Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
97/17.4T8GMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: CONTRAORDENAÇÕES ESTRADAIS
PRESCRIÇÃO
CAUSA DE INTERRUPÇÃO
DATA DA PROLAÇÃO DA DECISÃO ADMINISTRATIVA
ARTº 28º Nº 1 D) DO RGCO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A razão de ser da prescrição do procedimento tem a ver com as garantias de certeza, segurança e previsibilidade do sistema jurídico e de efetivação do poder punitivo do Estado e não com o exercício dos direitos de defesa do arguido.

II) Existem situações, legalmente definidas, que, apesar do decurso do tempo, demonstram, objetivamente, diligência e interesse na punição, que apenas não foi conseguida por motivos alheios ao procedimento, afastando, assim, a presunção de desinteresse ou de esquecimento subjacentes ao instituto da prescrição.

III) Uma dessas situações é precisamente a prolação da decisão administrativa que aplica a coima, na medida em que constitui um ato formal e solene de apreciação e declaração da ação constitutiva da contraordenação e do reconhecimento do seu agente, demonstrativo, da forma inequívoca e fundamentada, do interesse punitivo do Estado nesse sancionamento.

IV) Assim, ao proferir a decisão administrativa condenatória antes do termo do prazo de prescrição, o Estado está a praticar atos processuais reveladores da vontade de exerdo seu poder punitivo. Essa manifestação de vontade nada tem a ver com a efetivação da possibilidade do arguido reagir contra a condenação. A manifestação do interesse e da intenção do Estado em punir o infrator não se faz com a notificação da decisão, mas sim coma a prolação desta.

V) Por isso que a causa de interrupção do procedimento contraordenacional prevista na al. d) do nº 1 do artº 28º do RGCO, aprovado pelo DL nº 433/82, de 27.10, é a data da prolação da decisão administrativa e não a data da referida notificação ao recorrente.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo de contraordenação com o n.º 283824654, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), por decisão de 21-12-2015, aplicou ao arguido, H. R., uma coima no valor de € 750 e ainda a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, que substituiu pela apreensão do veículo automóvel, por igual período, em virtude de aquele não possuir título de condução, tudo pelo cometimento da contraordenação prevista e punida pelos art.s 150º, n.ºs 1 e 2, 138º e 145º, n.º 2, com referência ao art. 147º, n.º 3, todos do Código da Estrada.

2. Inconformado, o arguido impugnou judicialmente essa decisão administrativa, dando origem aos presentes autos com o n.º 97/17.4T8GMR, limitando-se a invocar a prescrição do procedimento contraordenacional, por terem decorrido mais de dois anos entre a prática do facto e a data da notificação daquela decisão.

3. Tendo o recurso sido julgado improcedente, por despacho datado de 21-03-2017, com a consequente confirmação da decisão administrativa, o arguido, mais uma vez inconformado, veio interpor o presente recurso, concluindo a sua motivação nos seguintes termos (transcrição[1]):

«Em conclusão,

A — O entendimento de que é a data da decisão e não a da sua notificação pode levar a que a decisão seja produzida já para lá do prazo de prescrição e por, obvia, conveniência “dos serviços” nela seja aposta uma data dentro do prazo de prescrição e assim se obtém o almejado propósito de impedir a prescrição.
E dessa forma conseguir prolongar o prazo de não prescrição do procedimento até ao limite máximo de 3 anos e seis meses, seja os dois anos mais 1 de metade do prazo mais 6 meses do máximo da suspensão!
Porque é evidente que o legislador ao produzir a alínea d), do art.° 28º, do RGCO se esqueceu ou omitiu por mero lapso, se calhar até de escrita, as letras “notificação d” e em vez de constar “d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.” Deveria constar d) Com a notificação da decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
Devendo, por isso, aplicar-se por analogia o que vem previsto na alínea anterior “c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;”
Ou da “a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomados ou com qualquer notificação;”

