Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5334/17.2T8GMR.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: PRINCÍPIO DO DISPOSITIVO
RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTO ILÍCITO
DANO BIOLÓGICO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Numa ação de responsabilidade civil por facto ilícito, a circunstância de a autora ter invocado determinados danos que não se provaram atinentes a concretas perdas salariais não impede que o tribunal, perante os factos provados, considere a existência de um dano biológico que configura em si mesmo um dano indemnizável e arbitre a correspondente indemnização, pois esta decisão contém-se dentro dos limites da causa de pedir invocada e do pedido formulado, implicando unicamente um enquadramento jurídico distinto do que foi efetuado pela autora, que não viola o princípio do dispositivo e é permitido face à faculdade conferida ao juiz pelo art. 3º, nº 3, do CPC, que lhe confere liberdade de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
II - O dano biológico consiste numa lesão corporal que afeta a integridade físico-psíquica do lesado e que implica uma perda da plenitude das suas capacidades pessoais.
É um dano complexo posto que, traduzindo-se na ofensa da saúde e integridade física, tem repercussões quer a nível patrimonial, quer a nível não patrimonial.
II - O facto de o ofendido não exercer à data do acidente qualquer profissão, não afasta a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens, merecendo ressarcimento os lesados que se encontram fora do mercado do trabalho como é o caso das crianças e dos jovens que ainda não ingressaram no mundo laboral ou dos reformados/aposentados ou desempregados.
III - Estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.
IV – No caso de indemnização por danos não patrimoniais deve ainda atender-se à natureza mista de reparação do dano e punição que caracteriza tal indemnização.
V - Considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 28 500 relativamente ao dano biológico/perda de capacidade ganho e em € 25 000 relativamente aos danos não patrimoniais sofridos por uma lesada com 32 anos que foi vítima de um acidente quando se encontrava de férias em Portugal, o qual implicou a necessidade de realização de exames e cirurgia, tendo ficado afetada numa perna com uma incapacidade de 9 pontos, que lhe condiciona o caminhar, agachar, sentar e levantar, sofreu um quantum doloris de 5 numa escala de 1 a 7, esteve condicionada a uma cama durante 4 meses, ficou em situação de incapacidade funcional durante 366 dias, período durante o qual deixou de poder realizar as suas atividades pessoais e domésticas, tendo de socorrer-se do auxílio de terceiro inclusivamente para se lavar e vestir, continua a ter necessidade de tratamentos no futuro, continua a ter dores, ficou abatida e frustrada por não poder desempenhar as suas atividades e acompanhar os seus filhos, situação que afetou o seu seio familiar.
VI - Estando provado que a autora necessita de efetuar medicação analgésica em SOS, mas desconhecendo-se minimamente com que frequência ocorrem essas situações, quais os analgésicos que terá de tomar, respetivas quantidades e custo, circunstâncias estas que são, todavia, passíveis de averiguação, ainda não se mostram esgotadas todas as possibilidades de avaliação dos danos que justificam o recurso à equidade ao abrigo do art. 566º, nº 3, do CC, devendo antes a fixação da indemnização ser relegada para incidente de liquidação.
VII - Não estando demonstrado que a autora tenha sofrido qualquer efeito negativo na sua esfera patrimonial decorrente do auxílio que lhe foi prestado gratuitamente pelo seu companheiro no período em que a mesma não pôde desempenhar as suas atividades pessoais e domésticas, inexiste dano patrimonial a ressarcir, razão pela qual a autora não tem direito a receber qualquer indemnização a esse título.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 1ª seção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

M. F. veio propor contra X – UNIPESSOAL, LDA. ação declarativa sob a forma de processo comum pedindo que a ré seja condenada a pagar-lhe a quantia de € 59.000,08, acrescida de juros vincendos até integral pagamento.
Como fundamento do seu pedido alega, em síntese, que a ré explora, com fins lucrativos, um espaço destinado ao desporto automóvel amador de kart, denominado Kartódromo de ..., onde aluga karts aos clientes, conduzidos por estes no circuito existente para o efeito e sob as regras de segurança e circulação impostas pela mesma.
A autora conduzia um kart alugado à ré no mencionado circuito quando, na segunda volta, em cima de uma curva, sofreu um embate traseiro, que originou um solavanco do veículo, por via do qual o seu pé esquerdo ficou preso pela sandália por baixo do acelerador, o que a impediu de travar, mantendo o kart na mesma velocidade, com despiste na curva seguinte.
Não lhe foram comunicadas as condições e elementos necessários para a condução de karting, designadamente que é proibido conduzir com sandálias.
Na sequência de tal despiste, a autora, sofreu lesões e foi submetida a cirurgia, tendo ficado internada.
Não teve ainda alta clínica, mantendo-se em tratamento.
À data, tinha 32 anos de idade, gozava de boa saúde e não apresentava qualquer defeito.
Sofreu e sofre dores inerentes aos tratamentos, ficou retida no leito de um Hospital durante as suas férias e continuou condicionada a uma cama em França durante quatro meses, havendo incerteza quanto à completa cura, por existir possibilidade de desenvolver necrose do osso afetado.
Continua a sentir dores ao nível da articulação do pé esquerdo, bem como rigidez muscular e articular que condiciona, e, por vezes, impossibilita, o caminhar, o agachar, sentar e levantar.
Tem realizado sessões de fisioterapia, desconhecendo até quando será necessário submeter-se a esses tratamentos, tendo de manter acompanhamento terapêutico para não haver regressão.
Despendeu € 700,08, em transportes e deslocações ao hospital, fisioterapia, consultas e medicamentos.
Era assistente maternal e auferia € 1.500,00 mensais, tendo deixado de trabalhar desde a data do acidente, motivo pelo qual deixou de ganhar € 19.500,00, não sendo previsível quando poderá retomá-lo.
Sofreu incapacidade para o trabalho em geral, deixando de fazer os trabalhos domésticos, cuidar do marido e dos quatro filhos, pelo que teve de contratar pessoa à qual paga € 500,00/mês, cuja ajuda ainda é imprescindível.
Em agosto de 2016, o companheiro recebeu uma proposta de trabalho na área da construção civil no valor de € 1.800,00 nos primeiros três meses e de € 2.300,00 nos seguintes, mas teve de recusar para a acompanhar aos tratamentos e na ajuda da dinâmica familiar, tendo deixado de ganhar € 23.800,00.
Com os rendimentos próprios e do companheiro, proporcionavam a si e aos filhos boa qualidade de vida, o que não sucede no presente, pois encontram-se ambos desempregados e o companheiro a receber subsídio de cerca de € 500,00 por lhe dar apoio.
A sua situação tem afetado o seu filho de 3 anos, que apresenta quadros de instabilidade emocional.
Sente-se abatida, frustrada, com ansiedade e mal-estar por não estar a desempenhar com normalidade as suas tarefas usuais e deprimida por não poder acompanhar os filhos por falta de agilidade, tendo tido necessidade de recorrer ao auxílio de outras pessoas para se lavar e vestir.
Considera que lhe deve ser atribuída uma indemnização de € 10 000 para a ressarcir destes danos não patrimoniais.
Assim, entende que deve ser indemnizada pela ré pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, no valor global de € 59 000,08.
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Regularmente citada, a ré contestou, impugnando os factos atinentes ao acidente e aos danos, reputando de exagerados os valores peticionados.
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Foi proferido despacho saneador, definiu-se o objeto do processo e procedeu-se à seleção dos temas de prova.
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Procedeu-se a julgamento e a final foi proferida sentença com o seguinte teor decisório:

