Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
48/17.6T9VVD.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO REQUERIMENTO
FALTA LEGITIMIDADE REQUERENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Resultando do requerimento de abertura da instrução que os factos com base nos quais se requer a pronúncia do arguido pelos crimes de furto e de abuso de confiança, assentam na subtração e apropriação por parte do arguido de bens pertencentes à sociedade e não ao assistente, seu sócio gerente, não pode deixar de concluir-se, tendo em conta o bem jurídico protegido por tais incriminações, que o património dessa sociedade foi o único que de acordo com o RAI ficou afetado com a conduta do arguido, e já não o património do seu sócio gerente, independentemente de eventuais prejuízos patrimoniais e não patrimoniais indiretos, os quais apenas lhe conferiam o estatuto de lesado e legitimidade para dedução de pedido cível, e não de “ofendido” para efeitos de constituição de assistente, nos termos referidos.
II) Deste modo, estando em causa bens da mencionada sociedade, tendo sido o seu património o diretamente prejudicado, somente ela é titular dos interesses imediata e diretamente tutelados que a lei especialmente quis proteger com tais incriminações e, consequentemente, dispunha de legitimidade para se constituir como assistente relativamente a tais atuações imputadas ao arguido.
III) Não podendo confundir-se a pessoa do sócio, ainda que seu representante legal e gerente, com a sociedade, pessoa coletiva com personalidade jurídica própria, enquanto centro autónomo de imputação de direitos e deveres, torna-se evidente que o requerente não dispõe de legitimidade para se constituir assistente relativamente a tais ilícitos e requerer a abertura da instrução.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
Nos autos de instrução com o número nº48/17.6T9VVD que corre termos no Juízo de Instrução Criminal de Braga, por despacho datado de 16/12/2020 foi decidido:

- Rejeitar o requerimento de constituição de assistente apresentado pela recorrente A. S. – EVENTOS, UNIPESSOAL, LDA.
- Não conhecer do requerimento de abertura da instrução relativamente a esta última, uma vez que não assegurou a sua legitimidade.
- Rejeitar o requerimento de abertura de instrução quanto ao assistente A. F., quer por falta de legitimidade deste para requerer a abertura da instrução quanto aos crimes de furto e de abuso de confiança relativamente aos quais é ofendida a referida sociedade, quer por falta de descrição no RAI da factualidade bastante que permita afirmar o preenchimento dos elementos subjetivos no que tange aos crimes imputados no requerimento de abertura de instrução.