B- O procedimento já prescreveu no máximo dos máximos em 2 de fevereiro de 2017, o que aqui se alega e se reconheça assim que tal acontecer ao mesmo. Ou então noutro que legalmente seja considerado.
Por tudo o que que se vem de alegar e pelo mais que será por V.as Ex.as doutamente suprido, deverá ser concedido provimento ao presente recurso assim fazendo a devida aplicação da Lei e a mais elementar JUSTIÇA»
4. A Exma. Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância respondeu à motivação da recorrente, perfilhando o entendimento, subjacente ao despacho recorrido, de que a interrupção da prescrição ocorre com a prolação da decisão administrativa e não com a sua notificação ao arguido, concluindo, assim, pelo não provimento do recurso.
5. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, a sufragar os entendimentos e considerações expendidos na decisão recorrida e na resposta do Ministério Público junto da primeira instância, aditando ainda, em seu abono, outras referências jurisprudenciais para além da citada pelo Exmo. Juiz a quo e também uma referência doutrinal, concluindo no sentido de dever ser negado provimento do recurso.
6. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve resposta a esse parecer.
7. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. De acordo com o disposto no art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal, são as conclusões extraídas da motivação pelo recorrente que delimitam o objeto do recurso, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso.
No presente recurso apenas se questiona se a causa de interrupção do procedimento contraordenacional prevista na al. d) do n.º 1 do art. 28º do Regime Geral das Contraordenações e Coimas (RGCC), aprovado pelo DL n.º 433/82, de 27 de outubro, se refere à data da prolação da decisão administrativa (como é defendido na motivação do recurso), ou, antes, à data da notificação dessa decisão ao arguido (como foi decidido no despacho recorrido e é propugnado pelo Ministério Público, quer na primeira instância, quer nesta Relação).

2. Para a decisão da causa, importa ter presentes os seguintes factos e ocorrências, correspondentes aos únicos desenvolvimentos processuais que tiveram lugar até à notificação da decisão administrativa:
- A contraordenação imputada ao arguido terá sido praticada em 03-02-2014 (auto de contraordenação junto a fls. 5).
- O arguido foi notificado para apresentar a sua defesa nessa mesma data (certificação de notificação constante desse auto).
- A decisão administrativa que aplicou a coima tem a data de 21-12-2015 (fls. 9).
- Tal decisão foi notificada ao recorrente no dia 15-02-2016 (aviso de receção junto a fls. 10).

