Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
72/15.3GAFAF.G1
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: REENVIO
INSUFICIÊNCIA PARA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
OMISSÃO DE FACTOS RELEVANTES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/02/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO
Sumário: Se o tribunal omite a apreciação e decisão sobre um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer e se esse facto for relevante para a decisão sobre a determinação da sanção, deixando de o considerar provado ou não provado, fica a sentença afectada de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto previsto no artº 410º, nº 2, al. a), do CPP e não de uma nulidade por omissão de pronúncia dos artºs 379º, nº 1, al. c), do mesmo diploma normativo.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães,

1. Por sentença proferida nestes autos de processo especial sumário e após a realização da audiência de julgamento, o tribunal singular da instância local de Fafe da Comarca de Braga condenou o arguido António C. pela prática do crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do DL n.º 2/98, de 3 de Janeiro, 121º, n.º 1 e 122º, n.º 1, ambos do Código da Estrada na pena de dez meses de prisão, de cumprimento em dias livres.

Inconformado, o arguido interpôs recurso e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição) :

1. O artigo 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal, ao consagrar que a sentença é nula “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, significa, por um lado, que o juiz deve resolver todas as questões que tenham sido submetidas à sua apreciação, bem como aquelas que sejam do seu conhecimento oficioso;
2. Nos presentes autos, o tribunal “a quo” não conheceu do teor da contestação apresentada pelo arguido, razão pela qual, no relatório da douta sentença, o tribunal a quo refere “que o arguido não apresentou contestação escrita, nem ofereceu quaisquer meios probatórios para além dos constantes na acusação”;
3. Não tendo o tribunal a quo conhecido o teor da contestação apresentada, não podia levar, como não levou, ao rol dos factos provados e não provados a matéria alegada em sede de contestação;
4. Analisando o relatório da sentença recorrida, verifica-se que em momento algum, por despacho autónomo ou na sentença, o tribunal a quo se pronunciou sobre os factos alegados em sede de contestação.
5. È assim manifesto que a douta sentença, ao não ter conhecido da matéria que deveria ter conhecido, cometeu uma nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal;
6. Padecendo a sentença da nulidade prevista no artigo 379.º do Código de Processo Penal, deve a sentença ser declarada nula e, consequentemente, ser reformada pelo mesmo tribunal, proferindo nova sentença que supra a omissão apontada;
7. A douta sentença, ao não ter conhecido da matéria da contestação, violou o artigo 379.º do Código de Processo Penal;
8. Nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”;
9. Sendo a pena aplicada ao arguido de 10 meses, encontra-se, desde logo, preenchido o primeiro pressuposto para a suspensão;
10. Quanto aos elementos materiais, o tribunal a quo, na análise que fez, apenas teve em conta as condenações anteriores e não valorou de forma global todas as circunstâncias que possibilitam uma conclusão acerca do comportamento futuro do agente, nas quais se incluem, entre outras, a sua personalidade (inteligência e carácter);
11. O tribunal não teve em conta, designadamente, o facto de o arguido se encontrar inscrito na escola de condução, o facto de ser gerente de uma empresa, o facto de ser o sustento dos filhos, o facto de se mostrar arrependido e se comprometer a obter habilitação legal para conduzir;
12. O tribunal a quo na análise da fundamentação da sentença, quanto a este aspecto, limitou-se a concluir que o arguido não suscita o falado juízo de prognose favorável, pelo que, segundo a sentença, não poderia deixar de lhe ser aplicada a pena de prisão não suspensa;
13. O certo é que o tribunal a quo não teve em conta as circunstâncias que levaram o arguido a conduzir no dia 23 de Abril de 2015;
14. Caso o tribunal tivesse, como se impunha, feito uma apreciação global, não teria dúvidas sobre a capacidade do arguido para aproveitar a oportunidade de, mais uma vez, a pena ficar suspensa;
