Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
154/21.2GAMNC.G1
Relator: PAULO CORREIA SERAFIM
Descritores: IMPOSSIBILIDADE DE REALIZAÇÃO DE RELATÓRIO SOCIAL
VÍCIO DE INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Regra geral, a ausência na matéria de facto provada das condições pessoais e sociais do arguido, por não elaboração do respetivo relatório social, quando este se revele indispensável para assegurar a boa decisão da causa, constitui fundamento do vício de insuficiência para a decisão daquela factualidade, conforme previsto no art. 410º, nº2, alínea a), do Código de Processo Penal.
II – Todavia, tal vício não ocorre em casos como o dos autos em que, não obstante o tribunal ter determinado a sua elaboração, nos termos do art. 370º do CPP, se verifica impossibilidade de realização do relatório social por parte da DGRSP em virtude de falta de colaboração do arguido para o efeito.
III – No caso vertente, o Tribunal recorrido fez tudo o que estava ao seu alcance para obter prova sobre as condições pessoais e sociais do arguido, designadamente solicitando à DGRSP a elaboração de relatório social, solicitação que ocorreu no momento que entendeu oportuno, ou seja, após o arguido não ter comparecido à audiência de julgamento e, assim sendo, sem que o Tribunal pudesse obter do mesmo declarações a tal propósito, relevando os autos que não se mostrou viável a elaboração daquele relatório devido à falta de colaboração do arguido, que, apesar de regularmente notificado para o efeito, reiteradamente se absteve de comparecer às necessárias entrevistas, desse modo frustrando a sua realização.
IV – Compulsados os autos, não se vislumbram outras diligências processuais que fosse de exigir ao Tribunal a quo que tivesse promovido, sendo que igualmente não podia procrastinar indefinidamente a prolação da decisão final sobre o objeto do processo, aguardando, sem garantia, que o arguido finalmente se resolvesse a colaborar com o Tribunal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO:
           
I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 154/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo de Competência Genérica ..., no dia 26.09.2022, foi proferida e depositada sentença com o seguinte dispositivo (referências ...63 e ...94, respetivamente):

“Nestes termos, o Tribunal decide:
▪ Condenar o arguido AA, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples (p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal) na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de prisão;
▪ Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada de 1 (um) crime de injúria (p. e p. pelo artigo 183º, nº 1, do Código Penal) na pena de 60 (sessenta) dias de prisão;
Em cúmulo jurídico condenar o arguido AA na pena única de 280 (duzentos e oitenta) dias de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo com regime de prova e subordinada à condição de pagar a indemnização infra fixada à ofendida;
▪ Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil e, consequentemente, condenar o arguido AA no pagamento à demandante (assistente) de compensação no valor de 500,00€ (quinhentos euros) acrescido de juros de mora à taxa legal desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento;
▪ Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C. (duas unidades de conta);”

I.2 Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido AA interpor o presente recurso, que na sua motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...16):
           
