Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4076/15.8T8BRG.G1
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRIVAÇÃO DE USO
DANO
DEVERES ACESSÓRIOS
GESTÃO DO SINISTRO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I--A qualificação da indemnização do dano da privação do uso do veículo, como dano patrimonial autónomo, é actualmente praticamente pacífica, apesar da controvérsia anteriormente suscitada sobre a questão.
II--De acordo com o princípio da boa-fé (cfr. art. 762.º, n.º 2 do CC) e com os princípios gerais de conduta de mercado, consignados no Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de abril, as empresas de seguros devem garantir a gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, procedendo com a adequada prontidão e diligência às averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos.
III-Os deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários.
IV—No âmbito de um contrato de seguro facultativo, os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo.
V--Não obstante a cobertura do risco da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato de seguro, assiste ao tomador o direito de ser indemnizado no caso de perda total do veículo em resultado de acidente de viação, por ter ficado sem o poder utilizar, na sua vida diária, para as suas deslocações profissionais e nas viagens de lazer.
VI—A indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta por parte da seguradora.
Decisão Texto Integral: Sumário
I--A qualificação da indemnização do dano da privação do uso do veículo, como dano patrimonial autónomo, é actualmente praticamente pacífica, apesar da controvérsia anteriormente suscitada sobre a questão.
II--De acordo com o princípio da boa-fé (cfr. art. 762.º, n.º 2 do CC) e com os princípios gerais de conduta de mercado, consignados no Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de abril, as empresas de seguros devem garantir a gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, procedendo com a adequada prontidão e diligência às averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos.
III-Os deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários.
IV—No âmbito de um contrato de seguro facultativo, os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo.
V--Não obstante a cobertura do risco da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato de seguro, assiste ao tomador o direito de ser indemnizado no caso de perda total do veículo em resultado de acidente de viação, por ter ficado sem o poder utilizar, na sua vida diária, para as suas deslocações profissionais e nas viagens de lazer.
VI—A indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta por parte da seguradora.
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I—RELATÓRIO
A e M intentaram a presente ação contra “S” pedindo a sua condenação no pagamento ao primeiro de 70.119,25€, sendo 52.700€ devidos pelo capital seguro (68.700,00€ descontados do valor dos salvados de 16 000,00€), 584,25€ referentes ao pagamento do parqueamento da viatura até ao dia 27 de junho de 2014 no concessionário da marca, e 16.835,00€ de prejuízo de paralisação, contados desde 27 de junho de 2014 até dia do pagamento efetivo do capital seguro à razão de 35,00€ diários e no pagamento de eventual despesa de parqueamento que venha a ser apresentada pela oficina onde o carro se encontra desde o dia 27 de junho de 2014, em juros de mora sobre os valores peticionados; à autora Madeleine Espinosa Bonilla, a quantia global de 6.294,45€, sendo 344,45€ que pagou no Hospital da Trofa, 1500,00€ de prejuízo não patrimonial derivado dos fenómenos dolorosos, 3400,00€ relativas a implantes auriculares e 1050,00€ em transportes, no pagamento das despesas médicas e medicamentosas que a autora tenha que suportar no futuro na sequência do sinistro e nomeadamente na Clínica de Santa Tecla pelos tratamentos já feitos e a fazer e ainda não faturados e em juros de mora sobre os valores peticionados.
Fundamentam a sua pretensão no contrato de seguro que o Autor celebrou com a Ré através do qual foi para esta transferido o risco de choque, colisão ou capotamento.
A Ré, regularmente citada, apresentou contestação onde confirmou a celebração do contrato de seguro invocado pelo Autor e a participação do sinistro, mas impugnou, por desconhecimento, a ocorrência do sinistro, demonstrando estranheza que tenha ocorrido da forma que relata o Autor e reputando de inverosímil que o mesmo tenha sido causa direta e adequada dos danos apresentados pelo veículo.
Mais impugnou a extensão e valor dos danos reclamados pelos Autores, alertando que o valor do veículo indicado pelo segurado aquando do contrato de seguro, não é o valor real do veículo, alegando assim o sobresseguro e que os riscos transferidos para a Ré, através do contrato de seguro, não abrangem a cobertura de paralisação (ou comummente chamada privação do uso), por não ter sido subscrita, nem de aparcamento.
Replicaram os Autores dizendo que o dano de privação de uso alegado, bem como a responsabilidade pelo parqueamento, são danos de natureza patrimonial, autónomos, indemnizáveis nos termos da responsabilidade extracontratual.
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Proferiu-se sentença que decidiu julgar a presente acção parcialmente procedente, por provada, e condenou a Ré a pagar:
-Ao Autor a quantia de 52.700,00€ devidos pelo capital seguro e a quantia de 35,00€ por dia desde 12 de agosto de 2014 e até à data do efetivo pagamento da indemnização devida, a título de privação do uso.
-Sobre a quantia de 52.700,00 € acrescem os juros de mora, à taxa legal, contados desde 12 de agosto de 2014 e até integral pagamento.
-À Autora a quantia de 6.294,45€, acrescida de juros desde a citação e até integral pagamento e ainda a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença quanto aos custos dos tratamentos efetuados na Clínica de Santa Tecla, em Braga.
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Inconformada com a sentença, a Ré interpôs recurso, terminando com as seguintes
Conclusões
1. Fundam-se os presentes autos na responsabilidade civil emergente de acidente de viação.
2. Responsabilidade contratual, no que diz respeito à pretensão do A e extracontratual no que concerne à pretensão da M.
3. Alegando ter ocorrido um acidente de viação protagonizado pelo veículo seguro na ora R/Recorrente, consistente em despiste seguido de capotamento, veio o A, ao abrigo da cobertura facultativa contratada (choque, colisão e capotamento), peticionar a condenação da Seguradora R. no pagamento do valor referente à indemnização pela perda total do veículo, privação do uso e parqueamento.