15. A doutrina é hoje, como se sabe, praticamente unânime em considerar que as penas curtas de prisão são nocivas ao delinquente, porque raramente conseguem a sua ressocialização, surtindo, frequentemente, o efeito contrário, levando-o a perder muitas vezes o seu posto de trabalho, debilitando os vínculos familiares, fazendo-o correr o risco de contágio criminal e a habituação à prisão;
16. Assim sendo, ao contrário do que concluiu o tribunal a quo, o arguido revelou que se está a esforçar para pôr cobro à sua conduta de conduzir sem habilitação legal;
17. O tribunal devia e podia correr o risco e conceder ao arguido mais uma oportunidade, o que podia fazer impondo ao arguido deveres e regras de conduta para a condenação poder surtir eficácia;
18. Pelo que a pena de prisão de 10 meses a que o arguido foi condenado devia ter sido suspensa na sua execução;
19. O tribunal a quo, ao não ter suspendido a pena de prisão a que o arguido foi condenado, violou os termos do artigo 50.º do Código Penal.
Sem prescindir;
20. Dispõe o artigo 43.º, n.º 1, do Código Penal que “ a pena de prisão aplicada em medida não superior a um ano é substituída por pena de multa ou por outra pena não privativa da liberdade aplicável, excepto se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes”;
21. Ora, analisadas as condenações anteriores, verifica-se que ao arguido jamais foi aplicada uma pena de prisão substituída por multa, pelo que, aplicando o disposto no artigo 43.º do Código Penal, encontrar-se-iam preenchidos os pressupostos para a sua aplicação, pois a substituição da pena de prisão por uma pena de multa, no caso concreto, realiza as finalidades da punição.
22. Mesmo que a pena de prisão não fosse substituída por pena de multa, sempre o tribunal a quo deveria ter aplicado ao arguido uma pena não privativa da liberdade.
23. Nos termos do artigo 58.º, n.º 1, do Código Penal, “Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”;
24. Como defende Anabela Rodrigues in Novo Olhar Sobre a Questão Penitenciária – Coimbra Editora, pág.31 a pena de prisão deve ser substituída, sempre que possível, por penas não institucionais;
25. O tribunal a quo no ponto em que se pronunciou sobre a não substituição da pena de prisão, limitou-se, a nosso ver, de forma singela, a concluir que a substituição da pena de prisão por pena de carácter não detentivo é ineficaz para a realização das finalidades da punição;
26. O certo é que o tribunal a quo teve em conta que ao arguido já tivessem sido aplicadas duas penas de prisão suspensas;
27. Contudo, ao contrário do que consta na fundamentação da sentença, neste ponto, ao arguido só foi aplicada uma pena de prisão suspensa na sua execução e não duas.
28. Como é consabido e defendido pelas recomendações apresentadas no Relatório da Comissão de Debate da Reforma do Sistema Prisional, concluído em 12 de Fevereiro de 2004, a aplicabilidade da pena de prisão deve ser restrita à criminalidade mais grave, devendo aplicar-se penas não privativas da liberdade;
29. Uma das penas não privativas da liberdade contemplada no artigo 58.º do Código Penal é precisamente o trabalho a favor da comunidade, que o tribunal descartou, sem qualquer fundamentação;
30. A apreciação com vista à aplicação desta pena é um poder dever que vincula o tribunal sempre que se mostrem preenchidos os pressupostos legais da sua admissão. (cfr. Ac. STJ de 21 de Junho de 2007, in CJ, AC STJ tomo II, pg. 228);
31. O tribunal a quo, ao não apreciar todos os pressupostos da aplicação do trabalho a favor da comunidade e ao não fundamentar a razão pela qual não o aplicava, violou um dever vinculativo a que estava sujeito;
32. A pena de prisão, mesmo em dias livres, causará ao arguido um estigma social e pessoal que o irá afectar para sempre, pelo que não se revela ajustada e não realiza de forma adequada as finalidades da punição;
33. Atendendo à idade do arguido, ao seu enquadramento familiar, pessoal e profissional, e ao facto de este estar inscrito na escola de condução e se ter sujeitado a exame por diversas vezes, a pena de trabalho a favor da comunidade realizaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
34. Tanto mais que a realização do trabalho a favor da comunidade promove a assimilação da censura do acto ilícito, mediante a construção de um trabalho socialmente positivo a favor da comunidade e assenta na adesão do próprio arguido, ao mesmo tempo que apela ao sentido de co-responsabilização social e de reparação simbólica.
35. O tribunal a quo, ao não ter substituído a pena de prisão pela pena de trabalho a favor da comunidade, violou os termos do artigo 58.º do Código Penal.