“A- O tribunal “a quo” condenou o arguido pelos crimes de que vem acusado, fundamentando a sua sentença na matéria de facto dado como provada;
B- A audiência de julgamento decorreu na ausência do arguido, tendo o tribunal “a quo” determinado a elaboração de relatório social às condições sócio económicas do arguido, nos termos do artº 370º do C.P.P.
C- Ora, o relatório social nunca chegou a ser remetido para o tribunal, não tendo sido possível proceder a sua elaboração por parte da entidade competente para o efeito, a D.G.R.S.P – ....
D- Impossibilidade devida, num primeiro tempo, a falta de comparência do arguido e, numa segunda tentativa, por falta de notificação do arguido, impossibilitando a sua comparência e elaboração do relatório social.
E- Nada mais tendo sido feito e solicitado pelo tribunal no sentido de averiguar das condições socioeconómicas e familiares do arguido, apesar de diversas diligências legalmente previstas para a realização do mesmo.
F- No ponto E) da motivação da sentença do Tribunal, no que diz respeito a escolha e determinação da medida da pena, é feita referência ao artigo 71°, n.°2 do Código Penal onde às condições pessoais do arguido e à sua situação económica são elencadas como pressupostos importantes quanto a escolha e determinação da medida da pena;
G- Assim como, em aplicação do artigo 77°, n.°1 do C.P, o tribunal “a quo” atendeu à personalidade do arguido somente com a consulta do Certificado de registo criminal, por não ter a sua disposição o relatório social que nunca foi elaborado e junto aos autos.
H- Ora, a matéria sobre as condições pessoais do arguido e sua situação económica – [cf. al. d), do n.º 2, do artigo 71º do Código Penal], é essencial para as próprias opções, em sede de penas, tomadas pelo tribunal.
I- Esse relatório não é obrigatório, mas é peça essencial para a operação da determinação da medida da pena, sobretudo em casos em que se cogita a aplicação de penas privativas de liberdade relativamente a um arguido não presente em audiência e estando ele à completa revelia do processo.
J- Condenando o Arguido sem que tivesse sido elaborado Relatório Social, decidiu o douto tribunal "a quo" sem matéria de facto bastante, e sem conhecer a personalidade do agente e suas condições de vida.
K- Ora neste caso, apesar de ser referido na sentença a necessidade e importância de ter em consideração na escolha e determinação da medida da pena, os pressupostos enumerados no artigo 71.º, n.º2 do Código Penal, nomeadamente, às condições pessoais do agente e à sua situação económica, à conduta posterior e anterior ao facto e à falta de preparação, revelada através dos factos, para manter uma conduta conforme às prescrições ético-jurídicas, o Tribunal só e unicamente considerou o certificado de registo criminal no ponto 11 dos factos provados.
L- A falta de elementos probatórios bastantes, que pudessem ser veiculados através do relatório social aos autos, por forma a poderem vir ancorar a espécie e medida da pena a aplicar, constitui, a nosso ver, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP.
M- Significa isto que a decisão se mostra «amputada» de aspetos relevantes para a ponderação da Questão da determinação da sanção [artigo 369º do CPP], o que encontra eco na exiguidade dos fatores considerados em sede de determinação da pena, os quais - para além daqueles que já fazem parte do tipo e por isso insuscetíveis de ser de novo valorados -, no essencial, se quedaram pelos antecedentes criminais do arguido.
N- Deste modo, enferma a sentença recorrida do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, isto é, para uma decisão jurídica criteriosa nos termos do artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP.
O- Concluindo-se pelo provimento do presente recurso e, em consequência, pela anulação da sentença e o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do artigo 426° do C.P.P.

Termos em que, decidindo-se em conformidade com as conclusões que antecedem se fará JUSTIÇA!”

Na primeira instância, a Digna Magistrada do Ministério Público, notificada do despacho de admissão do recurso formulado pelo arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, apresentou a sua douta resposta, invocando pertinente jurisprudência e pugnando a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida (referência ...37).

I.3 Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, perfilhando a posição assumida pelo MP em primeira instância, aduz outra jurisprudência e sustenta a improcedência do recurso (referência ...29).
Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, não foi deduzida resposta ao sobredito parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*

II – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (thema decidendum):

É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no Artº 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (ulteriormente designado, abreviadamente, CPP).[1]
            Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa dilucidar é a de saber se a sentença recorrida enferma de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cf. art. 410º, nº2, al. b), do CPP), por falta de elaboração de relatório social relativo às condições pessoais e sociais do arguido.  
*
III – APRECIAÇÃO: 
           
Sustenta o arguido/recorrente, em síntese, que não foi elaborado relatório social concernente às suas condições socio-económicas, nos termos do art. 370º do CPP, pelo que, sendo tais condições relevantes para a escolha do tipo e medida da pena a aplicar (cf. arts. 71º, nº2, al. d) e 77º, do CP, e art. 369º do CPP), o Tribunal a quo decidiu sem matéria de facto bastante e sem conhecer a personalidade do agente e suas condições de vida, verificando-se assim o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (cf. art. 410º, nº2, al. a), do CPP), e, por conseguinte, cumpre declarar tal vício e determinar o reenvio do processo para novo julgamento (cf. art. 426º do CPP). 

Apreciando.

Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:

“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada […]”.

