Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3968/15.9T8GMR-A.G1
Relator: ANTÓNIO BEÇA PEREIRA
Descritores: EXECUÇÃO
DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/10/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: Tendo o exequente instaurado contra o executado uma primeira execução que, em virtude de inércia sua, veio a findar por deserção da instância, não há impedimento processual para que, depois disso, instaure uma segunda execução, fundada no mesmo título executivo. E nesse caso não se pode falar em renovação da execução (artigo 850.º CPC).
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I
Albino C deduziu a presente oposição à execução, que corre termos na Secção de Execução da Instância Central de Guimarães, da Comarca de Braga, contra o exequente João E, pedindo, nomeadamente, "a procedência da excepção de litispendência, com as legais consequências".
Alegou, neste capítulo, que "correm termos nesta Secção de Execução, os autos de processo n.º 1271/14.0T8GMR, sendo exequente o mesmo João E e o mesmo executado, o aqui embargante, Albino C, com fundamento no mesmo título executivo junto aos presentes autos".
Respondeu o exequente afirmando, em síntese, que "não existe qualquer outra execução pendente contra o Executado intentada pelo Exequente".
O Meritíssimo Juiz proferiu despacho em que decidiu que:
"(…)
Não se questiona que no âmbito da acção declarativa-especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contratos de valor não superior à alçada da Relação com o n.º 24179/11.7 YIPRT, o Autor (exequente) e o Réu (executado) celebraram transacção a qual foi homologada por sentença transitada em julgado.
De igual modo não se questiona que o exequente, tendo por título a referida sentença homologatória, instaurou execução para pagamento de quantia certa, a qual veio a dar origem à execução a correr na secção especializada de execução com o n.º 1271/14.0T8GMR.
Tal execução, devido à falta de impulso processual por parte do exequente, foi extinta por deserção, tendo a respectiva decisão transitado em julgado.
Finalmente, também não se questiona que o exequente, tendo novamente por título a referida sentença homologatória, veio instaurar nova execução, a que os presentes embargos se encontram apensos.
O que se questiona é saber se é legalmente admissível a repetição de execução julgada deserta.
Desde já se diga que a execução por sentença corre nos próprios autos onde foi proferida, admitindo a lei que se existir secção especializada de execução com competência para as execuções nessa área territorial, a execução corre nessa secção (artigo 85.º do CPC).
Portanto, a referida execução de sentença só deu origem a duas execuções com numeração diferente, por existir na respectiva área territorial secção especializada de execução.
Quer isto dizer que se não existisse secção especializada de execução tudo se passaria no âmbito do processo onde foi proferida a sentença (proc. 24179/11.7 YIPRT).
Aqui chegados, importa referir que por força do disposto no artigo 620.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, «ex vi» do disposto no artigo 551.º, n.º 1, do mesmo diploma, os despachos que recaiam sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.
Tem-se entendido que a expressão “dentro do processo” abrange não só a acção principal, como os respectivos apensos (neste sentido, José Lebre de Freitas, in: Código de Processo Civil Anotado, volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, pg. 681).
Ora, existindo uma decisão a determinar o arquivamento da execução, por se ter verificado a extinção da instância executiva por deserção [cfr. artigo 277.º, al. c), do CPC], tal decisão constitui caso julgado formal e obsta a que a parte apresente novo requerimento executivo.
Na verdade, a lei não permite a renovação da execução extinta por deserção (cfr. artigo 850.º do CPC).
E desta forma, nada mais resta que julgar procedente a oposição à execução e extinguir a execução.
III - Decisão
Pelo exposto, julgo procedente a presente a oposição à execução e determino a extinção da execução (artigo 732.º, n.º 4, do CPC)."
Inconformado com tal decisão, dela o exequente interpôs recurso, que foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo, concluindo a respectiva motivação, com as seguintes conclusões:
I - Por transacção homologada por sentença no âmbito do Proc. n.º 24179/11.7YIPRT, que correu termos no extinto 1.º Juízo do Tribunal de Fafe, o Executado reconheceu-se devedor ao Exequente da quantia de 9.000,00 €, acrescido, a título de cláusula penal, da quantia de 50,00 € por cada dia de atraso no pagamento de qualquer uma das prestações.
