximar-se da assistente, prevista no art. 152º, n.º 4, do Código Penal, com fundamento em a concretização da regulação das responsabilidades parentais relativa à filha menor de ambos poder implicar que o arguido se aproxime da assistente e reincida em comportamentos semelhantes aos em apreço nos autos, conforme aliás já sucedeu em duas ocasiões, determinou a fiscalização daquela medida por meios técnicos de controlo à distância.
Porém, conforme já referimos supra, para fundamentar este segmento da decisão, limitou-se a consignar na sentença recorrida o seguinte (transcrição): "A proibição de contactos será fiscalizada, como determinado pelo nº5, do artigo 152º, do CP, por meios técnicos de controlo à distância (independentemente do consentimento do arguido, face ao superior interesse da vítima – cfr. artigo 36º, nº7, da Lei nº112/2009, de 16 de Setembro).
Constata-se, assim, que a fundamentação da sentença sobre a imprescindibilidade de aplicação dos meios técnicos de controlo à distância, quer para a sua aplicação, quer para a dispensa do consentimento do arguido e das pessoas que com ele vivem, se limita à invocação abstrata do superior interesse da vítima, sem qualquer concretização factual, e dos preceitos legais aplicáveis, o que se apresenta como insuficiente.
Com efeito, como claramente resulta da letra do art. 35º da Lei n.º 112/2009, a aplicação da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância dependia da demonstração de a mesma se mostrar imprescindível para a proteção da vítima, o que não se mostra suficientemente observado na sentença recorrida.
Por seu lado, de acordo com o 36º, n.º 7, do mesmo diploma, a dispensa do consentimento do arguido e das pessoas que com ele vivem, determinada pelo tribunal a quo, estava igualmente dependente dessa decisão fundamentada sobre a imprescindibilidade da referida fiscalização por meios eletrónicos para a proteção dos direitos da vítima.
Na ausência dessa fundamentação, elaborada em termos suficientes e cabais, apresenta-se como injustificada a imposição ao arguido da fiscalização do cumprimento da pena acessória através de meios de controlo à distância.
Refira-se ainda que da matéria de facto provada não resultam circunstâncias concretas que apontem no sentido de a proteção dos direitos da vítima reclamar essa forma de fiscalização, não tendo potencialidade bastante para tal o facto de, já depois do divórcio, em duas ocasiões, quando a assistente foi buscar a filha a casa do arguido, este a ter insultado e ameaçado. Acresce que o tribunal a quo efetuou um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do arguido, entendendo haver razões suficientes para crer que o mesmo não voltará a cometer factos semelhantes, razão pela qual suspendeu a execução da pena.
Pelo exposto, não se deve manter a imposição ao arguido dos meios eletrónicos para fiscalização do cumprimento da pena acessória, pelo que, nesta parte, o recurso merece provimento, tal como também defendeu a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer.

3.4 - A falta de fundamentação quanto à aposição da condição da suspensão da execução da pena
O recorrente dedica a conclusão 22ª a alegar que a sentença recorrida é omissa quanto à factualidade subjacente à aposição da condição da suspensão da execução da pena, violando o n.º 4 do art. 50º do Código Penal, segundo o qual "a decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições", pelo que se verifica o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, previsto na al. a) do n.º 2 do art. 410º.
O tribunal a quo condicionou efetivamente a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao recorrente à condição de este entregar à assistente, no prazo da suspensão (2 anos e 7 meses), o montante de € 2.400, arbitrado no pedido de indemnização civil formulado pela mesma, em 31 prestações mensais, iguais e sucessivas.
Nos termos do art. 51º do Código Penal, essa suspensão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente, a de pagar a indemnização devida ao lesado, dentro de certo prazo, no todo ou em parte que o tribunal considerar possível, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea (n.º 1, al. a).
O cumprimento desse dever, na medida em que representa um esforço ou implica, mesmo, um sacrifício para o arguido, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas ainda, como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime a apresentando-se como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização das expectativas da comunidade, o que assume particular relevância no caso vertente.
Com relevo para apreciação da questão em análise consta da sentença recorrida o seguinte excerto, que se transcreve:
"Dispõe o artigo 50º, nº2, do CP, que o tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
Considerados os contornos do caso decidendo, bem como as finalidades da punição, já supra mencionadas, afigura-se-nos que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido deverá ser subordinada ao cumprimento de deveres, concretamente, àquele que se mostra previsto no artigo 51º, nº1, alínea a), do CP: pagar dentro de certo prazo, no todo ou em parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea."
