Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
293/08.5IDBRG.G1
Relator: ANTÓNIO CONDESSO
Descritores: FRAUDE FISCAL
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I) O crime de fraude fiscal só pode ser cometido através de ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável, da ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária ou da celebração de negócio simulado.

II) In casu, a situação que se apreende nos autos referente à prestação tributária do IVA, não se acomoda a qualquer de tais parâmetros, inexistindo qualquer intuito defraudatório patenteado através de tais meios do tipo falsificação ou simulação e, por isso, se impõe a não condenação do arguido neste particular.

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães

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I- Relatório

Jorge M. foi condenado pela prática de um crime de fraude fiscal p. e p. pelos arts. 6º, 103º, nºs 1 e 2 da Lei 15/2001 (RGIT), na forma continuada, relativamente ao IRC dos anos 2004 e 2005, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa pelo prazo de 3 anos, devendo nesse prazo pagar as quantias de € 73.956,01 e de € 137.591,92, relativas, respectivamente, aos anos de 2004 e de 2005 nos termos do art. 14º do RGIT.

C… Lda, actualmente designada C… C…, Lda, foi igualmente condenada pela prática de um crime de fraude fiscal, p. e p. nos arts. 6º, 103, nºs 1 e 2, da Lei 15/2001 de 5-6 (RGIT), na forma continuada, sendo responsável nos termos dos arts. 7º e 12º do mesmo diploma, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, que perfaz € 1.250,00.

Inconformado recorre o MP, suscitando, em síntese, as seguintes questões:

- errada qualificação dos factos no tocante ao IVA;

- subsidiariamente: impugnação da matéria de facto e vício de contradição insanável previsto no art. 410º, nº2, al. b) CPP;

- medida da pena no tocante ao arguido.

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Os arguidos não responderam ao recurso.

Nesta Relação, a Ex.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer meramente tabelar no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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II- Fundamentação

A) Factos provados

“1. A sociedade arguida tem como competente o Serviço de Finanças de Vila Verde, está colectada em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (IRC) pelo exercício da actividade de construção de edifícios (residenciais e não residenciais) (CAE …) e esteve enquadrada, para efeitos do Imposto Sobre o Valor Acrescentado (IVA), no regime normal de periodicidade trimestral até 30/04/2007, e no regime de isenção previsto no artigo 9.º do referido Código a partir dessa data.

2. O arguido Jorge M. é sócio gerente da mencionada sociedade desde a sua constituição e é responsável pela organização da contabilidade da actividade que desenvolve e pelo cumprimento das obrigações fiscais.

3. Em data não concretamente apurada de 2004, o arguido, por si em representação da sociedade arguida, não emitiu documentos relativos a construção de imóveis. Pelo que não contabilizou os proveitos que lhes estão inerentes, nos termos do disposto no artigo 17º e ss. do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC) bem como deixou de liquidar o IVA respectivo, contrariando o disposto na alínea b ) do artigo 28 e artigo 35.º do Código do Imposto sobre Valor Acrescentado (CIVA).

4. No ramo da construção civil, particulares adquirem terrenos para construção, por escritura pública, que posteriormente dão origem a prédios urbanos declarados pelos próprios para efeitos de imposto municipal sobre imóveis (IMI), sem que se conheça a intermediação de um empreiteiro: em alguns casos estes empreiteiros emitem algumas facturas, não da totalidade do valor da obra, existindo também casos em que omitem todo o proveito obtido nessa obra, o que aconteceu com este sujeito passivo nos anos de 2002 e 2003, pelo que foi desencadeada uma acção inspectiva com referência aos anos de 2004 a 2007.

5. Através da fiscalização efectuada à empresa assim como pelos documentos facultados pelos detentores dos prédios, nomeadamente contratos de empreitada e documentos de pagamento (cheques, extractos bancários), foi possível apurar omissão de proveitos, resultantes da construção dos imóveis que a seguir se identificam: inscritos na matriz com os números … (propriedade de C…); … (propriedade de …), … (propriedade de …); … (propriedade de …); …(propriedade de …); … (propriedade de …); …(propriedade de …) e … (propriedade de … pelo que não contabilizou os proveitos que lhes estão inerentes.