“1. Condeno a Ré X a pagar à Autora:
i) A quantia indemnizatória de € 4.849,91 (quatro mil oitocentos e quarenta e nove euros e noventa e um cêntimos), com vista à reparação dos danos patrimoniais, sobre a qual incidem juros moratórios desde a citação até integral pagamento, à taxa legal aplicável aos juros civis;
ii) A quantia indemnizatória de € 28.500,00 (vinte e oito mil e quinhentos euros), a título de reparação pela perda de capacidade de ganho/dano biológico, sobre a qual incidem juros moratórios desde a presente sentença até integral pagamento, à taxa legal aplicável aos juros civis;
iii) A quantia compensatória de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros), a título de compensação pelos danos de natureza não patrimonial, sobre a qual incidem juros moratórios desde a presente sentença até integral pagamento, à taxa legal aplicável aos juros civis;
iv) A quantia indemnizatória a fixar em ulterior incidente de liquidação pelas despesas com consultas médicas, exames e tratamentos de fisioterapia/balneoterapia de que venha a carecer para tratamento das sequelas.
2. Absolvo a Ré X do demais peticionado.”
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A ré não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Vem o presente recurso interposto da, aliás, douta sentença, por entendermos que a matéria de facto assente impõe uma apreciação e decisão oposta sobretudo quanto ao quantum
2. Afigura-se que tal decisão não fez a melhor ponderação das circunstâncias e particularidades da situação em causa.
3. É certo que, no âmbito das acções de indemnização decorrentes destes acidentes, tem a Jurisprudência entendido que, formulando-se diversos pedidos parcelares nesse tipo de acções (com base em danos morais ou danos patrimoniais), os limites da condenação devem reportar-se ao pedido global. Certo é igualmente, que tal entendimento deverá ser aplicado por referência e cotejando os pedidos formulados, os factos dados como provados e a relação estabelecida entre aqueles e estes.
4. Os factos devem consubstanciar/informar os respectivos pedidos formulados na PI.
5. O único critério para definir a indemnização na sentença em crise não poderá ser simplesmente o pedido total apresentado na PI., tido este como a soma das quantias parcelares apresentadas.
6. Estamos perante um litígio de direito privado, pelo que são as partes que têm o exclusivo interesse na acção e de delimitar o seu objecto.
7. O princípio do dispositivo traduz-se na liberdade das partes de decisão sobre intentarem uma acção, sobre os exactos limites do seu objecto (pedido e causa de pedir) e sobre o termo do processo. Este princípio estabelece os limites da decisão na medida do que lhe foi pedido (objecto do processo). Sem o mesmo seria permitido ao juiz julgar o que lhe apetece e não o que lhe é pedido. A lei processual impede decisões surpresa.
8. Entendemos que o Tribunal recorrido extrapolou o poder jurisdicional em manifesto e infundado benefício da A. e, consequente prejuízo da Ré, na medida em que, embora seja facultado ao Tribunal fazer uma diferente avaliação de cada um dos prejuízos, quantificando diferentemente os diversos danos que devem ser reparados/compensados, não lhe é facultado desconsiderar totalmente os pedidos formulados pela A., no desiderato de atribuir um quantum indemnizatório para compensação que se situe dentro dos limites do pedido global quando, com efeito, os danos parcelares alegados e a que se reporta cada um dos pedidos não foram provados.
9. Atentemos nos pedidos formulados pela A.:
1 - Da quantia de € 19.500,00, pelas perdas salariais por si sofridas (artigo 57º, da petição inicial);
2 - De uma quantia indeterminada pelas perdas salariais até regressar ao posto de trabalho (artigo 58º);
3 - Da quantia de € 23.800,00, pelas perdas salariais sofridas pelo companheiro (artigo 65º, da petição inicial);
4 - Da quantia de € 5.000,00, pela contratação de terceira pessoa (artigos 61º e 66º, da petição inicial);
5 - Da quantia de € 700,08, pelas despesas médicas realizadas (artigo 52º, da petição inicial);
6 - Da quantia de € 10.000,00, pelos danos não patrimoniais sofridos (artigo 80º, da petição inicial);
7 - De uma quantia indemnizatória em função da necessidade futura de efectuar novos tratamentos (médicos e medicamentosos) das sequelas (artigo 73º, da petição inicial).

Quanto aos pedidos 1 e 2: Resultou não provado, designadamente, que:

“al. f) À data do embate, a Autora exercia a profissão de ama, ganhando € 1.500,00 aquando do acidente – artigos 53º e 54º, da petição inicial.” ;
“al. g): É imprevisível a data em que poderá retomar o seu emprego – artigo 56º, da petição inicial”
“al. h): Pelo que deixou de ganhar, até à presente data, o valor de € 19.500,00 – artigo 57º, da petição inicial.”

Quanto ao pedido 3:
“al. k): O companheiro e pai dos seus filhos, em agosto de 2016, recebeu uma proposta de trabalho na área da construção civil, no valor de € 1.800,00 nos primeiros três meses de contrato, sendo os seguintes a quantia mensal de € 2.300,00/mês, mas, devido à nova situação familiar, teve de recusar, para acompanhar a Autora nos seus tratamentos e na a ajuda de toda a dinâmica familiar – artigo 63º, da petição inicial. “
“al. l): Pelo que deixou de ganhar, até à presente data, a quantia de € 23.800,00 – artigo 65º, da petição inicial.”
“al. n): Com os seus rendimentos e do seu companheiro, proporcionavam quer para si quer para os seus filhos um futuro seguro e tranquilo, quer em termos económicos e financeiros, quer em termos sociais e culturais, com boa qualidade de vida – artigo 68º, da petição inicial.”

Quanto ao pedido 4:

“al. i): A Autora teve que contratar uma pessoa, à qual lhe paga a quantia de € 500,00/mês – artigo 61º, da petição inicial.”
“al. j): Sendo, ainda hoje, uma ajuda imprescindível para as lides domésticas – artigo 62º, da petição inicial.”
10.O que in casu sucede é que a sentença em crise, no que tange à fixação do quantum indemnizatório, fundamentou-se em factos que não resultaram provados e que, conforme se expôs, informaram os “pedidos parcelares” formulados.
11.Para além de ultrapassar o princípio do dispositivo e da paridade das partes lançou mão da equidade em franco exagero, sem curar das necessárias balizas que se exigem no julgamento destas acções em que deve ser dominador o princípio do pedido global, mas em igual medida, os pedidos parcelares que informam aquele; Porque aqueles são a razão de ser deste.
12.Em maior ou em menor o balizamento cognitivo por parte do Tribunal estará sempre na mão/disposição do autor. O princípio do pedido, constante do artigo 3.º, n.º 1, do C.P.C., está relacionado com a pretensão do autor ao Tribunal. A primeira ideia decorrente deste princípio é a de que o tribunal não se auto activa.
13.Pois de outra forma, bastaria à parte (Autor) alegar e provar a responsabilidade do Réu; Depois, bastaria ter feito constar da PI. uns quaisquer argumentos (factos que, a final, não se provaram) mas que “em teoria”, até consubstanciariam “em abstracto” danos passíveis de serem indemnizáveis; Depois, bastaria que em sede de pedido de indemnização formulasse vários pedidos correlacionados com os factos alegados imputando a tais “factos” (que não foram provados) determinados valores.
14.Convém ainda notar que o cidadão (Réu) não pode ficar sujeito a que, quanto mais altos forem os valores peticionados em razão da alegação daqueles factos (os quais – se reafirma – não foram provados) maiores as “chances” do A. em obter uma condenação do Réu numa indemnização elevada. Tão só bastaria “fazer “pedidos” relativos a uns quaisquer danos patrimoniais e não patrimoniais” para que, somados os seus valores, tornassem o pedido global susceptível de ser o atendido para efeitos de condenação do Réu.
15.O entendimento subjacente à decisão em causa deverá ser interpretado no sentido de que os pedidos formulados pelo lesado no que tange ao seu montante poderão ser aumentados, desde que dentro dos limites do pedido global, mas sempre e tão só, no que concerne ao seu montante.
16.Pois neste tipo de acções, o Tribunal não terá de estar adstrito ao princípio do dispositivo no que tange aos montantes, mas terá em primeira linha de considerar como limites os fundamentos de cada pedido, ou seja, a relação entre os danos alegados pelo A. e a indemnização que peticiona por causa e em consequência deles, para se ver ressarcida/compensada.
17.Ora, sendo o facto dado como não provado, não deveria o Tribunal a quo socorrer-se de outros factos e prejuízos (que não foram sequer alegados) ou mesmo “reconduzir” aqueles que foram alegados, mas que não foram provados, para a final condenar numa indemnização simplesmente porque o quantum achado se situa “dentro” do valor global da acção, seja ele “achado” de que forma for - coerente ou incoerentemente.
18.Ao contrário do referido na sentença recorrida, a matéria de facto alegada e que consubstancia os pedidos parcelares é insusceptível de ser reconduzida ao quadro normativo que se tenha por adequado, pois os factos em que se fundamentam não foram provados;
19.A posição assumida na douta sentença não é consentânea com a lei processual e com a C.R.P.
20.Concatenando, especificadamente, o exposto à douta sentença, analisemos a condenação sentenciada:
21 - No que toca às perdas salariais
Não se provou que a A. exercesse a profissão de ama e que ganhasse €1500. Contudo o défice funcional na integridade física na capacidade de ganho futuro, deverá ser atendido com o que, naturalmente, concordamos, não obstante a recorrida não ter configurado devidamente a sua pretensão indemnizatória. O Tribunal, e bem, reconduzui a matéria de facto alegada ao quadro normativo adequado.
Não podemos, porém concordar com o valor da indemnização atribuído, por exagerado que é.
Não obstante o dano biológico verificado, não podemos deixar de atentar que a recorrida encontrava-se desempregada, a sua actividade profissional anterior à situação de desemprego não resultou demonstrada,
Por força do dano biológico, a recorrida, em futura actividade profissional, despenderá esforço acrescido. Mas, ponderando todos os factores a ter em conta na avaliação deste dano e o respectivo circunstancialismo (designadamente a nível de efectivos proventos laborais, a situação de desemprego à data do acidente e não se lhe conhecer profissão a não ser de fazer limpezas), bem como as indemnizações atribuídas a casos semelhantes e até mais graves, em que o lesado exerce uma profissão, remunerada acima do salário mínimo nacional, consideramos indubitavelmente que a indemnização atribuída é manifestamente elevada. Considerando-se adequada uma indemnização que se situasse entre os €15.000 e os €20.000.
22- No que se refere aos danos não patrimoniais sofridos:
O mesmo facto ilícito pode, como é sabido, produzir simultaneamente danos patrimoniais e danos não patrimoniais.
Também como é consabido que, os elementos factuais não podem servir para valorar o dano biológico e, em simultâneo, o dano não patrimonial, como sucede na douta sentença recorrida.
A gravidade do dano há-de medir-se por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso), e não à luz de factores subjectivos.
A indemnização por danos não patrimoniais deverá ser fixada, segundo critérios de equidade não aleatórios, proporcionais, justos, seguindo uma criteriosa ponderação, tendo especialmente em conta a situação económica do agente e do lesado, sendo assim mais uma reparação do que uma compensação, mais uma satisfação do que uma indemnização e ter em conta os parâmetros jurisprudenciais adoptados para casos análogos (n.º 3 do art.º 8.º do Cod. Civil).
Ora, a sentença “a quo”, salvo melhor opinião, não considerou ponderada enequitativamente tais factores, designadamente não teve em conta a situação económica das partes, não considerou que a recorrida não ficou com sequelas a nível psicológico e emocional.
Atente-se no o relatório médico - evidenciado pela sentença – que debruçando-se sobre tais “problemas de saúde” atribui-lhes “um cunho transitório ao quadro emocional atravessado por aquela na fase de tratamento.” (sublinhado nosso)
Em suma, o Tribunal recorrido limitou-se a reproduzir os factos dados como provados quanto aos danos, elementos factuais esses que, conforme sobredito, serviram também para valorar em simultâneo o dano biológico, o que, para além do mais, salvo o devido respeito, não lhe seria permitido fazer, conforme jurisprudência assente nesse sentido.
O tribunal “a quo” condenou a recorrente a título de danos não patrimoniais na quantia de €25.000. Atente-se no facto da A. ter peticionado a quantia de €10.000.
Certo que o Tribunal pode aumentar tal valor considerando o valor do pedido global. Mas não podemos olvidar que as decisões dos Tribunais, mesmo julgando segundo a equidade, devem obedecer aos limites razoáveis das pretensões, direitos e obrigações das partes, ao objecto do processo e aos factos dados como provados – o que “in casu” não aconteceu.
É notório que o Tribunal “a quo”, visou aproximar a condenação da Ré ao valor global peticionado pela A..
Ponderando todos os factos dados como provados e os demais aspectos complementares e instrumentais, consideramos justificada e justa atribuir à recorrida a indemnização de €10.000, tal como por ela foi peticionado.
23- Quanto aos tratamentos médicos e medicamentosos futuros
Refere a douta sentença que, “Quanto à medicação analgésica, nos termos do artigo 566º/3, do CPCiv, (será Código Civil) se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados”
Resultou provado que a toma de analgésicos é esporádica, apenas em SOS, pelo que o Tribunal não se encontra habilitado com elementos suficientes para desde agora fixar uma indemnização quanto aos analgésicos que lhe permitam usar da norma prevista no artº 566º, nº 3 do C.C.
O nº 3 deste artigo pressupõe que os danos foram alegados e se encontram provados e cumulativamente tenham sido alegados e provados factos que permitam ao Tribunal formular um juízo de equidade para fixar o valor dos danos. Nesta matéria não há factos provados.
Nada resultou provado no que tange aos analgésicos, a não ser que a A. necessitará de tomar os mesmos em situações de SOS. Pelo que, nesta data não é possível contabilizar pecuniariamente a despesa que a A. terá com tal medicação. Estamos perante um dano emergente das lesões sofridas pela A., sendo incerto o período de tempo, é impossível contabilizar os períodos de S.O.S e a A. não fez qualquer pedido respeitante à questão dos analgésicos.
Não estão preenchidos os pressupostos para a aplicação do nº 3 do artº 566º, nº 3 do CC, Não ocorrendo aqueles requisitos o montante da indemnização terá, quando muito, de ser liquidado em execução de sentença.
24- No que se refere ao auxílio de terceira pessoa
A sentença recorrida extraiu deste pedido, que a ajuda prestada pelo companheiro deverá ser indemnizada, porque ajustando o facto ao pedido, equipara-o a uma terceira pessoa que auferiu uma remuneração (porque segundo alegado um terceiro foi contratado) e que, por tal, deve existir ressarcimento/indemnização.
Note-se que o companheiro da A. estava e ainda permanece desempregado e sempre participava nas lides da casa, fazia bricolage, recebia um subsídio do estado, o que ainda hoje acontece. Não ficou provado que tivesse de ter abdicado duma proposta de trabalho, conforme alegado.
Resultou ainda da prova de acordo com as declarações do filho da A. que que “(…)quando regressou a França, a mãe esteve de cama mais de um mês, sendo as tarefas domésticas a cargo dele, do padrasto e de uma vizinha (…)
Salvo melhor opinião, consideramos que o facto de o companheiro ter dedicado o seu tempo em prol do cuidado da Autora não constitui um dano susceptível de avaliação pecuniária e fundamentar a condenação da Ré numa indemnização de €3.600, a qual além do mais, e concedendo-se na sua atribuição, sempre seria de considerar manifestamente exagerada.
25- Quanto aos juros
Não concordamos quanto à aplicação dos juros desde a citação, na medida em que tais quantias ainda não se encontravam fixadas (liquidas e certas de forma a torná-las exigíveis – veio o Tribunal fixá-las através da sentença), pelo que a citação não poderá consubstanciar o acto de interpelação para pagamento das mesmas.
26.A douta sentença recorrida não interpretou, nem aplicou correctamente os preceitos legais atinentes, nomeadamente os artigos 4º, 5º, 483º, 467º, 498º, 496º, 494º, 239º, 609º do CPC e os artigos 566º co C.C. entre outros.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I – saber se a indemnização pelo dano biológico, fixada em € 28 500, deve ser reduzida para valor entre € 15 000 a € 20 000;
II - saber se a indemnização por danos não patrimoniais, fixada em € 25 000, deve ser reduzida para € 10 000;
III – saber se deve ser fixada alguma quantia a título de indemnização pelo dano futuro ou se a fixação do seu montante deve ocorrer apenas em sede de incidente de liquidação;
IV – saber se não deve ser fixada qualquer quantia a título de indemnização por ajuda de 3ª pessoa, ou, a sê-lo, se o valor arbitrado deve ser reduzido;
V – saber se os juros apenas devem ser contabilizados após a decisão e não desde a citação.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