II – O Executado não pagou qualquer das prestações.
III – Fazendo valer o seu direito, alicerçado em sentença, o Recorrente intentou a execução para pagamento de quantia certa, por apenso, ainda no extinto tribunal de Fafe, sob o Proc. n.º 24179/11.7YIPRT.
IV – Entendendo existir falta de impulso processual (o que não se aceita, mas não se discute), o tribunal proferiu despacho a julgar deserta a instância.
V – O Exequente, após extinção daquela execução, deu entrada de uma nova execução, com novo requerimento executivo, pagando taxa de justiça e novos preparos para agente de execução e despesas, execução essa a dos presentes autos.
VI – O Executado deduziu Embargos de Executado, alegando a litispendência.
VII – Veio o tribunal a quo julgar procedente os Embargos, afirmando existir uma renovação da execução extinta por deserção e, portanto, caso julgado formal.
VIII – O Recorrente aceita que a deserção impede a renovação da execução.
IX - Porém, é-lhe admitido intentar uma nova acção.
X – O Exequente, nos presentes autos, não requereu a renovação daquela primeira execução: o Exequente deu entrada de uma nova execução, com novo requerimento executivo, novo pagamento de taxa de justiça, nova indicação de agente de execução, nova indicação de bens.
XI – Estamos em face de um diferente processo daquele em que a execução foi julgada deserta.
XII - Os efeitos que a deserção produz só se reflectem directamente na relação jurídica processual, sem produzir qualquer efeito no correspondente direito material. Julgada deserta a instância executiva nada obsta a que o credor, antes de o crédito se encontrar prescrito, venha instaurar nova execução por apenso à acção em que o crédito lhe foi reconhecido: o que não pode é revivificar a primeira execução, já deserta, mas pode instaurar uma segunda e distinta daquela.
XIII - O que se extingue com a deserção é somente a instância que se instaurara; o direito de acção fica intacto, a não ser que venha a decorrer o prazo de prescrição.
XIV – Com a deserção, o direito de acção não é afectado pela decisão, assim como não o é, directamente, o direito substantivo exercido.
XV - Entender-se de forma diferente seria retirar o direito ao Autor, que apenas o perderá por prescrição.
XVI - O Autor não se fez valer da acção já existente e julgada deserta, mas deu origem a um novo processo, uma nova acção, valendo-se do seu direito.
XVII - A sentença proferida, na interpretação que faz dos factos e da lei, viola o disposto nos artigos 277.º al. c), 729.º e 732.º do Código de Processo Civil.
XVIII - Impunha-se, portanto, decisão diversa da proferida pelo tribunal a quo que, deveria julgar improcedente os Embargos de Executado.
Não foram apresentadas contra-alegações.
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 3 e 639.º n.os 1 e 3 do Código de Processo Civil (1), delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se, tendo havido deserção em anterior execução, ao exequente é "admitido intentar uma nova acção" (2) executiva.
II
1.º
Para a decisão das questões aqui suscitadas, há que ter presente o que já se foi deixando dito e ainda que:
a) no processo 24179/11.7YIPRT, em que era autor o aqui exequente e réu o aqui executado, por sentença de 20 de Março de 2012 foi homologada a seguinte transacção:
"PRIMEIRO
O autor reduz o seu pedido à quantia de € 9.000,00 (nove mil euros).
SEGUNDO
O réu aceita e pagará a mencionada quantia em doze (12) prestações mensais, iguais e sucessivas de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) cada uma, vencendo-se a primeira no próximo dia 10/05/2012 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes, a pagar através dos ilustres mandatários das partes e contra recibo.
TERCEIRO
Autor e réu acordam em estabelecer uma cláusula penal em caso de incumprimento por parte do réu, no valor de € 50,00 (cinquenta euros) por cada dia de atraso no pagamento de qualquer uma das prestações.
QUARTA
A falta de pagamento de qualquer uma das prestações, implicará o vencimento imediato das restantes.
