Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4785/14.9T8VNF.G1
Relator: ANTERO VEIGA
Descritores: DOENÇA PROFISSIONAL
MEIO PROCESSUAL
CULPA DA ENTIDADE PATRONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/16/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário: 1 - As eventuais doenças profissionais integram-se no âmbito material do regime geral de segurança social, devendo ser ressarcidas pelo modo previsto na lei (98/2009), sendo matéria de interesse público. O modo de fazer valer os inerentes direitos prevê-os a lei 98/2009.
2 - Claro que o CNPCRP não cobre a indemnização decorrente da culpa, mas apenas os valores fixados na lei para a responsabilidade objetiva. Os demais, conforme resulta do artigo 18º da LAT são a cargo do responsável.
3 - Ainda que haja culpa da entidade patronal, o meio processual é o mesmo, aplicando-se à fase contenciosa as regras aplicáveis aos acidentes de trabalho conforme artigo 155º do CPT.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães.
Maria… instaurar a presente ação emergente de doença profissional contra a sua entidade patronal “Sociedade, Lda”, peticionando a condenação da ré a:
-“a”, “b” e “c”: reconhecer que a autora sofre de doença profissional; que as suas lesões resultaram diretamente das condições de trabalho e que lhe determinaram uma incapacidade permanente parcial, no mínimo de 75%, e absoluta para o exercício do seu trabalho habitual;
d: - a pagar-lhe €89.452, a título de indemnização pela invalidez permanente parcial de que ficou a padecer;
- a pagar-lhe €30.000 a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela autora;
- €2.895,62, a título de reembolso das despesas já realizadas com o tratamento da sua doença, tudo acrescido de juros de mora.
Por decisão de 18/11/2014 julgou-se procedente, oficiosamente, a exceção de incompetência jurisdicional, absolvendo-se a ré da instância procedimental.
Inconformada a autora interpôs o presente recurso apresentando as seguintes conclusões:
I) Nos casos resultantes de culpa ou dolo da entidade patronal, o processo para efetivação de direitos emergentes de doença profissional não tem de decorrer no Centro Nacional de Proteção de Riscos Profissionais;
II) Com efeito, não obstante estar previsto na Lei 98/2009 de 04/09, e no Código Processo do Trabalho um processo para efetivação de direitos resultantes de doenças profissionais, tal regulamentação não exclui a possibilidade de o trabalhador afetado de doença profissional demandar a sua entidade patronal com fundamento na responsabilidade subjetiva e extracontratual;
III) O processo para efetivação de direitos resultantes de doença profissional tem como fundamento uma responsabilidade objetiva, ou seja, independentemente da culpa da entidade patronal no aparecimento da doença a lei garante a todo o trabalhador afetado por esta uma proteção (reparação), desde que a entidade competente (o Centro Nacional de Proteção de Riscos Profissionais) confirme a existência da doença e a caracterize como doença profissional;
IV) Tal proteção legal, que a todos os trabalhadores é garantida, não exclui que o trabalhador demande a sua entidade patronal se o aparecimento da doença profissional se deveu a uma atuação culposa da mesma e se o trabalhador, por virtude de tal atuação, viu afetados os seus direitos, absolutos, à integridade física e à saúde;
V) A ora recorrente fundamentou a ação proposta contra a ré na violação culposa por parte desta do seu direito à integridade física e moral, direito protegido pela Constituição da República e pelo Código Civil;
VI) O mecanismo da responsabilidade civil subjetiva e extracontratual de que a autora pretende lançar mão através da presente ação não colide com o, nem se sobrepõe ao, mecanismo de proteção previsto na citada Lei 98/2009 de 04/09;
VII) A proteção legal e a reparação que a autora pretende fazer valer é conseguida através do meio processual de que lançou mão - propositura contra a ré de ação com processo comum - com fundamento na responsabilidade civil subjetiva e extracontratual;
VIII) A admissibilidade da ação proposta pela autora é confirmada e assegurada pelo disposto no artigo 70.° do Código Civil, que garante a todos os indivíduos proteção contra qualquer ofensa ilícita à sua personalidade física e moral e confere à pessoa ofendida a faculdade de requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso com o fim de atenuar os efeitos da ofensa já cometida;
IX) Ao decidir como decidiu, a douta sentença recorrida não interpretou nem aplicou corretamente as disposições dos artigos 14.°, n.°s 1 e 3, da Portaria n.º 642/83, de 1 de junho; 278º do Código de Processo Civil; 70.°, n.°s 1 e 2, e 483.° do Código Civil; 138° e seguintes da Lei 98/2009 de 04/09, e 155.° e 117.° do Código de Processo do Trabalho.