1. A Ré X dedica-se ao comércio de equipamentos de telecomunicações e informáticos e atividades de serviços financeiros não especificados, exploração de atividades de desportos motorizados e outras atividades desportivas de diversão, exploração de atividades de restauração e bebidas – artigo 1º, da petição inicial.
2. A Ré explora, com fins lucrativos, um espaço destinado ao desporto automóvel amador de kart, denominado Kartódromo de ..., sito na rua …, nº …, freguesia de …, concelho de … – artigo 2º, da petição inicial.
3. No mencionado local, a Ré aluga aos seus clientes karts, sendo estes conduzidos exclusivamente no circuito existente para o efeito e sob as regras de segurança e circulação impostas pela Ré – artigo 3º, da petição inicial.
4. Acontece que, no dia 07.07.2016, entre as 15h e as 16h, a Autora, juntamente com o seu companheiro e os seus filhos, dirigiram-se a tal complexo – artigo 4º, da petição inicial.
5. Nesse dia, a Autora conduzia um kart alugado à Ré no interior das instalações, no mencionado circuito – artigo 5º, da petição inicial.
6. Na segunda volta, o kart conduzido pela Autora, em cima de uma curva, sofreu um solavanco – artigo 7º, da petição inicial.
7. Com este solavanco do veículo, o pé esquerdo da Autor ficou preso pela sandália por baixo do acelerador daquele veículo – artigo 8º, da petição inicial.
8. Impedindo a Autora de conseguir travar, mantendo o kart a mesma velocidade, o que originou um despiste na curva seguinte – artigo 9º, da petição inicial.
9. Àquela velocidade, o veículo conduzido pela Autora foi projetado para fora do circuito, levantando voo, aterrando fora da pista – artigo 10º, da petição inicial.
10. Embatendo no muro de proteção da pista de karting – artigo 11º, da petição inicial.
11. Sendo que, com a força de aterragem do kart ao solo, encontrou-se a Autora dentro do mesmo, com o pé preso – artigo 12º, da petição inicial.
12. O capacete que a Autora usava para sua proteção saiu e foi projetado pelo ar ao longo de vários metros – artigo 13º, da petição inicial.
13. Conforme as Recomendações para o Karting de Lazer da Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK), é proibido conduzir de sandálias – artigo 20º, da petição inicial.
14. Essa situação não foi comunicada à Autora e não foi impeditiva da condução do kart pela Autora – artigo 21º, da petição inicial.
15. A Ré não foram comunicadas as condições e elementos necessários para a condução de karting, com exceção do uso do capacete – artigos 18º e 19º (parte), da petição inicial.
16. A Autora foi, de imediato, transportada para o Hospital da Senhora de Oliveira, em Guimarães – artigo 14º (parte), da petição inicial.
17. A Autora sofreu, em consequência do embate, a fratura do colo do astrágalo esquerdo (Hawkins tipo 4), rutura do ligamento deltoide e fratura do maléolo externo – artigo 25º, da petição inicial.
18. Tendo sido internada no Serviço de Ortopedia do Hospital da Senhora da Oliveira, Guimarães, no próprio dia, onde foi operada – artigo 26º, da petição inicial.
19. Nessa data, foi feita redução aberta e OOS do astrágalo com 2 parafusos HCS, reinserção do deltoide com 1 âncora absorvível – artigo 26º, da petição inicial.
20. Teve alta de internamento no dia 15.07.2016 – artigo 27º, da petição inicial.
21. A Autora tinha, à data do embate, 32 anos de idade – artigo 29º, da petição inicial.
22. Gozava de boa saúde física e mental, não apresentando qualquer defeito físico – artigos 30º e 43º, da petição inicial.
23. Sofreu dores, quer no momento do embate, quer antes e após a operação a que foi sujeita – artigo 32º, da petição inicial.
24. Além de que continua a sofrer dores e inerentes aos vários tratamentos a que foi sujeita – artigo 33º, da petição inicial.
25. A Autora encontrava-se de férias em Portugal quando sofreu o embate e esteve retida no Hospital – artigo 34º, da petição inicial.
26. Continuou condicionada a uma cama em França, durante quatro meses – artigo 35º, da petição inicial.
27. Existe a possibilidade de desenvolver uma necrose no osso afetado – artigo 36º, da petição inicial.
28. Sentiu e continua a sentir dores ao nível da articulação do pé esquerdo – artigo 37º, da petição inicial.
29. Além das dores, a rigidez muscular e articular condiciona o seu caminhar – artigo 38º, da petição inicial.
30. Possui assim limitações nas articulações do pé e da perna esquerda, condicionando o caminhar, o agachar, sentar e levantar – artigo 39º, da petição inicial.
31. A amplitude de movimentos do pé esquerdo ficou diminuída, com os músculos atrofiados e a circulação sanguínea comprometida – artigo 40º, da petição inicial.
32. As lesões sofridas provocaram à Autora dores físicas, quer no momento do acidente, bem como no decurso dos tratamentos, quer presentemente – artigo 41º, da petição inicial.
33. As sequelas de que ficou a padecer continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal-estar – artigo 42º, da petição inicial.
34. A Autora ficará a contar com as sequelas aludidas em 46. – artigo 45º (parte), da petição inicial.
35. Em virtude das sequelas, e no intuito de uma máxima recuperação possível, a Autora realizou sessões de fisioterapia, o que acarretou despesas – artigo 46º, da petição inicial.
36. A Autora necessitará de efetuar medicação analgésica em SOS e tratamentos de fisioterapia e balneoterapia, a ser definida pelo médico assistente, em função da evolução clínica – artigo 47º (parte), da petição inicial.
37. A Autora necessitará de acompanhamento em consulta da especialidade de ortopedia e de realizar exames relacionados com a evolução das sequelas – artigo 48º (parte), da petição inicial.
38. Até agora, a Autora já gastou quantias em dinheiro, com deslocações a exames, a consultas, ao hospital e a tratamentos, aquisição de medicamentos e material e com tratamentos de fisioterapia e consultas a médicos de especialidade, no montante de € 409,81 – artigos 51º e 52º, da petição inicial.
39. A Autora esteve numa situação de défice funcional temporário total até 15.07.2016 e de défice funcional temporário parcial até 07.07.2017 – artigo 55º (parte), da petição inicial.
40. No período de défice funcional temporário total e de défice funcional temporário parcial, a Autora deixou de fazer os trabalhos domésticos – artigo 60º, da petição inicial.
41. A Autora e o companheiro encontram-se desempregados, recebendo este um subsídio – artigo 69º (parte), da petição inicial.
42. A situação da Autora afetou o seu seio familiar – artigo 72º (parte), da petição inicial.
43. A Autora sente-se abatida, frustrada, com ansiedade e mal-estar, por não poder desempenhar com normalidade as suas tarefas usuais – artigo 73º, da petição inicial.
44. Bem como por não poder acompanhar os seus filhos quer no acompanhamento escolar quer nas suas brincadeiras, dadas as dificuldades que apresenta na marcha, o que lhe acarreta dificuldades de locomoção, não conseguindo acompanhar a agilidade própria dos seus filhos – artigo 74º (parte), da petição inicial.
45. A Autora, em consequência do acidente, teve de recorrer ao auxílio e ajuda do companheiro, inclusive para se lavar, vestir, entre outras, durante o período aludido em 26. – artigo 79º, da petição inicial.
46. A Autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de nove pontos, por flexão dorsal da tibiotársica de 0º a 15º, flexão plantar de 0º a 20º da tibiotársica, rigidez da subtalar pé esquerdo, por analogia com edema permanente do tornozelo – artigo 59º e facto concretizador resultante da instrução da causa considerado nos termos do artigo 5º/2,b), do CPCiv.
47. O quantum doloris experimentado pela Autora foi de 5 numa escala de 1 a 7 – facto instrumental considerado nos termos do artigo 5º/2,a), do CPCiv.
*
Foram considerados não provados os seguintes factos:

a. Foi um embate na traseira que provocou o solavanco no kart – artigo 7º, da petição inicial.
b. A Autora não tinha tido alta clínica à data de entrada da petição inicial – artigo 28º, da petição inicial.
c. A Autora, apesar dos tratamentos médicos e medicamentosos a que se submeteu e continua a submeter-se, não está totalmente curada – artigo 44º, da petição inicial.
d. A Autora necessita de acompanhamento psicoterapêutico regular – artigo 48º, da petição inicial.
e. A Autora ficou a padecer de outras sequelas para além das referidas em 46. e da possibilidade de desenvolver a mencionada em 27. – artigo 45º, da petição inicial.
f. À data do embate, a Autora exercia a profissão de ama, ganhando € 1.500,00 aquando do acidente – artigos 53º e 54º, da petição inicial.
g. É imprevisível a data em que poderá retomar o seu emprego – artigo 56º, da petição inicial.
h. Pelo que deixou de ganhar, até à presente data, o valor de € 19.500,00 – artigo 57º, da petição inicial.
i. A Autora teve que contratar uma pessoa, à qual lhe paga a quantia de € 500,00/mês – artigo 61º, da petição inicial.
j. Sendo, ainda hoje, uma ajuda imprescindível para as lides domésticas – artigo 62º, da petição inicial.
k. O companheiro e pai dos seus filhos, em agosto de 2016, recebeu uma proposta de trabalho na área da construção civil, no valor de € 1.800,00 nos primeiros três meses de contrato, sendo os seguintes a quantia mensal de € 2.300,00/mês, mas, devido à nova situação familiar, teve de recusar, para acompanhar a Autora nos seus tratamentos e na a ajuda de toda a dinâmica familiar – artigo 63º, da petição inicial.
l. Pelo que deixou de ganhar, até à presente data, a quantia de € 23.800,00 – artigo 65º, da petição inicial.
m. A segurança social francesa não atribui qualquer tipo de subsídio à Autora pela situação, pois além do acidente ter ocorrido em Portugal, tal sinistro não foi participado à competente seguradora para efeitos de responsabilidade – artigo 67º, da petição inicial.
n. Com os seus rendimentos e do seu companheiro, proporcionavam quer para si quer para os seus filhos um futuro seguro e tranquilo, quer em termos económicos e financeiros, quer em termos sociais e culturais, com boa qualidade de vida – artigo 68º, da petição inicial.
o. O subsídio recebido pelo companheiro da Autora é de € 500,00 – artigo 69º (parte), da petição inicial.
p. Só à custa de apoios é que poderá conseguir alguma, ainda que deficiente, qualidade de vida – artigo 70º, da petição inicial.
q. A Autora teve outras despesas para além das enunciadas na al. 38. – artigos 51º e 52º, da petição inicial.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