QUINTA
Custas em dívida a juízo serão suportadas em partes iguais por autor e réu, prescindindo ambos de custas de parte na parte disponível."
b) tendo em vista a satisfação do seu direito, o exequente instaurou execução para pagamento de quantia certa contra o executado, apresentando esta sentença como título executivo.
c) nessa execução, a 11-6-2014, foi proferido despacho que determinou que "atento o decurso do tempo, declaro deserta a instância nos termos do art. 281.º, n.º 1, do CPC, dizendo-se depois no despacho de 26-5-2015, designadamente, que "afigura-se-nos manifesto que quando foi proferido o despacho a considerar deserta a instância em 11.06.2014, já há muito que se encontrava ultrapassado o prazo de seis meses, previsto no art.º 281º, do NCPC".
d) o despacho de 11-6-2014 transitou em julgado.
e) posteriormente, o exequente instaurou a execução a que esta oposição está apensa, contra o executado, tendo por título executivo aquela sentença homologatória.
2.º
O Meritíssimo Juiz considerou, em suma, que:
"(…) não se questiona que o exequente, tendo novamente por título a referida sentença homologatória, veio instaurar nova execução, a que os presentes embargos se encontram apensos.
O que se questiona é saber se é legalmente admissível a repetição de execução julgada deserta.
(…)
existindo uma decisão a determinar o arquivamento da execução, por se ter verificado a extinção da instância executiva por deserção [cfr. artigo 277.º, al. c), do CPC], tal decisão constitui caso julgado formal e obsta a que a parte apresente novo requerimento executivo.
Na verdade, a lei não permite a renovação da execução extinta por deserção (cfr. artigo 850.º do CPC).
E desta forma, nada mais resta que julgar procedente a oposição à execução e extinguir a execução."
É pacífico que o exequente instaurou uma primeira execução contra o executado que, em virtude de inércia sua, veio a findar por deserção da instância. Depois disso instaura uma segunda execução, fundada no mesmo título executivo.
Perante este cenário, o Meritíssimo Juiz a quo entendeu que esta segunda execução consiste, na verdade, numa renovação da primeira, renovação essa que não é permitida pelo artigo 850.º (3).
Como resulta dos n.os 3 e 4 desse artigo 850.º, a renovação da execução "faz prosseguir a execução" e com ela "aproveita-se" algum do "processado" anterior, o que bem se compreende na medida em que ela só "pode ocorrer: a) por iniciativa do exequente, para pagamento de prestações entretanto vencidas ou para penhora de bens entretanto localizados; b) por iniciativa de credor reclamante que pretenda prosseguir com a execução" (4).
No caso dos autos, o exequente, como ele bem salienta, veio, sim, instaurar uma outra execução; não pediu que se prosseguisse com a primeira. O exequente não pretende dar continuidade à execução que já correu, quer é recomeçar tudo de novo. Portanto, a situação com que nos deparamos não é, de modo algum, susceptível de ser vista à luz da figura da renovação da execução. O que está em causa é o início de uma segunda execução, com o mesmo título executivo da primeira que já findou por deserção da instância, não se aproveitando naquela qualquer acto processual que tenha sido praticado nesta.
Por outro lado, convém dizer que com a deserção da instância executiva, por inércia do exequente, o direito que este aí queria fazer valer não foi afectado; não se extinguiu ou modificou. Sem prejuízo da vertente da prescrição, tudo permanece na mesma (5).
Consequentemente, em termos processuais nada impede o exequente de, neste contexto, regressar a juízo e, voltando ao princípio, desencadear um novo processo executivo contra o seu devedor.
Inexiste, pois, o obstáculo apontado pelo Meritíssimo Juiz a quo.
III
Com fundamento no atrás exposto, julga-se procedente o recurso, pelo que se revoga a decisão recorrida e se determina o prosseguimento da execução e desta oposição.
Custas da apelação pela parte vencida a final.
10 de Novembro de 2016
(António Beça Pereira)
(Maria Amália Santos)
(Ana Cristina Duarte)
*
(1) São deste código todas as disposições adiante mencionadas sem qualquer outra referência.
(2) Cfr. conclusão IX.
(3) Que corresponde ao artigo 920.º do anterior Código de Processo Civil.
(4) Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 13.ª Edição, pág. 420.
(5) Partindo, naturalmente, do princípio de que o devedor, neste intervalo de tempo, não cumpriu total ou parcialmente a obrigação.