2.
Não se conformando com o teor do decidido veio a identificada sociedade e o assistente A. F. interpor o presente recurso, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
I. Conforme explanado em sede de motivação, os aqui Recorrentes, A. F. e A. S.- Eventos, Unipessoal, Lda., vêm interpor o presente recurso por não se conformarem, quer por razões adjetivas, quer por razões substanciais,
II. Com a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, no âmbito dos presentes autos, que, por um lado indeferiu o pedido de constituição como Assistente da Recorrente, A. S., Eventos – Unipessoal, Lda., e, nessa sequência, rejeitou o requerimento de abertura de instrução por si apresentado,
III. E, por outro, rejeitou o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo também Recorrente, A. F., por ser seu entendimento que, no mesmo, era clara a ausência de “uma verdadeira acusação”,
IV. Por falta de imputação, por parte daquele, de factos concretos que permitam o preenchimento dos elementos subjetivos de um determinado tipo legal de crime.
V. E diz-se que os aqui Recorrentes não se conformam com a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, na medida em que a mesma se encontra desprovida de qualquer fundamento válido,
VI. Como melhor infra se demonstrará:
VII. De acordo com o já supra aludido, em virtude de, em 18 de Junho de 2020, terem sido, os aqui Recorrentes, notificados do teor do Despacho de Acusação/Arquivamento proferido, VIII. No qual, para além do demais, determinava o arquivamento quanto à matéria respeitante à prática, pelo Arguido, J. C., do crime de falsificação de documentos, p.e.p. pelo artigo 256.º, do Código Penal, de furto qualificado, p.e.p. pelo artigo 203.º e 204.º, do Código Penal e abuso de confiança, p.e.p. pelo artigo 205.º, do Código Penal.
IX. Em 08 de Julho de 2020, apresentaram o competente Requerimento de Abertura de Instrução,
X. Salientando, em suma, que o mesmo enfermava de vicissitudes várias, bem como que a factualidade constante dos autos e a prova carreada impunham decisão diversa.
XI. Porém, fazendo tábua rasa de tudo o alegado pelos aqui Recorrentes em tal articulado, em 18 de Dezembro de 2020, foram os mesmos notificados do Despacho de que ora se recorre,
XII. No sentido de indeferir o pedido de constituição de Assistente deduzido pela Recorrente, A. S. Eventos, Unipessoal, Lda., e, ademais, rejeitar o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado.
XIII. No entanto, e não concordando, os aqui Recorrentes, com os motivos nos quais assentou a decisão emanada, vêm os mesmos interpor o presente recurso.
XIV. Assim sendo, inicia-se, desde já por fazer referência à decisão de indeferimento do pedido de constituição como Assistente deduzido pela Recorrente, A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda.
XV. Isto porque, pese embora o Despacho recorrido referir que o alegado pela Recorrente, A. S. Eventos- Unipessoal, Lda., quanto à ausência de qualquer fundamento, quer legal, quer factual da decisão que a notificou para pagar taxa de justiça e demais encargos.
XVI. Não assume qualquer razão, na medida em que “se o requerente de proteção jurídica, devidamente notificado para efeitos de audiência prévia, não se pronunciar no prazo que lhe for concedido, a proposta de decisão converte-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação”,
XVII. Certo é que tal decisão não assenta em fundamento válido, porquanto nem a aqui Recorrente.
XVIII. Nem o seu Mandatário (conforme se impunha nos termos do artigo 247.º, do C.P.C.)
XIX. Foram alguma vez notificados, por parte dos Serviços da Segurança Social, para proceder à junção de prova documental
XX. E, nesse seguimento, que na falta de resposta o pedido de apoio judiciário se considerava indeferido.
XXI. Isto tudo a significar que, apesar da ISS ter transmitido que a Recorrente teria sido notificada, em 17 de Agosto de 2020, para a presentar prova documental e que na falta de resposta, o pedido seria indeferido,
XXII. É facto notório que não carece de alegação ou de prova que o mesmo não corresponde à realidade, pois nunca a aqui Recorrente ou o seu Mandatário foram alvos de tal notificação,
XXIII. Pelo que se impõe concluir, quanto a esta matéria, que nunca deveria ter sido o Requerimento de apoio jurídico indeferido, mas, ao invés, sido deferido por formação do ato tácito
XXIV. E, nessa linha de raciocínio, aceite o requerimento de constituição como Assistente e o de abertura de instrução apresentado pela Recorrente,
XXV. Até porque, ao ser rejeitado o requerimento de abertura de instrução por si apresentado, com base em tal lacuna, fica a mesma coertada no seu legítimo acesso à Justiça e aos Tribunais,
XXVI. Direito e garantia essencial esses, constitucionalmente consagrados nos termos do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa,
XXVII. Como V/Exas., com toda a certeza, julgarão, revogando o Despacho recorrido, e, consequentemente, deferindo o requerimento de constituição de assistente e admitindo o requerimento de abertura de instrução apresentados pela mesma.
XXVIII. Posto isto, importa, agora, aludir à decisão vertida no Despacho recorrido, no sentido de rejeitar o requerimento de abertura de instrução deduzido pelos aqui Recorrentes.
XXIX. Ora, conforme supra mencionado, veio o Meritíssimo Juiz rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado, nos termos do disposto no n.º3, do artigo 287.º, por força do n.º2, in fine, desse mesmo artigo, ambos do C.P.P.,
XXX. Por ser seu entendimento que o mesmo é legalmente impossível, de acordo com o princípio da legalidade, contrariedade e dos direitos de defesa do arguido, previstos no artigo 61.º, do CPP, e 32.º, da Constituição da República Portuguesa,
XXXI. Já que não assume as vestes de uma acusação, não imputando, ao Arguido, factos concretos que permitam o preenchimento dos elementos subjetivos dos crimes do crime de falsificação de documentos, p.e.p. pelo artigo 256.º, do Código Penal, de furto qualificado, p.e.p. pelo artigo 203.º e 204.º, do Código Penal e abuso de confiança, p.e.p. pelo artigo 205.º, do Código Penal.
XXXII. No entanto, não podem, nem devem, sem mais, os aqui Recorrentes aceitar tal decisão,
XXXIII. Pois, contrariamente ao que se referiu e se decidiu no Despacho recorrido, o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos aqui Recorrentes, narra, de modo mais do que sintético, os factos criminosos de autoria material do Arguido, J. C.,
XXXIV. Dos crimes de falsificação de documentos, p.e.p. pelo artigo 256.º, do Código Penal, de furto qualificado, p.e.p. pelo artigo 203.º e 204.º, do Código Penal e abuso de confiança, p.e.p. pelo artigo 205.º, do Código Penal,
XXXV. Através da formulação de uma própria acusação,
XXXVI. Descrevendo, aliás, de forma pormenorizada e suficiente, as circunstâncias de tempo e de lugar em que os mesmos ocorreram.
XXXVII. Para tanto, basta ter na devida consideração que no requerimento de abertura de instrução que os aqui Recorrentes apresentaram em 08 de Julho de 2020,
XXXVIII. É claramente vislumbrável as suas razões de discordância no que ao despacho de arquivamento proferido diz respeito,
XXXIX. Bem como a dedução, no ponto B., de uma verdadeira acusação, onde o objeto do processo está definido pela narração dos concretos factos imputados ao Arguido aqui nos autos,
XL. Onde, por sua vez, é possível verificar o cuidado e rigor que os mesmos tiveram quando concluem a parte em que explanam as razões de discordância do despacho de arquivamento e iniciam a parte em que deduz acusação,
XLI. Referindo, expressamente, o seguinte:
“Ora, concluindo, em conformidade com tudo o supra alegado, e uma vez que decorre do n.º2, do artigo 287.º, do C.P.P., que ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º” e da jurisprudência fixada no nosso Ordenamento Jurídico, Impõe-se que deve ser deduzido o competente Despacho, acusando, o aqui Arguido, pela prática dos crimes de furto qualificado, p.e.p., pelas disposições conjugadas dos artigos 202.º, al. b), 203.º, n.º1, 204.º, n.º1, al. f), e n.º2, al. a), do Código Penal, do crime de abuso de confiança, p.e.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 205.º, n.º1 e 4, al. a), do Código JOÃO MAGALHÃES -ADVOGADO, R.L. Penal, por referência ao artigo 202.º, al. a), do mesmo diploma legal, e do crime de falsificação de documento, p.e.p. pelas disposições conjugadas dos artigos 255.º, al. a) e 256.º, n.º1, al. a), c), d) e e), do mesmo diploma legal.”
XLII. Como também o modo como especificam a identificação de quem fez, o quê, com quem, quando, onde, como e com que intenção,
XLIII. Assim, torna-se claro que em tal articulado se procede à narração completa, sequencial, lógica e cronológica, dos factos concretos e essenciais para a integração nos tipos de crimes imputados ao Arguido, J. C.,
XLIV. Ou seja, na mesma se refere não só aos elementos objetivos, mas também aos elementos subjetivos do crime imputado,
XLV. Verificando-se, pois, o cumprimento, pelo mesmo, dos requisitos legais a que deve obedecer o requerimento de abertura da fase de instrução,
XLVI. Porém, antes que se proceda, de forma rigorosa, à análise do supra alegado quanto ao cumprimento dos requisitos legais a que deve obedecer o requerimento de abertura de instrução,
XLVII. É essencial, primeiramente, aludir à afirmação constante do Despacho recorrido, quanto à legitimidade da aqui Recorrente, A. S. Eventos- Unipessoal, Lda.,