4. Do mesmo modo, veio a A. M, imputando a culpa na ocorrência do evento ao condutor do veículo seguro na ora recorrente, pedir a condenação desta no pagamento de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais
5. Em face da matéria de facto considerada provada, o douto Tribunal a quo proferiu a douta decisão ora posta em crise, de acordo com a qual julgou a acção parcialmente procedente.
6. Ora, salvo o devido respeito por diversa opinião, não pode a Apelante concordar com a apreciação da prova levada a cabo, discordando, consequentemente dos fundamentos que suportam a douta decisão prolatada, quanto à matéria de facto e quanto à solução de direito.
DO ERRO DE JULGAMENTO - REAPRECIAÇÃO DA PROVA:
7. O presente recurso sobre a douta decisão proferida quanto à matéria de facto funda-se na convicção da Apelante de que o Douto Tribunal “a quo” terá efectuado uma incorrecta apreciação da prova e, concretamente, na instrução da matéria factual plasmada nos arts. 6º, 7º, 8º, 9º, 24º e 31º, do elenco da factualidade considerada provada os quais, pelos motivos que infra se demonstrará, deveriam ter sido considerados não provados ou parcialmente não provados.
8. Grosso modo, a factualidade que se entende ter sido erradamente julgada prende-se com a dinâmica do evento que constitui a causa de pedir nos presentes autos e com o respectivo nexo de causalidade adequada entre os danos apresentados pelos dois veículos em causa.
9. Salvo o devido respeito por diverso entendimento, estamos em crer que o Meritíssimo Tribunal “a quo” não ajuizou bem a prova produzida – documental e testemunhal - pois a mesma não se mostrou minimamente suficiente para alicerçar a convicção aduzida na douta sentença proferida a propósito da ocorrência do acidente e do respectivo nexo de causalidade entre a ocorrência e os danos verificados nos veículos.
10. Jamais poderia o Meritíssimo Tribunal “a quo” considerar suficientemente demonstrada a ocorrência do concreto acidente participado e, sobretudo, da existência de nexo de causalidade adequada, entre o evento relatado e os danos quando, de forma clara ficou cabalmente evidenciada a existência de variadas incongruências – desde logo entre os danos existentes no veículo interveniente - que segundo as regras da experiência, nos levam forçosamente a crer que as circunstâncias em que terá ocorrido o sinistro participado jamais poderiam ser aquelas invocadas pelos AA.
11. A saber:os danos que os veículos em causa nos presentes autos apresentam não são coincidentes com a dinâmica do sinistro vertida nos autos pelos AA. e com o local.
12. Face ao acervo probatório carreado aos presentes autos, jamais poderia ser considerada demonstrada a ocorrência do sinistro participado e bem assim a existência de um nexo de causalidade adequada entre o evento descrito na petição inicial e os danos que o veículo apresentava.
13. Acresce que, jamais se pode conceder que o Meritíssimo Tribunal “a quo” entenda como determinante para a formação da sua convicção probatória as declarações prestadas pelas partes–partes nitidamente interessadas na procedência da presente acção – tendo desvalorizado de forma absoluta, quer o depoimento do perito averiguador (cujo depoimento considerou ser interessado) e o depoimento do perito avaliador que procedeu à peritagem do veículo propriedade do A. António, só pelo facto dos mesmos terem uma ligação funcional com a Seguradora R.
14. Sobretudo quando estes dois citados depoimentos testemunhais se mostram corroborados pela prova documental carreada aos autos, nomeadamente as fotografias do veículo.
15. Da conjugação dos meios probatórios produzidos, nomeadamente testemunhais e documentais, impunha-se decisão diversa daquela que veio a ser proferida e que, presentemente, se impugna
16. Os concretos meios probatórios cujo reexame se solicita a este Venerando Tribunal da Relação, e que impunham decisão diversa da proferida são os que se passam a elencar:
Depoimento de J e L, produzidos em audiência de julgamento de e gravados em suporte digital de 15:27:00 a 15:49:00 e 15:50:00 a 16:13:00, respectivamente, e cujos concretos trechos se encontram devidamente transcritos no corpo das presentes alegações
Prova documental: fotografias de fls 10 a 12, 61 a 91, 93 a 109
17. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, não ficou minimamente provada a versão do evento apresentada pelos AA.
18. Atendendo ao teor dos depoimentos aqui em apreço, erradamente desvalorizados e, bem assim, quanto à demais prova carreada aos autos (nomeadamente documental), verifica-se evidente erro de julgamento quanto aos factos dos artºs 6º, 7º, 8º, 9º, 24º e 31º, do elenco da factualidade considerada provada.
19. Atendendo ao teor dos depoimentos aqui em apreço, erradamente desvalorizados e, bem assim, quanto à demais prova carreada aos autos (nomeadamente testemunhal e documental), verifica-se evidente erro de julgamento.
20. Perante a prova carreada aos autos, impunha-se alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos seguintes moldes:
Artigo 6º - NÃO PROVADO
Artigo 7º - NÃO PROVADO
Artigo 8º - PROVADO APENAS QUE “O veículo estava virado ao contrário, fora da faixa de rodagem destinada à circulação rodoviária, em posição paralela relativamente ao seu traçado”
Artigo 9º - NÃO PROVADO
Artigo 24º - PROVADO APENAS QUE “A autora Madeleine sofreu ferimentos”
Artigo 31º - NÃO PROVADO
21. Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em flagrante desadequação na apreciação da prova e erro de julgamento.
22. O que se deixa expressamente invocado, para todos os devidos efeitos legais.
II - DO DIREITO:
23.A propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implica, como consequência directa e necessária e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a improcedência da presente acção, desde logo por falta de prova do facto que origina a responsabilidade civil.