No que tange ao invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, comungando do douto e cristalino ensinamento do Exmo. Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças [in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 25/26], cumpre ter presente:

“Se o recorrente alega este vício – partindo necessariamente da análise do texto da decisão – deve especificar os factos que em seu entender era necessário – para a decisão que devia ser proferida – que o tribunal a quo tivesse indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo.
Assim, num discurso argumentativo, encorpado e completo, mas ao mesmo tempo simples e claro, o recorrente deve procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos (identificando-os) necessários (fundamentando esta necessidade, nomeadamente invocando as normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles quando (fundamentando) podia e devia ser feita.”        
O vício em apreço tem forçosamente de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou mediante concomitante recurso às regras de experiência comum, não cabendo na previsão do preceito legal «toda a tarefa de apreciação ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objeto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto» [cf. Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anot. 1 ao art. 410º, p. 1291]. 
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada implica que esta, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal.
Dito isto, vejamos então se a ausência da matéria de facto provada das condições pessoais e sociais do arguido, por não elaboração do respetivo relatório social, se revela, in casu, fundamento para o clamado vício de insuficiência para a decisão daquela factualidade.  
«Relatório social» é a informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei – art. 1º, alínea g), do CPP.

Estipula o art. 370º, nº1 do CPP:

“O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respetiva atualização quando aqueles já constarem do processo.”

Por seu turno, preceitua o art. 71º do Código Penal, sob a epígrafe “Determinação concreta da pena” (na parte que ora releva):

“1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
(…)
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
 
O art. 77º, nº1, do CP, regulando a punição do concurso de crimes, estatui que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”
Exceto no caso de o arguido ser menor, a lei processual penal acentua o caráter facultativo do relatório social (ou da solicitação de uma informação aos serviços de reinserção social, em alternativa ao relatório social) – cf. art. 370º, nºs 1 e 2, do CPP [redação conferida pela Lei nº 33/2019, de 22.05].
Essa faculdade de ordenar ou não a realização de relatório social não se traduz em discricionariedade do tribunal, o qual se deve pautar sempre por um critério casuístico de necessidade. Perante o caso concreto que se lhe apresente, o julgador deve ponderar se os meios probatórios de dispõe nos autos são suficientes ou não para aquilatar dos fatores de determinação concreta da pena a que a lei manda atender, designadamente os vertidos nas alíneas d) e f) do nº2 do art. 71º do CP. No primeiro caso, pode dispensar a realização do relatório social; no segundo caso, deve ordená-la.

Como menciona o Exmo. Conselheiro Oliveira Mendes [in “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, comentário 2 ao art. 370º, p. 1126], «A redação do nº1 inculca a ideia de que a requisição do relatório social ou da informação dos serviços de reinserção social não é obrigatória (…). Só assim será, porém, quando não sejam essenciais. Caso contrário, ou seja, caso se mostrem necessários à correta determinação da sanção que possa vir a ser aplicada, é evidente que a sua requisição, ao contrário do que a letra da lei inculca, torna-se obrigatória. É que sendo necessários à correta determinação da sanção, ou seja, à boa decisão da causa, conforme impõe o nº1 do artigo 340º, sobre o Tribunal recai o poder/dever de, oficiosamente, ordenar a sua elaboração.»  
A falta de relatório social, quando este se revele indispensável para assegurar a boa decisão da causa, é suscetível de integrar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2007, Processo nº 1404/2007, de 05.09.2007, Processo nº 4798/06, de 30.11.2006, Processo nº 3657/06-5ª Secção, e de 11.01.2006, Processo nº 3461/05-3ª Secção, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
A imprescindibilidade do relatório social há de ser apreciada pelo julgador casuisticamente, tendo em vista o fim a que se destina a prova ou indício de prova que com tal instrumento se pretende obter e consoante a suficiência ou insuficiência para o efeito da restante prova disponível nos autos – neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2018, Processo nº 108/18.6GAESP.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Bispo, e de 13.07.2020, Processo nº 414/19.2GAESP.G1, relatado pela Exmo. Desembargadora Teresa Coimbra, disponíveis em www.dgsi.pt (igualmente citados pelo Exmo. PGA no douto parecer que lavrou nos autos).
Julgamos que, regra geral, se impõe a elaboração de relatório social quanto a arguido ausente da audiência de julgamento, quando apenas se apuraram os seus antecedentes criminais, desconhecendo-se as suas condições pessoais e sociais, designadamente a sua situação económica e a sua conduta posterior ao facto – assim foi também entendido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.12.2008, Processo nº 2816/08, disponível em www.dgsi.pt.
Contudo, reitera-se, para que ocorra o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto apurada, é imperativo que o Tribunal se demita da sua função investigatória ex officio, isto é, que, podendo fazê-lo, se abstenha de procurar conhecer as condições de vida do arguido relevantes para a determinação da sanção penal que se lhe deva cominar, mostrando-se tal prova possível.[2] 