6. Acresce que a sociedade também não emitiu documentos relativos à construção dos imóveis inscritos na matriz com os números … (propriedade de …), … (propriedade de …) e …(propriedade de …), pelo que também relativamente a estas construções não contabilizou os proveitos que lhes estão inerentes, nos termos do disposto no artigo 17º e ss. do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (CIRC) bem como deixou de liquidar o IVA respectivo, contrariando o disposto na alínea b) do artigo 28º e artigo 35º do CIVA.

7. Resulta dos autos que a sociedade arguida omitiu proveitos obtidos, no ano de 2004 e 2005, nas declarações de IRC apresentadas à administração fiscal em 23/05/2005 e 23/05/2006, respectivamente, não tendo declarado os montantes de €275.313,70 no ano de 2004 € 514.727,88 euros, no de 2005, pelo que obteve uma vantagem patrimonial ilegítima de € 73 956, 01 (setenta e três mil, novecentos c cinquenta e seis euros e um cêntimo), no ano de 2004 e €137.591.92 (cento e trinta e sete mil setenta e três mil, quinhentos e noventa e um euros e noventa e dois cêntimos) no ano de 2005.

8. Verifica-se ainda que a sociedade C… Lda não liquidou IVA aos seus clientes nos montantes de €24.467,55, no 1º trimestre de 2004, €57.492,81 no 2º trimestre de 2004, €27.680,24 no 4º trimestre de 2004; e €17.952,28, no 3º trimestre de 2005.

9. O arguido Jorge O. agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de obter vantagem patrimonial para si e para a sociedade que geria, a que sabiam não ter direito porquanto não traduziram na contabilidade da sociedade arguida as operações tributárias realizadas, omitindo-as, não tendo o Estado exercido todos os direitos tributários que lhe são conferidos por lei porque, face ao descrito comportamento dos arguidos, ficou convencido que as mesmas não tinham ocorrido, tendo os arguidos obtido a vantagem patrimonial ilegítima de €73.956,01 (setenta e três mil, novecentos e cinquenta e seis euros e um) no ano de 2004 e € 137.591,92 (cento e trinta e sete mil, setenta e três mil, quinhentos e noventa e um euros e noventa e dois cêntimos) no ano de 2005, a título de IRC.

10. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal.

Mais se provou que:

11. O arguido decidiu-se pela não liquidação do IVA aos clientes e não reporte da totalidade dos seus proveitos, em parte devido à pressão dos preços de mercado (também eles tributários do modelo de fuga ao fisco adoptado pelo arguido).

12. O arguido é divorciado. Tem dois filhos. Um filho com 11 anos e uma filha com 17 anos. Ambos estudantes. Paga €280,00 mês para pensão de alimentos.

13. Actualmente vive na casa dos pais.

14. É gerente de uma empresa (do pai), ligada ao ramo da construção civil.

15. Aufere quantia não concretamente apurada, mas não inferior a €500,00.

16. Não tem automóveis registados em seu nome.

17. Actualmente conduz um … – da empresa.

18. Não tem casa própria. Já teve, mas vendeu.

19. Foi empresário da construção civil desde 93 até 2012.

20. Tem o 12º ano de escolaridade.

21. A sociedade arguida foi declarada insolvente por decisão de …. Não tem actualmente actividade, prosseguindo os autos para liquidação do activo.

22. O arguido apresenta os seguintes antecedentes criminais:

a. Por decisão de …, transitada em julgado aos …, foi condenado pela prática de um crime de extorsão, na forma tentada, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução por igualmente período”.

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B) Factos Não Provados

“Que a conduta dos arguidos relativamente ao IVA fosse susceptível de lhe acarretar um benefício patrimonial de €24.467,55, no 1º trimestre de 2004, €57.492,81 no 2º trimestre de 2004, €27.680,24 no 4º trimestre de 2004; e €17.952,28, no 3º trimestre de 2005, a título de IVA”.

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C) Motivação de Facto

“O tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento e bem assim a prova documental junta aos autos, toda ela livre e criticamente apreciada de acordo com o seu valor legal probatório e as regras da experiência, nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal, nos seguintes termos.