A remissão que é feita para as considerações anteriormente tecidas sobre as finalidades da punição, reporta-se ao segmento da sentença relativo à determinação da medida concreta da pena, onde consta o seguinte (transcrição):
"Através da aplicação da pena, ter-se-á, pois, em vista, reafirmar perante a comunidade a validade e eficácia da norma violada na protecção do bem jurídico supra enunciado, tutelando-se a crença e confiança dessa comunidade na ordem jurídico-penal; contribuir-se-á, também, para a consolidação da incriminação em apreço, por forma a repor a sua credibilidade e motivar a denúncia por parte de quem sofre – e vê sofrer – em silêncio.
No que respeita às exigências de prevenção especial positiva ou de ressocialização assume primordial importância que o arguido compreenda o desvalor do seu comportamento nos acontecimentos que, aqui, se apreciam, de forma a prevenir a prática de futuros actos delinquentes."
Da conjugação desses dois segmentos da sentença recorrida, afigura-se-nos claro e linear o raciocínio do Exmo. juiz a quo subjacente à decisão de condicionar a suspensão da execução da pena ao pagamento da quantia arbitrada no pedido de indemnização civil, ou seja, de essa condição contribuir para a satisfação das necessidades de prevenção, quer geral, através da tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas da comunidade, quer especial, reforçando o conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição.
Pelo exposto, ainda que de forma sintética, encontra-se, suficientemente fundamentada a aposição da condição de suspensão da execução da pena.
Refira-se que a matéria de facto dada como provada se apresenta como suficiente para a tomada dessa decisão, pelo que também não ocorre o vício decisório igualmente invocado pelo recorrente a este respeito, traduzido na insuficiência para a decisão da matéria de facto, tal como o mesmo ficou caracterizado supra (ponto 3.1.1).
Improcede, pois, o recurso nesta parte.

3.5 - Da medida da pena
Nas conclusões 23ª e 24ª insurge-se o recorrente contra a pena de 2 anos e 7 meses de prisão que lhe foi aplicada, por a considerar demasiado pesada e injusta, ultrapassando o juízo de censura que ele merece, tendo sido violados os princípios da proporcionalidade e da culpa, alegando, para o efeito, que as suas condições sociais e pessoais que resultaram apuradas deveriam ter sido ponderadas em toda a sua extensão, conduzindo a uma pena bem menos severa.
3.5.1 – De acordo com o disposto no art. 40º, n.º 1, do Código Penal, a aplicação de penas e de medidas de segurança, tem como finalidade “a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. A proteção de bens jurídicos consubstancia-se na denominada prevenção geral, enquanto a reintegração do agente na sociedade, ou seja, o seu retorno ao tecido social lesado, se reporta à denominada prevenção especial.
O legislador quis, desta forma, oferecer ao julgador critérios seguros e objetivos de individualização da pena, quer na escolha, quer na dosimetria, sempre no pressuposto irrenunciável, de matriz constitucional, de que em caso algum a pena pode ultrapassar a culpa. Em conformidade, dispõe o n.º 2 do art. 40º que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Em consonância com estes princípios dispõe o art. 71º, n.º 1, do mesmo código que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.
De acordo com os ensinamentos de Anabela Miranda Rodrigues - “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, págs. 147 e ss., a medida da pena há de ser encontrada dentro de uma moldura de prevenção geral positiva e definida e concretamente estabelecida em função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa. Mais adianta que é o próprio conceito de prevenção geral de que se parte – proteção de bens jurídicos alcançada mediante a tutela das expectativas comunitárias na manutenção (e no reforço) da validade da norma jurídica violada - que justifica que se fale de uma moldura de prevenção. Proporcional à gravidade do facto ilícito, a prevenção não pode ser alcançada numa medida exata, uma vez que a gravidade do facto ilícito é aferida em função do abalo daquelas expectativas sentido pela comunidade. A satisfação das exigências de prevenção terá certamente um limite definido pela medida da pena que a comunidade entende necessária à tutela das suas expectativas na validade das normas jurídicas: o limite máximo da pena. Que constituirá, do mesmo passo, o ponto ótimo de realização das necessidades preventivas da comunidade, que não pode ser excedido em nome de considerações de qualquer tipo, ainda quando se situe abaixo do limite máximo consentido pela culpa. Mas, abaixo daquela medida (ótima) de pena (da prevenção), outras haverá que a comunidade entende que são ainda suficientes para proteger as suas expectativas na validade das normas - até ao que considere que é o limite do necessário para assegurar a proteção dessas expectativas. Aqui residirá o limite mínimo da pena que visa assegurar a finalidade de prevenção geral.
A mesma autora apresenta, então, três proposições em jeito de conclusões e de forma sintética: “Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.
Em suma, o limite mínimo da pena deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral que no caso se façam sentir, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva, ao passo que o limite máximo não deve exceder a medida da culpa do agente revelada no facto, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do mesmo; e, dentro desses limites mínimo e máximo, a pena deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todos exigível, sendo, pois, as razões de prevenção especial que servem para encontrar o quantum de pena a aplicar - Vd. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 227 e ss.. .