Cumpre apreciar e decidir.

Nos autos está plenamente assente a existência de obrigação de indemnizar a cargo da ré relativamente aos danos sofridos pela autora na sequência do acidente de kart de que esta última foi vítima.
A ré discorda unicamente da indemnização arbitrada, pelo que não se entrará em considerações sobre a matéria da responsabilidade, analisando-se apenas se o valor indemnizatório fixado é ou não o correto.


I – Redução da indemnização pelo dano biológico, fixada em € 28 500, para valor entre € 15 000 a € 20 000

A ré insurge-se contra a sentença na parte em que fixou em € 28 500 o valor devido como indemnização pelo dano biológico/perda de ganho, em sede de dano patrimonial, considerando que deve ser reduzida para valor entre € 15 000 a € 20 000.

A autora alegou que, por causa do acidente, não pode mais exercer a sua atividade profissional, requerendo a condenação da Ré no pagamento de uma indemnização correspondente às perdas salariais sofridas até à data da propositura da presente ação, que quantificou em € 19 500, assim como noutra a liquidar em execução de sentença, por ser ainda imprevisível a data em que poderá retomar a sua atividade (artigos 57º e 58º, da petição inicial).
Não se tendo provado que a Autora exercesse, à data, a profissão de ama e que ganhasse a remuneração mensal de € 1.500,00, a sentença considerou improcedente o pedido de reconhecimento do direito à indemnização correspondente aos salários perdidos.
Todavia, arbitrou-lhe uma indemnização de € 28 500 pela dupla vertente de perda da capacidade de ganho e dano biológico.

Perante esta decisão, a primeira questão que se coloca é a de saber se o tribunal a quo, por força do princípio do dispositivo, se encontrava impedido de arbitrar esta indemnização uma vez que a autora não formulou concreto pedido parcelar neste sentido, tendo-se limitado a pedir perdas salariais concretas e quantificadas, cuja prova não logrou obter.

Com efeito, o tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes (art. 3º, nº 1, do CPC) e, na sentença, o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo os casos de matéria de conhecimento oficioso (art. 608º, nº 2, do CPC).
Todavia, o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art 5º, nº 3, do CPC).
Ora, no caso sub judice, a autora invoca como causa de pedir a existência de um acidente sofrido com um kart, e considera que a ré é civilmente responsável pela indemnização dos danos sofridos em consequência desse acidente. Peticiona uma indemnização de um determinado valor global pelo conjunto de danos sofridos.
A circunstância de a autora ter invocado determinados danos que não se provaram atinentes a concretas perdas salariais não impede que o tribunal, perante os factos provados, considere a existência de um dano biológico que configura em si mesmo um dano indemnizável e arbitre a correspondente indemnização, pois esta decisão contém-se dentro dos limites da causa de pedir invocada e do pedido formulado, implicando unicamente um enquadramento jurídico distinto do que foi efetuado pela autora, o qual é permitido face à faculdade conferida ao juiz pelo art. 3º, nº 3, do CPC, que lhe confere liberdade de indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.
Consequentemente, não se vislumbra a existência de qualquer violação do princípio do dispositivo.
Neste mesmo sentido, considerou-se no Acórdão do STJ, de 3.11.2016, (in www.dgsi.pt) que “a circunstância de a A., na petição inicial, não ter configurado juridicamente a sua pretensão indemnizatória no âmbito desta peculiar categoria normativa do dano biológico não obsta a que o Tribunal, no exercício dos seus poderes de livre qualificação jurídica da factualidade invocada como causa de pedir, possa proceder – como procedeu efectivamente - a uma correcção da configuração jurídico normativa da pretensão, reconduzindo a matéria facto alegada ao quadro normativo que tenha por adequado.”

Aliás, apenas se aflorou esta questão face ao referido pela ré nas suas alegações. Todavia, é curioso notar que embora a ré comece por se insurgir contra a sentença e invocar decisão surpresa e violação do princípio do dispositivo, no desenvolvimento das suas conclusões acaba por aceitar a admissibilidade do arbitramento da indemnização, pedindo apenas a sua redução por reputar exagerado o valor fixado.

Face ao exposto, entende-se que nada impedia a fixação pelo tribunal a quo da indemnização pelo dano biológico/perda de capacidade de ganho, importando, todavia, analisar se o montante fixado é ou não adequado.

Em matéria de obrigação de indemnização o art. 562º, do CC, consagra o princípio geral da reconstituição natural pois quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, (art. 563º, do CC) e o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art. 564º, do CC). A indemnização devida abrange assim quer os danos emergentes, quer os lucros cessantes, consistindo aqueles numa diminuição efetiva do património e estes na frustração de um ganho.
Na fixação da indemnização pode ainda o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis; se não forem determináveis, a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (art. 564º, nº 2, do CC).
A indemnização é fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (art. 566º, nº 1, do CC).
Nessa hipótese, a indemnização tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal, e a que teria nessa data se não existissem danos (art. 566º, nº 2, do CC).
Ou seja, no cálculo da indemnização importa considerar a diferença entre a situação real e hipotética do lesado se o mesmo não tivesse sido atingido pelo facto ilícito.
Caso não seja possível averiguar o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados (art. 566º, nº 3, do CC).
Para além dos danos patrimoniais, deve ainda atender-se na fixação da indemnização, aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (art. 496º, nº 1, do CC), sendo o montante desta indemnização fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (arts. 496º, nº 4 e 494º, do CC).

O dano biológico consiste numa lesão corporal que afeta a integridade físico-psíquica do lesado e que implica uma perda da plenitude das suas capacidades pessoais.
É um dano complexo posto que, traduzindo-se na ofensa da saúde e integridade física, tem repercussões quer a nível patrimonial, quer a nível não patrimonial.
No que respeita às consequências patrimoniais, tal dano pode implicar uma concreta perda de rendimentos, como ocorrerá nas situações em que o lesado deixou de auferir um determinado montante pecuniário durante o período de tempo em que esteve incapacitado para exercer a sua atividade profissional.
Porém, independentemente da concreta perda de rendimentos, o dano biológico enquanto défice funcional de que passou a padecer o lesado no plano específico das atividades profissionais, tem ainda uma dupla repercussão pois, por um lado, implica um esforço acrescido que o lesado terá que despender para compensar tal défice, de modo a prosseguir uma atividade laboral e, por outro lado, implica uma limitação de oportunidades profissionais pois “o lesado vê diminuída a amplitude ou o leque das atividades laborais que pode perspectivar exercer plenamente no futuro, ficando – por via da perda de capacidades funcionais- necessariamente condicionado e «acantonado» no exercício de actividades menos exigentes – o que naturalmente limita de forma relevante as suas potencialidades no mercado do trabalho (facto particularmente atendível numa organização económica que crescentemente apela à precariedade e à necessidade de mudança e reconversão na profissão exercida, a todo o momento susceptível de mutação ao longo da vida do trabalhador)” (cf. Acórdão do STJ, de 21.1.2016, in www.dgsi.pt).
Na verdade, a força de trabalho de uma pessoa é um bem capaz de propiciar rendimentos. Logo, a incapacidade funcional importa sempre diminuição dessa capacidade, obrigando o lesado a um maior esforço e sacrifício para manter o mesmo estado antes da lesão e, inclusivamente, provoca inferiorização, no confronto do mercado de trabalho, com outros indivíduos por tal não afetados (cf. Acórdão do STJ, de 7.6.2011, in www.dgsi.pt).