No caso sub judice, compulsada a douta decisão recorrida e os autos em geral, temos por assente que o tribunal a quo decidiu sobre a medida da pena a aplicar ao arguido AA sem que tivesse sido junto aos autos o respetivo relatório social, não obstante tivesse sido solicitada à DGRSP a sua elaboração  e sem que tivesse sido produzido em audiência outro meio de prova (declarações arguido, testemunhal ou outro) atinente às suas condições socio-pessoais, invocando apenas para efeitos de consideração da sua conduta anterior os antecedentes criminais deste, estribado no teor do certificado de registo criminal junto a fls. 138 e seguintes.
Todavia, atendendo ao circunstancialismo fático-processual do presente caso, entendemos que o Tribunal recorrido fez tudo o que estava ao seu alcance para obter prova sobre as condições pessoais e sociais do arguido, designadamente solicitando à DGRSP a elaboração de relatório social, nos termos do art. 370º do CPP, solicitação que ocorreu no momento que entendeu oportuno, ou seja, após o arguido não ter comparecido à audiência de julgamento e, assim sendo, sem que o Tribunal pudesse obter do mesmo declarações a tal propósito, relevando os autos que não se mostrou viável a elaboração daquele relatório em virtude da falta de colaboração do arguido, que, apesar de regularmente notificado para o efeito, reiteradamente se absteve de comparecer às necessárias entrevistas, desse modo frustrando a sua realização.

Assim, decorre dos autos que:       