24.Sendo que, no que diz respeito à responsabilidade contratual em que assenta o pedido formulado pelo A. A, importa, pois, aquilatar das consequências da falta de demonstração do evento e do nexo causal entre o mesmo e os danos em sede do contrato de seguro celebrado entre as partes, na medida em que se trata de contrato de seguro que, entre o demais, contempla a cobertura de “choque, colisão ou capotamento”.
25.Não tendo sido feita prova inequívoca e bastante de que o sinistro participado foi o evento do qual resultaram os danos que o veículo propriedade do A. A apresentava, a presente acção encontra-se votada ao insucesso.
26.Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em violação do disposto nos arts. 342º do Cód. Civil e 516º do Cód. Proc. Civil, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada na íntegra.
SEM PRESCINDIR:
DA INDEMNIZAÇÃO PELA PRIVAÇÃO DO USO:
27.Na eventualidade de assim não ser doutamente entendido e se considerar que a prova não se acha incorrectamente apreciada, sempre se dirá que, mesmo assim, e em função da factualidade dada como provada, e dado que, no caso do A. A estamos perante responsabilidade contratual decorrente do accionamento da responsabilidade facultativa (seguro de danos) contratada ao abrigo da apólice de seguro (choque, colisão ou capotamento), jamais poderia ter sido fixada qualquer indemnização a título de privação do uso do veículo.
28.In casu, estamos perante um seguro automóvel, mas estribando-se a presente acção nas coberturas do mesmo que revestem natureza facultativa – “choque, colisão e capotamento”.
29.A presente acção deriva, pois, da responsabilidade contratual emergente do invocado incumprimento do contrato de seguro.
30.A Seguradora R. só poderá ser, pois, responsabilizada nos precisos termos em que se vinculou mediante a outorga do contrato de seguro.
31.Ora, tal como decorre do teor das Condições Particulares da Apólice juntas aos autos, de entre as coberturas facultativas não foi contratada a cobertura de “veículo de substituição” ou qualquer outra que abranja o dano da privação do uso.
32.Tratando-se de responsabilidade contratual, jamais poderá a Seguradora Recorrente ser condenada a liquidar à recorrida, sua segurada, o que quer que seja que não se ache devidamente incluído no contrato de seguro.
33.Ou seja, jamais poderia a Seguradora Recorrente ser condenada a indemnizar ao A. pelo dano da privação do uso, que lhe foi fixado em € 35,00 /dia, desde 12/08/2014 e até à data do pagamento da indemnização devida.
34. A este título, pronunciou-se o Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, em acórdão de 10/10/2013, disponível na íntegra em www.dgsi.pt, onde se refere, no respectivo sumário:
”I – O dano da privação do uso é um dano de natureza patrimonial.
II – No âmbito da responsabilidade civil contratual, em regra, o dano da privação do uso só é indemnizável se o segurador tiver acordado essa garantia facultativa, sujeito aos limites diários e ao período de tempo acordados”
35. É inegável que as coberturas facultativas contratadas são as que se acham especificadas nas condições particulares da apólice e que a responsabilidade da Seguradora Apelante é apenas, e em sede de responsabilidade facultativa, aquela que decorre do vertido nas aludidas disposições contratadas pelas partes.
36. Igualmente nesta sede, andou mal a douta sentença proferida.
37. Devendo, nos termos supra exposto, ser a mesma revogada e absolvendo-se a ora Apelante do pagamento da indemnização arbitrada a título de privação do uso do veículo.
38. Ao contemplar diverso entendimento, a douta sentença ora posta em crise incorreu em verdadeira violação do disposto nos arts. 562º, 798º do Cód. Civil e 130º do RJCS, entre outros, devendo, igualmente nesta parte, ser revogada.
III – DOS JUROS DE MORA DA INDEMNIZAÇÃO FIXADA À A. M A TÍTULO DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS:
39. Não se conforma, igualmente a Seguradora Apelante com o momento fixado para o início do computo dos juros de mora relativamente à quantia arbitrada em sede de danos não patrimoniais e atribuída à A. M.
40. Com efeito, é Jurisprudência unânime deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, com referência ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2002, de 09/05/2002, que quando há lugar a fixação de indemnização por danos não patrimoniais em valores já actualizados relativamente à data da prolação da decisão que os fixou, que os juros de mora sobre tais valores serão devidos desde a data da respectiva decisão.
41. Contudo – e aqui andou mal o Meritíssimo Tribunal “a quo” – determinou que a quantia global indemnizatória fixada à M vence juros de mora contados desde a data da citação.
42. Não fazendo a distinção entre os montantes indemnizatórios arbitrados a título de danos patrimoniais e a título de danos não patrimoniais.
43. É neste particular aspecto que entendemos que não foi respeitado o entendimento versado no supra citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, pois, no caso concreto, sempre os juros de mora contados sobre o valor de Euro 1500,00 fixados enquanto dano moral, seriam devidos, não logo após a citação, mas da data da prolação da decisão de 1º instância.
44. Foram, assim violados os arts. 805º n.º 1 e 3 e 806º do Cód. Civil e, bem assim, o Ac. Uniformizados de Jurisprudência n.º 4/2002.
45. A douta decisão recorrida deverá, pois, ser revogada, e substituída por outra que fixe o início do cômputo dos juros de mora vencidos sobre a quantia fixada a título de danos não patrimoniais (Euro 1500,00), desde a data da prolação da sentença em 1ª instância.