No que respeita à designação social, objecto e gerência de facto e de direito da “C…, L.DA”, levou-se em linha de conta o teor da certidão de matrícula de fls.261 e seg., bem como a de fls. 632 e segs., donde evola, entre o mais, que a gerência de tal empresa estava a cargo do arguido, conjugado com as declarações do arguido que reconheceu a bondade de tal materialidade.

No que respeita ao seu enquadramento fiscal, valeu o teor dos autos de notícia de fls.6/7 e fls.23; de fls.55/56; a visão do contribuinte de fls.266 a fls.267; e o teor dos documentos comprovativos da declaração de início/reinício e alterações de actividade de fls.557 a fls.629.

No que tange à correcção dos cálculos da vantagem patrimonial em apreço (relativamente ao IRC), bem como ao facto de o arguido não ter liquidado o IVA relativamente às operações/empreitadas em causa, bem como quanto ao apuramento das concretas construções de imóveis geradoras dos proveitos em causa, ponderou-se conjugadamente o teor do relatório de inspecção de fls.25 e seg., também a fls.397 a fls.417; o teor do relatório de conclusões de acção inspectiva de fls.57 e seg., o teor da nota de cobrança de fls.531 a fls.532; o parecer de fls.533 e seg., conjugado com o depoimento M…O, inspectora tributária, que escorada na razão de ciência de ter levado a efeito a acção inspectiva em mérito, explicou com grande detalhe, isenção e objectividade, a forma como foram apurados os cálculos em apreço, bem como as premissas subjacentes (mormente o valor das empreitadas em apreço; pelo compulso dos meios de pagamento e contratos subjacentes).

Conjugando o teor do referido relatório com o depoimento prestado pela referida testemunha, atinge-se a conclusão de que foram usados dois tipos métodos no apuramento da matéria colectável: através a) métodos directos e b)métodos indirectos.

Como é consabido, a aplicação de métodos indirectos tem sido discutível.

Entende-se que «é admissível o recurso a presunções, desde que extraídas de factos concretos e objectivos – factos indiciários típicos devidamente explicitados – de onde o facto tributário possa ser inferido, com segurança, em termos de objectividade e normalidade, dentro das regras da especificidade da actividade em que se inserem e da “lege artis” ali vigente, com a efectiva possibilidade de pleno exercício do contraditório e da demonstração de que a base da presunção é infundada no caso concreto» (cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15/10/2008, relatado por JORGE GONÇALVES, disponível no site www.dgsi.pt).

Ora, no facto, entende-se que a aplicação de métodos indirectos não só se revela justificada, como os respectivos cálculos se revestem de consistência e confiança dadas as premissas em que assentam.

Com efeito, em primeiro lugar, todos os cálculos partem duma base muito sólida e demonstrada em audiência de julgamento, a saber: os concretos e reais valores das empreitadas em causa, valores esses obtidos pelo confronto entre os valores que figuram nos contratos de empreitada em apreço, fornecidos pelos donos da obra em conjugação com os meios de pagamento por estes facultados (de resto, o arguido não contestou qualquer dos valores de empreitada em apreço).

Pelo que, todos estes cálculos não partem de qualquer base fictícia mas assentam no pressuposto – demonstrado em audiência – do real valor das empreitadas.

Depois, os cálculos efectuados atendem ao valor de aquisição dos terrenos onde foram implantadas as moradias em causa – deduzindo tais valores de aquisição, posto que não respeitam a qualquer contrato de empreitada propriamente dito.

No fundo, a aplicação no caso de métodos indirectos tem que ver não tanto com a ficção de um valor dos serviços, mas, como explicado no relatório, pela necessidade de imputar/presumir um determinado nível de custos, nos casos em que os mesmos não estavam reflectidos pela sociedade arguida (usando-se neste aspecto um rácio do sector da actividade).

Ora, o arguido, neste aspecto, não contestou fundadamente o sobredito rácio de custos, limitando-se a não concordar com ele, sem adiantar qualquer alternativa ao mesmo.

