Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
719/04-1
Relator: MIGUEZ GARCIA
Descritores: MAUS TRATOS ENTRE CÔNJUGES
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/31/2004
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I – O crime de maus tratos a cônjuge ou a pessoa que conviva com o agente previsto no artigo 152°. nºs 2 e 3 do Código Penal, persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima ( humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência, o que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente, havendo, por isso, quem sustente que se trata de um crime de execução permanente, uma vez que o ilícito supõe a repetição de condutas. por forma a gerar-se uma pluralidade indeterminada de actos parciais.
II – Tendo a sentença recorrida considerada provada a matéria da acusação em que era imputada a prática de tal crime e ainda outros factos, resultantes da discussão da causa e, observando que estando embora o arguido acusado da prática de um crime de maus tratos a cônjuge, a verdade é que na acusação apenas era descrito um episódio concreto em que o arguido atingiu a assistente na sua integridade física, o que integraria, não o crime de maus tratos, mas o de ofensa à integridade física, entendeu que tais factos são susceptíveis de configurar uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ( artigo 1°, alínea f), do Código de Processo Penal ), implicando a imputação ao arguido de um crime diverso — “na medida em que, estes sim. são susceptíveis de integrar a prática de um crime de maus tratos a cônjuge. diversamente do que sucedia com os descritos na acusação” — pelo que ainda nos termos dos artigos 359°. nºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, e 289° e 493° n° 2, do Código de Processo Civil, absolveu o arguido da instância, uma vez que este manifestou a sua oposição à continuação do julgamento “por estes novos factos”.
III – Efectivamente, a sentença recorrida partiu do princípio de que tudo aquilo que se congrega numa única infracção de execução permanente, como é o crime de maus tratos, devera ser tratado num mesmo processo, pois que os factos da acusação e os que vieram a ser revelados peia discussão da causa, embora naturalisticamente diversos, relacionam-se entre si em termos de identidade criminosa.
IV - Mas a possibilidade de os levar em conta, no mesmo processo teve a oposição do arguido prevista no n° 1 do artigo 359° do Código de Processo Penal, o qual também, entendendo que não se admite em processo penal a absolvição da instância, reclama a sua absolvição da acusação ou, se porventura se considerar que o factos da acusação são verdadeiros, a sua condenação pelo crime de ofensas corporais simples do artigo 143°, n° 1. do Código Penal.
V – Apreciando, dir-se-á em primeiro lugar que com a solução adoptada a sentença recorrida conheceu de todas as questões em apreciação, não sendo justo dize-la inquinada de nulidade, pelo que, apenas o caminho seguido, que levou a absolvição da instância, é que pode não gerar unanimidade.
VII - Ainda assim, é certamente solução do processo civil (artigo 289° do Código de Processo Civil ) que se harmoniza com o processo penal (artigo 4º), e que evita, por outro lado, os inconvenientes da litispendência, sendo também de acatar, por não fornecer a própria lei penal adjectiva disposição que possa aplicar-se por analogia.
VIII – Podendo embora ligar-se-lhe prejuízos para a celeridade processual, é solução que não deixa de estar em concordância com o procedimento ditado pelo artigo 359° do Código de Processo Penal e que dá saída à averiguação da verdade material, sendo o próprio legislador que ao erigir esse “incidente” processual como dando ao arguido adequadas garantias de defesa simultaneamente reconhece que os correspondentes e necessários entorses à celeridade ainda se compatibilizam com essas mesmas garantias.
IX – De qualquer modo. não se mostra no recurso que esteja excluída a decisão em prazo razoável, pelo que mal se compreende a menção que ai se faz do nº 4 do artº 20º da Lei Constitucional.
X – Por outro lado, a valoração dos mesmos factos em outro processo não é de molde a conformar uma violação do “ ne bis in idem.” por dupla valoração, já que o recorrente não chegou a ser criminalmente responsabilizado por esses factos, ficando nele igualmente assegurado o contraditório.
XI – Assim deverá ser mantida a sentença recorrida, passando o Ministério Público a proceder pelos novos factos assim conformados, abrindo inquérito num outro processo penal autónomo.
