Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1663/14.5T8VCT.G1
Relator: MARIA DOLORES SOUSA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DO TRABALHO
TRIBUNAL CÍVEL
ACIDENTE DE TRABALHO
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I.A destrinça da competência em razão da matéria entre as secções especializadas do trabalho e cível da instância central do tribunal de comarca é determinada considerando o pedido e a causa de pedir formulados na acção pelo autor, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis.
II. Compete à secção especializada cível conhecer da acção em que a seguradora, no exercício do seu direito de regresso, pede contra o tomador do seguro de acidentes de trabalho a sua condenação no pagamento de quantias que tenha pago, com base em contrato de seguro de acidentes de trabalho, por despesas várias, indemnização e pensão anual vitalícia a uma trabalhadora do tomador de seguro, relativamente a lesões por ela sofridas em acidente de trabalho e com base na responsabilidade daquele por não haver observado as regras de segurança.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.-Relatório

AA…, S.A. instaurou, em 18.12.2014, contra BB… – Transportes, Lda. acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 54.677,42, acrescida de juros de mora vincendos à taxa legal desde a data da citação até efectivo e legal pagamento.
Sustentou a sua pretensão no pagamento, fundado em contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice n.º 10.00211376, celebrado com a ré, de despesas várias, indemnização e pensão anual vitalícia a uma trabalhadora da ré, relativamente a lesões sofridas em acidente de trabalho ocorrido no dia 21 de Janeiro de 2011, e ainda na responsabilidade da Ré naquele acidente, por não haver observado as regras de segurança do trabalho, que se lhe impunham legalmente.
Na contestação, a ré invocou, além do mais que aqui não releva, a excepção da incompetência absoluta do Tribunal sustentando que a questão em apreço é questão que só pode ser apreciada e decidida no âmbito da acção especial emergente de acidentes de trabalho, regulada nos arts. 99º e ss. do C.P.T. e que a LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08, nos seus arts. 1º, 29º, n.º3, 37º, n.º1, 38º, 40º, n.º2, 80º, 81º, n.º2, al. e) e especificamente o seu artigo 126º, n.º1 al. c), determina que compete às secções de competência especializada do trabalho integradas na instância central do tribunal judicial da comarca conhecer, em matéria cível, das questões emergentes de acidentes de trabalho. Conclui pela infracção das regras de competência em razão da matéria, a qual determina a incompetência absoluta do tribunal e a absolvição da ré da instância.
No fim dos articulados, o tribunal a quo julgou verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, por violação das regras de competência em razão da matéria e, consequentemente, absolveu a Ré da instância.
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Inconformada com a decisão veio a autora interpor recurso de apelação, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
«1) Vem o presente recurso interposto da decisão a proferida pela Instância Central Cível da Comarca de Viana do Castelo, que decidiu absolver da instância a Ré BB - Transportes Lda., por entender não ser o tribunal competente, em razão da matéria, para apreciação do pedido formulado, contra esta;
2) O que está em causa no presente processo é a determinação da competência material dos Tribunais Comuns para a decisão da presente causa, sendo que se este Tribunal entender confirmar a decisão de primeira instância, estaremos pois perante um eminente conflito de jurisdição;
3) Entendeu o Tribunal a quo que: “O peticionado pela Autora implica a resolução de uma questão emergente de um acidente de trabalho. Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 8º, nº 1, da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro, “é acidente de trabalho aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte”.
Atento tal conceito, afigura-se-nos que as questões emergentes de acidente de trabalho são as questões relativas a um tal evento danoso, como a sua constatação, a determinação da culpa e do dano e a correspondente indemnização, com todas as suas componentes de dano à saúde e integridade física do trabalhador, ao seu património/retribuição, à sua capacidade de ganho, porque são estas as questões que, quanto a acidentes de trabalho, se reportam à relação jurídica de trabalho subordinado, pedra basilar do direito do trabalho que, por sua vez, determina a existência dos tribunais do trabalho como tribunais de competência especializada.
Ora, nos exactos termos em que a Autora desenha a relação material controvertida que a opõe à Ré, as questões relativas ao acidente em causa não se encontram totalmente dirimidas, não constituindo a questão submetida a juízo uma mera questão lateral relativamente ao evento danoso.