Por outro lado, constata-se que as Finanças levaram em consideração o valor das facturas emitidas pela sociedade arguida – nos casos em que as mesmas foram passadas (ainda que não reflectissem a totalidade do valor da empreitada) – VIDE as facturas patenteadas nos autos a fls.172, 220 a FLS.222; fls. 229 A FLS.231; e fls. 244 a 245.

Os cálculos apresentados levaram ainda em consideração a existência de permutas de apartamentos – como no caso dos clientes A…e B….

Finalmente os cálculos apresentados levam ainda em consideração uma dedução do valor do IVA, calculado “por dentro” relativamente aos valores das empreitadas.

Note-se, porém, que as Finanças não recorreram somente a métodos indirectos, tendo recorrido igualmente a métodos directos nos casos em que tal se mostrava possível, mormente nos casos em que a contabilidade da sociedade arguida fazia reflectir custos das obras em apreço (é o que acontece no caso das obras dos clientes N… L…, L…; F…; J…, A…; contabilizando-se por aplicação de métodos directos os valores de €86.388,93 e €335.097,58, relativamente aos anos de 2004 a 2005, respectivamente (contra €183.074,91 e €165.236,68 por aplicação de métodos indirectos).

Talhando caminho relativamente às premissas dos cálculos, mormente quanto ao acerto dos valores das empreitadas, considerou-se o teor do valor dos depósitos efectuados em numerário pela própria sociedade, patenteados nos autos a fls.75 a fls.80, em conjugação com os extractos de conta dimanados da própria contabilidade da sociedade arguida, patenteados nos autos a fls.81 a fls.88 e a fls.101 a fls.122, cotejados com o teor dos extractos de conta bancária patenteados nos autos a fls.89 a fls.100 relativamente aos movimentos financeiros (igualmente analisados pelas finanças), em conjugação com o teor dos contratos de empreitada e conexos meios de pagamento das obras em apreço, patenteados nos autos a fls.123 a fls.148 fls.333 a fls.336 (quanto ao cliente C…), de fls.149 a fls.156 e a fls.306 a fls.318 (relativamente ao cliente J…), a fls.157 a fls. 171 a fls.457 a fls.471 (relativamente ao cliente P…) a fls.173 a fls.182 a fls.423 a fls.481 (relativo ao cliente L…); de fls.183 a fls.209 e a fls.482 a fls.505 (relativamente ao cliente V…); fls.210 a fls.226 (relativamente à cliente L…, fls.227 a fls.238 (relativamente ao cliente F…; fls.239 a fls.257 (relativamente ao cliente N…); a fls.443 a fls.453 (relativamente ao cliente A.); e fls.507 a fls.508 ( - INFORMAÇÕES relativamente à cliente E…), de fls.936 a fls.952 (relativamente a A…) e de fls.953 a fls. 973 (relativamente a J…).

Em audiência de julgamento todos os referidos clientes/donos de obra validaram com naturalidade e espontaneamente os preços de construção apurados pelas finanças que serviram de base aos cálculos (por apelo igualmente ao compulso da documentação patenteada nos autos - excepto nos dois últimos casos (cuja documentação foi ulteriormente remetida ao tribunal pelos próprios) - e os conexos meios de pagamento, asseverando todos eles que liquidaram integralmente o valor das empreitadas em apreço em singelo - ou seja - sem liquidação de IVA.

A decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (p. 1371/11.9BEBRG) - patenteada nos autos a fls.811 a fls.817 (relativa à impugnação judicial contra a liquidação adicional de IRC relativa ao ano de 2004) - uma vez que não se pronuncia sobre a justeza dos cálculos da liquidação, decidindo pela procedência da acção em função meramente da verificação da caducidade do direito à liquidação de IRC – não prejudica nem influi nestes autos, posto que o caso julgado nas sentenças de impugnação e de oposição apenas se afirma relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram (cf. o artigo 48.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias).

Já quanto ao IVA, constata-se que, de facto, a arguida não liquidou e não recebeu o valor do IVA – o que se atinge pelo compulso do somatórios dos meios de pagamento apurados e os valor inscritos nos contratos (alguns fazem menção de que acresce o IVA (cf. fls.126 a fls.127; FLS.151 a fls.152; 157 a FLS.158; fls.195 a fls.196; FLS.210 A FLS.211; FLS.443 A FLS.444, 937 A 938 – e OUTROS não, como é o caso dos contratos patenteados a fls.173 a fls.174 193 a fls.194).