Decisão Texto Integral: Acordam em audiência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Na Comarca de Ponte da Barca, foi deduzida acusação pública contra "A", com a imputação da prática de um crime de maus tratos do artigo 152º, nºs 1, alínea a), 2 e 6, do Código Penal. Sustentou o Ministério Público que na pendência do casamento do arguido com "B", entretanto divorciados, este infligiu à ofendida “maus tratos físicos e psíquicos, ofendendo-a na sua integridade física, ameaçando-a e ofendendo-a na sua honra e consideração, procurando, por vários meios, perturbá-la física e psicologicamente; e esta situação foi-se agravando até que, no desenvolvimento dessa conduta, no dia 12 de Dezembro de 2002, cerca das 9h30m, no lugar da ..., Ponte da Barca, no interior da residência de ambos, o arguido deu socos e pontapés à porta do quarto onde se encontrava a ofendida e, como esta abrisse a porta, empurrou-a para cima da cama e colocou-se sobre ela, apertando-lhe o pescoço por forma a asfixiá-la, prendendo-lhe, ao mesmo tempo, os braços com os seus joelhos, impedindo-a de se movimentar, enquanto lhe cuspia para a face e para a boca e lhe dizia: “puta”, “ainda hás-de morrer antes de mim”, ao mesmo tempo que lhe exigia que lhe devolvesse o dinheiro que lhe havia roubado, tendo desta agressão resultado directa e necessariamente para a ofendida contusão na região cervical que demandou um dia para curar”. Entendeu ainda o Ministério Público que “o arguido agiu com o propósito concretizado, assumido e levado a cabo de forma livre, voluntária e consciente, de lesar a integridade física da ofendida e de lhe infligir maus tratos, provocando-lhe lesões físicas, medo e inquietação”.
Realizada a audiência de julgamento, a Mª Juiz considerou provados os seguintes factos:
1. O arguido "A" e a assistente "B" casaram em 4.7.1971, encontrando-se divorciados desde 31 de Março de 2003;
2. Deste o início do casamento e ao longo de vários anos, na residência de ambos, ... Ponte da Barca, com uma frequência, pelo menos, mensal, e no decurso de discussões ainda mais frequentes, o arguido dava murros e bofetadas à assistente, chamando-lhe «puta», «vaca», «cabra», «vai para a via norte» e ameaçando-a de que lhe batia e a matava. Mais concretamente:
3. Em data não apurada do ano de 1971, pouco depois de terem casado, o arguido agrediu a assistente com bofetadas e bateu repetidamente com a cabeça da assistente na parede;
4. Em data não apurada do ano de 1973, o arguido encostou uma arma de fogo à cabeça da assistente, ameaçando-a de que a matava, o que se voltou a repetir noutras ocasiões não concretamente apuradas;
5. Em data não apurada do ano de 1974, quando a assistente estava grávida da filha do casal, Ana G..., o arguido deu-lhe bofetadas e socos;
6. Em data não apurada do ano de 1986, o arguido encostou o bico de uma faca ao peito da assistente, ameaçando-a de que a matava;
7. Em data não apurada do ano de 1996, o arguido bateu à assistente com um braço que então tinha engessado, tendo-lhe rachado a cabeça;
8. De cada vez que o arguido batia na assistente causava-lhe, directa e necessariamente, dores e hematomas nas regiões do corpo atingidas;
9. Também no decurso do ano de 1996, quando a assistente intentou pela 1.ª vez acção de divórcio, o arguido ameaçou-a de que tinha uma espingarda carregada e a matava;
10. Era também frequente o arguido apelidar a assistente de «ladra», acusando-a de lhe furtar coisas;
11. No dia 12 de Dezembro de 2002, cerca das 9h30, no Lugar..., Ponte da Barca, no interior da residência de ambos, o arguido deu socos e pontapés na porta do quarto onde se encontrava a assistente e quando esta abriu a porta, ele empurrou-a para cima da cama e colocou-se sobre ela, apertando-lhe o pescoço por forma a asfixiá-la, prendendo-lhe ao mesmo tempo os braços com os seus joelhos, impedindo-a de se movimentar, enquanto lhe cuspia para a face e para a boca, dizendo-lhe «puta», «ainda hás-de morrer antes de mim», ao mesmo tempo que lhe exigia que lhe devolvesse o dinheiro que lhe havia roubado;