3. A interrupção da prescrição do procedimento contraordenacional encontra-se regulada no aludido art. 28º do RGCC, o qual preceitua o seguinte:
"1. A prescrição do procedimento por contraordenação interrompe-se:
a) Com a comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou com qualquer notificação;
b) Com a realização de quaisquer diligências de prova, designadamente exames e buscas, ou com o pedido de auxílio às autoridades policiais ou a qualquer autoridade administrativa;
c) Com a notificação ao arguido para exercício do direito de audição ou com as declarações por ele prestadas no exercício desse direito;
d) Com a decisão da autoridade administrativa que procede à aplicação da coima.
2. (…)
3. A prescrição do procedimento tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo da prescrição acrescido de metade."
A questão controvertida consiste em saber se, relativamente à causa de interrupção da prescrição prevista na citada al. d), vale como tal a data em que foi proferida a decisão administrativa ou a data da sua notificação ao arguido.
Como bem se considerou no despacho recorrido, encontrando-se o arguido acusado da prática de uma contraordenação rodoviária, o respetivo procedimento extingue-se, por efeito da prescrição, logo que, sobre a prática da contraordenação, tenham decorrido dois anos (art. 188º, n.º 1, do Código da Estrada).
Esse prazo iniciou-se na data dos factos suscetíveis de integrar a prática da contraordenação imputada ao arguido, ou seja, em 03-02-2014, tendo-se interrompido com a notificação do mesmo para exercer o direito de audição, o que sucedeu nesse mesmo dia.
Sendo assim, se antes não ocorresse qualquer outro motivo de interrupção ou de suspensão, o prazo de prescrição perfetibilizar-se-ia em 03-02-2016.
Até ao momento da notificação do despacho que procedeu ao exame preliminar do recurso de impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que aplicou a coima, não ocorreu qualquer motivo de suspensão, de entre os previstos nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 27º-A do RGCC.
Porém, em 21-12-2015 foi proferida aquela decisão, notificada ao arguido apenas em 15-02-2016.
É precisamente neste ponto que reside a controvérsia subjacente ao presente recurso.
Com efeito, no despacho recorrido, o Exmo. Juiz a quo, perfilhando o entendimento de que a causa de interrupção de prescrição prevista na al. d) do n.º 1 do art. 28º se refere à data em que foi proferida a decisão administrativa, concluiu não estar prescrito o procedimento contraordenacional, uma vez que entre a prática dos factos (03-02-2014) e aquela data (21-12-2015), não chegou a decorrer o prazo de prescrição (2 anos).
Ao invés, o recorrente, defendendo que essa causa de interrupção se reporta à notificação da decisão administrativa, o que apenas teve lugar em 15-02-2016, ou seja, mais de 2 anos após a prática da contraordenação, pugna pela declaração da extinção do procedimento, por prescrição.
Quanto a essa questão, a razão está do lado do despacho recorrido[2].
Em primeiro lugar porque é nesse sentido que, clara e inequivocamente, aponta a letra da lei, interpretada de acordo dos critérios ínsitos no art. 9º do Código Civil.
Na verdade, contrariamente ao que se verifica com outras causas de interrupção e de suspensão da prescrição, previstas nos arts. 27º-A, n.º 1, al. c), e 28º, n.º 1, als. a) e c), do RGCC, em que o texto legal expressamente refere como ocorrência relevante a notificação e a comunicação de atos processuais, na causa de interrupção em apreço, a norma da al. d) alude ao momento do próprio ato processual e não ao da sua notificação.
Acresce que, se o facto interruptivo visado pelo legislador fosse a notificação da decisão administrativa, não se compreenderia, por ser absolutamente desnecessário, o aditamento da al. d) ao n.º 1 do art. 28º, efetuado aquando da revisão do DL n.º 433/82 pela Lei n.º 109/2001, de 24 de dezembro, uma vez que essa notificação já estava contemplada na al. a), que se refere à "comunicação ao arguido dos despachos, decisões ou medidas contra ele tomadas ou com qualquer notificação" (sublinhado nosso).
Tal aditamento revela indubitavelmente que ao legislador não bastou a mera notificação da decisão administrativa aplicativa da coima, que já estava abrangida nas causas interruptivas previstas na al. a), antes tendo querido consagrar a própria prolação da decisão como ato com capacidade interruptiva do prazo de prescrição.
O que se compreende, na medida em que esse ato revela, por si, o interesse do Estado na punição do infrator.
Refira-se que a razão de ser da prescrição do procedimento tem a ver com as garantias de certeza, segurança e previsibilidade do sistema jurídico e de efetivação do poder punitivo do Estado, e não com o exercício dos direitos de defesa do arguido.
Na verdade, procurando salvaguardar a estabilidade das relações jurídicas e a paz social, se após o decurso de um determinado lapso de tempo, proporcional à gravidade do ilícito, este caiu no esquecimento e a comunidade já não exige a perseguição do possível agente, é de concluir que o procedimento deixou de fazer sentido.
No entanto, existem situações, legalmente definidas, que, apesar do decurso do tempo, demonstram, objetivamente, diligência e interesse na punição, que apenas não foi conseguida por motivos alheios ao procedimento, afastando, assim, a presunção de desinteresse ou de esquecimentos subjacentes ao instituto da prescrição.
Uma dessas situações é precisamente a prolação da decisão administrativa que aplica a coima, na medida em que constitui um ato formal e solene de apreciação e declaração da ação constitutiva da contraordenação e do reconhecimento seu agente, demonstrativo, de forma inequívoca e fundamentada, do interesse punitivo do Estado nesse sancionamento.
Assim, ao proferir a decisão administrativa condenatória antes do termo do prazo de prescrição, o Estado está a praticar atos processuais reveladores da vontade de exercitação do seu poder punitivo.
Essa manifestação de vontade nada tem a ver com a efetivação da possibilidade do arguido reagir contra a condenação. A manifestação do interesse e da intenção do Estado em punir o infrator não se faz com a notificação da decisão, mas sim com a prolação desta.