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O Autor apresentou contra-alegações, com as seguintes conclusões:
a) O tribunal recorrido apreciou devida e criticamente toda a prova e a matéria dada como provada tem correspondência correcta no acervo.
b) O Tribunal aprecia a prova dentro daquilo que é o seu campo legal de apreciação, sendo portanto normal que dê mais valor a uma versão ou a outra. No entanto, no caso tal nem acontece já que, da parte da R. nenhuma prova contraditória aconteceu, limitando-se as testemunhas de cuja reapreciação se requer a enumerar um conjunto de palpites e conjecturas que não têm qualquer ligação ao caso concreto que nos ocupa.
c) Ponderada toda a matéria de facto impugnada, limita-se de resto a recorrente a um dado: a manifestar uma estranheza que tem como único flanco de ataque, o facto de a quilometragem registada no momento do disparo dos air bags ser de 113 056 e a verificada no momento da vistoria de peritagem ser de 113 071km,
d) Havendo portanto uma diferença de 15 km, bem sabido que, como igualmente resulta da fundamentação da sentença recorrida e bem, após o sinistro o veículo ficou a andar e tal desfasamento pode ter um conjunto de justificações, sendo que a mais plausível foi o facto de o veículo ter sido submetido a testes, não se podendo descartar até uma falha electrónica.
e) Mas não basta à recorrente alegar esse desfasamento, para com isso procurar inverter os termos da sentença, que é no fundo aquilo que procura neste recurso.
f) Na verdade até a testemunha da R. Luís Rocha, engenheiro da Mercedes Portugal, acabou no seu depoimento por reconhecer que, num sinistro, perdendo o carro o centro de gravidade que provoca o seu capotamento, a sua posição final só depende da velocidade a que seguia. No caso e na ausência de grandes vestígios a nível do tejadilho, indiciam que o veículo seguia a baixa velocidade (in depoimento de Luís Rocha min. 16.15 a 16.35).
g) Verifica-se pois que o presente recurso assenta num conjunto de conjecturas produzidas pelas testemunhas de cujo depoimento se requer apreciação que nenhum conhecimento têm dos factos, que aliás não presenciaram. Contraditórios aliás entre si, já que, como se disse, o próprio Engenheiro Mecânico da Mercedes Portugal, esclareceu o Tribunal dizendo precisamente que há perfeita concordância entre o sinistro e os danos produzidos,
h) Constantes no relatório de peritagem, com base na vistoria e orçamentação feita pela Mercedes Braga.
i) Já quanto à matéria de direito, o recorrente procura desresponsabilizar-se pelo pagamento da privação do uso. Sucede que a não reposição atempada da situação anterior ao sinistro que em caso de perda total corresponde ao pagamento do necessário valor neste caso contratualizado, tem como efeito o avolumar dos danos decorrentes da manutenção da situação lesiva.
j) O dever de indemnizar resulta neste caso, não de uma obrigação contratual, mas do incumprimento do contrato existente. Isto é, se a R. não pagou ao A. a indemnização após atribuição da perda total, deu causa a partir daí os seus prejuízos derivados da privação de uso, por causa desse incumprimento, sendo nesta esfera que os mesmos estão peticionados e atribuídos e não na esfera do contrato de seguro propriamente dito quanto às suas coberturas.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II—Delimitação do Objecto do Recurso
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes :
-Da modificabilidade da decisão de facto;
-Da indemnização da privação do uso do veículo;
--Da contagem dos juros de mora referentes à compensação dos danos não patrimoniais.
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Da modificabilidade da decisão de facto
Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. (negrito nosso)
Assim, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova utilizados pelo tribunal(1) e ainda de outros que se mostrarem pertinentes, essa operação não pode nunca olvidar os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
Discorda a Recorrente da decisão que julgou demonstrada a matéria factual inserta nos pontos 6.º, 7.º, 8.º, 9.º, 24.º e 31.º(2), por considerar que os depoimentos prestados pelas testemunhas J e L, peritos, sendo este último avaliador,conjugados com as fotografias juntas aos autos, comprovam que os danos não são coincidentes com a dinâmica do veículo e com as características do local da ocorrência.Acrescentou que o tribunal valorizou indevidamente os depoimentos de parte em detrimento dos depoimentos destas testemunhas.
Relativamente às testemunhas L e J, os seus depoimentos foram correctamente avaliados pela Mma. Juíza uma vez que não assistiram ao acidente, limitando-se, a partir da análise de elementos objectivos, registados nos elementos fotográficos, a estranhar e a conjecturar sobre determinadas ocorrências, colocando em dúvida a forma como o acidente foi relatado pelo Autor, mas sem conseguirem afirmar, com sustentação técnica rigorosa, e com absoluta segurança, que tal era impossível de ocorrer.
Acresce que a diferença de quilometragem registada, como bem refere o Recorrido, é susceptível de ser justificada com circunstâncias que os técnicos em causa provavelmente desconhecem.
Corroboramos, por isso, a apreciação da Mma. Juíza quando refere que os referidos depoimentos, ao considerarem que os danos assentam mais em palpites e conjeturas do que em factos concretos, objetivos e investigados.
Relativamente às declarações de parte, a Mma. Juíza teve o cuidado de esclarecer que devem ser atendidas e valoradas com algum cuidado. As mesmas são declarações interessadas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na ação. Concordamos que seria de todo insensato que sem mais, nomeadamente, sem o auxílio de outros meios probatórios, se dessem por demonstrados factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.
Porém, essas declarações foram aceites para formar a sua convicção sobre a factualidade relacionada com o acidente, porque, na sua opinião, a forma sincera e coerente com que o autor depôs, e a confirmação das suas declarações, direta ou indiretamente, pela demais prova testemunhal e documental, permitiu ao tribunal fundamentar a prova dessa factualidade nesse meio de prova, livremente apreciada pelo tribunal, nos termos do art. 466.º do CP.Civil.
E não podia ser de outra forma.
Com efeito, as testemunhas M, MR e MP, cujos depoimentos foram salientados e resumidos na motivação, confirmaram as declarações do Autor, merecendo credibilidade.