O Ministério Público, por intermédio do procurador-adjunto na instância local de Fafe formulou resposta ao recurso do arguido, concluindo que a sentença recorrida deve ser confirmada.

Neste Tribunal da Relação de Guimarães, o procurador-geral-adjunto emitiu fundamentado parecer concluindo que “o recurso deverá ser julgado procedente, remetendo-se o processo para novo julgamento, por reenvio, em face da verificação do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, julgamento onde se deverá considerar não só a matéria factual constante da acusação, como também toda a que foi oferecida pela defesa na sua contestação que na sentença foi ignorada.”

Recolhidos os vistos do juiz presidente da secção e do juiz relator e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. O teor da decisão do tribunal quanto à matéria de facto é o seguinte:

II – Fundamentação
A - Factos Provados:
Da audiência de discussão e julgamento resultou provada a seguinte matéria fáctica, pertinente para a decisão da causa:
1) No dia 28 de Janeiro de 2015, pelas 08h00m., na Rotunda dos …, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, com matrícula .. -..-.. sem para estar legalmente habilitado, pois não possuía carta de condução, nem qualquer outro documento que o habilitasse a exercer tal condução;
2) O arguido bem sabia que não podia conduzir veículos, na via pública, naquelas condições, pois não se encontrava devidamente habilitado para tal;
3) O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei e, bem assim, ser indispensável ser portador da documentação necessária ao exercício da condução na via pública;
Mais se provou que:
4) O arguido confessou de forma integral e sem reservas a prática dos factos;
5) O arguido aufere cerca de € 540,00 de retribuição mensal;
6) Vive em casa arrendada e paga cerca de € 250,00 de renda mensal;
7) O arguido paga de prestação de alimentos a quantia mensal de € 250,00 a dois filhos menores;
8) O arguido paga de empréstimo bancário de € 200,00;
9) O arguido tem o 4º ano de escolaridade incompleto;
10) O arguido tem antecedentes criminais, designadamente:
 por sentença, já transitada em julgado, proferida a 09/05/2005, no âmbito do processo abreviado n.º 1254/04.9GAFAF foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 03/10/2004 na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 3,00;
 por sentença, já transitada em julgado, proferida a 19/02/2009, no âmbito do processo sumário n.º 65/09.0GAFAF foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 22/01/2009 na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
 por sentença, já transitada em julgado, proferida a 23/06/2010, no âmbito do processo sumário n.º 732/10.5GAFAF foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 10/06/2010 na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 06,00;
 por sentença, já transitada em julgado, proferida a 26/07/2010, no âmbito do processo sumário n.º 899/10.2GAFAF foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 14/06/2010 na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 6,00;
 por sentença, já transitada em julgado, proferida a 2014/04/28, no âmbito do processo sumário n.º 234/14.0GAFAF foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, praticado em 2014/04/10 na pena de 09 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 01 ano, mediante o dever de entregar à Associação de Cidadãos, automobilizados a quantia de € 900,00 até ao termo do período da suspensão nos termos do artigo 51º, n.º 1, alínea c), do Código Penal.
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B - Factos não provados:
Inexistem factos não provados.
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III – Convicção do Tribunal:
Nos termos do disposto no artigo 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, o Tribunal deve indicar os motivos de facto e de direito que fundamentam a sua decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a sua convicção.
Em sede de valoração de prova, dispõe o artigo 127.º do Código de Processo Penal que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal.
A decisão relativa ao preenchimento dos elementos integradores do tipo legal de crime assentou nas declarações prestadas pelo arguido, que confessou integralmente e sem reservas a prática dos factos que consubstanciaram tal ilícito criminal, no auto de notícia de fls. 02 e 03 valorados respectivamente, nos termos dos artigos 163.º e 169.º, ambos do Código de Processo Penal.
O arguido António C. esclareceu que por motivos de doença de um funcionário teve de conduzir o veículo para transportar os funcionários da sua empresa ao trabalho. Mais esclareceu que já começou a tirar a carta há cerca de 30 anos mas não tem conseguido concluir com sucesso o exame teórico nestes últimos anos.
As testemunhas Rosa M., José R. e Rodrigo F. depuseram quanto à credibilidade do arguido e conduções pessoais, como pessoa responsável e trabalhador.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido e às suas condições pessoais, o tribunal tomou em devida conta o certificado do registo criminal constante dos autos a fls. 11 a 18, bem como as como as declarações prestadas em audiência pelo arguido, as quais não suscitaram quaisquer reservas.
Conclui o tribunal, assim, tal como consta dos factos provados.”