Em suma, não está em causa a notificação da decisão mas sim a prolação da própria decisão em si.
O recorrente suscita a questão de esse entendimento poder levar a que a decisão seja proferida já para lá do prazo de prescrição e, por óbvia conveniência dos serviços, nela ser aposta uma data dentro desse prazo, com vista a impedir a extinção do procedimento.
Trata-se, porém, de um fundamento abstrato, sem suporte em qualquer alegação factual nem elemento probatório que o indicie, e que, a existir, deveria ter sido suscitado na impugnação judicial, por forma a que o tribunal de primeira instância procurasse averiguar e reconhecer que a data aposta na decisão administrativa não coincide com a data real em que a mesma foi proferida, daí retirando as consequências em termos de contagem do prazo.
O que não se torna possível é retirar tais consequências com base numa premissa abstrata e não comprovada em concreto.
Posto isto, é de concluir que o prazo de prescrição do procedimento contraordenacional em apreço nos autos se interrompeu no dia 21-12-2015, com a prolação da decisão administrativa, ou seja, antes do decurso do respetivo prazo, sendo que em 15-02-2016, com a notificação dessa decisão ao arguido, voltou a ocorrer nova causa de interrupção, desta vez a prevista na al. a) do n.º 1 do citado art. 28º.
A interrupção da prescrição tem por efeito a inutilização do tempo já decorrido desde que se iniciou a contagem do respetivo prazo, iniciando-se, a partir de cada facto interruptivo, a contagem de novo prazo, não se aproveitando o tempo anteriormente decorrido (art. 121º, n.º 2, do Código Penal, ex vi do artigo 32º do RGCC).
Não merece, pois, censura o despacho recorrido, ao considerar não estar prescrito o procedimento contraordenacional.
Sucede, porém, que, entretanto, já decorreu o prazo máximo de prescrição previsto no art. 28º, n.º 3, do RGCC, segundo o qual a prescrição tem sempre lugar quando, desde o seu início e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo de prescrição acrescido de metade, ou seja, in casu, 3 anos.
É certo que, de acordo com o disposto no art. 27º-A, n.º 1, al. c), do RGCC, o procedimento suspendeu-se em 20-01-2017, com a notificação do despacho de recebimento do recurso de impugnação judicial (fls. 27).
A suspensão implica que durante o período em que a mesma vigorar, não corre o prazo de prescrição (art. 120º, n.º 6, do Código Penal, ex vi do art. 32º do RGCC).
Embora essa suspensão se mantenha até à decisão final do recurso da decisão da autoridade administrativa, o que ainda não sucedeu, o certo é que nos termos do n.º 2 do citado art. 27º-A, não pode ultrapassar 6 meses.
Em conformidade com o exposto, ao referido prazo máximo de prescrição de 3 anos, acrescem os 6 meses de duração máxima da suspensão, termos em que o procedimento contraordenacional prescreve necessariamente uma vez decorridos 3 anos e 6 meses após o início do prazo (03-02-2014), o que sucedeu em 03-08-2017.
Desta forma, o recurso procede, embora por razões diferentes das invocadas.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar extinto, por prescrição, o procedimento contraordenacional instaurado nos presentes autos contra o arguido H. R..
Sem tributação.
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 25 de setembro de 2017

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)

[1] - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada.
[2] - No mesmo sentido, cf. a decisão sumária proferida no TRP em 09-11-2016 (processo n.º 6/16.4T8FLG.P1) e os acórdãos do TRC de 29-09-2010 (processo n.º 179/10.0T2ILH.C1) e de 07-03-2012 (processo n.º 492/11.2T2ILH.C1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt, bem como António Beça Pereira, Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Anotado, 7ª edição, Almedina, pág. 74, anotação 3ª.