12. Em consequência desta conduta do arguido, resultou directa e necessariamente para a assistente contusão na região cervical, que demandou para curar 1 dia sem incapacidade para o trabalho, tendo sido assistida no Serviço de Atendimento Permanente no Centro de Saúde de Ponte da Barca nesse mesmo dia, tendo tal assistência importado um custo de 15,40 €;
13. Em consequência de tal conduta do arguido a assistente teve de ser medicada com calmantes e relaxantes;
14. Aquando de tais factos (12.12.2002) a assistente auferia, como contrapartida do seu trabalho, o salário mínimo nacional;
15. Frequentemente, o arguido ameaçava a assistente que lhe dava dois tiros na cabeça, sendo frequente colocar espingardas carregadas por detrás das portas e apontar as mesmas à assistente;
16. Frequentemente, o arguido proibia a assistente de sair de casa, ameaçando-a de que se chegasse a casa e não tivesse a comida pronta lhe batia;
17. Por outro lado, o arguido mantinha frequentemente relações extraconjugais, das quais não fazia segredo relativamente à assistente, com o propósito de a humilhar;
18. Na verdade, era frequente o arguido ser visto a passear com outras mulheres, que não a assistente, como se de marido e mulher se tratasse;
19. O arguido frequentemente recebia em casa telefonemas de outras mulheres, algumas das quais expressamente se identificavam como sendo suas amantes;
20. O arguido trazia frequentemente consigo cartas de amor que lhe eram dirigidas por outras mulheres que não a assistente, bem como fotografias não só de outras mulheres que não a assistente, mas também algumas em que aparecia o próprio arguido na cama com outras mulheres que não a assistente;
21. Por diversas vezes a assistente encontrou dentro do carro do arguido preservativos usados e lenços usados com restos de esperma, elementos estes que o arguido também deixava na sua roupa para a assistente lavar;
22. Na sequência do que o arguido lhe fazia e dizia, ficava a assistente abatida, humilhada, nervosa e aterrorizada, temendo pela sua integridade física e até pela própria vida;
23. Sempre que insultou, ameaçou e bateu na assistente, o arguido actuou de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo o que estava a fazer e que nada justificava tal comportamento;
24. Sabia ainda o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo actuado sempre com o propósito de maltratar física e psiquicamente a assistente, sua mulher, desinteressando-se por completo do bem estar desta;
25. No proc. n.º 4/00, deste Tribunal, foi o arguido condenado na pena de 102 dias de multa à taxa diária de 1.600$00, pela prática, em 28.11.1999, de um crime de ofensa à integridade física simples;
26. Em consequência das condutas do arguido supra descritas, ao longo de todo o seu casamento a assistente viveu num permanente estado de medo e perturbação física e psicológica, sentindo-se profundamente humilhada, deprimida, triste e nervosa;
27. Na fase final do casamento, a assistente trancava-se à chave no quarto onde dormia sem o arguido, com medo que este lhe batesse e concretizasse as ameaças que frequentemente lhe dirigia;
28. O arguido é pirotécnico, auferindo mensalmente, pelo menos, 500 €, vive actualmente em casa de uma irmã e é dono de um veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 504, de 1991, bem como de duas carrinhas de marca Toyota, modelo Hayce, ambas com mais de 10 anos.
E porque entendeu que tais factos são susceptíveis de configurar uma alteração substancial dos descritos na acusação (artigo 1º, alínea f), do Código de Processo Penal), implicando a imputação ao arguido de um crime diverso — “na medida em que, estes sim, são susceptíveis de integrar a prática de um crime de maus tratos a cônjuge, diversamente do que sucedia com os descritos na acusação” — ainda nos termos dos artigos 359º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal, e 289º e 493º, nº 2, do Código de Processo Civil, absolveu o arguido "A" da instância, uma vez que este manifestou a sua oposição à continuação do julgamento “por estes novos factos”.