É, por conseguinte, facto pacífico que tal IVA nunca foi cobrados aos clientes - como por estes confirmado - sendo que à mesma indubitável conclusão chegou as Finanças (e em particular a sobredita referida inspectora Tributária).

Daí dar-se como não provada a matéria conexa com a obtenção da vantagem patrimonial ilegítima relativamente ao IVA.

Relativamente à concreta descrição/inscrição matricial dos prédios em apreço, além dos documentos acima referidos, ponderou-se o teor dos prints de fls.344 a fls.384; e de fls.512 a fls.523.

As condições pessoais e económicas do arguido provaram-se com base nas suas declarações, que pareceram ao tribunal credíveis, excepto na parte dos rendimentos, que nos parecem escassos e não validados por qualquer outro meio que não as próprias declarações do arguido.

O arguido validou ainda com espontaneidade o referido em 11., o que se afigura certo ainda à luz das regras da experiência comum.

No que toca aos antecedentes criminais do arguido, baseou-se o tribunal no CRC de fls. 881 a 883.

Quanto à situação de insolvência da sociedade, ponderou-se o teor da certidão que antecede”.

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Apreciando

1- Qualificação jurídica dos factos no tocante ao IVA

Entende o recorrente que não obstante ter ficado provado (factos provados 3, 6, 8, 9, 11) que o IVA nunca foi liquidado nem cobrado, foi, contudo, cobrado um preço pelo arguido, preço esse que todas as testemunhas confirmaram ter sido efectivamente pago e que está igualmente documentado.

E foi possível calcular o resultado lesivo causado ao Estado, pois que o arguido, responsável pela liquidação, recebeu uma quantia monetária lucrativa dos clientes a quem devia imputar o pagamento do imposto, ciente da obrigação de liquidar IVA e remeter o valor do imposto aos cofres do Estado, o que para além do mais o beneficiou no mercado por permitir concorrer a preços mais baixos.

Assim sendo, o Ministério Público entende ter sido erroneamente interpretado e aplicado o art. 103.º, nºs 1 e 2 do RGIT, pela consideração dada ao conceito de beneficio quando na verdade o crime foi praticado com a não liquidação.

O Tribunal a quo na sequência da matéria de facto provada e não provada e do constante da respectiva motivação de facto, maxime das parcelas sublinhadas acima, concluiu o seguinte no tocante ao IVA:

“… Já quanto ao IVA, o cenário é diferente.

Na verdade, é indiscutível que o arguido não liquidou o IVA pelos valores identificados na acusação (de resto o valor do IVA a liquidar até seria superior, posto que a Administração Fiscal liquidou o IVA por dentro), não recebendo o correspondente valor dos clientes.

Ou seja, conquanto a conduta se afigure pré-ordenada e vise claramente a não liquidação, a não entrega e o não pagamento da prestação tributária em apreço, sendo inequivocamente susceptível de causar a diminuição das receitas tributárias, a verdade é que inexistiu qualquer vantagem patrimonial, e, mais do que isso, a conduta não era pré-ordenada em termos de susceptibilidade a conformar qualquer vantagem patrimonial ilegítima ao agente.

Nesta medida, quanto ao IVA, nos termos do n.º2, do artigo 103.º, afigura-se conduta não punível criminalmente…”.

Vejamos

Susana Aires de Sousa (em conferência proferida no Centro de Estudos Judiciários, no dia 15 de Junho de 2012, no âmbito do Curso de Especialização “Temas de Direito Fiscal Penal”) escreve que “na Fraude incriminam-se condutas fraudulentas de ocultação, alteração ou simulação de factos ou valores que devam ser declarados, tendo em vista obter vantagens patrimoniais à custa das receitas fiscais”.

O tipo de crime aqui em causa é de fraude fiscal e não relativo a meros incumprimentos de obrigações fiscais, nomeadamente de cobrança ou simples liquidação de imposto.

Quer na forma omissiva, quer na comissiva por acção, o crime exige uma intenção defraudatória, isto é, uma resolução dirigida à obtenção de vantagens patrimoniais ilegítimas.