Apesar de a Autora ter satisfeito as quantias em que foi condenada na acção laboral, com fundamento num acidente de trabalho, pretende agora que a Ré – a entidade patronal – seja responsabilizada pelo pagamento dessas quantias com fundamento na omissão de regras de segurança do trabalho, por outras palavras, fundamenta o peticionado no agravamento da responsabilidade por violação das regras de segurança por parte da Ré, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 18º e 79º da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro.
Repare-se, em primeiro lugar, que esta questão – a violação das regras de segurança por parte da Ré – não foi sequer abordada na sentença que a Autora invoca para peticionar o que peticiona. É, pois, uma questão nova.
Em segundo lugar, a apreciação da questão submetida a juízo implica a análise e a consideração de factos e de normas eminentemente laborais, implicando, quanto aos primeiros, a compreensão das características de determinada prestação laboral para se compreender como é que ocorreu o evento e se, em face desse evento, se pode imputar a violação das referidas regras de segurança à Ré.
É, pois, uma questão que emerge de um acidente de trabalho, que não está decidida e que determina a incompetência material da Secção Cível, da Instância Central, do Tribunal Judicial de Viana do Castelo, para a resolver, por ser competente a Secção do Trabalho, por força do citado artigo 126º, nº 1, alínea c), da LOSJ.
A infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, consubstancia uma excepção dilatória nominada e implica a absolvição do réu da instância – cfr. artigos 96º, 99º, 576º, nº 1, 577º, alínea a), 578º, do Código de Processo Civil.”
4) Não pode a ora Recorrente conformar-se com esta decisão;
5) Desde logo porque a Recorrente tem instaurado, anualmente e desde há muitos anos, ações iguais à dos autos, as quais sempre correram pelos Tribunais Cíveis e não pelo Tribunal do Trabalho;
6) E a razão pela qual a ação deve correr nos Tribunais Cíveis prendesse com os seguintes argumentos:
7) A Autora/Recorrente dedica-se à actividade seguradora e funda o seu pedido no direito de regresso, decorrente da regularização das despesas emergentes do acidente de trabalho, o qual assume a natureza de um verdadeiro direito de crédito e que lhe assiste por força do disposto nos artigos 18.º e 79.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro.
8) Contrariamente ao alegado na sentença que se recorre não está em causa a aferição das responsabilidades da entidade patronal, da seguradora ou de terceiro pelo sinistro;
9) O pedido não se baseia no acidente de trabalho per si, nem em factos diretamente decorrentes daquele;
10) A jurisprudência considera materialmente competentes os Tribunais de Competência Genérica, e não os Tribunais de Trabalho, conforme se pode constar nos seguintes Acórdãos:
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-06-2006, processo n.º 06B2020, disponível no site www.dgsi.pt,
Acórdão da Relação de Coimbra de 17-06-2008, processo n.º 74/08.6YRCBR.C1, disponível no site www.dgsi.pt;
Acórdão da Relação de Lisboa de 20/04/2010, processo n.º 1030/08.0TJLSB.L1- 1, disponível no site www.dgsi.pt;
Acórdão da Relação de Coimbra de 13-09-2011, processo n.º 3415/10.2TBVIS.C1, disponível no site www.dgsi.pt;
Acórdão da Relação do Porto de 06-05-2013, processo n.º 1417/11.0TTBRG.P1, disponível no site www.dgsipt.
11) O Tribunal a quo mal andou ao decidir pela sua incompetência, desde logo porque ao contrário do que tem vindo a ser decidido pela jurisprudência, apreciou o conteúdo da defesa quando entende que “a apreciação da questão submetida a juízo implica a análise e a consideração de factos e de normas eminentemente laborais, implicando, quanto aos primeiros, a compreensão das características de determinada prestação laboral para se compreender como é que ocorreu o evento e se, em face desse evento, se pode imputar a violação das referidas regras de segurança à Ré.”
12) Ora, para efeitos de determinação da competência do tribunal em razão da matéria, só importa apreciar os termos da causa de pedir e do pedido formulado pela A.
13) Os tribunais de competência genérica têm, segundo a LOSJ (Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto), competência residual: Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional – artigo 40º, nº 1. Daí a necessidade de o tribunal, ao apreciar a questão da competência em razão da matéria, verificar se a lei atribui, em face da causa em exame, tal competência a outra espécie de tribunal, designadamente a um tribunal de competência especializada.