XLVIII. Já que, como já supra se mencionou, revela-se inaceitável que o pedido de constituição de Assistente requerido pela Ofendida, aqui Recorrente, A. S.- Eventos – Unipessoal, Lda.
XLIX. Tenha sido alvo de indeferimento, na medida em que, como já fora explicitado, a Recorrente nunca foi notificada pelo ISS para juntar documentos solicitados e, muito menos, que na falta de resposta o requerimento apresentado se mostrava indeferido.
L. E não tendo, nem a aqui Recorrente, A. S. ventos – Unipessoal, Lda., ou o seu Mandatário, notificados conforme indica a ISS, houve, de facto, a formação de um ato tácito de deferimento do pedido de apoio judiciário formulado pela Recorrente, devendo, nessa conformidade, ser deferido o seu pedido de constituição de Assistente,
LI. E, corrigido tal lapso, certo é que o requerimento de abertura de instrução em juízo foi apresentado, quer pelo Recorrente, A. F., quer pela aqui Recorrente,
LII. E, como tal, a ligação existente entre esta última e os bens que foram subtraídos/apropriados pelo Arguido, J. C. é mais do que facto notório que não carece de alegação ou de prova,
LIII. Sendo manifesta a legitimidade da Recorrente, A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda. Para requerer a abertura de instrução quanto aos crimes de furto qualificado e abuso de confiança,
LIV. Conforme V/Exas., Venerandos Desembargadores, certamente decidirão, só assim se fazendo inteira Justiça Material!
LV. Desta feita, torna-se momento de nos debruçarmos sobre os requisitos legais a que deve obedecer o requerimento de abertura da fase de instrução, particularmente quanto aos elementos objetivos, e aos elementos subjetivos dos crimes imputados,
LVI. Indicando, desde logo, que, conforme resulta da motivação que se apresenta,
LVII. Na qual, por sua vez, é elaborada uma análise criteriosa da menção, no requerimento de abertura de instrução, a tais elementos,
LVIII. É possível concluir que ainda que possa não ter sido alegada de forma exemplar, como salienta o Despacho recorrido, permitirá ter por preenchido o dolo genérico, traduzido na intenção e vontade de praticar o facto, sabendo que o mesmo era ilícito (elementos volitivo e intelectual do dolo).
LIX. Bem como o dolo específico, ou seja, a intenção de obter um benefício ilegítimo, e ainda a consciência da ilicitude (elemento emocional do dolo), contendo assim, de modo suficiente, a totalidade dos elementos subjetivos do tipo de crime de furto qualificado, abuso de confiança e falsificação de documento.
LX. Ou seja, tais afirmações são, por si próprias, suscetíveis de preencherem, sem esforço, o dolo específico exigido dos crimes em questão, na medida em que delas se retira a intenção de o agente (arguido) obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa, concretamente a intenção de obter benefício para si, causando prejuízo à Sociedade, aqui Recorrente, e ao seu filho, também ele aqui Recorrente.
LXI. Nesse sentido, e em face do exposto, não havia razões para concluir, como se fez no Despacho recorrido, por uma necessária, evidente e total atipicidade da conduta imputada ao Arguido no requerimento de abertura de instrução, não se apresentando como absolutamente inútil a instrução requerida pelos aqui Recorrentes.
LXII. Com efeito, de acordo com o explanado no requerimento de abertura de instrução apresentado pelo Recorrente, evidente se torna que o Arguido, J. C., agiu, manifestamente, dadas as comprovadas circunstâncias, com dolo direto.
LXIII. E, sem prescindir, se assim se não entender, o que não se concede, sempre terá agido com dolo necessário, ou, ainda, de todo o modo, com dolo eventual.
LXIV. Sofrendo, os aqui Recorrentes, como consequência única, direta, necessária e adequada de tal criminosa conduta dolosa do mesmo, graves prejuízos.
LXV. Tudo isto a revelar, que é totalmente descabida a afirmação de que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelos aqui Recorrentes, não assume as vestes de uma acusação.
LXVI. Pois, é mais do que notório que, pese embora, os aqui Recorrentes, fazerem referência, na primeira parte, às razões pelas quais discordam do despacho de arquivamento proferido.
LXVII. Redigem, posteriormente, uma acusação alternativa, na qual descrevem, em suma, de modo criterioso e com maior relevo para a questão em apreço, os factos essenciais para que o Arguido deles seja julgado.
LXVIII. Para além disso, é imprescindível apontar que, de acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, Processo n.º 207/14.3T9VNF.G1, datado de 09/01/2017:
“É do conhecimento geral, do senso e experiência comum, que os elementos volitivo e cognitivo do dolo emanam, na generalidade dos casos, da mera narração da ação típica objetivamente imputada ao arguido.
II) O elemento volitivo do dolo emana da factualidade alegada no requerimento de abertura da instrução, quando nele se descrevem ações voluntárias e conscientes por parte do arguido.
III) Quanto ao elemento cognitivo do dolo, o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa um caráter proibido e de reprovação social.” (sublinhado e negrito nosso).
LXIX. Isto tudo a levar à inelutável conclusão que o que pode, efetivamente, não constar do requerimento de abertura da instrução (o que não se concebe) é a alegação expressa e direta do dolo genérico, também exigido pelo tipo subjetivo dos crimes em questão.
LXX. Que, por sua vez, se se reporta ao conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, que mais não é do que a afirmação dos elementos cognitivo e volitivo do dolo.
LXXI. Contudo, tal não é suficiente para aplicar a rejeição do requerimento de abertura de instrução, como ocorreu no caso em concreto.
LXXII. Bastando, para tanto, ter em conta o explanado no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães já supra citado (Processo n.º 207/14.3T9VNF.G1, datado de 09/01/2017) que indica o seguinte:
“A alegação factual deste dolo genérico é vulgarmente feita através de uma fórmula antiga, repetidamente empregue na prática judiciária, do tipo: «O arguido agiu voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei».
Contudo, não é obviamente necessária a utilização desta fórmula ou de outra equivalente, para a afirmação da realidade que com ela se pretende transmitir.
É do conhecimento geral, do senso e experiência comum, que os elementos volitivo e cognitivo do dolo emanam, na generalidade dos casos, da mera descrição do iter criminis do arguido, ou seja, da narração da ação típica que lhe é objetivamente imputada, a não ser que se afirmem circunstâncias excecionais, suscetíveis de contrariar esse entendimento Cf., neste sentido, e entre outros, o acórdão do TRE, de 11.07.2013, proferido no processo nº 126/12.8GAMAC.E1, disponível em www.dgsi.pt/jtre..(...)”
LXXIII. Acrescentando, ainda o seguinte:
“Por sua vez, no que ao elemento cognitivo do dolo respeita, o conhecimento da ilicitude resulta da imputação ao arguido de condutas a que qualquer cidadão, com um mínimo de integração social, associa um caráter proibido e de reprovação social (…)
Efetivamente, e nas expressivas palavras de Cavaleiro de Ferreira Lições de Direito Penal, Parte Geral, 290.: «Conhecer para agir é sempre discernir, ajuizar e não só contemplar cada elemento objectivo do crime, sem simultânea apreciação da sua instrumentalidade, da sua inserção no processo finalístico da vontade. E é também por isso, como veremos, que a representação de todos os elementos componentes do facto pode equivaler, na generalidade dos crimes, à consciência da ilicitude, só se exigindo o conhecimento da proibição legal quando do conhecimento do próprio facto, em todos os seus elementos, não resulte implicitamente essa consciência da ilicitude (cit. art. 16º, nº 1)».
Nada impedindo assim que, quanto a este ponto, se vier a ser caso disso, em sede de decisão instrutória possa vir a introduzir-se uma formulação típica e mais conseguida do elemento subjetivo da infração, sem que seja cometida qualquer irregularidade, nos termos do artigo 303.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, no sentido de que o conhecimento da proibição de uma conduta resulta da simples prática dos factos, quando os mesmos são como tal entendidos pela generalidade das pessoas, também o já supra referido acórdão do TRE, de 11.07.2013, proferido no processo nº 126/12.8GAMAC.E1 e demais jurisprudência nele citada” (sublinhado e negrito nosso).
LXXIV. E na conformidade de tudo isso, não há qualquer motivo para o Tribunal recorrido se “abrigar” no fundamento de ausência de imputação, por parte dos aqui Recorrente, de factos concretos que permitam o preenchimento dos elementos subjetivos de um determinado tipo legal de crime.
LXXV. Para, assim, proferir decisão no sentido de rejeitar do requerimento de abertura de instrução apresentado pelos aqui Recorrentes.
LXXVI. Já que ele não enferma de qualquer impossibilidade legal, muito menos a inerente ao princípio da legalidade, contrariedade e dos direitos de defesa do arguido, previstos no artigo 61.º, do CPP, e 32.º, da Constituição da República Portuguesa.
LXXVII. Como V/Exas., com toda a certeza, julgarão, revogando o Despacho recorrido, e nessa sequência, ser proferido Despacho no sentido de aceitar o requerimento de abertura de instrução deduzido pelos Recorrentes, só assim se fazendo inteira Justiça Material!