Por seu lado, as várias alíneas do n.º 2 do art. 71º do Código Penal elencam, a título exemplificativo, as seguintes circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, devendo o tribunal abster-se de considerar aquelas que já fazem parte do tipo de crime cometido:
- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (al. a);
- A intensidade do dolo ou da negligência (al. b);
- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram (al. c);
- As condições pessoais do agente e a sua situação económica (d);
- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e);
- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f).
Assim, as circunstâncias e os critérios do art. 71º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para codeterminar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (por exemplo, a natureza e o grau de ilicitude do facto impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afetação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objetivas para apreciar e avaliar a culpa do agente - Cf. acórdão do STJ de 28-09-2005, in Coletânea de Jurisprudência-STJ, 2005, tomo 3, pág. 173..
3.5.2 – Decorrendo incontroversamente do factualismo apurado que o recorrente incorreu na prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n.ºs 1, al. a), e 2, do Código Penal, o qual é punível em abstrato com pena de prisão de 2 a 5 anos, importa apreciar a bondade da medida concreta da pena aplicada, que foi fixada em 2 anos e 7 meses.
Em termos de fundamentação da sua determinação, o tribunal a quo valorou o acentuado grau de ilicitude do facto (face ao valor e natureza do bem jurídico violado - bem estar físico e psíquico, através de agressões físicas e verbais e de ameaças), a violação dos deveres impostos ao arguido (respeito pela dignidade pessoal do cônjuge), a gravidade do desvalor da ação e do resultado (atentas as lesões causadas à assistente a nível psíquico e mental), a ausência de qualquer motivo justificativo para as condutas do arguido, o limitado período de tempo em que as mesmas se focaram (novembro de 2010 a janeiro de 2014) e a atuação dolosa na modalidade mais grave (fazendo elevar a ilicitude e acentuando as exigências de prevenção e o juízo de censurabilidade). Por fim, foi valorado, desta feita a favor do arguido, a integração profissional e social, o suporte familiar de que dispõe e a ausência de qualquer condenação criminal.
Afigura-se-nos correta a elencagem e a ponderação feita pelo tribunal a quo desses fatores, sendo também de acentuar as prementes exigências de prevenção geral associadas a este tipo de crime, atenta a frequência com que ocorrem episódios sérios e graves desta natureza, fazendo elevar o limite mínimo necessário para assegurar a proteção das expectativas na reposição da validade da norma violada.
Não há dúvidas de que é suscetível de revista a correção do procedimento ou das operações de determinação da medida da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Estando a questão do limite da culpa plenamente sujeita a revista, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o está a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto quando tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada - Vd. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 196..
Assim, o tribunal de recurso deve intervir na pena, alterando-a, apenas quando detetar incorreções ou distorções no processo de aplicação da mesma, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que a regem. Nesta sede, o recurso não visa nem pretende eliminar alguma margem de atuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do ato de julgar.
A sindicabilidade da pena em via de recurso situa-se, pois, na deteção de um desrespeito dos princípios que norteiam a pena e das operações de determinação impostas por lei. E esta sindicância não abrange a determinação/fiscalização do quantum exato de pena que, decorrendo duma correta aplicação das regras legais e dos princípios legais e constitucionais, ainda se revele proporcionada - Cf. Acórdão do TRE de 22-04-2014, disponível em http//www.dgsi.pt. .
No caso vertente, sopesando todas as apontadas circunstâncias atendíveis, concretamente as relevantes exigências de prevenção geral, que fazem elevar o limite mínimo necessário para assegurar a proteção das expectativas comunitárias, o acentuado grau de ilicitude, a normal intensidade da culpa e a inexistências de particulares exigências de prevenção especial, afigura-se-nos que a pena de 2 anos e 7 meses de prisão aplicada ao arguido, situada aliás muito próxima do limite mínimo da moldura abstrata (que é de 2 anos), assegura adequada e suficientemente as finalidades da punição, não excedendo o limite estabelecido pela medida da culpa, pelo que não se apresenta desproporcionada, expressando uma correta e adequada valoração das circunstâncias atenuantes que o recorrente invoca como fundamento do recurso, concretamente os fatores de integração social, profissional e familiar e a ausência de antecedentes criminais.
Resulta, pois, da sentença recorrida que o tribunal a quo seguiu corretamente o procedimento e as operações de determinação da pena concreta e observou os princípios gerais que lhe devem presidir, pelo que é de manter a pena aplicada, que também não se revela desproporcionada, improcedendo este segmento do recurso.
3.6 – Da violação dos princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e necessidade na aplicação da medida de coação
Por fim, nas conclusões 25ª a 32ª, o recorrente pugna pela revogação da medida de coação de proibição de contactar ou de se aproximar da assistente, decretada na sentença recorrida até ao trânsito em julgado da mesma, por entender que a sua aplicação viola os princípios da legalidade, adequação, proporcionalidade e necessidade.