14) A lei atribui aos tribunais do trabalho uma competência especializada.
15) Segundo o artigo 126.º da LOSJ, compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível:
c) Das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais;
n) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente;
16) Tendo em conta que o pedido de reembolso formulado pela A. não vem cumulado com outro para o qual o tribunal fosse diretamente competente, a alínea n) não aplicação ao caso em apreço.
17) Resta-nos a consideração da alínea c).
18) Diversamente do que a 1ª instância entendeu, a questão apresentada pela A. não implica a análise e a consideração de factos e de normas eminentemente laborais, o que leva à aplicação do dito artigo 126.º, alínea c).
19) Questões emergentes de acidente de trabalho ou de doença profissional são pedidos ou pretensões que emergem, resultam, têm como causa de pedir o acidente de trabalho ou a doença profissional. São objeto daquilo que o Código do Processo de Trabalho designa de processos de acidente de trabalho ou de doença profissional (visando a fixação de pensão, indemnização pecuniária ou prestações em espécie), incluindo os respetivos incidentes de revisão, remissão ou atualização de pensões.
20) Ora, o objeto da ação não se reporta à delimitação da responsabilidade da apelante e da apelada pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo empregado da Ré.
21) Como referiu o acórdão do STJ de 22.6.2006, supracitado: «Conforme resulta da factualidade articulada pela agravante na petição inicial, não se trata de apurar a obrigação (…) decorrente do acidente de trabalho e do contrato de seguro no confronto do sinistrado, mas de apurar se aquela (a A.) tem ou não direito de regresso (…) quanto ao montante que pagou em virtude dos mencionados contrato de seguro e acidente de trabalho. Ao invés do que foi entendido nas instâncias, oobjecto da acção não se reporta à delimitação da responsabilidade da agravante e da agravada pela reparação do acidente de trabalho sofrido pelo empregado da última. Acresce que a verificação sobre se ocorrem ou não os pressupostos de facto e de direito da procedência da acção de regresso inscreve-se na problemática do próprio mérito da causa e não da competência do tribunal para a sua apreciação».
22) Pelo só podemos concluir que os presente autos não cabem na alínea c) do artigo 126.º da LOSJ.
23) O que a Apelante visa realizar na ação é o direito de regresso na medida do que pagou por virtude do contrato de seguro celebrado com a R. E qualquer direito de regresso pressupõe a existência de norma que o permita e o prévio pagamento pelo seu titular. A A. invocou o pagamento e bem assim o disposto nos artigos 18.º e 79.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro (Lei dos Acidentes de Trabalho), que vem precisamente subordinado à epígrafe “Actuação culposa do empregador”.
24) Todavia, nenhuma das alíneas do dito artigo 126º prevê o critério da natureza da norma como critério de atribuição da competência material aos tribunais do trabalho.
25) Pela referida norma legal do nº 1 do artigo 40º da LOSJ, o caso cabe na competência residual do tribunal de comarca.
26) Verificasse assim que o Tribunal a quo ao aplicar a alínea c) do artigo 126.º fez uma errónea interpretação das regras de competência, particularmente, do artigo 40º da LOSJ.
27) Assim, entende a ora Apelante que a decisão aqui em crise deverá ser revogada, e reformulada por outra que, julgue o Tribunal a quo materialmente competente para dirimir o pedido vertido nos presentes autos, dando prosseguimento aos mesmos.
Com o que, concedendo provimento ao recurso, e declarando o Tribunal a quo competente para apreciação do litígio em causa, farão V. Exas. A costumada J U S T I Ç A!!»
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Respondeu a recorrida formulando conclusões que, em síntese, se reconduzem ao seguinte:
O tribunal do trabalho é competente para decidir o litígio.
A posição da apelação enferma de um erro, pois assenta no pressuposto de que o direito de regresso invocado pela Apelante sobre a Apelada ficou demonstrado na acção especial de acidente de trabalho.
A Secção Cível da Instância Central da Comarca de Viana do Castelo só seria competente para julgar a presente acção de regresso se, no sobredito processo especial por acidente de trabalho, tivesse sido alegado e provado – e não foi – o agravamento da responsabilidade por actuação culposa da empregadora-Ré, por a Apelante entender que o acidente resultou de falta de observação, pela Apelada, das regras sobre a segurança no trabalho (arts. 18.º, n.º 1, e 79.º, n.º 3, da Lei n.º 98/2009, de 04-09).