▫ O arguido foi constituído como tal a 09-07-2021 e, na mesma data, prestou Termo de Identidade e Residência (TIR).
▫ Nessa altura e em conformidade com o n.º 3, do artigo 196.º, do CPP, o arguido tomou conhecimento e ficou ciente, entre o mais:
- Da obrigação de comparecer perante a autoridade competente ou de se manter à disposição dela sempre que a lei obrigar ou para tal for devidamente notificado;
- Da obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou o lugar onde pode ser encontrado:
- De que as posteriores notificações serão feitas por via postal simples para a morada indicada, exceto se comunicar uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrem a correr nesse momento;
- De que o incumprimento do disposto nas alíneas anteriores legitima a sua representação por defensor em todos os atos processuais nos quais tenha o direito ou o dever de estar presente e bem assim a realização da audiência na sua ausência, nos termos do artigo 333.º;
- De que, em caso de condenação, o termo de identidade e residência só se extinguirá com a extinção da pena.
▫ Na sequência do recebimento da acusação, foi designado o dia 28-04-2022 para a realização do julgamento.
▫ O arguido foi notificado da data designada para a audiência por via postal simples com prova de depósito, para a morada por si indicada no TIR, conforme preceituam os artigos 113.º, n.ºs 1, alínea c), e 3, 196.º, n.º 2, e 313.º, n.ºs 2 e 3, parte final, todos do CPP, tendo sido igualmente advertido de que, faltando, esta poderia ter lugar na sua ausência, sendo representado para todos os efeitos possíveis pelo seu defensor (ref. ...90, de 29-03-2022, com prova de depósito ref. ...14, de 04-04-2022).
▫ Não obstante, regularmente notificado, a 28-04-2022, o arguido não compareceu, nem justificou a sua ausência, perante o que o Tribunal, considerando que a sua presença não era absolutamente indispensável para a descoberta da verdade material, deu início à audiência.
▫ Foi então que, em face da ausência do arguido, foi determinada a elaboração de relatório social, nos termos do artigo 370.º, do CPP.
▫ Porém, a 27 de maio de 2022 (ref. ...93), veio a DGRSP informar que: «(…) o arguido, AA não compareceu à entrevista para a qual foi convocado, via postal, a ter lugar no dia 26-05-2022, nas instalações do Tribunal Judicial .... Nesse mesmo dia foi efetuada deslocação ao endereço indicado nos autos, mas não se encontrava ninguém. Uma vez que dispomos do contacto telefónico do efetivo inquilino da casa, BB, que o próprio nos dispensou, no âmbito de anterior tentativa de localizarmos o arguido, estabelecemos contacto com ele, obtendo a informação que AA continua acolhido em sua casa, tem acesso às cartas que lhe são enviadas, que ignora, ou destrói de imediato. Trabalha de forma irregular, na construção civil, mas sobretudo deambula pelos cafés da .... Não comparticipa com qualquer contributo para as despesas de casa. Face ao exposto, na impossibilidade de realizarmos a entrevista ao arguido, deixamos à consideração de V. Exa a possibilidade de o mesmo ser notificado judicialmente para comparecer em entrevista, com a TSRS CC, a realizar-se no dia 09 de junho 2022 (quinta-feira), às 10h45m, nas instalações do Tribunal Judicial ..., a fim de procedermos a elaboração do relatório social solicitado.»
▫ Nessa sequência, foi determinada a notificação do arguido da nova data aprazada pela DGRSP para a realização da entrevista, por contacto pessoal, a realizar por OPC.
▫ A Ilustre Defensora do arguido foi notificada desse despacho, tomando conhecimento da data agendada para realização da entrevista e da anterior impossibilidade de contacto com o arguido (ref. ...96, de 03-06-2022).
▫ Todavia, também não foi possível notificar o arguido, resultando da informação junta pela GNR (ref. ...95, de 13-06-2022) que: «Foram efetuadas diligências em vários dias e diferentes horários, junto da morada indicada, não sendo possível o contacto com o visado. Foram ainda efetuadas diligências numa obra em Mazedo, onde havia sido visto dias antes, mas também esta se revelou infrutífera relativamente à sua notificação em tempo oportuno.»
▫ Nesse contexto, o arguido faltou igualmente à segunda entrevista agendada, tendo a DGRSP junto informação aos autos (ref. ...74, de 14-06-2022) dando conta que: «Na sequência do despacho proferido no âmbito do presente processo, deslocamo-nos no passado dia 09-06- 2022 às instalações do Tribunal Judicial ... a fim de entrevistarmos o arguido, AA, para efeitos de elaboração do relatório social para determinação da sanção solicitado, não tendo o arguido comparecido. Assim e tendo sido determinado que o mesmo seria notificado judicialmente para comparecer à entrevista através dos OPC, deslocamo-nos à GNR ... onde nos foi dado obter a informação que a notificação não tinha sido cumprida, pelo que não chegou ao conhecimento do arguido a data e a hora da entrevista agendada.»
▫ Em face disso, foi designado o dia 30-06-2022, para continuação da audiência, tendo o arguido sido notificado por via postal simples com prova de depósito (referências ...66, de 21-06-2022 e 3647395, de 29-06-2022).
▫ A requerimento da Ilustre Defensora, foi tal data dada sem efeito, designando-se o dia 15-09-2022, em substituição, sem que o arguido tivesse sido notificado do adiamento e da nova data designada, mas sendo certo que, apesar de regularmente notificado, aquele também não compareceu no dia 30-06-2022.
▫ Entretanto, foi designado o dia 26-09-2022, às 13h30, para a leitura da sentença, ato para o qual o arguido foi novamente notificado, por via de postal simples com prova de depósito (referências ...25, de 15-09-2022 e 3723277, de 21-09-2022), sendo que o arguido, mais uma vez, não compareceu.
▫ O arguido foi notificado da sentença condenatória, nos termos do artigo 333.º, n.º 5, do CPP, a 30-09-2022 (ref. ...46, de 04-10-2022).
Destarte, como assertivamente conclui a Exma. Magistrada do Ministério Público na resposta que deduziu ao recurso em primeira instância, «(…) perante a postura pouco (ou nada) colaborativa e desinteressada do arguido com a administração da justiça e sendo desconhecido o seu paradeiro, facilmente se constata que a elaboração de relatório social estava inviabilizada e votada ao insucesso, pois não é possível a respetiva elaboração sem a sua colaboração. Sempre se diga que o recorrente foi representado, em sede de audiência de discussão e julgamento, pela sua Ilustre Defensora, que em momento algum invocou a necessidade de concretas diligências para apuramento da concreta situação pessoal, económica e social do arguido.»