A doutrina e a jurisprudência estão de acordo em que pelo facto de o ofendido não exercer à data do acidente qualquer profissão, não está afastada a existência de dano patrimonial, compreendendo-se neste as utilidades futuras e as simples expectativas de aquisição de bens. Assim, a este título, merecem ressarcimento os lesados que se encontram fora do mercado do trabalho, seja a montante – caso das crianças e dos jovens ainda estudantes, ou não, que ainda não ingressaram no mundo laboral –, seja a jusante, como os reformados/aposentados, ou os desempregados (cf. Acórdão do STJ, de 25.11.2009, in www.dgsi.pt).
É de realçar a dificuldade e delicadeza subjacente ao cálculo do dano biológico na vertente patrimonial, enquanto perda futura de capacidade de ganho, pois exige a previsão, sempre problemática, de dados que apenas são constatáveis no futuro e por um muito longo período de tempo, como seja a evolução da economia, da produtividade, do emprego, dos salários ou da inflação (cf Acórdão da Relação de Guimarães, de 19.10.2017, in www.dgsi.pt).
Como se escreveu no Acórdão do STJ, de 10.11.2016 (in www.dgsi.pt) “constitui entendimento jurisprudencial reiterado que a indemnização a arbitrar por tais danos patrimoniais futuros deve corresponder a um capital produtor do rendimento de que a vítima ficou privada e que se extinguirá no termo do período provável da sua vida, determinado com base na esperança média de vida (e não apenas em função da duração da vida profissional ativa do lesado, até este atingir a idade normal da reforma, aos 65 anos).”
Sobre a determinação do valor indemnizatório correspondente ao dano biológico, na vertente de danos patrimoniais futuros, segue-se o Acórdão desta Relação de Guimarães, de 19.10.2017, (in www.dgsi.pt) onde se considera que “como é posição sucessivamente reiterada pelo nosso mais Alto Tribunal, o tribunal está apenas sujeito aos critérios que emergem do preceituado no Código Civil e, em particular ao critério da equidade, pois que os critérios consagrados na Portaria n.º 377/2008, de 26.05 (ou na Portaria n.º 679/2009, de 25.06, que procedeu à sua alteração/atualização), não obstante possam (ou devam) ser considerados pelo julgador, não se sobrepõem aos que decorrem do restante sistema substantivo e, sobretudo, em primeiro lugar, do Código Civil.
De facto, como se pode alcançar da nossa jurisprudência, é pacífico o entendimento de que os critérios previstos nas citadas Portarias não substituem os critérios de fixação da indemnização consignados no Código Civil e não vinculam os tribunais em tal tarefa casuística, visando, sobretudo, em sede de apresentação de proposta célere e razoável por parte das seguradoras ao lesado, servir de critério orientador para esse confessado fim.”
Em idêntico sentido de o critério último para a fixação da indemnização pelo dano biológico na vertente patrimonial ser a equidade, escreveu-se no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 4.10.2017 (in www.dgsi.pt) que “mesmo a análise do dano na perspetiva essencialmente patrimonial, considerando que assenta em juízos de prognose, de simples probabilidade e o conjunto de variáveis que se deverão fazer intervir para projeção do mesmo num futuro mais ou menos longínquo, só pode, em última análise, ser obtida pela equidade.

Traçado o quadro normativo que deve presidir à fixação da indemnização, revertamos agora ao caso concreto.
Na situação sub judice, temos como assente que, à data dos factos, a autora tinha 32 anos (facto 21). Gozava de boa saúde física e mental, não apresentando qualquer defeito físico (facto 22).
Devido ao acidente, a autora ficou a padecer de um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de nove pontos, por flexão dorsal da tibiotársica de 0º a 15º, flexão plantar de 0º a 20º da tibiotársica, rigidez da subtalar pé esquerdo, por analogia com edema permanente do tornozelo (facto 46).
Sentiu e continua a sentir dores ao nível da articulação do pé esquerdo (facto 28).
As sequelas de que ficou a padecer continuam a provocar-lhe dores físicas, incómodo e mal-estar (facto 33).
Além das dores, a rigidez muscular e articular condiciona o seu caminhar (facto 29).
Possui limitações nas articulações do pé e da perna esquerda, condicionando o caminhar, o agachar, sentar e levantar (facto 30).
A amplitude de movimentos do pé esquerdo ficou diminuída, com os músculos atrofiados e a circulação sanguínea comprometida (facto 31).
Existe a possibilidade de desenvolver uma necrose no osso afetado (facto 27).
A Autora encontra-se desempregada (facto 41).

Na decisão recorrida foi-lhe atribuída uma indemnização de € 28 500 com a seguinte fundamentação:

A fixação da indemnização (na vertente de perda de capacidade de ganho; e na vertente de dano biológico) deve fazer-se por recurso à equidade, ponderando os critérios jurisprudenciais habitualmente seguidos: a idade da vítima à data do acidente (32 anos); a remuneração mínima garantida (por a Autora se encontrar desempregada); o défice funcional atribuído (9 pontos); a esperança média de vida para indivíduos do sexo feminino nascidos no ano de 1983 de 75 anos.
Para o cálculo da indemnização, partir-se-á da fórmula matemática aludida no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 04.04.1995, Colectânea de Jurisprudência, tomo II, p. 23, tendo em conta os elementos antes enunciados e uma taxa de juros de 3% e uma taxa de crescimento de 2%.
No entanto, o resultado final deve ser corrigido pela equidade, em função dos particulares circunstancialismos do caso concreto, a demandar, na presente situação, o seu ligeiro aumento, especialmente em razão de, por um lado, haver a probabilidade de a Autora vir a desenvolver necrose do osso (o que irá agravar o défice) e, por outro lado, de a lesão provocada afetar um membro essencial para o exercício de atividades profissionais de maior pendor físico (segmento em que aquela se inclui), já que sobre ele é exercida a carga do corpo (pelo que mais sentirá a necessidade de efetuar esforços acrescidos para manter um rendimento de trabalho atrativo para a sua entidade patronal).
Pelo que, tudo ponderado, entende-se adequada a atribuição da indemnização de € 28.500,00, pelo défice funcional consequente das sequelas (nas vertentes de perda da capacidade de ganho e dano biológico).”

Esta fundamentação encontra-se perfeitamente alinhada com as considerações que supra fizemos em matéria dos critérios jurídicos que devem presidir à fixação da indemnização pelo dano biológico, nas várias dimensões em que o mesmo se projeta.
A equidade não é sinónimo de arbitrariedade ou discricionariedade, sendo antes a aplicação da justiça ao caso concreto mediante ponderação, prudencial e casuística, das concretas circunstâncias da situação em análise. Nas palavras do Ac. do STJ, de 10/2/1998, (in CJ S. T., 1, p. 65) a equidade é "a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei", devendo o julgador "ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida."

Para atingir o valor indemnizatório fixado, o tribunal a quo efetuou esta ponderação equitativa e o valor obtido está em perfeita consonância com os critérios jurisprudenciais mais recentes relativos a casos análogos.
Na verdade, ainda que se recorra à equidade, é importante que exista uma justiça relativa por forma a que se obtenham soluções idênticas para casos semelhantes, pois só assim se respeita o princípio da igualdade, plasmado no art. 13º, da CRP, e se acautela a imposição contida no art. 8º, nº 3, do CC, segundo o qual nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.

Exemplificativamente, vejam-se os seguintes arestos do STJ, (todos disponíveis in www.dgsi.pt):

- acórdão de 3.11.2016, relativamente a um lesado de 32 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 4 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 25 000 pelo dano biológico;
- acórdão de 16.6.2016, relativamente a um lesado de 40 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 6 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 25 000 pelo dano biológico;
- acórdão de 5.12.2017, relativamente a um lesado de 35 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 7 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 30 000 pelo dano biológico;
- acórdão de 6.12.2017, relativamente a um lesado de 31 anos, que ficou afetado de uma incapacidade de 2 pontos, considerou adequada uma indemnização de € 20 000 pelo dano biológico.