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II Fundamentação.
1.Questão a decidir.
- O objecto do recurso, delimitado pelas conclusões das alegações (artigo 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 CPC), salvo questões do conhecimento oficioso não transitadas (artigo 608.º, n.º 2, in fine, e 635.º, n.º 5, CPC), consubstancia-se em saber se o conhecimento do objecto da acção instaurada pela recorrente se inscreve na competência da instância central da secção especializada do trabalho ou da secção de competência cível do tribunal de comarca.
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2. Factualidade e dinâmica processual relevantes para decisão do recurso.
- O pedido que a apelante formulou na acção é o de condenação da apelante no pagamento de 54.677,42€ e juros de mora vincendos à taxa legal desde a citação
- A causa de pedir em que a agravante baseou o supra referido pedido envolve os factos relativos a um contrato de seguro por acidentes de trabalho celebrado entre ela e a apelada, a ocorrência de um acidente de trabalho que afectou uma trabalhadora da última por culpa desta e a indemnização prestada pela primeira à sinistrada pelo dano decorrente daquele acidente.
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3. Apreciação.
É entendimento corrente da doutrina e da jurisprudência que a competência do tribunal, como pressuposto processual que é, determina-se pelos termos em que o autor estruturou o pedido e a causa de pedir.
Assim, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pg. 90-1, acerca dos critérios determinativos da competência dos tribunais, «São vários esses elementos também chamados índices de competência (CALAMANDREI). Constam das várias normas que provêm a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um, deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção — seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina REDENTI (1), «afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)»; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objectivos da acção está certo ainda para a pessoa dos litigantes.
A competência do tribunal (…) é ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos)».
A nível jurisprudencial e a título meramente exemplificativo, e citando apenas jurisprudência do ST, vejam-se os acórdãos do S.T.J., de 2009.02.12, Paulo Sá; de 2008.12.15, Salvador da Costa; de 2008.03.13, Sebastião Póvoas; 2008.02.28, Fonseca Ramos; de 22.06.2006, Salvador d Costa; de 2005.04.07, Araújo Barros; de 2004.11.18, Salvador da Costa.
Posto isto, o acidente de trabalho descrito nos autos e integrante da causa de pedir ocorreu em 21.01.2011.
De acordo com o artigo 8º da Lei 98/2009 considera-se acidente de trabalho, aquele que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza directa ou indirectamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
A lei prevê a hipótese de agravamento da responsabilidade, por actuação culposa do empregador na hipótese de o acidente de trabalho ter resultado da falta de observação das regras de segurança, higiene e saúde no trabalho (artigo 18º, nº 1).
Nessa hipótese, a seguradora do responsável satisfaz o pagamento das prestações que seriam devidas caso não houvesse actuação culposa, sem prejuízo do direito de regresso, nos termos do artigo 79º, n.º 3 da Lei 98/2009.
Ora, o que a apelante visa realizar nesta acção é precisamente o direito de regresso contra a apelada na medida do que pagou em virtude do contrato de seguro celebrado com a apelada, por, segundo afirmou, o acidente de trabalho em causa ter sido causado por omissão da apeladas das regras de segurança, nomeadamente na protecção do ferro que sai de uma máquina denominada de retestadeira.
Trata-se, pois, de uma relação jurídica autónoma da decorrente do acidente de trabalho, embora com ela conexa.
A partir dos factos integrantes da causa de pedir entendeu o tribunal a quo que «as questões relativas ao acidente em causa não se encontram totalmente dirimidas, não constituindo a questão submetida a juízo uma mera questão lateral relativamente ao evento danoso».
De acordo com o disposto no artigo 3º e 581, n.º4, do CPC «a causa de pedir é o facto jurídico concreto integrante das normas de direito substantivo que concedem o direito; e o pedido a pretensão formulada pelo autor ou pelo reconvinte com vista à realização daquele direito ou à sua salvaguarda».
Ora, são os termos da causa de pedir tal como é formulada pela apelante que relevam para efeito de determinação da competência do tribunal em razão da matéria.