Como escrevia Alfredo de Sousa (Infracções Fiscais Não aduaneiras, 3.ª ed., Almedina, 1998, pág. 89):

“…Para a punição do agente basta comprovar que quis as respectivas acções ou omissões e que elas eram adequadas à obtenção das pretendidas vantagens patrimoniais e à consequente diminuição das receitas tributárias…”

E no mesmo sentido podem ver-se, entre muitos, por ex., o Ac. Rel. Porto, de 3-4-2002 ou o Ac. Rel. Coimbra de 9-5-2009, pr. 11/04.7 IDCRB.C1.

Tem-se entendido também que o valor, um qualquer valor que só ao legislador caberá fixar, é imanente à noção de património, pelo que o bem jurídico protegido terá de o ter por referente.

Nenhum tipo de ilícito cujo bem jurídico protegido seja, directa ou indirectamente, o património, prescinde dum valor como referente.

É ainda importante registar que, contrariamente às situações de abuso de confiança - art. 105º do RGIT, em que a liquidação já se mostra efectuada - os comportamentos descritos no art. 103º do RGIT se situam antes ou durante o processo da liquidação do imposto em causa, da obtenção do subsídio, do reembolso, etc.

Em coerência, aqui releva a vantagem patrimonial pretendida pelo agente, enquanto que acolá já se alude à prestação tributária.

Por outro lado, o facto de estarmos confrontados com crime de perigo não significa a irrelevância total e absoluta da vantagem patrimonial, já que a aferição e quantificação da mesma se mostra essencial quer para a existência do crime, quer para a opção entre crime ou mera contra-ordenação, à luz do nº.2 do art. 103º.

Ademais, o facto de existir uma obrigação de cobrar ou pagar impostos incumprida impele a sequente reacção da máquina fiscal, com recurso, por exemplo, à respectiva execução, mas tal não significa, necessariamente, que o devedor entrou no domínio da violação penal. O não cumprimento da obrigação para com o Estado tem exactamente esse significado e, sob pena duma instrumentalização do direito penal à revelia de princípios e valores, não pode equivaler automaticamente a uma infracção penal.

Importa, assim, não confundir a responsabilidade tributária pelo imposto devido, com a responsabilidade contra-ordenacional tributária ou com a responsabilidade penal tributária. O facto gerador da responsabilidade tributária é autónomo da responsabilidade criminal pois que, como refere Germano Marques da Silva «O facto gerador da dívida de imposto existe independentemente da prática de qualquer crime: a obrigação tributária é autónoma relativamente à responsabilidade penal pela prática de crime tributário e é geralmente proveniente da prática de facto ilícito, ainda que entre a dívida tributária e a responsabilidade pelo crime exista conexão» (Direito Penal Tributário, Lisboa, 2009, pág. 113)

No caso do IVA, há obrigação de os sujeitos passivos procederem à sua liquidação e adicionarem o valor do imposto liquidado ao valor das mercadorias ou prestação de serviços, incluindo-o na factura ou documento equivalente, para efeitos da sua exigência aos adquirentes das mercadorias ou aos utilizadores dos serviços (artigos 35.º e 36.º, n.º 1, do CIVA).

Mas o simples incumprimento de tal obrigação, só por si, não consubstancia a prática de qualquer crime de fraude.

De facto, no presente caso a situação constatada na matéria fáctica no tocante ao IVA é subsumível pura e simplesmente à contra-ordenação fiscal prevista no art. 114º, nº5 do RGIT (falta de entrega da prestação tributária), já que para tal efeito assim são puníveis todas as situações referidas no nº5 em causa, nomeadamente - e desde logo - na al. a) a falta de liquidação, a liquidação inferior à devida ou a liquidação indevida de imposto em factura ou documento equivalente.

Escrevem Lopes de Sousa e Simas Santos, in RGIT anotado, 3ª ed., nota 3 a tal dispositivo que “No nº5, prevêem-se várias situações em que não há falta de entrega de prestação tributária recebida e que deva ser entregue à administração tributária, mas sim omissões que têm como consequência a falta de cobrança de imposto devido, quer por falta de liquidação que deve ser efectuado pelos sujeitos passivos (situações previstas nas als. a) a e) deste nº5, que sucedem na maior parte dos casos de IVA e de imposto do selo), …”.