Termos em que, e nos melhores de Direito, deverão V/Exas., Venerandos Desembargadores, proferir decisão que nessa conformidade:

a) Julgue o presente recurso procedente e revogue o Despacho recorrido, deferindo o requerimento de constituição de assistente apresentado, bem como admitindo o requerimento de abertura de instrução deduzido pela Recorrente, A. S. - Eventos, Unipessoal, Lda.;
Sem prescindir,
b) Julgue o presente recurso procedente e revogue o Despacho recorrido, aceitando o requerimento de abertura de instrução deduzido pelo aqui Recorrente, A. F..
Com o que farão inteira Justiça Material».

3.
O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso, concluindo pela sua improcedência nos seguintes termos:
«I. No inquérito com o NUIPC 48/17.6T9VVD, que correu termos na Secção de Vila Verde, do DIAP de Braga, o Ministério Público procedeu ao arquivamento parcial dos autos, quanto aos seguintes crimes, imputados (pelo assistente A. F. e pela ofendida A. S.-Eventos Unipessoal, Ldª.) ao arguido J. C.: - furto qualificado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 202º, b), 203º, n.º1, 204º, n.º1, f) e n.º2, a), do Código Penal, abuso de confiança, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 205º, n.º1 e 4, a), do Código Penal, por referência ao artigo 202º a), do mesmo diploma legal, e falsificação de documentos, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 255º, a) e 256º, n.º1, a), c), d) e e), do Código Penal.
II. Inconformados com aquele despacho de arquivamento, e visando a pronúncia do arguido pelos referidos crimes, vieram, o assistente A. F. e a ofendida A. S.-Eventos Unipessoal, Ldª, requerer, o primeiro, a abertura da instrução, e, a segunda, a sua constituição como assistente e a abertura da instrução.
III. Remetido o processo à instrução, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca da Braga – Juízo de Instrução Criminal de Braga-Juiz 2, A. S.-Eventos Unipessoal, Ldª. não foi admitida a constituir-se assistente nos autos, com prejuízo do seu requerimento de abertura da instrução, uma vez que não assegurou a necessária legitimidade.
IV. E, além disso, foi rejeitado o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente A. F., por omissão da descrição dos factos essenciais ao preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo dos tipos de crime imputados ao arguido, sendo que, relativamente aos crimes de furto e de abuso de confiança, praticados contra a sociedade A. S.-Eventos Unipessoal, Ldª, se considerou a falta de legitimidade do assistente para requerer a abertura da instrução, por não ser ofendido com a faculdade de se constituir assistente.
V. É dessa decisão, referida nas conclusões III e IV, que recorrem, respetivamente, a ofendida A. S.-Eventos Unipessoal, Ldª., e o assistente A. F..
VI. O indeferimento do pedido de apoio judiciário importa a obrigação do pagamento das custas devidas.
VII. A requerente do beneficio do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo, A. S.-Eventos Unipessoal, Ldª., devidamente notificada para efeitos de audiência prévia, não se pronunciou, sendo que a proposta de indeferimento do pedido de apoio judiciário se converteu em decisão definitiva, não havendo, pois, lugar a nova notificação.
VIII. Tendo havido já decisão negativa do serviço da segurança social, o pagamento é devido no prazo de 10 dias contados da data da sua comunicação ao requerente.
IX. Não obstante tal comunicação, A. S. Eventos – Unipessoal, Lda. não procedeu ao pagamento da taxa de justiça devida para se constituir assistente nos autos.
X. Logo, não tendo a mesma cumprido tal exigência, não tem legitimidade para requerer a abertura da instrução, pelo que não pode invocar que lhe está a ser negado o acesso ao direito e aos tribunais, em violação do disposto no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.
XI.O requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente é omisso quanto à descrição factual, da qual devem constar os elementos objetivo e subjetivo integradores dos tipos de ilícitos criminais imputados ao arguido, para que possa ser pronunciado, estando vedado ao juiz de instrução criminal alterar ou criar, por si, tal factualidade concreta, pelo que se nos afigura bem fundamentada e correta a decisão de rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente, ao que acresce a sua ilegitimidade para requerer a abertura da instrução quanto aos crimes de furto e de abuso de confiança, imputados ao arguido.
XII. Pelo exposto, deve ser negado provimento ao recurso e confirmada a decisão recorrida, que não violou qualquer norma legal, designadamente as invocadas pelos recorrentes, contudo, farão Vs. Exs., a costumada Justiça!».

4.
Neste tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

5.
Foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº2, do C.P.P. tendo os recorrentes respondido ao parecer, em relação ao qual manifestaram a sua discordância, concluindo pela procedência do recurso.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser ai julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º,nº3,al.c), do diploma citado.

Cumpre decidir

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
O objecto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol.III, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).
O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente/ofendido, as questões a decidir são as seguintes:

- Da não admissão da constituição como Assistente da ofendida A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda. e do consequente não conhecimento do requerimento de abertura de instrução por falta de legitimidade da requerente.
- Da rejeição do requerimento da abertura de instrução do assistente A. F..