E igualmente se absorvem como corretas as conclusões vertidas pelo Exmo. PGA no douto parecer que lavrou nos autos e que aqui, pela sua pertinência, se reproduzem:
«Assim, tem de forçosamente concluir-se:
Por um lado, o juiz de julgamento ordenou a elaboração de relatório social.
Por outro lado, determinou a realização das pertinentes diligências para tal finalidade, o que só não aconteceu por motivos imputáveis única e exclusivamente ao aqui arguido/recorrente.
Acresce que, mesmo não tendo sido possível elaborar relatório social, sempre o arguido/recorrente podia ter carreado para os autos prova quanto às suas condições pessoais e a sua situação económica, o que não aconteceu.»
Concluindo:
No caso vertente, a audiência de julgamento decorreu, nos termos legais (art. 333º, nºs 1 a 3 do CPP), na ausência do arguido, sendo que este, apesar de regularmente notificado para os atos processuais necessários à elaboração do relatório social por banda da DGRSP, instrumento coadjuvante da decisão, cuja realização foi oficiosamente determinada pelo Tribunal a quo, e não obstante as tentativas efetuadas para se lograr a sua notificação pessoal para comparência à necessária entrevista com a técnica de reinserção social, quer por determinação do Tribunal quer por iniciativa da DGRSP, aquele sempre desprezou ou frustrou tais diligências, desconhecendo-se o seu concreto paradeiro, o que, a final, na falta de produção de outros meios probatórios sobre tal matéria, impossibilitou o conhecimento pela Exma. Julgadora das condições sociais e pessoais do arguido, forçando-a a decidir sobre a determinação da medida da pena com o único elemento fático documentalmente comprovado nos autos, isto é, os seus antecedentes criminais.
Note-se que a ilustre defensora do arguido, presente na audiência de julgamento, não solicitou, como podia, que ele fosse ouvido na segunda data designada (cf. art 333º, nº3, do CPP), embora se conceda que tal requerimento estaria, previsivelmente, condenado ao insucesso, porquanto o anterior reiterado comportamento processual do arguido inculcava já a sua falta de vontade de se apresentar perante as autoridades judiciais no âmbito do presente processo.  
Por conseguinte, não se vislumbram outras diligências processuais que fosse de exigir ao Tribunal a quo que tivesse promovido, sendo que igualmente não podia procrastinar indefinidamente a prolação da decisão final sobre o objeto do processo, aguardando, sem garantia, que o arguido finalmente se resolvesse a colaborar com o Tribunal.       
Não ocorre, assim, o alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pelo que soçobra o recurso deduzido pelo arguido.
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IV - DISPOSITIVO:

Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao douto recurso interposto pelo arguido AA e, em conformidade, manter a douta sentença recorrida.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça (arts. 513º e 514º, ambos do Código de Processo Penal, arts. 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este diploma legal), sem prejuízo da proteção jurídica na respetiva modalidade de que beneficie (cfr. requerimento junto aos autos com referência ...10).

Notifique (art. 425º, nº6, do CPP).
*
                                                                         
Guimarães, 2 de maio de 2023,
 
Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]
Pedro Freitas Pinto (Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Fátima Sanches
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)


[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que ainda hoje mantém atualidade.
[2] A tal propósito, refere o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21.12.2017, Processo nº 101/12.2PATNV.E1, relatado pela Exma. Desembargadora Ana Barata Brito, disponível em www.dgsi.pt: «Mas a circunstância de a decisão condenatória que é omissa quanto a factos pessoais do arguido estar em princípio ferida de vício de insuficiência da matéria de facto provada, não significa que assim seja inevitavelmente; a questão é apreciada e valorada sempre em concreto. Assim, as diligências que o tribunal deve fazer oficiosamente, e o grau de conhecimento que se lhe exige sobre a pessoa do condenado, variarão segundo as circunstâncias do caso e o próprio sentido da decisão final.» No mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.11.2016, Processo nº 1927/05.9TAVNG.P1, relatado pelo Exmo. Desembargador Manuel Soares, disponível em www.dgsi.pt: «A omissão na sentença dos factos relevantes para determinar a pena, apenas conduz ao vicio do artº 410º2 al. a)CPP se do processo, resultar que o tribunal não teve a iniciativa de os investigar quando devia e podia tê-lo feito sendo possível produzir essa prova.»