Daí que tenha inteira razão o Tribunal a quo quando considerou não punível à luz do crime de fraude a conduta dos arguidos no tocante ao IVA.

Acresce que, como é sabido o crime de fraude em causa constitui-se como um crime de execução vinculada, tal como é unanimemente reconhecido por doutrina e jurisprudência, e que apenas pode ser cometido através de uma das formas típicas descritas nas alíneas do nº 1 do artigo 103º do RGIT.

Isto significa que o crime de fraude fiscal só pode ser cometido através de ocultação ou alteração de factos ou valores que devam constar dos livros de contabilidade ou escrituração, ou das declarações apresentadas ou prestadas a fim de que a administração fiscal especificamente fiscalize, determine, avalie ou controle a matéria colectável, da ocultação de factos ou valores não declarados e que devam ser revelados à administração tributária ou da celebração de negócio simulado.

Ora, como facilmente se constata, a situação que se apreende nos autos tão pouco se acomoda a qualquer de tais parâmetros, inexistindo manifestamente qualquer intuito defraudatório patenteado através de tais meios do tipo falsificação ou simulação (conduta de ocultação ou de alteração de factos ou valores, ou conduta de celebração de negócio simulado).

Importa, pois, concluir que nem o crime foi praticado com a não liquidação como propugna o recorrente, nem a peça recorrida padece de qualquer falha nesta matéria, maxime quando entendeu como requisito essencial à verificação do crime de fraude em discussão a prossecução de vantagem patrimonial.

Improcede, em consequência esta parcela do recurso.

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2- Impugnação da matéria de facto (vícios previstos no art. 410º., nº2)

Subsidiariamente invoca o recorrente que terá sido mal julgada a matéria de facto no tocante ao facto não provado, entendendo que se provou o benefício dos arguidos.

Contudo, a respectiva argumentação não colhe, sendo irrelevantes para o efeito os cálculos das Finanças sobre o imposto que será devido.

Cumpre repetir de novo o que já anteriormente foi referido. O facto da administração tributária chegar à conclusão de que os arguidos são devedores de qualquer montante a título de IVA nada releva no presente caso no tocante à matéria de índole criminal (crime de fraude) quando o próprio recorrente não coloca em crise o acerto do julgamento no sentido de que o IVA em causa jamais foi cobrado (ou liquidado) in casu.

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Alude, além disso, o recorrente, ao longo do respectivo recurso, à verificação dos vícios previstos no art. 410, n.º 2, do CPP, maxime à contradição insanável entre os factos provados e o não provado ou entre os primeiros, o não provado e a motivação no tocante à inexistência do mesmo benefício.

Ora, como é sabido e resulta expressamente da letra da lei, em sede de apreciação destes vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº. 2 do art. 410º. do CPP), sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão, designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo durante o inquérito, a instrução ou o julgamento.

E, analisando a peça recorrida facilmente se constata a inexistência de qualquer vício deste jaez, sendo evidente que o Tribunal decidiu lógica e articuladamente ao considerar que a não cobrança do IVA em causa não se traduziu em qualquer benefício - leia-se vantagem económica - em tal sede para os arguidos, não se detectando qualquer tipo de contradição a tal propósito e não colhendo a rebuscada construção do recorrente relativamente às potenciais vantagens nos preços no mercado, matéria que obviamente nada tem que ver com o tipo de crime aqui em causa, sendo irrelevante para a configuração do mesmo (o benefício que se impunha existisse neste crime de fraude nada tem que ver com eventuais facilidades de mercado decorrentes de preços mais baixos).

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3- Medida da pena

Inalterada a matéria de facto e a qualificação jurídica do caso no tocante ao IVA soçobra igualmente a reclamada alteração da medida da pena do arguido estribada como se mostrava em exclusivo em tais pressupostos.

Improcede, consequentemente, o recurso.

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III- Decisão

Nos termos expostos, acordam os juízes desta secção criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso.

Sem custas.

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Guimarães, 9/7/2015