B) Despacho Recorrido

“Na sequência do despacho de fls. 716, pelo que se determinou a notificação de A. S. – EVENTOS, UNIPESSOAL, LDA para pagar a taxa de justiça, com acréscimos legais, sob pena de o requerimento para constituição de assistente ser rejeitado, veio a mesma (fls. 726 e ss) dizer que requereu o benefício do apoio judiciário e instruiu o requerimento para constituição de assistente (e de abertura da instrução) com aquele requerimento. Mais diz que face à data (08/07/2020) do requerimento para concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo e à ausência de decisão por parte do ISS, mostra-se decorrido o prazo de 30 dias (artigo 25.º/1 da lei 34/2004) pelo que houve formação de acto tácito de deferimento.
O MP (fls. 713) pugna pela não admissão da requerente como assistente.

Decidindo. Factos:
1. No dia 08/07/2020 A. S. – EVENTOS, UNIPESSOAL, LDA apresentou requerimento para concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
2. Por decisão de 17/08/2020 foi a requerente notificada pelo ISS para juntar os documentos solicitados, sendo igualmente notificada que na falta de resposta o requerimento apresentado se mostrava indeferido.
3. A requerente não correspondeu ao solicitado em 2. 4. A requerente não impugnou a decisão referida em 2.

Direito.
Diz a requerente A. S. – EVENTOS, UNIPESSOAL, LDA que decisão que a notificou para pagar a taxa de justiça e demais encargos é “desprovida de qualquer fundamento, quer legal, quer factual, válido”.
Sem razão alguma no que diz.
Na verdade, dispõe o artigo 23.º/2 da Lei 34/2004, de 29/07:
“Se o requerente de protecção jurídica, devidamente notificado para efeitos de audiência prévia, não se pronunciar no prazo que lhe for concedido, a proposta de decisão converte-se em decisão definitiva, não havendo lugar a nova notificação”.
Foi o que aconteceu.
A requerente não se pronunciou no prazo, pelo que a decisão proferida pelo ISS em 17/08/2020 mostra-se definitiva.
E tal decisão é de indeferimento expresso do requerimento do apoio judiciário.
Trata-se aliás de questão que está sobejamente tratada na jurisprudência, a título de exemplo veja-se o seguinte acórdão do TRP, de 10/07/2019, proc. 603/17.4T8VFR-A.P1:
I - A proposta de decisão de indeferimento do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de taxa de justiça e nomeação de patrono, representa uma decisão definitiva sujeita a condição suspensiva, por determinação do art. 23º/2 da Lei de Proteção Jurídica.
II - Verificada a condição, com a omissão de resposta por parte do requerente, considera-se indeferido o benefício, reiniciando-se o prazo para contestar.
Assim, tendo o pedido de apoio judiciário sido indeferido e, notificada, não tendo a requerente pago a taxa de justiça (e demais acréscimos), rejeito o requerimento de constituição de assistente apresentado por A. S. – EVENTOS, UNIPESSOAL, LDA.
Notifique.

Quanto à referida A. S. – EVENTOS, UNIPESSOAL, LDA mostra-se prejudicado o requerimento de abertura da instrução, uma vez que não assegurou a necessária legitimidade.

Face ao despacho de arquivamento proferido pelo MP (fls. 491 e ss) veio o assistente A. F. (fls. 620 e ss) – o qual foi admitido nessa qualidade a fls. 715 – requerer a abertura da instrução contra o arguido J. C. pugnando pela pronúncia deste pela prática de:
- um crime de furto qualificado, p. e p., pelo artigo 202.º/-b), 203.º/1 e 204.º/1-f) e 2-a) do Código Penal.
- um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º/1 e 4-a), com referência ao artigo 202.º/-a) do Código Penal.
- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos artigos 255.º/-a) e 256.º/1-a), c) d) e e) do Código Penal.

Para tanto, em resumo e segundo se percebe, quanto aos factos diz:
O arguido penetrou na sede da sociedade A. S. Eventos – Unipessoal, Lda e daí retirou bens estimados no valor de 220.000,00 euros (identificados no artigo 167 do r.a.i.), sabendo que os mesmos eram de propriedade alheia, agindo com dolo.
O arguido falsificou a assinatura do assistente, enquanto legal representante da sociedade A. S. Eventos – Unipessoal, Lda, na declaração de cedência, para assim obter os bens da referida sociedade (artigo 171.º do r.a.i.).
Decidindo.
Como se sabe o inquérito, nos termos do disposto no artigo 262.º/1 do Código de Processo Penal, é a fase onde se prepara a decisão de acusação ou de não acusação.
Assim sendo, quando, designadamente, o Ministério Público não obtém indícios suficientes da verificação de crime ou de quem são os seus agentes, profere despacho de arquivamento nos termos do disposto no artigo 277.º/1 e 2 do Código de Processo Penal.
No caso dos autos o Ministério Público arquivou o inquérito, nos termos do disposto no artigo 277.º/2 do Código de Processo Penal.
Não se conformando, como se disse, o assistente requer a abertura da instrução, nos termos acima sumariamente expostos.
Como se sabe o requerimento de abertura da instrução, quando apresentado pelo assistente, não pode ser formulado nos mesmos termos do do arguido – cfr. Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Vinício Ribeiro, 2.ª ed. p. 790).
Na verdade, o mesmo tem de equivaler a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar inegável e directamente ao arguido e que permitam, caso venham a mostrar-se suficientemente indiciados, o preenchimento dos elementos não só objectivos como subjectivos do tipo de crime que seja efectivamente imputado.
Na verdade para além da narração dos factos que o requerimento de abertura da instrução deve conter, susceptíveis de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, impõe-se, concomitantemente, que o mesmo contenha, a data e o lugar da ocorrência dos factos, o grau de participação que o arguido neles teve, sendo o caso, e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis aos factos narrados cuja autoria é imputada ao arguido, o qual deve estar identificado, ou pelo menos devem ser dadas indicações tendentes a essa identificação.
Mas não só, importa também que dele constem os elementos respeitantes ao dolo.

Como se diz no acórdão do TRE, de 24/10/2017, proc. 321/15.8PAPTM.E1, www.dgsi.pt:
1 - No caso de requerimento de abertura da instrução pelo assistente com pretensão de sujeição de arguido a julgamento tal peça tem mesmo que ser uma “acusação”. Tem que ser apresentada com autonomia factual. Tem que “contar uma história” apenas com factos essenciais a integrar os tipos penais pretendidos integrar – e todos eles, objectivos e subjectivos – sem adjectivações e/ou considerados probatórios ou de qualificações jurídicas de permeio.
2 - E tais factos têm que estar concentrados seguindo uma lógica de subsunção aos diversos tipos penais pretendidos. Esta asserção liga-se, naturalmente, à ideia sabida de que é boa metodologia na dedução de uma acusação dispor do tipo penal presente na dedução desta. E a qualificação jurídica só pode surgir a final, assim como as indicações probatórias que se impõem.
3 - Não compete ao juiz de instrução andar a escolher factos dispersos e a reduzir a factos – deduzindo as intenções dos requerentes - amálgamas de factos e considerandos probatórios e de direito.
4 - É jurisprudência assente que a omissão da narração dos factos no requerimento de abertura da instrução, ainda que a exigência se baste com uma narração sintética, não dá lugar a um direito ao aperfeiçoamento - v. acórdão de uniformização de jurisprudência nº 7/2005, de 12 de Maio de 2005.
5 - Apesar de o direito ao juiz da assistente ter consagração constitucional, tal direito tem sido valorado pelo Tribunal Constitucional de forma diversa – e menos relevante – do que o direito à defesa do arguido
Ora, olhando para o requerimento de abertura da instrução, desde logo para a “acusação propriamente dita” afirmada nos artigos 164 e ss do requerimento de abertura da instrução, vemos imediatamente que ressaltam patologias diversas que o fulminam irremediavelmente.
Desde logo, ao nível da legitimidade para requerer a abertura da instrução – quanto aos crimes de furto e de abuso de confiança – não se retira qualquer ligação do assistente em relação dos bens que afirma terem sido subtraídos/apropriados, antes pelo contrário se retira que não tem ligação como se dirá infra.
Na verdade, não pode ignorar-se que a sociedade A. S. – EVENTOS, UNIPESSOAL, LDA não foi admitida a intervir nos autos como assistente (e como tal não assegurou legitimidade para requerer a abertura da instrução), sabendo-se que o sócio não se confunde com a sociedade.