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Citada a ré, não apresentou contra-alegações.
O Emº PGA deu parecer no sentido da improcedência.
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A factualidade é a decorrente do precedente relatório.
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Conhecendo do recurso:
Nos termos dos artigos 635º, 4 e 639º do CPC, o âmbito do recurso encontra-se balizado pelas conclusões do recorrente.
Importa saber se invocando-se culpa ou dolo da entidade patronal, o processo para efetivação de direitos emergentes de doença profissional não tem de decorrer no Centro Nacional de Proteção de Riscos Profissionais.
Na decisão recorrida sustenta-se a necessidade de uma fase administrativa, referindo-se que a certificação é da exclusiva responsabilidade do CNPCRP, só a partir dessa podendo iniciar-se a fase contenciosa.
A recorrente defende que fundamenta o seu pedido na culpa da entidade patronal, por violação dos seus direitos à integridade física e moral. Refere pretender lançar mão da responsabilidade civil extracontratual, que não colide antes se sobrepõe ao mecanismo previsto na lei.
Conquanto a questão esteja colocada como incompetência jurisdicional, a questão volve-se afinal no confronto entre a ação especial emergente de doença profissional (com uma “fase conciliatória” preterida a ocorrer junto do CNPCRP – preterição que no entender da primeira instância determina a incompetência jurisdicional do tribunal para analisar a questão sem esta fase prévia) e a ação comum por que se optou. Analisaremos a questão do ponto de vista do confronto estre estas duas formas processuais.
A posição da recorrente teve acolhimento no Ac. STJ de STJ de 1/1/2001, www.dgsi.pt, processo nº 02S561.
Defende-se neste que não sendo essa pretensão deduzível perante o Centro Nacional de Proteção dos Riscos Profissionais, mas diretamente dirigida à entidade patronal, não se justifica o uso do processo especial previsto no artigo 155.º do CPT/99.
Não resulta claro do acórdão que o pedido de danos patrimoniais se refira à perda decorrente da capacidade de ganho, ou outras prestações pelas quais o CNPCRP responderia dentro dos limites da lei, ou seja, dentro dos limites da responsabilidade objetiva.
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Vejamos. Importa saber se face ao pedido formulado e à causa de pedir que lhe serve de esteio, a ação especial emergente de doença profissional é adequada, ou ao invés o é a forma escolhida.
A lei coloca à disponibilidade das partes determinados mecanismos processuais (formas de processo), tendo em vista a proteção dos seus direitos. As partes têm que escolher o meio processual adequado a cada situação. Esta adequação afere-se em função do tipo de pretensão formulada e não em função da pretensão que deveria ter sido formulada.
Importa ver qual a pretensão da autora, e verificar da adequação do processo preterido para a mesma.
A recorrente formula o pedido acima descrito contra a entidade patronal, invocando que durante o desempenho laboral esteve sujeita aos ruídos intensos que se produzem no local de trabalho, resultantes do funcionamento das máquinas. Invoca que a ré nada fez quanto à proteção dos trabalhadores contra os ruídos, não proporcionando equipamento de proteção individual, nem tomando medidas tendo em vista o diagnóstico precoce.
Sustenta que a doença é consequência necessária e direta da atividade exercida, não representando normal desgaste do organismo.
Ora, tendo em conta o pedido e a causa de pedir, não se trata em nosso entender de responsabilidade extracontratual, mas contratual. A responsabilidade emerge da alegada violação de regras de segurança obrigatórias no quadro da relação laboral. Só no quadro de uma relação laboral pode uma doença ser classificada como profissional. Se o vizinho de uma fábrica contrai uma doença devido aos poluentes desta, estamos no quadro da responsabilidade extracontratual, se se trata de um trabalhador daquela, que contacta com os produtos no quadro da relação laboral, estamos no âmbito da responsabilidade contratual (obrigação de proporcionar boas condições de trabalho, designadamente no que respeita à segurança e saúde – artigo 127º, 1, als. c), g) h), 2 do CT e demais leis em vigor, que constituem concretização do direito consagrado na al. c) do nº 1 do artigo 59º da CRP).