O nexo de competência fixa-se no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, como decorre do artigo 38º, n.º1 da LOSJ.
Como resulta com clareza da factualidade articulada pela apelante na petição inicial, não se trata aqui de apurar a obrigação da apelante decorrente do acidente de trabalho e do contrato de seguro no confronto com o sinistrado, mas de apurar se aquela tem ou não direito de regresso contra apelada quanto ao montante que pagou em virtude dos mencionados contrato de seguro e acidente de trabalho.
Assim o objecto da acção não se refere à delimitação da responsabilidade da apelante e da apelada pela reparação do acidente de trabalho sofrido pela trabalhadora desta última.
Acresce que a verificação sobre se ocorrem ou não os pressupostos de facto e de direito da procedência da acção de regresso inscreve-se na problemática do próprio mérito da causa e não da competência do tribunal para a sua apreciação. cfr. o Ac. do STJ de 22.06.2006, rel. Conselheiro Salvador da Costa, disponível no site da DGSI.
A medida da jurisdição interna dos tribunais distingue-se em competência em razão do território, da hierarquia e da matéria.
Seguindo o autor supra referido, Ob. citada, págs. 94 a 98, decorre que a competência em razão da matéria é a competência das diversas ordens de tribunais dispostas horizontalmente, não havendo, portanto, entre eles uma relação de supra-ordenação e subordinação.
E a razão de assim ser prende-se com o facto de a lei atender à matéria da causa, isto é, ao seu objecto, encarado sob um ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação jurídica substancial em litígio.
Portanto, a competência traduz-se na medida de jurisdição atribuída a cada tribunal, assentando a competência material na natureza do litígio.
Como tem sido sublinhado por doutrina e jurisprudência, a distribuição de competência pelos vários tribunais especializados assenta no pressuposto da maior idoneidade desse tribunal para a apreciação das matérias que lhe são atribuídas, de forma a que as causas sejam julgadas por magistrados com a preparação específica adequada (cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Processo Civil, Coimbra Editora, vol. I, pg. 107). Trata-se, pois, da habilitação funcional do tribunal relativamente a certa matéria, nas palavras de Neves Ribeiro, acórdão do STJ, de 2004.03.19, www.dgsi.pt.jstj, proc. 04B3001.
De acordo com o artigo 64º do CPC: «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional».
E o artigo 65º prescreve: «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada».
Por sua vez, o artigo 40º da LOSJ, subordinado à epígrafe “competência em razão da matéria”, após estabelecer o princípio de que «Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional» (n.º1), acrescenta que «a presente lei determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem às secções de competência especializada dos tribunais de comarca ou aos tribunais de competência territorial alargada» (n.º 2).
Assim, na Instância Central dos tribunais de comarca podem ser criadas secções de competência especializada cível, criminal, instrução criminal, família e menores, trabalho e comércio (art. 81º da LOSJ).
Consoante a matéria das causas que lhe são atribuídas, distinguem-se as secções de competência cível das secções do trabalho.
As secções cíveis com a competência definida no art. 117º daquela lei (de cujo n.º1 resulta que «Compete à secção cível da instância central: a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50 000»), e as secções do trabalho com a competência definida no artigo 126º da referida lei.
Na sentença sob recurso entendeu-se que é competente para resolver a questão posta a secção do Trabalho da Instância Central da Comarca de Viana do Castelo, por força do artigo 126º, n.º1 al. c), da LOSJ.
Para determinação da competência do tribunal em razão da matéria importa considerar, além do mais, como atrás referimos, a estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na acção, no momento em que a mesma é intentada, independentemente da natureza estritamente civil ou laboral das normas jurídicas aplicáveis.
Atentemos agora no âmbito da competência material dos tribunais do trabalho no confronto com a causa de pedir e o pedido formulados na acção.
A referida al. c), do n.º1 do artigo 126 da LOSJ dispõe: que «compete às secções do trabalho conhecer, em matéria cível (…) das questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais».
E, na sua al. n) «das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho ou entre um desses sujeitos e terceiros, quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência, e o pedido se cumule com outro para o qual o juízo seja diretamente competente».
Daqui resulta que a competência em razão da matéria dos tribunais de trabalho abrange as acções que:
- tenham por objecto questões emergentes de acidentes de trabalho e doenças profissionais.