3.6.1 - A aplicação de medidas de coação está desde logo sujeita às condições gerais ínsitas nos art.s 191º a 195º.
Consagrando o princípio da legalidade e da tipicidade das medidas de coação, o art. 191º, n.º 1, dispõe que a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei, acrescentando o n.º 2 do art. 192º que nenhuma medida de coação ou de garantia patrimonial é aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.
Por seu lado, o art. 193º, n.ºs 1, 2 e 3, subordina as medidas de coação e de garantia patrimonial ainda aos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, ao dispor que devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requerer e proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.
Para além destes princípios, a que deve obedecer a aplicação das medidas de coação, o art. 204º exige ainda a verificação de determinados requisitos gerais.
Um deles, previsto na al. c) do citado preceito, é a verificação, em concreto e no momento da aplicação da medida, de perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa.
3.6.2 - A decisão recorrida fundamentou a aplicação da medida de coação de proibição de contactos com a vítima atendendo ao concreto perigo de continuação da atividade criminosa, evidenciado no facto de, já após o divórcio, em duas ocasiões em que a assistente foi buscar a filha de ambos a casa do arguido, este a ter insultado e ameaçado.
O recorrente insurge-se contra a consideração pelo tribunal a quo deste perigo, alegando que aquela afirmação é conclusiva, não se baseando em factos concretos, na medida em que nos pontos 12 e 13 da matéria provada, onde se descrevem aqueles comportamentos, não se refere se aconteceram antes ou depois do divórcio.
Não tem, porém, razão, porquanto a descrição factual que é feita nos referidos pontos vem na sequência do referido no ponto antecedente, que se inicia com o segmento “depois do divórcio”, sendo patente uma sequência cronológica da descrição de toda a factualidade dada como provada. Além disso, ao situaram-se os mencionados comportamentos do arguido em situações em que a assistente se deslocou a casa deste para ir buscar a filha menor de ambos, claramente se infere que ocorreram já depois do divórcio.
Por outro lado, ainda que tal não tenha sido expressamente referido na decisão recorrida, as perseguições dadas como provadas no ponto 11, em quatro situações distintas, também são reveladoras de perigo de continuação da atividade criminosa.
Noutro prisma, invoca o recorrente que não tendo sido dado como provado que “a demandante se mantivesse a viver num permanente estado de inquietação, nervosismo, ansiedade e depressão, nomeadamente quando tem de deslocar-se à residência do demandado para ir buscar a sua filha”, facto esse alegado no requerimento do pedido cível, a medida de coação decretada é desajustada, por ser demasiado gravosa face às exigências cautelaras que o caso requer, havendo mesmo uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no art. 410º, n.º 2, al. b).
Este vício, que terá de resultar do próprio texto da decisão recorrida (como referido supra, no ponto 3.1.1), no segmento invocado pelo recorrente consiste numa oposição entre a fundamentação e a decisão (por ex., quando a fundamentação de facto e de direito apontam para uma determinada decisão final, e no dispositivo da sentença consta decisão de sentido inverso), só se devendo e podendo ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável, isto é, um conflito inultrapassável entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é suscetível de o integrar, mas apenas a que se incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.
No caso vertente não se deteta tal contradição, porquanto a decisão recorrida não invoca a existência de estado de permanente de inquietação, nervosismo, ansiedade e depressão por parte da assistente, nomeadamente quando tem de deslocar-se à residência do demandado para ir buscar a sua filha, para aplicar a medida de coação de proibição de contactos, mas tão só o perigo de continuação da atividade criminosa.
Por outro lado, a verificação de um tal estado psicológico, para mais permanente, não surge de modo algum como requisito para que a medida de coação se apresente como necessária, bastando para tal o referido perigo de continuação da atividade criminosa.
Para além disso, a medida de coação aplicada em concreto, para além de necessária, apresenta-se como idónea para satisfazer essa exigência cautelar, respeitando, pois, o princípio da adequação.
Como refere Germano Marques da Silva - In ob. cit., II, pág. 270., uma medida de coação é adequada “se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares”.
Igualmente se mostra observado o princípio da proporcionalidade, por a referida medida se apresentar como proporcional à gravidade do crime e à sanção já aplicada ao arguido.
Improcede, pois, este segmento do recurso.


III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcialmente provimento ao recurso interposto pelo arguido N. C. e, consequentemente, decidem:
1. Revogar a sentença recorrida na parte em que determinou a fiscalização do cumprimento da pena acessória de proibição de contactos do arguido com a assistente por meios técnicos de controlo à distância.
2. Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.
Sem tributação, atenta a parcial procedência do recurso (art. art. 513º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 06 de fevereiro de 2017

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(Jorge Bispo)

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(Pedro Cunha Lopes)