Como se afirma, designadamente, no acórdão do TRE, de 02/07/2013, proc. 39/10.4JAFAR.E1, dgsi.pt:
- No nosso ordenamento jurídico as pessoas colectivas (entre elas, as sociedades, e, mais concretamente, as sociedades comerciais) não se confundem com as pessoas singulares, e nem tão pouco os seus sócios se confundem com elas.
As pessoas colectivas são centros autónomos de imputação de direitos e deveres, possuem personalidade jurídica e personalidade judiciária.
Se em parte alguma do requerimento para abertura da instrução a requerente alega que o arguido prejudicou ou se apropriou do património dela (antes, sim, da sociedade de que a requerente alegadamente é sócia e/ou gerente), há a concluir que a requerente não tem legitimidade para intervir como assistente, em nome próprio, em defesa do património societário.
Do que resulta, em face do requerimento de abertura da instrução, a ilegitimidade do assistente para requerer a abertura da instrução relativamente aos afirmados crimes de furto e de abuso de confiança qualificados.
Tanto que resulta categórico do requerimento (artigo 172.º) que os bens pertenciam à sociedade, já que nele é afirmado “…poder livremente dispor dos bens daquela sociedade …”
Ademais – mesmo que assim não fosse e é – resulta ostensivo que o assistente não descreve factualidade bastante (não se vislumbrando nele sequer uma forma de alegação implícita, mas inequívoca - ac. do TRP, de 04/06/2014, proc 187/11.7PDVNG-A.P1, in www.dgsi.pt) que permita afirmar a possibilidade de preenchimento dos elementos subjectivos dos tipos de crimes imputados, sendo neste aspecto o requerimento apresentado comprometedoramente omisso.
Como se sabe, a noção de dolo nas suas modalidades de directo, necessário e eventual resulta do artigo 14.º do Código Penal.
Afirmando o Professor Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, vol. II, pág. 162, que o dolo pode definir-se como a vontade consciente de praticar um facto que preenche um tipo de crime, constando a vontade dolosa de dois momentos: a) a representação ou visão antecipada do facto que preenche um tipo de crime (elemento intelectual ou cognoscitivo); e b) a resolução, seguida de um esforço do querer dirigido à realização do facto representado (elemento volitivo).
Ora, olhando para o requerimento de abertura da instrução, verifica-se a omissão de alegação de factualidade pertinente ao preenchimento dos elementos subjectivos dos crimes de furto e de abuso de confiança, sabendo-se que o Supremo Tribunal de Justiça fixou a seguinte jurisprudência (acórdão 1/2015, DR, 1.ª Série, de 27/01/2015) “A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal”.
Jurisprudência que vale, naturalmente, para o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, pois este funciona como uma verdadeira acusação – artigo 303.º/3 do CPP.
E o mesmo se passa ao nível do imputado crime de falsificação de documento. Aqui, seguramente que o assistente tem legitimidade.
Mas, ao nível do tipo subjectivo exige-se o dolo genérico, ou seja, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade, e o dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.
E visto o requerimento – enquanto acusação alternativa – nada dele consta.
São assim os vícios acima apontados determinantes na sorte do requerimento de abertura da instrução apresentado.
Sem a imputação de factos concretos que permitam o preenchimento dos elementos subjectivos de um determinado tipo legal de crime e demais elementos necessários, o(s) arguido(s) – desde que visado pela investigação - só poderia(m) ser pronunciado)s) pelo falsificação de documento (e o mesmo se aplica aos crimes de furto e de abuso de confiança, caso o requerente tivesse legitimidade) se à pronúncia fossem levados factos que representariam uma alteração substancial dos descritos no requerimento de instrução, o que está vedado e torna a instrução legalmente inadmissível.
Pois como refere o Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de 13/01/2011, proc. 3/09.0YGLSB.S1, www.dgsi.pt), “Se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente, concluir que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que narra jamais constituirão crime, deve rejeitar tal requerimento, por o debate instrutório nenhuma utilidade ter, porque “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, … quando este for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido” (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/2005).
E, como se refere no acórdão do STJ, de 11/09/2019, relator Juiz Conselheiro Maia Costa, proc. 47/17.8YGLSB, quando se verifique o incumprimento do disposto no n.º 3 do art. 283.º do CPP, imposto pelo n.º 2 do art. 287.º do CPP, ou seja, quando tenha sido omitida a narração dos factos, não parece adequado recorrer-se à figura da “impossibilidade legal”, uma vez que a lei não impede a priori a instrução. Perante a falta de previsão específica para o caso, mostra-se mais correto preencher a lacuna por meio do art. 311.º, n.º 2, a), e n.º 3, b), do CPP, aplicável à acusação (formal), que dispõe que a acusação deve ser rejeitada quando não contenha a narração dos factos.
Chegados aqui, impõe-se a rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente A. F., o que decido.
(…)”.

C) Apreciação do Recurso

- Da não admissão da constituição como Assistente da ofendida A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda. e do consequente não conhecimento do requerimento de abertura de instrução por falta de legitimidade da requerente.

Insurge-se a recorrente A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda com o indeferimento do seu pedido de constituição de assistente por falta de pagamento da taxa de justiça devida por tal constituição, porquanto, no seu entender, não tendo sido notificada, nem o seu mandatário, por parte da ISS, para juntar prova documental e de que a ausência de resposta levaria ao indeferimento do pedido de apoio judiciário, o seu requerimento de apoio judiciário tem de ser tido como deferido tacitamente, com a consequente dispensa de tal pagamento.
Vejamos.
Ora, com a apresentação do seu requerimento de abertura da instrução no dia 8 de julho de 2020, a referida sociedade requereu, simultaneamente, a sua constituição como assistente, juntando o comprovativo do pedido de apoio judiciário formulado nesse mesmo dia junto da Segurança Social, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (fls.675).
Com data de 17/8/2020 a Segurança Social informou os presentes autos da proposta de decisão relativa ao requerimento de proteção jurídica, a qual se encontra junta aos autos a a fls. 681/682, mais dando a saber ter notificado nessa mesma data a requerente A. S. - Evento, Unipessoal, Lda, de tal decisão e de que na falta de resposta ao solicitado o requerimento seria indeferido, não havendo lugar a nova notificação.
Por despacho proferido a 30/10/2020 (fls. 716) e na ausência de outros elementos que infirmassem o que resultava da informação da Segurança Social, a Mma Juiz considerou ter sido indeferido pela autoridade administrativa o pedido de apoio judiciário formulado pela requerente, tendo, em conformidade, e perante o não pagamento atempado da taxa de justiça, determinado a notificação da requerente A. S., Eventos Unipessoal, Lda, para pagar a taxa de justiça com os acréscimos legais, sob pena de não o fazendo ser rejeitado o requerimento de abertura de instrução.
Através de requerimento junto aos autos em 13/11/2020 (fls. 726) veio a requerente dizer que face à data em que apresentou o requerimento para concessão do benefício do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos (8/7/2020), e à ausência de decisão por parte da Segurança Social, mostra-se decorrido o prazo de 30 dias (artigo 25.º/1 da lei 34/2004) pelo que houve formação de ato tácito de deferimento.
Na sequência do alegado pela requerente e em cumprimento do despacho de fls.768, foi solicitado à Segurança Social que informasse o tribunal a respeito da decisão que recaiu sobre o pedido de protecção jurídica formulado pela sociedade ofendida, tendo aquela, em 10 de dezembro de 2020, dado a saber que tal pedido encontra-se indeferido por falta de resposta à audiência prévia realizada em 17/08/2020.
Consta ainda de tal informação que “em cumprimento do disposto no nº1, do artigo 23 da Lei 34/2004 de julho foi a requerente notificada por ofício registado para a morada que indicou no requerimento de Proteção Jurídica para, no prazo de 10 dias, querendo, se pronunciar no âmbito do exercício do direito de audição sobre a proposta da decisão que resultou da análise ao requerimento de protecção jurídica, com expressa referência à cominação de que nada dizendo, a proposta de decisão convertia-se em decisão definitiva de indeferimento não havendo lugar a nova notificação, nos termos do nº2 e 3 daquele preceito legal”.
Mais foi dado a saber que dentro do prazo estabelecido não deu entrada nos Serviços qualquer resposta da requerente, para além de que, sendo a decisão administrativa proferida suscetível de impugnação judicial, nos termos legalmente previstos no artigo 27º da citada lei, tal ato de indeferimento não foi até à referida data (10/12/2020) impugnado, mantendo-se a decisão final de indeferimento de proteção Jurídica.
Sustenta a recorrente no presente recurso, na senda do que já vem defendendo, que tendo formulado o seu requerimento em 8/7/2020 e não tendo sido notificada de qualquer decisão por parte da segurança social, o seu requerimento de apoio judiciário tem de ser tido como deferido tacitamente, nos termos do artigo 25º,nº1, não se conformando com o entendimento perfilhado pelo tribunal a quo no sentido de que tal pedido foi-lhe expressamente indeferido, com o consequente indeferimento do pedido de constituição de assistente por falta de pagamento da taxa de justiça devida e demais acréscimos.
Parece ter esquecido a recorrente que quem é competente para tomar posição sobre o pedido de proteção jurídica é a entidade administrativa a quem dirigiu o seu pedido, tendo-se limitado o tribunal recorrido a extrair as consequências da respetiva decisão proferida a tal respeito relativamente ao pedido de constituição de assistente formulado pela sociedade ofendida junto da autoridade administrativa.