Do que assim se decidiu, traz recurso "A", que a concluir diz o seguinte: (1) A sentença julgou provados, além de outros que dela não constavam, os factos constantes da acusação, todavia, absolveu o recorrente da instância. (2) A manter-se tal decisão, o recorrente poderá ser de novo julgado pelos mesmos factos, complementados ou não por outros, pelo que tem interesse em discutir da legalidade da decisão que, em concreto e devido a tal efeito, tem de considerar-se que foi proferida contra si. (3) Daí o seu interesse em agir e a sua legitimidade para a interposição do presente recurso. (4) Um entendimento diverso implica a interpretação inconstitucional da norma contida na alínea b) do nº 1 do artigo 401º do Código de Processo Penal, por violação do disposto no nº 4 do artigo 20º, no nº 5 do artigo 29º e no nº 5 do artigo 32º da Constituição. (5) O Tribunal procedeu ao julgamento do arguido e proferiu decisão sobre a matéria de facto, considerando provados, além de outros, os factos descritos na acusação, e qualificou esses factos como crime de ofensas à integridade física, concluindo ter havido erro de qualificação no libelo. (6) O Tribunal estava, nessas circunstâncias, obrigado a pronunciar-se sobre o objecto do processo, condenando ou absolvendo o arguido pela prática desses factos, e apenas desses, e pelo referido crime de ofensas à integridade física, até porque o arguido apenas se opôs a que fosse julgado pelos novos factos, não constantes da pronúncia. (7) Recebida a acusação, realizado o julgamento e decidida a matéria de facto, o Tribunal tem de proferir uma decisão de fundo, condenando ou absolvendo o arguido pelos factos da acusação. (8) Provados esses factos, o Tribunal tem de os qualificar, no tipo a que vêm subsumidos ou em qualquer outro, ainda que mais grave, e de condenar ou absolver o arguido da acusação. (9) Não o tendo feito, incorreu na nulidade prevista na primeira parte da alínea c) do nº 1 do artigo 379º. (10) Ao absolver o arguido da instância, o Tribunal fez uma interpretação inconstitucional das normas contidas nos artigos 289º e 493º, nº 2, do CPC, e nos artigos 1º, nº 1, alínea f), 4º, 359º, nº 1, e 379º, nº 1, alínea c), primeira parte, do CPP, por ofensa do disposto no nº 4 do artigo 20º, no nº 5 do artigo 29º e no nº 5 do artigo 32º da Constituição.
Termina o Ministério Público a sua resposta com o entendimento de que a decisão recorrida não merece censura.
Nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto chama a atenção apara a circunstância de o crime de maus tratos pressupor uma execução reiterada no tempo das respectivas condutas lesivas. O que implica que quer a conduta que ao arguido vinha imputada ab initio quer os novos factos apurados integram um único crime, sendo assim cada acção incindível das demais. Foi por isso correcta a decisão, sem que se omitisse pronúncia, pelo que o recurso não merecerá provimento.
Colhidos os “vistos” legais, procedeu-se à audiência a que se refere o artigo 423º do Código de Processo Penal, com observância do formalismo respectivo.
II. O crime de maus tratos a cônjuge ou a pessoa que conviva com o agente, previsto no artigo 152º, nºs 2 e 3, do Código Penal, persiste enquanto durarem os actos lesivos da saúde física (que podem ser simples ofensas corporais) e psíquica e mental da vítima (humilhando-a, por exemplo) e a relação de convivência, que faz dele um crime de vinculação pessoal persistente (J. M. Tamarit Sumalla, in Comentarios a la Parte Especial del Derecho Penal, 1996, p. 100). Há quem por isso sustente que se trata de um crime de execução permanente (cf., por ex., o acórdão da Relação de Lisboa de 19 de Novembro de 2003, CJ 2003, tomo V. p. 135). O ilícito supõe a repetição de condutas, por forma a gerar-se uma pluralidade indeterminada de actos parciais. Faltando este aspecto reiterativo, os respectivos factos serão elementos de ofensa à integridade física simples, ameaça ou crime contra a honra, constituindo, em si mesmos, estes ou outros crimes. Quer isto dizer, em traços breves, que o desenho típico dos maus tratos se não conexiona descritivamente com aquele grupo de infracções, mas a lesão do bem jurídico que suporta a agravação considerável da pena (pena de prisão de 1 a 5 anos, se o facto não for punível pelo artigo 144º) só se dá com a sua repetição plural, justificando a existência de uma norma jurídica autónoma com o seu próprio conteúdo de desvalor.
A primeira questão do recurso envolve a nulidade prevista na primeira parte da alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal: “é nula a sentença…quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…”.
Diz o recorrente: a sentença impugnada absolveu o arguido da instância, o que em processo penal se não admite. Devia o arguido, isso sim, ter sido absolvido da acusação. Se porventura se considerasse que o factos da acusação são verdadeiros, deveria ter sido condenado pelo crime de ofensas corporais simples do artigo 143º, nº 1, do Código Penal.
A sentença considerou provada a matéria da acusação e ainda outros factos, resultantes da discussão da causa. E observou que estando o arguido acusado da prática de um crime de maus tratos a cônjuge, a verdade é que na acusação apenas é descrito um episódio concreto em que o arguido atingiu a assistente na sua integridade física, o que integraria, não o crime de maus tratos, mas o de ofensa à integridade física simples. E porque de crime diverso se trata, na perspectiva da sentença impugnada, os factos considerados provados não podem ser levados em conta para efeitos de condenação do arguido neste processo, dada a oposição manifestada pelo mesmo.