Por todos estes motivos, não se impõe a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, no sentido pretendido pela Recorrente, antes pelo contrário, considera-se que a decisão impugnada se encontra devidamente fundamentada, através de um raciocínio lógico, alicerçado nas regras da experiência e rigor probatório.
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III—FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS
1. O primeiro autor é proprietário do veículo OC, da marca Mercedes, Classe E Diesel 350 Bluetec Elegance.
2. O autor celebrou com a ré um contrato de seguro, titulado pela apólice nº …, junta a fls. 51-54, cujo teor se dá por reproduzido, através da qual foram para esta transferidos, para além dos danos causados a terceiro com a circulação do veículo, o risco de choque, colisão ou capotamento.
3. O contrato teve início em 6 de novembro de 2013 e termo em 06 de dezembro de 2014.
4. O capital seguro para a cobertura de choque, colisão ou capotamento foi de 68 700,00€, sem qualquer franquia.
5. Este valor foi acordado entre o tomador do seguro (autor) e o segurador (ré), após prévia negociação.
6. No dia 11 de maio de 2014, cerca das 8.00 horas, o autor encontrava-se a conduzir o seu veículo, no sentido de Braga para Montalegre, acompanhado pela autora M, que seguia no lugar do ocupante.
7. Na localidade de Botica, freguesia de Ruivães, Município de Vieira do Minho, o autor faz uma curva à direita, entra numa reta e adormece por fração de segundo, quando se apercebe está a entrar na faixa contrária, assusta-se e instintivamente guina o carro bruscamente para a direita que galgando desse lado a valeta e o talude da estrada capota.
8. O veículo ficou virado ao contrário, fora da faixa de rodagem destinada à circulação rodoviária, em posição paralela relativamente ao seu traçado.
9. Com o capotamento os airbags dispararam imediatamente.
10. Foi acionada a assistência em viagem que removeu o veículo para o concessionário Mercedes em Braga.
11. Os Bombeiros de Ruivães, foram chamados ao local.
12. O tempo estava bom e o piso seco.
13. O veículo sofreu danos eletrónicos em todos os sistemas, amolgamento do capot, pára-choques, guarda lamas e faróis dianteiros, embaladeiras, internamente amolgou as longarinas dianteiras, reservatório limpeza de vidros, a caixa de velocidades ficou danificada, assim como o sistema de ar condicionado, amortecedores, o sistema de direção assistida ficou destruído, sistema de travagem, danos nas portas direitas e esquerdas, pneus, jantes e demais equipamento de suporte às rodas dianteiras, amolgamento do tejadilho com teto de abrir, pára brisas, uma chapa de matricula, grelha dianteira e radiador ficaram destruídos, necessidade de rever todo os sistema de sensores, fechos, dobradiças, cabos, sistema óptico, tubos, medidores, e necessidade de pintura e envernizamento do veículo, para além do rebentamento de todos os airbags e sua necessária substituição.
14. O custo total da reparação foi orçamentado em 63.818,11€, com Iva incluído.
15. Participado à ré o sinistro, esta, por carta datada de 5 de junho de 2014, comunica ao autor que, dada a extensão dos danos, considerava o veículo com perda total, decisão aceite pelo autor.
16. Por intermédio do seu advogado, o autor enviou à ré, carta datada de 9 de junho de 2014, solicitando uma resposta quanto à assunção da responsabilidade.
17. O valor atribuído aos salvados foi de 16 000,00€.
18. O veículo ficou depositado nas instalações da concessionária da marca Mercedes em Braga, para onde foi transportado pelos serviços de assistência em viagem da ré, desde a data do acidente até ao dia 27 de junho de 2014.
19. Nesta data, o autor decidiu proceder à sua remoção, já que o parqueamento estava a ser pago por si, tendo optado por transportá-lo para outra oficina onde se encontra desde então, oficina Auto Saltense, na Rua Central, nº …, Salto, Montalegre, perto de sua casa.
20. O autor pagou ao concessionário pelo parqueamento da viatura o valor de 584,25€.
21. O autor está sem carro desde o dia 11 de maio de 2014.
22. O autor tem necessidade de usar o veículo no dia-a-dia para as suas deslocações profissionais, bem como nas viagens de lazer, sobretudo ao fim de semana.
23. Um veículo com as características semelhantes ao veículo do autor tem um custo de aluguer diário de 35,00€.
24. A autora Madeleine sofreu ferimentos na sequência do acidente.
25. Foi assistida no Hospital Trofa, unidade de Braga por sentir tonturas e dores cervicais, onde foi submetida a vários testes, nomeadamente raio x, e TAC cerebral, tendo-lhe sido diagnosticada cervicalgia com parestesia da mão esquerda.
26. A autora gastou na assistência recebida o valor de 344,45€.
27. Foi depois seguida na Clínica de Santa Tecla onde fez várias sessões de fisioterapia.
28. Em 30 de outubro de 2014 efetuou a última consulta na Clínica de Santa Tecla, e ainda apresentava dores nos movimentos de flexão, rotação cervical e dorsal esquerda e dor à palpação.
29. Estes fenómenos dolorosos foram passando com o tempo, mas mantiveram-se constantes desde o momento do acidente até há pouco tempo.
30. A autora tem problemas auditivos e usa aparelhos auriculares, um em cada ouvido.
31. Com o choque caíram ambos, um deles desapareceu, o outro ainda foi encontrado no momento do acidente, mas esmagado e portanto inutilizado.
32. O custo dos aparelhos auriculares é de 1 700,00€, cada.
33. A autora teve que se deslocar a Braga às consultas e tratamentos nomeadamente de fisioterapia a que foi submetida na clínica de Santa Tecla para onde se deslocou de táxi, nos dias 29 e 30 de Maio, 2, 3, 4, 5, 6, 11, 12, 16, 17, 18, 19, 25 e 26 de junho, pagando um total de 1 050,00€.