- versem sobre litígios envolventes de sujeitos de relações jurídicas de trabalho.
- e aquelas cujo objecto emirja de uma relação jurídica conexa com a de trabalho em termos acessórios, complementares ou de dependência, envolva um sujeito da relação jurídica de trabalho e um terceiro e o pedido se cumule com outro para o qual o tribunal do trabalho seja directamente competente.
Claramente, o referido nexo de acessoriedade, complementariedade ou de dependência justificativo da atribuição da competência aos tribunais do trabalho, a que se reporta o último dos referidos normativos pressupõe a natureza substantiva das relações conexas com a relação jurídica laboral.
Decorre, portanto, que não basta, para o efeito de competência material do tribunal de trabalho ou secção especializada do trabalho, a mera conexão processual.
Considerando a estrutura do pedido e da causa de pedir formulados na acção, afigura-se-nos certo não estarmos perante um litígio relativo a questões emergentes de um acidente de trabalho, pelo que se não enquadra na alínea c) do artigo 126º da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
Acresce que a acção não importa uma relação jurídica laboral cujos sujeitos sejam a apelante e a apelada, pelo que também se não enquadra na primeira parte da alínea n) do artigo 126º da Lei de Organização do Sistema Judiciário.
Com efeito, do que se trata é de uma acção em que a apelada figura como sujeito de uma relação jurídica laboral e a apelante figura em posição idêntica à de um terceiro no âmbito de uma outra relação jurídica de seguro conexa com a primeira em que ambas figuraram como sujeitos.
Todavia, também a referida situação se não integra na segunda parte da alínea n) do artigo 126º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, porque o pedido formulado pela agravante na acção não é cumulado com outro para o qual o tribunal do trabalho seja directamente competente.
Em consequência, não estamos na espécie perante uma acção da competência dos tribunais do trabalho.
Assim, considerando o pedido e a causa de pedir formulados na acção, entendemos não estar perante um litígio relativo a questões emergentes de um acidente de trabalho.
Trata-se de acção cuja causa de pedir se traduz numa relação jurídica conexa com uma relação jurídica laboral em que um dos sujeitos também o foi da relação jurídica laboral e o outro um terceiro em relação a ela, sem que ocorra uma situação de cumulação de pedidos.
A competência para conhecer da referida acção não se inscreve, por isso, na secção do trabalho, mas na secção cível da instância central do tribunal de comarca onde a acção em análise foi intentada.
Não ocorre, portanto, a excepção dilatória da incompetência em razão da matéria consequência da absolvição da ré da instância, a que se reportam os artigos 278º, n.º 1, alínea a), 576º, n.º2 e 577º, alínea a), todos do Código de Processo Civil.
Procede, por isso, o recurso, com a consequente revogação da sentença proferida pelo tribunal a quo e de a causa continuar na secção cível da instância central do Tribunal da Comarca onde foi distribuída.
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III. Decisão.
Pelo exposto, revoga-se a sentença proferida com a consequência de a causa continuar na secção cível da instância central do Tribunal da Comarca onde foi distribuída.
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Custas pela recorrida nos termos do artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Notifique.
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Acórdão elaborado em processador de texto pela primeira signatária.
Guimarães, 24 de Setembro de 2015.
Maria Dolores Sousa
Helena Melo
Isabel Silva







Sumário do acórdão proferido no processo nº 113/14.5T8VCT.G1 elaborado pela sua Relatora nos termos do disposto no artigo 663º, n.º7 do CPCN:
I.A destrinça da competência em razão da matéria entre as secções especializadas do trabalho e cível da instância central do tribunal de comarca é determinada considerando o pedido e a causa de pedir formulados na acção pelo autor, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis.
II. Compete à secção especializada cível conhecer da acção em que a seguradora, no exercício do seu direito de regresso, pede contra o tomador do seguro de acidentes de trabalho a sua condenação no pagamento de quantias que tenha pago, com base em contrato de seguro de acidentes de trabalho, por despesas várias, indemnização e pensão anual vitalícia a uma trabalhadora do tomador de seguro, relativamente a lesões por ela sofridas em acidente de trabalho e com base na responsabilidade daquele por não haver observado as regras de segurança.
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A Relatora.