Ora, estabelece o citado artigo 25.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, nos nºs 1 e 2:

«1- O prazo para a conclusão do procedimento administrativo decisão sobre o pedido de proteção jurídica é de 30 dias, é contínuo, não se suspende durante as férias judiciais e, se terminar em dia em que os serviços da segurança social estejam encerrados, transfere-se o seu termo para o 1.º dia útil seguinte.

2- Decorrido o prazo referido no número anterior sem que tenha sido proferida uma decisão, considera-se tacitamente deferido e concedido o pedido de proteção jurídica».

Como resulta da informação junta aos autos em 10/12/2020, já trazida à liça, a autoridade administrativa com competência para apreciação do requerimento de proteção jurídica apresentado pela requerente, nos termos do artigo 20º da citada Lei, confirmou a decisão de indeferimento de tal requerimento e não a formação de ato tácito de deferimento.
Ora, independentemente da alegada falta de notificação da requerente por parte da autoridade administrativa - mas como referimos tal notificação foi confirmada pela mencionada autoridade como tendo ocorrido em 17 de agosto de 2020 – é indiscutível que quando a mesma ocorreu para os efeitos de audiência prévia, o prazo de 30 dias a que alude o citado artigo 25º já havia decorrido, pois o pedido fora apresentado no dia 8/7/2020.
Porém, não obstante o decurso do prazo de 30 dias após a apresentação do pedido de proteção jurídica, a autoridade administrativa, bem ou mal não interessa agora, deu seguimento ao processo, procedendo à aludida notificação, concluindo nos termos do artigo 23º, da Lei citada, face à ausência de resposta ao solicitado no prazo de 10 dias concedido para o efeito, por um indeferimento expresso.
Saber se a autoridade administrativa podia ou não, face ao decurso do prazo de 30 dias em que se considera tacitamente deferido o pedido de proteção jurídica, ainda emitir um ato expresso de indeferimento do requerimento de proteção jurídica é questão que só podia ser dirimida em sede de impugnação judicial nos termos dos artigos 27º e 28º da Lei citada, o que não foi.
Estabelece o artigo 26.º, nº 2, da mesma Lei que «a decisão sobre o pedido de protecção jurídica não admite reclamação nem recurso hierárquico ou tutelar, sendo susceptível de impugnação judicial nos termos dos artigos 27.º e 28.º».
Dispõe o artigo 27º,nº1, que “A impugnação judicial pode ser intentada directamente pelo interessado, não carecendo de constituição de advogado, e deve ser entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica, no prazo de 15 dias após o conhecimento da decisão”.
Acrescentando o nº3 que “Recebida a impugnação, o serviço de segurança social dispõe de 10 dias para revogar a decisão sobre o pedido de protecção jurídica ou, mantendo-a, enviar aquela e cópia autenticada do processo administrativo ao tribunal competente».
Por sua vez determina o artigo 28.º, nº1, que “É competente para conhecer e decidir a impugnação o tribunal da comarca em que está sedeado o serviço de segurança social que apreciou o pedido de protecção jurídica ou, caso o pedido tenha sido formulado na pendência da acção, o tribunal em que esta se encontra pendente.
Resuma do exposto, que a decisão sobre o pedido de proteção jurídica não admite reclamação nem recurso hierárquico ou tutelar, sendo, contudo, suscetível de impugnação judicial nos termos dos citados artigos 27.º e 28.º.
Deste modo, não concordando a ora recorrente, Sociedade A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda, com o que foi decidido a respeito do seu pedido de proteção jurídica deveria ter impugnado a respetiva decisão, nos termos destas disposições legais.
Tal impugnação pode ser intentada diretamente pelo interessado, não carecendo de constituição de advogado, e deve ser entregue no serviço de segurança social que apreciou o pedido de proteção jurídica, no prazo de 15 dias após o conhecimento da decisão.
Recebida a impugnação, os serviços da segurança social confirmam ou revogam a decisão impugnada. Caso a mantenha, enviarão o processo ao tribunal competente.
Como se mostra evidente, qualquer impugnação teria de ser apresentada e decidida em conformidade com as citadas disposições legais, e não, como parece pretender a recorrente, nos presentes autos.
E claro está que não bastava também informar o tribunal de que se tinha formado um ato tácito de deferimento, pois, como vimos, o pedido, bem ou mal, foi expressamente indeferido por quem tinha competência para o efeito – a autoridade administrativa.
Em momento algum a sociedade requerente foi ao processo administrativo invocar o que quer que fosse, insistindo em afirmar nos presentes autos a formação de ato tácito de deferimento, nem mesmo após ter sido notificada do despacho de 30/10/2020, altura em que, mesmo a admitir-se por mera hipótese de raciocínio não ter recebido qualquer carta de notificação da autoridade administrativa, teve conhecimento que o seu requerimento fora expressamente indeferido pela autoridade administrativa.
A decisão proferida pela autoridade administrativa e eventuais irregularidades ocorridas no processo administrativo de proteção jurídica apenas podem ser reapreciadas no âmbito do mencionado procedimento, atenta a autonomia de que goza em relação à causa a que respeita (artigo 24ºda Lei a que vimos fazemos referência), o que não ocorreu no caso vertente pois a requerente nada ai invocou.
Aqui chegados, indeferido que se mostrava pela autoridade administrativa o pedido de proteção jurídica na modalidade requerida, sem que tal decisão tivesse sido objeto de impugnação judicial, outra solução não restava que não a de indeferir o pedido de constituição de assistente da sociedade ofendida, face à ausência de pagamento da taxa de justiça devida por tal constituição.
E sendo a constituição como assistente condição sine qua non para a abertura da instrução, bem andou também o Mmo Juiz ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução relativamente à requerente A. S., Eventos, Unipessoal, Lda, por falta de legitimidade para o efeito, nos termos do artigo 287º, nº1,al.b), “à contrário”, do C.P.Penal.
Por isso, nenhum reparo merece a decisão recorrida neste segmento.

- Da rejeição do requerimento da abertura de instrução relativamente ao assistente A. F..

Tendo-se concluído pela falta de legitimidade da sociedade A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda. para requerer a abertura da instrução, importa agora analisar o RAI relativamente ao requerente A. F..

Ora, na sequência do despacho de arquivamento proferido nos presentes autos ao abrigo do disposto no artigo 277º,nº2, do C.P.P., foi requerida a abertura da instrução contra o arguido, ora recorrente, pugnando-se no sentido da sua pronúncia pelos seguintes crimes:
- um crime de furto qualificado, p. e p., pelo artigo 202.º/-b), 203.º/1 e 204.º/1-f) e 2-a) do Código Penal.
- um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º/1 e 4-a), com referência ao artigo 202.º/-a) do Código Penal.
- um crime de falsificação de documentos, p. e p. pelos artigos 255.º/-a) e 256.º/1-a), c) d) e e) do Código Penal.

Como resulta da decisão recorrida, tal requerimento veio a ser rejeitado por falta de legitimidade do requerente A. F. para requerer a abertura de instrução quanto aos crimes de furto e de abuso de confiança, na medida em que perante os factos descritos no RAI apenas a sociedade A. S., Eventos, Unipessoal, Lda, e não o requerente, sócio gerente, assume a qualidade de “ofendido” relativamente aos mesmos.
Para além disso, defendeu-se também na decisão recorrida, a título de argumento de reforço, não conter o RAI, enquanto acusação alternativa, a alegação de factos pertinentes para o preenchimento dos elementos subjetivos de tais ilícitos, factos esses que a serem incluídos na pronúncia levariam a uma alteração substancial dos factos descritos do RAI, o que se mostra legalmente vedado.
Já quanto à pretendida pronúncia do arguido pela prática do crime de falsificação, pese embora a Mma Juiz tenha concluído pela legitimidade do requerente A. F. para requerer a abertura da instrução, foi do entendimento dever também o RAI ser rejeitado nessa parte, em virtude de nele também não constarem os factos consubstanciadores dos elementos subjetivos do mencionado crime.
Nada dizendo quanto ao decidido a respeito da sua falta de legitimidade, veio o recorrente A. F. defender que o RAI observou os requisitos legais a que deve obedecer, tendo nele sido narrados de forma sequencial, lógica e cronológica todos os factos concretos e essenciais para a integração dos tipos de crimes imputados ao arguido, ou seja, todos os factos suscetíveis de preencherem a totalidade dos elementos objetivos e subjetivos de cada um dos crimes imputados.
Vejamos.
A respeito do requerimento para a abertura da instrução, estipula o art.º 287º, n.º 2 do CPP, para além do mais, que “…. não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação (...), sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do nº 3 do artigo 283º.
Daqui se extrai que estando em causa um requerimento para a abertura da instrução por banda do assistente, tal requerimento deverá conter, em súmula, as razões de facto e de direito da discordância relativamente à não acusação por parte do Ministério Público, mas obedecer ainda ao estatuído no art. 283º, nº3, do C.P.P..