34. O veículo seguro é um automóvel ligeiro de passageiros da marca Mercedes, modelo Classe E Diesel 350 Bluetec Elegance.
35. A sua primeira matrícula, TF531M, foi-lhe concedida pelos competentes serviços da Alemanha, e remonta a 31/03/2010.
36. A sua actual matrícula, OC, foi-lhe concedida pelos competentes serviços de Portugal, e remonta a 31/03/2013.
37. Por instruções da Ré foi aberto um processo interno n.º 53/2014 no qual foi junto um relatório de perda total, elaborado pelo perito averiguador, datado de 15/05/2014 (documento de fls. 102 verso e sgs)
FACTOS NÃO PROVADOS
1. No dia 10 de junho de 2014, o autor recebeu uma SMS no seu telemóvel, informando que a ré declinava a responsabilidade pelo sinistro, por falta de provas sobre o modo como o mesmo decorreu.
2. A ré, em contacto telefónico posterior informou o autor de que a sua decisão se mantinha e não assumiria a responsabilidade indemnizatória.
3. A autora terá ainda que ser submetida a mais exames e tratamentos médicos.
4. Na Declaração Amigável de Acidente de Automóvel, não foi feita referência à existência de feridos no campo criado para o efeito.
5. O valor venal do veículo à data da celebração do contrato de seguro era de 35.500,00€.
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IV-DIREITO
O Autor reclamou, através da presente acção judicial, o pagamento de uma quantia correspondente à perda total do veículo acrescido da indemnização pela privação do uso e parqueamento do veículo, alicerçando-se no contrato de seguro facultativo, por danos próprios, celebrado com a Ré Seguradora.
A Ré, condenada no pagamento da indemnização referente à privação do uso do veículo, suscitou a reapreciação desta questão no recurso por entender, em suma, que tratando-se de responsabilidade contratual, jamais poderá ser condenada a liquidar à recorrida, sua segurada, o que quer que seja que não se ache devidamente incluído no contrato de seguro.
A sentença, após ter reconhecido a controvérsia jurisprudencial que a problemática incidente sobre a mora injustificada no pagamento da indemnização garantida pela cobertura do risco, necessária para a compra de outro veículo, tem vindo a suscitar, expôs as três principais correntes da seguinte forma:
- a que defende que estando em causa uma obrigação pecuniária, e porque se trata de responsabilidade contratual, a indemnização pela mora corresponde aos juros legais, salvo convenção em contrário, pelo que em caso de mora do devedor na realização da prestação indemnizatória, não há lugar à indemnização de outros danos, nomeadamente, o dano da privação do uso do bem, a não ser que o credor prove que a mora lhe causou dano superior aos juros mas quando se trate de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco.
- a que entende que a indemnização é devida, por a mesma ser um corolário lógico da contraprestação inerente ao risco assumido pelo segurador, pois de outro modo ficaria esvaziada de conteúdo a contraprestação do segurador nestes casos ou, pelo menos, a respetiva correspetividade das prestações mostrar-se-ia desequilibrada, em prejuízo do tomador do seguro;
Finalmente, a terceira corrente fundamenta a ressarcibilidade destes danos com base na violação de um dever secundário ou acessório da obrigação. O inexplicável atraso no andamento do processo de pagamento da indemnização ao segurado, traduz-se na violação de um dever acessório da prestação, que não resultando do contrato de seguro, resulta do princípio da boa fé, consubstanciado na violação de um dever de diligência e lealdade. Assim, o segurador que venha a incorrer em responsabilidade contratual, por esta via, está obrigado a indemnizar o dano que resultou para a contraparte, o segurado.
Foi a terceira orientação que foi sufragada na sentença para fundamentar a condenação da Ré no pagamento da pretensão do Autor referente à indemnização da privação do uso do veículo seguro.
Importa, pois, reflectir sobre os institutos jurídicos convocados para a correcta decisão do caso.
A qualificação da indemnização do dano da privação do uso, como dano patrimonial autónomo, é actualmente praticamente pacífica, apesar de ter suscitado controvérsia no passado, como espelham várias decisões proferidas nas instâncias sobre esse assunto.
Assim, a ideia consolidada sobre esta matéria é a de que a privação do uso de um veículo constitui um dano patrimonial, emergente(3), de avaliação abstracta, não sendo, por isso, exigível a alegação e prova de concretas despesas com a utilização de meios de transporte alternativos, as quais já seriam integráveis no designado dano de cálculo (correspondente à diminuição patrimonial causada pela lesão).
No caso concreto, o risco de capotamento do veículo do Autor, que efectivamente ocorreu, obrigava a Ré, nos termos do contrato de seguro facultativo com aquele celebrado, a proceder à entrega do capital aí acordado.
Na hipótese, verificada neste caso, de essa obrigação não ser cumprida pela seguradora, cumpre saber se o tomador ou/e beneficiário do seguro tem direito a exigir uma indemnização pela privação de uso, apesar de constituir um risco não coberto pelo contrato de seguro?
Na ausência de prazo estipulado no contrato, a primeira questão com que imediatamente nos confrontamos, como bem se anotou na sentença, é a referente ao prazo de realização dessa prestação, ou seja, a partir de que data era exigível ao devedor, seguradora, a entrega do capital previsto no contrato de seguro por danos próprios.
Segundo a norma civil inserta no artigo 805.º, n.º 1, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
De harmonia com o regime especial decorrente das disposições conjugadas dos artigos 102.º e 104.º da Lei do Contrato de Seguro, a obrigação do segurador vence-se trinta dias após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, que, como sabemos, poderá variar em conformidade com a maior ou menor complexidade das averiguações necessárias para esse efeito.