Referir-se que a ação se funda na violação culposa da integridade física e moral não é suficiente. É que a forma preterida prevê igualmente tais casos de violação (nos casos de culpa, com o agravamento da responsabilidade a todos os danos patrimoniais e não patrimoniais – vd. artigo 18º, aplicável por força do artº 1, nº 2 ambos da L. 98/2009 e artigo 283, nº 4, 2ª parte do CT).
O que determina a propriedade ou não do meio é a pretensão formulada, o que nos remete para o direito que se pretende acautelar. O direito que aqui pretende ressarcir-se é a violação da integridade física e moral, decorrente do incumprimento de regras relativas à segurança e saúde do trabalhador, no quadro de uma relação laboral.
a natureza do ato agressor que serve de fundamento ocorre no quadro da prestação de trabalho e por causa dele. Não seria assim se o dano embora ocorrendo durante a prestação de trabalho não tivesse relação com este. Imagine-se por exemplo que a entidade patronal, por motivo pessoal alheio à prestação do trabalho, submetesse um determinado trabalhador a um ruído intenso, não decorrente nem determinado pela prestação do trabalho ou pelo funcionamento da “empresa”. A doença adquirida não é então sequer doença profissional, devendo o lesante ser demandado por responsabilidade extracontratual no foro comum.
O caso presente será um caso típico de doença profissional (verificados que se mostrem os requisitos desta, alegados na petição), acrescendo-lhe a circunstância de alegadamente ocorrer culpa da entidade patronal. Mas a existência de culpa da entidade patronal tal como a configurada na ação (inobservância de normas relativas á segurança e saúde do trabalhador), não interfere com a “caraterização” tal como previsto no artigo 95º da LAT.
Ora, a reparação das ocorrências decorrentes de riscos profissionais tem um cunho marcadamente social, visando dar cumprimento aos comandos constitucionais dos artigos 59º, 1, al. f) e 63º, 3 da CRP.
A evolução tem sido no sentido da integração no âmbito material da segurança social e do reforço do princípio do primado da responsabilidade pública (artº 14 da L bases – 4/2007).
De início ligada aos acidentes, impondo-se obrigatoriedade de transferência da responsabilidade para seguradoras, iniciou um processo de autonomização com o D.L. 44 307, de 27 de abril de 1962. Referindo-se nesta atender-se à “extrema gravidade” da silicose, cria o CNSDP, incluída na 1.ª categoria das instituições de previdência social – artigo 1º -, incumbindo-lhe a reparação das doenças profissionais, de início apenas a silicose – artº 3º-. A evolução continua com o D.L. 478/73, culminando com o D.L. 200/81.
As normas respetivas são imperativas, com um cunho protecionista, visando proteger o trabalhador, sendo nulas as cláusulas em sentido contrário como decorre do artigo 12º da LAT, e 3º da l. bases (4/2007 alterada 83-a/2013).
O processo corre oficiosamente – artigo 26º, 1, e) e 3 do CPT -, estando abrangidos obrigatoriamente na qualidade de beneficiários, os trabalhadores por conta de outrem ou legalmente equiparados e os trabalhadores independentes ( artigo 51º, nº 1 da L Bases 4/2007).
Decorre do referido a necessidade de a reparação dever ocorrer nos termos da lei, mediante uma pensão, (eventualmente remível, dentro dos limites previstos na lei), e não nos termos do código civil, designadamente pela atribuição de uma só vez de um montante indemnizatório, que rapidamente poderia esfumar-se, mantendo-se a incapacidade do trabalhador.
A lei fixa respostas diferentes para os acidentes e para as doenças, sem nunca perder o pendor social.