De referir ainda que, estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.
Por tudo quanto se vem de expor, e em síntese, considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 28 500 para ressarcir o dano biológico de uma lesada com 32 anos que ficou afetada numa perna com uma incapacidade de 9 pontos, que lhe condiciona o caminhar, agachar, sentar e levantar, estando tal valor perfeitamente alinhado e em consonância com as indemnizações atribuídas pelo Supremo Tribunal de Justiça para situações análogas, não se justificando reduzir tal valor, como pretendido pela recorrente.
Consequentemente, a apelação improcede nesta parte.
*
II – Redução da indemnização por danos não patrimoniais, fixada em € 25 000, para € 10 000

A recorrente reputa excessivo o valor indemnizatório atribuído a título de danos não patrimoniais, entendendo que o mesmo deve ser reduzido para € 10 000, valor esse que foi peticionado pela autora a tal título, entendendo ainda que a sentença recorrida valorou os mesmos factos para atribuição da compensação pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais.

Efetivamente, a autora peticionou uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 10 000. Porém, pediu uma indemnização global no valor de € € 59.000,08.

Como se entendeu no Acórdão do STJ de 25.3.2010 (in www.dgsi.pt)encontra-se, há muito, firmado na jurisprudência o entendimento segundo o qual os limites da condenação contidos no artigo 661.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, têm de ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra.
Esta orientação tem sido assumida como válida na solução de casos em que o efeito jurídico pretendido se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos (v.g. danos patrimoniais e danos não patrimoniais, danos emergentes e lucros cessantes, danos presentes e danos futuros), componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada.

No mesmo sentido veja-se ainda o Acórdão da Relação de Lisboa, de 31.10.2013, (in www.dgsi.pt) onde é referido que “entre os inúmeros acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que se pronunciam neste sentido cita-se apenas o proferido em 25 de Novembro de 2010 e relatado pelo Juiz Conselheiro Helder Roque: “Entendendo-se referido o limite da condenação ao pedido global, nada obsta a que, representando este a soma de várias parcelas, que não correspondam a pedidos autónomos, como acontece, por via de regra, nas acções de indemnização, se possam valorar essas parcelas em quantia superior à referida pelo autor, desde que o cômputo global fixado na sentença não exceda o valor total do pedido”.
Assim, nada impede que, embora a autora apenas tenha peticionado € 10 000 a título de danos não patrimoniais, o tribunal condene em valor superior desde que a condenação se mantenha dentro dos limites do valor indemnizatório global, o que sucede no caso em apreço.

Refere também a recorrente que ocorreu uma dupla valoração pois os mesmos factos são valorados para atribuir a indemnização pelo dano biológico e pelos danos não patrimoniais.
Como já tivemos oportunidade de explanar supra, o dano biológico enquanto lesão da saúde e da integridade físico-psíquica projeta-se em diferentes aspetos da vida do lesado, e é suscetível de provocar danos quer de natureza patrimonial quer de natureza não patrimonial.
Só ocorre dupla valoração se a dimensão considerada do dano for a mesma, mas já não quando o dano se manifesta de formas diferentes ou tem reflexos em diferentes dimensões.

No caso, a sentença recorrida, para efeitos de fixação da indemnização por danos não patrimoniais, considerou que “a Autora:

- Sofreu fratura do astrágalo esquerdo, rutura do ligamento deltoide e fratura do maléolo externo;
- Teve necessidade de ser transportada a estabelecimento hospitalar;
- Teve de fazer exames e ser operada, tendo ficado internada, num período em que se encontrava de férias em Portugal;
- Em consequência do embate, esteve com repercussão temporária na atividade profissional total no período situado entre 07.07.2016 e 07.07.2017, sendo assim fixável em 366 dias;
- Durante esse período, necessitou de ajuda para as tarefas diárias (inclusive para se lavar e vestir);
- Restou com o défice funcional consequente de 9 pontos (por flexão dorsal da tibiotársica de 0º a 15º, flexão plantar de 0º a 20º da tibiotársica, rigidez da subtalar pé esquerdo, por analogia com edema permanente do tornozelo), o que a obriga a esforços complementares no exercício de atividade profissional, havendo a potencialidade de vir a desenvolver necrose do osso afetado;
- Continuará a necessitar de tratamento sintomático analgésico e de tratamentos de fisioterapia e de balneoterapia;
- Sofreu dores quantificadas no grau 5 numa escala de 1 a 7;
- Sente-se triste e desgostosa com as sequelas com que restou.

Fruto do que se destacou, o quadro dos autos assume gravidade acima da média, sobretudo pelos tratamentos invasivos de a Autora que foi alvo (com a realização de cirurgia), pelo longo período de convalescença (um ano), pela dor (já acentuada) associada às lesões, aos tratamentos e às fases de recuperação (quantum doloris de 5 numa escala de 1 a 7) e pelas consequências permanentes que dele advieram (défice funcional de 9 pontos com possibilidade de agravamento por necrose e dores e limitações no uso do pé).
Deste modo, de molde a que a indemnização por danos não patrimoniais constitua uma compensação adequada ao grau de lesão da pessoa humana e um lenitivo capaz de permitir à Autora a autorrealização pessoal através de outras experiências, recorrendo à equidade, conforme prescreve o artigo 496º/3 do CCiv (ao remeter para o disposto no artigo 494º do CCiv), entendo adequado a fixação, a este título, da compensação de € 25.000,00.

Do cotejo destas considerações com aquelas outras feitas na sentença recorrida a propósito da fixação da indemnização pelo dano biológico/perda da capacidade de ganho, que já supra se transcreveram, verifica-se que apenas a incapacidade de 9 pontos foi considerada em ambas.
Porém, não se pode considerar que exista aqui uma dupla valoração, porque essa incapacidade está a ser considerada em diferentes dimensões e com diversos reflexos.
Foi considerada na vertente de puro dano biológico e perda de capacidade de ganho para efeitos de atribuição da indemnização de € 28 500 e está a ser considerada na dimensão de danos não patrimoniais, conjugada com outros fatores, para efeitos de, globalmente e na ponderação conjugada de todos eles, ser fixado o valor indemnizatório na dimensão do sofrimento que a existência de tal incapacidade acarreta.
Tratando-se de diferentes dimensões em que o mesmo dano se projeta, não ocorre dupla valoração.

Concorda-se integralmente com a fundamentação da sentença recorrida, que supra se transcreveu, no tocante à fixação da indemnização por danos não patrimoniais.
Consideramos ser ainda de levar em linha de conta, para efeitos de fixação da indemnização por danos não patrimoniais, que a autora, devido ao acidente, esteve condicionada a uma cama em França, durante quatro meses e teve de recorrer ao auxílio e ajuda do companheiro, durante esse período, inclusive para se lavar, vestir, entre outras; no período de défice funcional temporário total e de défice funcional temporário parcial, a autora deixou de fazer os trabalhos domésticos; a autora sente-se abatida, frustrada, com ansiedade e mal-estar, por não poder desempenhar com normalidade as suas tarefas usuais bem como por não poder acompanhar os seus filhos quer no acompanhamento escolar quer nas suas brincadeiras, dadas as dificuldades que apresenta na marcha, o que lhe acarreta dificuldades de locomoção, não conseguindo acompanhar a agilidade própria dos seus filhos, a situação da Autora afetou o seu seio familiar e a autora continua a sentir dores.
Tendo em conta todas estas circunstâncias, considera-se que o valor de € 25 000 fixado a título de danos não patrimoniais na decisão recorrida não se mostra excessivo.
O valor fixado tem arrimo nos critérios da jurisprudência atual, desta forma estando assegurado quer o princípio da igualdade, quer a justiça relativa.

Com efeito, vejam-se, exemplificativamente os seguintes arestos do STJ, (todos disponíveis in www.dgsi.pt):

- acórdão de 5.12.2017, relativamente a um lesado de 35 anos, que teve uma quantum doloris de 4 em 7, considerou adequada uma indemnização de € 20 000 a título de danos não patrimoniais;
- acórdão de 16.6.2016, relativamente a um lesado de 40 anos, que teve uma quantum doloris de 4 em 7, considerou adequada uma indemnização de € 20 000 a título de danos não patrimoniais.

Novamente a este propósito se reafirma o já supra afirmado a propósito da questão anterior de que, estando em causa critérios de equidade, as indemnizações arbitradas apenas devem ser reduzidas quando afrontem manifestamente as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das regras da vida, sendo que o valor indemnizatório deve ter carácter significativo, não podendo assumir feição meramente simbólica.
Esta afirmação assume maior relevância a propósito da indemnização por danos não patrimoniais posto que a mesma não se destina obviamente a repor as coisas no estado anterior, mas tão só a dar ao lesado uma compensação pelo dano sofrido, proporcionando-lhe situação ou momentos de prazer e alegria que neutralizem, quanto possível, a intensidade da dor física ou psíquica sofrida (Vaz Serra, BMJ 278º, 182).