Neste particular, concorda-se com a sentença quando sublinha que, de acordo com o princípio da boa-fé e com os princípios gerais de conduta de mercado, consignados no Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17 de abril, as empresas de seguros devem garantir a gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, procedendo com a adequada prontidão e diligência às averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos.
Com efeito, o disposto no artigo 762.º, n.º 2 do C.Civil determina que, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa fé, estendendo o princípio da boa fé objectiva à complexidade das obrigações(4).
E este princípio da boa fé implica a consideração, na relação obrigacional, dos designados deveres acessórios de conduta, destinados a permitir que a execução da prestação corresponda à plena satisfação do interesse do credor e que essa execução não implique danos para qualquer das partes. (negrito nosso)(5)
Os deveres acessórios de conduta distinguem-se evidentemente da prestação principal mas também dos deveres secundários uma vez que estes, ao contrário daqueles, estão funcionalmente ligados à prestação principal, abrangidos, por isso, pelo sinalagma e consequente acção de cumprimento.(6)
Nesta sequência, os deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários.
É que averiguação interna das circunstâncias em que ocorreu o sinistro, das suas causas/consequências e posterior comunicação ao tomador do seguro sobre o reconhecimento do evento, apesar de consubstanciar um procedimento relacionado com o contrato de seguro, não constitui, numa análise rigorosa dos conceitos, uma prestação estritamente ligada à obrigação de entrega do capital correspondente ao dano, emergente do contrato.
Feitas estas considerações prévias, recordemos o quadro factual demonstrado nos autos.
Após a participação do sinistro à Ré, foi determinada a abertura de um processo interno n.º 53/2014, no qual foi junto um relatório de perda total, elaborado pelo perito averiguador, datado de 15/05/2014, ou seja, quatro dias apenas após a ocorrência do sinistro.
Por carta datada de 5 de junho de 2014, antes de perfazer trinta dias contados da data do acidente, a Ré comunicou ao Autor que, dada a extensão dos danos, considerava o veículo com perda total, decisão aceite por este último.
Por intermédio do seu advogado, o Autor enviou à Ré, carta datada de 9 de junho de 2014, solicitando uma resposta quanto à assunção da responsabilidade.
Decorre desta factualidade que a Ré actuou de forma atempada e diligente na averiguação do sinistro e na comunicação ao tomador de seguro ao reconhecer a perda total do veículo, sem, contudo, assumir expressamente a sua responsabilidade no pagamento.
Na verdade, a Ré apenas reconheceu as consequências do sinistro em relação ao veículo. Nada mais.
No que tange às causas do sinistro, a Ré remeteu-se ao silêncio, pese embora ter sido directamente interpelada pelo Autor com o intuito de saber se assumia o pagamento do capital seguro.
Tratando-se de questões diferentes, o reconhecimento de perda total do veículo, por um lado, e a assunção da sua responsabilidade no cumprimento da contraprestação em que se encontrava adstrita por força do contrato de seguro, por outro, não podemos concluir pela verificação de um reconhecimento tácito quanto a esta última questão, nem sequer sobre as causas do acidente (cfr. art. 217.º do C.Civil).
Do quadro factual provado resulta que o Autor não foi informado extrajudicialmente pela Ré sobre as razões que, no seu entender, justificavam a recusa de pagamento do capital acordado.
E também não foi informado sobre a intenção da Ré de não assumir a responsabilidade decorrente do contrato de seguro celebrado com o Autor.
Desta forma, para além de não ter recebido o capital previsto para o risco de capotamento do veículo, que lhe possibilitaria a aquisição de um outro veículo, caso assim decidisse, ficou sem poder utilizar, desde o acidente, o seu veículo, na sua vida diária, para as suas deslocações profissionais e nas viagens de lazer, por ter sido considerado em perda total.
Se nos afigura incontestável que a Ré foi diligente na averiguação das consequências do sinistro no que respeita ao veículo, o mesmo não se pode afirmar em relação ao reconhecimento da sua responsabilidade contratual, o que lhe era exigido atendendo à realização atempada do relatório pericial, por si ordenado.
Portanto, a Ré não actuou em conformidade com os ditames da boa-fé, ao não responder ao Autor sobre se iria ou não cumprir com a obrigação de entrega do capital correspondente ao valor do veículo sinistrado.
Com efeito, caso não aceitasse assumir essa obrigação, o comportamento normal esperado da seguradora era o de comunicar ao Autor, tomador de seguro, as razões que a levavam a declinar tal responsabilidade, o que nunca sucedeu, antes da propositura desta acção.
Como se alerta na sentença A empresa de seguros deve informar o tomador e assumir factualmente a suspeita fundamentada de fraude e, principalmente, levar a cabo uma investigação que fundamente uma decisão consequente e conclusiva. Deve disponibilizar os relatórios das peritagens, bem como os relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão e comunicar a assunção, ou a não assunção, da responsabilidade, informando desse facto o tomador do seguro por escrito ou por documento eletrónico.
Os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo.
Ao contrário do que foi consignado nas conclusões (31.º), e posteriormente reconhecido pela Ré quando as partes foram notificadas para se pronunciar, foi efectivamente contratada a cobertura de viatura de substituição, o que torna menos compreensível, naturalmente, esta atitude omissiva por parte da Ré.
Concorda-se, por isso, com a sentença quando aí se discorre sobre a posição mais frágil do segurado em confronto com a seguradora, pelo que se revela crucial a execução de procedimentos que respeitem a cooperação e a prontidão, com vista a uma rápida resolução do caso.
Ou seja, na hipótese de o tomador do seguro não receber, em tempo devido e injustificadamente, o capital previsto no contrato de seguro para a perda total do veículo, não há dúvida de que poderá sofrer prejuízos decorrentes da privação do uso, que excedem os prejuízos da simples mora da obrigação pecuniária.