Dispõe este último que a acusação contém, sob pena de nulidade, nomeadamente:

« a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c)A indicação das disposições legais aplicáveis;
(…)».

Como se referiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10/7/2014, in www.dgsi.pt “ Os princípios da vinculação temática e da garantia de defesa do arguido impõem ao assistente que requeira a abertura da instrução determinados deveres, entre eles, o de afirmar factualmente qual o tipo de atitude ético-pessoal do agente perante o bem jurídico-penal lesado pela descrita conduta proibida”.
(…) é essencial que o arguido tenha um correto conhecimento do que realmente lhe vem imputado, o que passa pela concretização precisa e concisa quer dos factos – objectivos e subjectivos conformadores do ilícito típico em causa – quer do direito…”
O requerimento para a abertura da instrução é pois a base factual dentro da qual se moverá o contraditório, o exercício do direito de defesa, direitos que implicam uma clara e precisa definição do objecto do processo, tudo de harmonia com o disposto no art. 32º,nº1, da C.R.P..
Como resulta do preceituado no artigo 303º do C.P.P., o Juiz de instrução encontra-se vinculado aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, estipulando o n.º 3 desse mesmo preceito legal que uma alteração substancial do requerimento de abertura de instrução não pode ser tomada em conta pelo Tribunal para o efeito de pronúncia.
Na verdade, a pronúncia do arguido por factos que não constam do requerimento para a abertura da instrução e que se traduzem numa alteração substancial dos mesmos, configura a nulidade prevista no art. 309º,nº1, do C.P.P..
“O juiz está substancial e formalmente limitado na pronúncia aos factos pelos quais tenha sido deduzida acusação formal, ou tenham sido descritos no requerimento do assistente e que este considera que deveriam ser objecto da acusação do MP. O requerimento para a abertura da instrução formulado pelo assistente constitui substancialmente uma acusação alternativa (ao arquivamento ou à acusação deduzida pelo MP) que dada a divergência assumida pelo MP vai necessariamente ser sujeita a comprovação judicial” (Germano Marques da Silva, in “Do processo penal preliminar”, pág. 254.
O requerimento do assistente para a abertura de instrução tem assim de configurar substancialmente uma acusação. É este requerimento que define e limita o respetivo processo, o seu objeto.
O que se impõe ao assistente no requerimento para a abertura da instrução (por força do preceituado no citado artigo 287º,nº2), é pois o que se impõe ao Ministério Público aquando da dedução da acusação, nos termos do art. 283º,nº3, alíneas a), b) e c) e também ao assistente no caso de dedução de acusação por crime particular (art.285º,nº3, do C.P.P.).
No sentido de que o requerimento da abertura da instrução deve conter uma verdadeira acusação alternativa ao despacho de arquivamento, decidiram, entre outros, o acórdão do STJ de 13/1/2011, os acórdãos da Relação de Guimarães de 6/11/2017, de 14/2/2005, da Relação do Porto de 1/3/2006 e da Relação Coimbra de 27/9/2006, 2/10/2013 e 15/5/2019, todos publicados in www.dgsi.pt.
Volvendo-nos no caso concreto é indiscutível o acerto do entendimento vertido na decisão recorrida quanto à falta de legitimidade do assistente A. F. para requerer a abertura da instrução, com o argumento de que a qualidade de “ofendido” radica na sociedade comercial A. S. Eventos, Unipessoal, Lda e não naquele, seu sócio gerente
Com efeito, ainda que intervenha nos presentes autos na qualidade de assistente, qualidade que lhe advém enquanto titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação de outros crimes em causa nos presentes autos, designadamente dos imputados na acusação pública deduzida contra o arguido, já quanto aos crimes de furto e abuso de confiança tal intervenção sempre lhe estaria vedada à luz do preceituado no artigo 68º,nº1,a) do C.P.P., com a consequente falta de legitimidade para requerer a instrução nos termos do artigo 287º,nº1,b), do mesmo diploma.
E isto porque relativamente a tais ilícitos não pode ser considerado como “ofendido”, nos termos em que este é entendido à luz dos artigos 68º,nº1,al.a), do C.P.P. e 113º, do C.Penal.
De acordo com o citado artigo 68.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal, podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares do[s] interesse[s] que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.
Tomando como ofendidos apenas os titulares dos interesses que a lei quis proteger, manteve-se consagrado o conceito restrito de ofendido que a doutrina e a jurisprudência formularam sem divergências de maior no domínio do CPP de 1929, de acordo com o qual ofendido é o titular do interesse “direta”, “imediata” ou “predominantemente” protegido pela incriminação (Cfr. Beleza dos Santos, Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 57; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1º volume, págs. 505-506 e 512-513; Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Volume I, pág. 126 a 131; e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, págs. 264 e 335).
Como salienta Cavaleiro Ferreira, in obra citada, pág. 194 e segs. “ Para ser considerado ofendido para efeitos de admissão e constituição de assistente não basta ter sofrido um prejuízo com o crime, sendo ainda necessário que esse crime atinja directamente, especialmente, particularmente aquele que pretenda constituir-se assistente. Assim, não é ofendido para o referido efeito de intervenção como assistente no processo qualquer pessoa que tenha sido prejudicada com a prática do crime, mas apenas o titular do interesse que constitui o objeto imediato da infração”.
Não cabem, por isso, neste conceito restrito de ofendido “o titular de interesses mediata ou indiretamente protegidos, o titular de uma ofensa indireta ou o titular de interesses morais. Podem estes ser lesados e, nessa qualidade, sujeitos processuais enquanto partes civis, mas não constituir-se assistentes” (Acórdão do TC 145/2006, publicado no DR.66/206, Série II, de 3/4/2006).
Como se refere no acórdão de uniformização de jurisprudência, nº10/2010, de 22-02-2006, publicado no Diário da República, II série de 03-04-2006
“O conceito legal de ofendido é pois restrito ou, mais rigorosamente, estrito.
Não é de somenos importância esta conclusão, pois a aceitação de um conceito amplo de ofendido poderia envolver consequências desastrosas para o processo, pois abriria eventualmente as portas à manipulação ou instrumentalização da figura do assistente, pondo-a ao serviço de outros interesses que não o da colaboração com o MP na prossecução da ação penal. A aceitação de um conceito estrito de ofendido não desprezará, porém, os interesses da «vítima», quando forem efetivamente relevantes, melhor, quando ela for portadora de um interesse protegido pelo tipo legal. Tudo dependerá do entendimento em torno do conceito de «bem jurídico».
O conceito teleológico-normativo, tradicionalmente seguido, conduz à fixação do bem jurídico a partir da identificação dos «valores» ínsitos ou promovidos pela norma penal. O interesse público ou comunitário apresenta-se sempre como prioritário ou prevalecente. Daí que os interesses corporizados nas pessoas apareçam normalmente subalternizados, a não ser nos crimes contra os bens eminentemente pessoais.
Consequentemente, «ofendido», em bom rigor, só poderia haver nesses crimes, ou, quando muito, nos crimes contra a propriedade. Mas já não nos crimes contra o Estado e contra a sociedade, em que o carácter público ou supra individual dos valores consubstanciados nas respetivas normas relegaria os interesses particulares ou privados abrangidos pela tutela da incriminação para a categoria de meramente reflexos ou derivados, e, como tal, indignos de proteção penal direta, não tendo, pois, os seus titulares direito a arrogar-se um interesse especialmente protegido.
Esta conceção idealista, formal e «monolítica» de bem jurídico mostra-se porém incapaz de compreender a complexidade de uma grande parte das incriminações e a pluralidade de interesses que elas podem abranger no seu âmbito de proteção. Estes não podem ser «deduzidos» por uma interpretação teleológica dos tipos legais, sem referência com a realidade dos interesses concretos, corporizados nas pessoas efetivamente ofendidas pela prática do crime.
Tal não significa que todos os interesses lesados devem ser promovidos a bens jurídicos. Mas apenas que as incriminações podem eventualmente proteger vários interesses, todos eles se revelando suficientemente dignos da tutela da lei, ainda que algum dele se mostre mais «cintilante». É esta complexidade ou pluralidade de bens jurídicos que aquela conceção idealista é incapaz de apreender, no seu conceptualismo desligado da realidade.
Assim, a identificação do bem jurídico de um crime depende essencialmente da análise rigorosa dos seus elementos típicos, e não da sua inserção sistemática ou do seu «nome», elementos que deverão também ser considerados, mas não são decisivos.
Mesmo os crimes contra o Estado ou contra a sociedade podem «esconder» algum ou alguns interesses particulares suficientemente valiosos para a lei lhe reconhecer proteção direta. A defesa do interesse público ou social constitui naturalmente o objetivo primeiro deste tipo de crimes. Mas, a par dele, outros valores, de natureza privada, podem coexistir, amparando-se na tutela pública, mas com suficiente autonomia para se afirmarem como interessados específica e autonomamente, não apenas reflexamente, na punição da conduta típica.
(…).
Em síntese: sempre que for identificado um interesse determinado, corporizado num concreto portador, que não se confunda com o interesse (típico do lesado) no simples ressarcimento do dano sofrido, nem com o interesse geral na mera vigência das normas penais (as chamadas «expectativas comunitárias»), estaremos perante um bem jurídico protegido.”
Retomando o caso vertente e compulsado o requerimento para abertura da instrução, evola do mesmo que os factos com base nos quais se requer a pronúncia do arguido pelos crimes de furto e de abuso de confiança – sem estarmos agora a aferir se consubstanciam ou não todos os elementos objetivos e subjetivos dos respetivos tipos legais de crimes em apreço – assentam na subtração e apropriação por parte do arguido de bens pertencentes à sociedade A. S., Eventos, Unipessoal, Lda, e não ao assistente A. F., seu sócio gerente. É o que se colhe da redação dos pontos 167º, 168º e 172º do RAI.
Ora, tendo em conta o bem jurídico protegido por tais incriminações – o património - não pode deixar de concluir-se que o património dessa sociedade foi o único que de acordo com o RAI ficou afetado com a conduta do arguido e já não o património do seu sócio gerente, independentemente de eventuais prejuízos patrimoniais e não patrimoniais indiretos, os quais apenas lhe conferiam o estatuto de lesado e legitimidade para dedução de pedido cível, e não de “ofendido” para efeitos de constituição de assistente, nos termos referidos.
Deste modo, estando em causa bens da mencionada sociedade, tendo sido o património desta o diretamente prejudicado, somente ela é titular dos interesses imediata e diretamente tutelados que a lei especialmente quis proteger com tais incriminações e, consequentemente, dispunha de legitimidade para se constituir como assistente relativamente a tais atuações imputadas ao arguido.
Aliás, em parte alguma do requerimento o ora requerente A. S. alegou que o arguido subtraiu ou se apropriou de património a si pertencente.
Não podendo confundir-se a pessoa do sócio, ainda que seu representante legal e gerente, com a sociedade, pessoa coletiva com personalidade jurídica própria, enquanto centro autónomo de imputação de direitos e deveres, torna-se evidente que o requerente A. S. não dispõe de legitimidade para se constituir assistente relativamente a tais ilícitos e requerer a abertura da instrução (no sentido de que os sócios de uma sociedade comercial não têm legitimidade para se constituírem assistentes num processo crime em que é ofendida a sociedade podem consultar-se entre outros, os acórdãos do TRL de 03-06-2008 (processo n.º 3185/08), de 16-01-2008 (processo n.º 5567/2007-3), de 20-06-2007 (processo n.º 4721/2007-3), de 05-02-2004 (processo n.º 5364/2003-9), de 22-09-2005 (processo n.º 7063/2005-9), e do TRP de 02-03-2011 (processo n.º 1438/05.2TAVFR-A.P1), todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Tal legitimidade cabia assim à sociedade comercial A. S. Eventos – Unipessoal, Lda, mas, como já se decidiu, a apreciação do RAI relativamente a esta ficou prejudicada por não reunir a condição necessária para tal – ter sido a admitida a intervir nos autos como assistente.
E assim sendo, impõe-se concluir, na senda do entendimento perfilhado na decisão recorrida, pela ilegitimidade do requerente A. S. para intervir como assistente e requerer a abertura de instrução quanto aos mencionados crimes de furto e de abuso de confiança, mostrando-se prejudicado indagar se no RAI se encontravam ou não descritos os elementos subjetivos de tais ilícitos.
Já quanto ao crime de falsificação de documento, não seguiu o Mmo Juiz igual raciocínio.
Mas cremos que se impunha.
Como resulta do RAI, ainda que a assinatura (rúbrica) objeto de falsificação tenha sido a do requerente A. S. – enquanto sócio gerente da sociedade comercial por si representada – o fim visado pelo arguido com a falsificação de tal assinatura foi poder dispor dos bens da sociedade descritos na “Declaração de Cedência”.
Passando o processo de averiguação sobre a legitimidade do ofendido para se constituir assistente por aferir, através da norma incriminadora, qual o interesse que a lei quis proteger ao tipificar determinado comportamento como crime, só se podendo constituir assistente o titular do interesse que constitui objeto jurídico imediato do crime, vejamos então quem no crime de falsificação de documento em preço nos presentes autos é titular desse interesse.
Ora, constituindo um dos requisitos subjetivos neste tipo de crime de falsificação que o agente tenha atuado com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou alcançar para si ou para terceiro benefício ilegítimo – o denominado dolo específico - podendo, dessa forma, o crime de falsificação de documento visar também a proteção de bens jurídicos de natureza particular, para além do bem jurídico público (da fé pública, da segurança, da verdade da prova, da credibilidade do tráfico jurídico probatório), no caso vertente, tendo o arguido visado com a mencionada falsificação obter um benefício ilegítimo para si, este traduzido em poder dispor livremente dos bens da sociedade, com o inerente prejuízo da proprietária dos mesmos, a dita sociedade A. S. – Eventos, Unipessoal, Lda. não temos dúvida ser esta a titular do interesse particular que constitui objeto jurídico imediato do crime em apreço e quem tinha legitimidade para se constituir assistente.
E sendo a sociedade, como já referimos, uma pessoa jurídica distinta dos sócios, os seus interesses, designadamente patrimoniais, são diferentes dos interesses dos sócios individualmente considerados, de forma que a afetação daqueles só de forma mediata e indireta poderá constituir prejuízo para estes.
Ainda que o requerente A. S., na qualidade de sócio gerente da referida sociedade e titular da assinatura falsificada, possa ter sofrido prejuízos, os mesmos serão consequência indireta ou reflexa dessa atuação do arguido.
Deste modo, não sendo o diretamente visado com tal atuação, mas podendo eventualmente ser lesado e nessa qualidade sujeito processual como parte civil, não pode, porém, constituir-se assistente no crime em apreço.
E isto porque não é ofendido nos termos e para os efeitos do citado artigo 68º, já que “não é titular dos interesses que a lei”, neste caso concreto, “especialmente quis proteger com a incriminação”.
A única titular desse interesse é pois a sociedade.
E assim sendo, como é, entendemos que também quanto ao crime de falsificação o requerente A. F. carecia de legitimidade para se constituir como assistente e de prosseguir o processo requerendo a abertura da instrução.
De qualquer modo, também não podemos deixar de concordar com entendimento perfilhado na decisão recorrida quanto ao que motivou a rejeição do RAI a respeito da pretendida pronúncia do arguido pelo crime de falsificação, sendo inquestionável quanto a nós a completa omissão no RAI do elemento emocional do dolo.
A consciência da ilicitude é assim o momento constitutivo do dolo (não do tipo de ilícito, mas do tipo de culpa), o seu momento emocional, sendo, portanto, uma exigência da atuação dolosa do agente na realização do tipo.
De facto, em momento algum se mostra alegado que o arguido tinha consciência da ilicitude da sua atuação, seja através da fórmula “o arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei” – seja através de outra que expressasse esse dolo de culpa. E tanto bastava para que o RAI estivesse votado ao fracasso, na medida em que não configuraria a dita “acusação alternativa”, sendo insuscetível de qualquer aperfeiçoamento, de acordo com a doutrina fixada no acórdão de fixação de jurisprudência já trazido à liça na decisão recorrida.
Na verdade, ainda que a prova dos elementos subjetivos do dolo, porque pertencente ao mundo interior do agente, possa fazer-se através do recurso às regras da experiência e da normalidade da vida e a presunções naturais, a sua alegação no RAI é imprescindível, sob pena de, perante tal ausência, não estar preenchido o respetivo tipo legal de crime imputado ao arguido.
Uma coisa é a alegação de factos, outra bem diferente é a prova desses mesmos factos. E esta última, pese embora possa ser feita, no que respeita ao dolo, através do recurso às mencionadas regras e presunções, não dispensa que na acusação se descrevam os respetivos factos que o integram, assim se delimitando o objeto do processo.
Pelo exposto, e sem necessidade de mais considerações a tal respeito, porquanto desnecessárias, dando-se por reproduzidas as considerações tecidas na decisão recorrida, impunha-se também por esta via rejeitar o requerimento de abertura de instrução quanto à requerida pronúncia do arguido pelo crime de falsificação.
Improcede pois na sua globalidade o recurso interposto.

III – Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto, mantendo-se o despacho recorrido.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (art.º 8 n.º 5 e tabela III anexa do RCP).

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 13 de julho de 2021

Desembargadora Relatora
Cândida Martinho
Desembargador Adjunto
António Teixeira