Como resulta do artigo 372º, nº 1, do Código de Processo Penal, concluída a deliberação e votação, o presidente ou, se este ficar vencido, o juiz mais antigo dos que fizerem vencimento, elaboram a sentença de acordo com as posições que tiverem feito vencimento, após o que é assinada e lida publicamente. Os artigos 375º e 376º ocupam-se, por esta ordem, da sentença condenatória e da sentença absolutória. Segundo este último artigo, a sentença absolutória declara a extinção de qualquer medida de coacção e ordena a imediata libertação do arguido preso preventivamente, condena o assistente em custas e dispõe que se o crime tiver sido cometido por inimputável, a sentença é ainda absolutória. Daqui se alcança que o Código não define os contornos da sentença absolutória. Por outro lado, e isso acontece frequentemente, pode a sentença bastar-se com uma decisão de preceito, por exemplo, o reconhecimento que nela se faça de uma causa extintiva do procedimento criminal.
Se bem a interpretamos, a sentença parte do princípio de que tudo aquilo que se congrega numa única infracção de execução permanente, como é o crime de maus tratos, deverá ser tratado num mesmo processo. Os factos da acusação e os que vieram a ser revelados pela discussão da causa, embora naturalisticamente diversos, relacionam-se entre si em termos de identidade criminosa, mas a possibilidade de os levar em conta no presente processo teve a oposição do arguido prevista no nº 1 do artigo 359º do Código de Processo Penal.
Na lógica deste raciocínio, a decisão não poderia ter sido de mérito. Na verdade, só houve lugar à alteração na medida em que os novos factos apurados formam, juntamente com os constantes da acusação, uma unidade de sentido que não permite a sua autonomização. Levando-se em conta apenas a matéria da acusação, postergava-se a imagem do comportamento global do arguido, o que seria inaceitável mesmo do ponto de vista da entidade competente para a acção penal, que o via comprometido num crime de maus tratos e nesta precisa medida procedera à sua própria valoração jurídico-social do comportamento imputado. Daí que o Ministério Público deva proceder pelos novos factos assim conformados, abrindo inquérito num outro processo penal autónomo.
Ainda que em contraste com a posição assumida no recurso, a solução adoptada na sentença conheceu pois de todas as questões em apreciação, não sendo justo dizê-la inquinada de nulidade. O caminho seguido, que levou a absolvição da instância, é que pode não gerar unanimidade. Ainda assim, é certamente solução do processo civil (artigo 289º do Código de Processo Civil) que se harmoniza com o processo penal (artigo 4º). Evita, por outro lado, os inconvenientes da litispendência e é quanto a nós de acatar por não fornecer a própria lei penal adjectiva disposição que possa aplicar-se por analogia. Podem é ligar-se-lhe prejuízos para a celeridade processual, mas é solução que não deixa de estar em concordância com o procedimento ditado pelo artigo 359º do Código de Processo Penal e que dá saída à averiguação da verdade material. É o próprio legislador que ao erigir esse “incidente” processual como dando ao arguido adequadas garantias de defesa simultaneamente reconhece que os correspondentes e necessários entorses à celeridade ainda se compatibilizam com essas mesmas garantias, mesmo que, quanto ao nós, se opte pela absolvição da instância nos casos em que se torna impossível a continuação do julgamento por factos que excederiam o objecto do processo, o que, isso sim, redundaria em vício da sentença que deles viesse a conhecer (artigo 379º, alínea b)). De qualquer modo, não se mostra no recurso que esteja excluída a decisão em prazo razoável, pelo que mal se compreende a menção que aí se faz do nº 4 do artigo 20º da Lei Constitucional. Por outro lado, a valoração dos mesmos factos em outro processo não é de molde a conformar uma violação do ne bis in idem, por dupla valoração, já que o recorrente não chegou a ser criminalmente responsabilizado por esses factos, ficando nele igualmente assegurado o contraditório. Não se violaram por isso outros preceitos constitucionais, nomeadamente, o nº 5 do artigo 29º e o nº 5 do artigo 32º.
Nestes termos, acordam em negar provimento ao recurso de "A", mantendo-se inteiramente a sentença recorrida.
A cargo do recorrente fixa-se a taxa de justiça em 5 Ucs.