3. Cumpre apreciar em primeiro lugar se se verifica nulidade ou vício processual na sentença recorrida decorrente de relevante omissão de pronúncia.

Em tempo e como se alcança de fls. 29 e 30, o arguido apresentou contestação, articulando eventos da vida real, anteriores e contemporâneos da condução do veiculo, bem como circunstancias referentes a elementos da personalidade e carácter, tendentes a habilitar o tribunal na decisão e com real interesse nos procedimentos de escolha e determinação da medida concreta da pena. Tanto mais quanto se sabia dos significativos antecedentes criminais do arguido, a fazerem supor a hipótese de aplicação de uma reacção penal detentiva.

A sentença recorrida omite a referência à matéria fáctica da contestação, quer nos factos provados, quer nos factos não provados. No relatório fez-se constar que não tinha sido apresentada contestação e também não se encontra indicação de que o tribunal tenha considerado que aqueles factos constantes da acusação e que não foram objecto de decisão seriam irrelevantes para a decisão da causa.

Salvo melhor entendimento, se o tribunal omite a apreciação e decisão sobre um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer e se esse facto for relevante para a decisão sobre a escolha e determinação da sanção, deixando de o considerar provado ou não provado, então fica a sentença afectada de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, nº 2, alínea a) do Código do Processo Penal e não de uma nulidade por omissão de pronúncia dos artigos 379.º n.º 1, alínea c) do mesmo compêndio normativo.

Com efeito, neste caso, não se verifica em rigor uma omissão da especificação dos factos provados e não provados, nem se pode afirmar que o tribunal tenha preterido a tomada de posição sobre questões, ou seja, sobre “temas” ou “problemas”, mas sim sobre factos concretos com relevo para a decisão da causa que constituíam o objecto do processo e lhe cabia apurar.

Enferma pois a decisão recorrida do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício que, em concreto, inviabiliza a correcta decisão da causa e impõe a anulação da decisão recorrida e o reenvio do processo para nova decisão, antecedida de novo julgamento, conforme disposto no artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Nestes termos resulta prejudicada a apreciação dos restantes fundamentos do recurso do arguido.

4. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em declarar que a sentença recorrida enferma do vício decisório de insuficiência da matéria de facto e, em consequência, determinam o reenvio do processo para nova decisão relativamente à totalidade do respectivo objecto, antecedida de novo julgamento, a efectuar pelo Tribunal competente nos termos do artigo 426.º-A do Código de Processo Penal.

Sem tributação.

Guimarães, 2 de Novembro de 2015.

Texto elaborado em computador e integralmente revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.

João Carlos Lee Ferreira

Alcina Costa Ribeiro