A violação dos deveres acessórios(7), que se impunham neste caso por aplicação do princípio da boa-fé, constitui o lesante na obrigação de indemnizar o lesado pelos danos sofridos.
A propósito, como se refere na sentença, citando Francisco Rodrigues Rocha(8), o princípio indemnizatório significa que tendencialmente, a prestação do segurador não deve ultrapassar o dano decorrente do sinistro, o que constitui, naturalmente, uma questão diferente daquela que estamos a analisar.
Por conseguinte, não obstante a cobertura da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato, assiste ao Autor, neste caso concreto, o direito de ser indemnizado por ter suportado esse relevante prejuízo, em consequência da Ré não ter cumprido os deveres acessórios de informação e de adequada prontidão, como lhe competia.
Em suma, conclui-se que, in casu, a indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta.
E, nesta linha argumentativa, assiste ao lesado, aqui Autor, o direito de exigir uma indemnização pelos danos originados por uma actuação contrária à boa-fé.
A solução jurídica encontrada para resolver esta problemática pretende compaginar a linha de liberdade e de racionalidade que se espera de um julgador justo e equitativo, atento aos usos do tráfico.(9)
Não se conforma a Recorrente com a condenação no pagamento de juros desde a citação.
Na sentença, relativamente aos danos não patrimoniais escreveu-se o seguinte: Quanto aos danos não patrimoniais reclama a autora a quantia de 1.500,00€ pelas dores sentidas quer no momento do acidente quer no decurso dos tratamentos, sendo que em 30 de outubro de 2014, ainda apresentava dores nos movimentos de flexão, rotação cervical e dorsal esquerda e dor à palpação. (…)Em face do exposto, consideramos a quantia de 1.500,00€ justa e equitativa.
O Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do S.T.J. nº 4/2002, de 9/5/2002 (in DR, I-A de 27/6/2002), fixou uma interpretação da lei no sentido de que sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do artº 566º nº 2 do Código Civil, vence juros de mora por efeito do disposto nos artºs. 805º nº 3 (interpretado restritivamente) e 806º nº1 do Código Civil, a partir da decisão actualizadora e não a partir da citação.
Seguindo as explicações posteriores do Supremo Tribunal de Justiça(10) sobre a matéria, este acórdão uniformizador assentou na ideia de uma decisão actualizadora da indemnização, por danos patrimoniais ou não patrimoniais, em razão da inflação no período compreendido entre ela e o momento do evento danoso.
Assim, perfilhando e citando as considerações plasmadas no douto aresto citado, importa apurar, através da interpretação da sentença,(11) se, no cálculo da indemnização por danos patrimoniais futuros ou na fixação da compensação por danos não patrimoniais, incidiu algum índice de actualização, situação que não se reconduz necessariamente ao cálculo da indemnização com base no princípio da diferença da esfera patrimonial a que se reporta o n.º 2 do artigo 566.º do C.Civil.
Ora, para além de nada se ter declarado sobre a actualização da compensação na data em que foi proferida a sentença, é incontroverso que, na fundamentação, não se mostra reflectido, na fixação da compensação dos danos não patrimoniais, o factor da desvalorização da moeda no período compreendido entre o acidente e a data da decisão.
Nesta conformidade, são devidos juros moratórios desde a citação.
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V—DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, e em consequência, confirmam a sentença.
Custas pela apelante.
Notifique e registe.
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Guimarães, 09 de Março de 2017

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(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)



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(Francisca Micaela Fonseca da Mota Vieira)



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(Fernando Fernandes Freitas)


1 - Cfr. Geraldes, António Santos Abrantes, Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 256.
2 - 6. No dia 11 de maio de 2014, cerca das 8.00 horas, o autor encontrava-se a conduzir o seu veículo, no sentido de Braga para Montalegre, acompanhado pela autora Madeleine, que seguia no lugar do ocupante.
7. Na localidade de Botica, freguesia de Ruivães, Município de Vieira do Minho, o autor faz uma curva à direita, entra numa reta e adormece por fração de segundo, quando se apercebe está a entrar na faixa contrária, assusta-se e instintivamente guina o carro bruscamente para a direita que galgando desse lado a valeta e o talude da estrada capota.
8. O veículo ficou virado ao contrário, fora da faixa de rodagem destinada à circulação rodoviária, em posição paralela relativamente ao seu traçado.
9. Com o capotamento os airbags dispararam imediatamente.
24. A autora Madeleine sofreu ferimentos na sequência do acidente.
31. Com o choque caíram ambos, um deles desapareceu, o outro ainda foi encontrado no momento do acidente, mas esmagado e portanto inutilizado.
3 - Neste sentivo v. Rocha, Francisco Rodrigues, Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, Almedina, pág. 207, citando Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, pág. 751 e Ac. Rel Porto de 15.05.2012.

4 - Cfr. Menezes Cordeiro, Tratado, I, 1, pág. 407.
5 - Cfr. Leitão, Luis Manuel Teles de Menezes, Direito das Obrigações, 2015, pág. 108.
6 - Cfr. Leitão, Luis Manuel Teles de Menezes, ob. cit., pág. 108.
7 - No Acórdão da Rel. Porto de 14/03/2016 disponível em www.dgsi.pt a factualidade não é coincidente porquanto a seguradora manifestou ao lesado a sua discordância relativamente à assunção de responsabilidade.
8 - “Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos”, 93.
9 - Cfr. Alarcão, Rui, Direito das Obrigações, Lições ao 3.º ano jurídico, 1983, Coimbra, pág. 114.
10 - Cfr. Acórdão de 13/07/2004 disponível in www.dgsi.pt.
11 - Cfr. Acórdão do STJ de 06/06/2013 disponível in www.dgsi.pt.