Apresenta a lei dois tipos de abordagem. De um lado obrigando a uma transferência de responsabilidade mediante um seguro (acidentes de trabalho – artigo 283º, 5 do CT ), de outro, mediante a inclusão no âmbito securitário do estado ( artigos 283º, 7 do CT e 93º da LAT), para o que se estabelecem mecanismos contributivos (artigos 54º da L. Bases aprovado pelo L. 4/2007 com republicação pela L. 83-A/2013, artº 51º e 184º do CRCSPSS (L. 110/2009) e 28º, 1, a do D.L. 160/99.
Estas responsabilidades são independentes da culpa. Para as doenças referia-o o artigo 14º do regulamento da Caixa Nacional de Seguros de Doenças Profissionais, anexo e aprovado pela Portaria n.º 642/83, de 1 de junho do regulamento a portaria referia:
“ 1 - A reparação dos danos emergentes de doenças profissionais é da exclusiva responsabilidade da Caixa Nacional, sem prejuízo dos casos especiais resultantes de dolo ou culpa das entidades patronais, ou seus representantes, e dos casos especiais de responsabilidade dos companheiros da vítima ou terceiros previstos na lei“.
Claro que isto não significa que o CNPCRP responda pela indemnização decorrente da culpa, significa apenas que ainda que haja culpa, o trabalhador tem direito às indemnizações prescritas na lei para a responsabilidade objetiva. A indemnização acrescida decorrente da culpa deve solicitá-la ao responsável – artigo 18º da LAT.
Pretende-se pois que o trabalhador receba a indemnização e na forma prescrita na lei, que nas formas mais graves – medida a gravidade pelo grau de incapacidade -, reveste a forma de pensão, para sua própria proteção.
No seguimento da mesma ideia, para os casos não diretamente suportados pelo Estado, consagra-se um sistema de substituição. Nos acidentes, através da criação do FAT – artigo 283º, 6 do CT -, e nas doenças, mediante a responsabilização do serviço com competência na área da proteção contra os riscos profissionais, conforme artigo 125º da LAT.
No quadro da transferência para o Estado da responsabilidade pela reparação das doenças profissionais, no âmbito da segurança social dos trabalhadores (sistema previdencial/contributivo), estabelece-se um procedimento administrativo prévio, obedecendo a algumas regras específicas, Assim:
- a certificação e a revisão das incapacidades é da exclusiva responsabilidade do serviço com competência na área da proteção contra os riscos profissionais – artigo 138º, 3 da LAT.
- A avaliação, graduação e reparação das doenças profissionais diagnosticadas é da exclusiva responsabilidade do serviço com competências na área da proteção contra os riscos profissionais – artigo 96º da LAT
- Existe o dever de participação dos casos clínicos… - artigo 142º da LAT e D.L. 2/82.
- Caráter oficioso do processo nos termos do artigo 26º, nº 3 do CPT.
Temos assim a reter que as eventualidades de doenças profissionais se integram no âmbito material do regime geral de segurança social, devendo ser ressarcidas pelo modo previsto na lei (98/2009), sendo matéria de interesse público. O modo de fazer valer os inerentes direitos prevê-os a lei 98/2009.
Claro que o CNPCRP não cobre a indemnização decorrente da culpa, como já referido, mas apenas os valores fixados na lei para a responsabilidade objetiva. Os demais, conforme resulta do artigo 18º da LAT são a cargo do responsável. Ainda que haja culpa da entidade patronal, o meio processual é o mesmo, aplicando-se à fase contenciosa as regras aplicáveis aos acidentes de trabalho conforme artigo 155º do CPT.
A existência de culpa, quando não interfira com os pressupostos do artigo 95º da LAT, não altera a natureza do dano.
A reparação das doenças profissionais é, assegurada pelo Sistema de Segurança Social, através do Centro Nacional de Proteção Contra os Riscos Profissionais – CNPRP -, sendo suportada pela entidade patronal na parte agravada, devendo no caso de incapacidade e sem prejuízo da ressarcibilidade de todos os outros danos patrimoniais e não patrimoniais, ser fixada em “pensão” conforme artigo 18º nº 4 da LAT.
Consequentemente o tribunal apenas tem competência na fase contenciosa, pelo que é de confirmar a decisão.
DECISÃO:
Acordam os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, absolvendo-se a ré do pedido.
Sem custas.
Guimarães, 16/04/2015
Antero Veiga
Manuela Fialho
Moisés Silva