Finalmente, como é assinalado no Acórdão do STJ, de 9.9.2014, (in www.dgsi.pt) deverá ainda ter-se em consideração a natureza mista de reparação do dano e punição que caracteriza a indemnização por danos não patrimoniais, a qual é assinalada por diversos autores citados no referido aresto, designadamente:

- pelo Prof. Menezes Cordeiro que ensina que “a cominação de uma obrigação de indemnizar danos morais representa sempre um sofrimento para o obrigado; nessa medida, a indemnização por danos morais reveste uma certa função punitiva, à semelhança, aliás, de qualquer indemnização”;
- pelo Prof. Galvão Telles que sustenta que “a indemnização por danos não patrimoniais é uma «pena privada», estabelecida no interesse da vítima – na medida em que se apresenta como um castigo em cuja fixação se atende ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante e do lesado”.
- pelo Prof. Menezes Leitão que destaca a índole ressarcitória/punitiva da reparação por danos morais, quando escreve: “assumindo-se como uma pena privada, estabelecida no interesse da vítima, de forma a desagravá-la do comportamento do lesante”;
- pelo Prof. Pinto Monteiro, o qual sustenta que a obrigação de indemnizar é “uma sanção pelo dano provocado”, um “castigo”, uma “pena para o lesante”.

Atendendo a todas as considerações que se acabaram de expor, e em síntese, considera-se adequada, proporcional, justificada e equitativa a fixação da indemnização em € 25 000 para ressarcir os danos não patrimoniais, não se justificando a sua redução nos termos pretendidos pela recorrente.
Consequentemente, a apelação improcede nesta parte.

III – Fixação de indemnização pelo dano futuro

A sentença condenou a recorrente no pagamento da quantia de € 840 relativa ao valor dos analgésicos que a autora terá que tomar ao longo da sua vida.
Porém, relegou para posterior incidente de liquidação o custo do recurso a consultas e tratamentos, em função da superveniência dessa necessidade.

A ré considera que “nesta data não é possível contabilizar pecuniariamente a despesa que a A. terá com tal medicação. Estamos perante um dano emergente das lesões sofridas pela A., sendo incerto o período de tempo, é impossível contabilizar os períodos de S.O.S e a A. não fez qualquer pedido respeitante à questão dos analgésicos. Não estão preenchidos os pressupostos para a aplicação do nº 3 do artº 566º, nº 3 do CC, Não ocorrendo aqueles requisitos o montante da indemnização terá, quando muito, de ser liquidado em execução de sentença.”

Sobre a matéria dos danos futuros provou-se unicamente que a autora necessitará de efetuar medicação analgésica em SOS e tratamentos de fisioterapia e balneoterapia, a ser definida pelo médico assistente, em função da evolução clínica. A Autora necessitará de acompanhamento em consulta da especialidade de ortopedia e de realizar exames relacionados com a evolução das sequelas.

A sentença condenou a ré quanto aos analgésicos, com recurso à equidade partindo do pressuposto de que anualmente a autora gastará a esse título € 20, pelo que, atendendo a uma esperança de vida de mais 42 anos, a mesma gastará o valor arbitrado de € 840 (€ 20 x 42 anos).
Porém, relegou para posterior incidente de liquidação o custo do recurso a consultas e tratamentos, em função da superveniência dessa necessidade.
Em ambos os casos estamos perante danos que se sabe que existirão, mas que se desconhece a sua extensão e quantificação pois, tal como se desconhece o número de consultas e tratamentos necessários e respetivo custo, também se desconhece o número de vezes em que a autora se encontra em situação de SOS, qual o tipo de analgésicos que terá de tomar quando tal situação ocorra, qual a respetiva quantidade e inerente custo.
Assim, as mesmas razões que levaram a que a fixação da indemnização quanto às consultas e aos tratamentos fosse relegada para incidente de liquidação, que se nos afiguram válidas, impõem que a indemnização referente aos analgésicos necessários seja também fixada nos mesmos moldes, assim se obtendo coerência e uniformidade quanto à decisão considerada no seu todo.
Além das mencionadas razões de coerência, é ainda de referir que, em nosso entender, não se mostram preenchidos os requisitos para recurso à equidade. Com efeito, dispõe o art. 566º, nº 3, do CC, que, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Ora, a necessidade de fazermos apelo aos critérios da equidade, nos termos da norma citada, apenas surge quando se encontre esgotada a possibilidade de recurso aos elementos com base nos quais se determinaria com precisão o montante dos danos (Acórdão do STJ de 10.12.2019, in www.dgsi.pt).
Essa possibilidade não se mostra esgotada pois é ainda possível tentar a quantificação de tais danos em incidente de liquidação.
Assim, estando provado que a autora necessita de efetuar medicação analgésica em SOS, mas desconhecendo-se minimamente com que frequência ocorrem essas situações, quais os analgésicos que terá de tomar, respetivas quantidades e custo, circunstâncias estas que são, todavia, passíveis de averiguação, ainda não se mostram esgotadas todas as possibilidades de avaliação dos danos que justificam o recurso à equidade ao abrigo do art. 566º, nº 3, do CC, devendo a fixação da indemnização ser relegada para incidente de liquidação, à semelhança do que ocorreu com as despesas com consultas médicas, exames e tratamentos de fisioterapia/balneoterapia.
Consequentemente, procede, nesta parte, a apelação e considera-se que o ponto iv) do dispositivo da sentença deve ser alterado, passando a abarcar igualmente as despesas relativas à medicação analgésica em SOS.
Como decorrência desta decisão, o ponto i) do dispositivo, que incluía a condenação na quantia de € 840, tem de ser alterado, passando tal condenação a referir-se unicamente às quantias de € 409,81 e € 3 600.

IV – Exclusão da indemnização por ajuda de 3ª pessoa ou redução do valor arbitrado

A sentença condenou a ré no pagamento da quantia de € 3 600 a título de indemnização pelo auxílio que lhe foi prestado pelo seu companheiro no período em que a autora esteve incapacitada para realizar as tarefas pessoais e domésticas.

A recorrente considera que o facto de o companheiro da autora ter dedicado o seu tempo em prol do cuidado da autora não constitui um dano suscetível de avaliação pecuniária pois o mesmo estava e ainda permanece desempregado e sempre participava nas lides da casa, fazia bricolage, recebia um subsídio do estado, o que ainda hoje acontece.
A considerar-se de forma distinta, entende que sempre o valor atribuído seria de considerar manifestamente exagerado.

Sobre esta matéria provou-se que:

- a autora esteve numa situação de défice funcional temporário total até 15.07.2016 e de défice funcional temporário parcial até 07.07.2017 e, nesse período, a autora deixou de fazer os trabalhos domésticos;
- a autora, em consequência do acidente, teve de recorrer ao auxílio e ajuda do companheiro, inclusive para se lavar, vestir, entre outras, durante o período de quatro meses em que esteve condicionada a uma cama;
- a autora e o companheiro encontram-se desempregados, recebendo este um subsídio.

E não se provou que:

- a autora teve que contratar uma pessoa, à qual lhe paga a quantia de € 500,00/mês;
- o companheiro e pai dos seus filhos, em agosto de 2016, recebeu uma proposta de trabalho na área da construção civil, no valor de € 1.800,00 nos primeiros três meses de contrato, sendo os seguintes a quantia mensal de € 2.300,00/mês, mas, devido à nova situação familiar, teve de recusar, para acompanhar a Autora nos seus tratamentos e na a ajuda de toda a dinâmica familiar pelo que deixou de ganhar, até à presente data, a quantia de € 23.800,00.

Portanto, a questão que se coloca é a de saber se o auxílio que foi prestado à autora pelo seu companheiro na realização das tarefas pessoais e domésticas no período em que a mesma padeceu de défice funcional temporário constitui um dano pecuniário indemnizável, sendo certo que a autora não despendeu qualquer valor pecuniário como contrapartida direta desse auxílio.

O companheiro da autora não é parte na presente ação. Como tal, o dano que o mesmo possa ter sofrido, consubstanciado em ter ficado impedido de canalizar o seu tempo e força de trabalho numa atividade remunerada mercê da necessidade de prestar auxílio à autora, nunca pode ser ressarcido nestes autos.
O único dano que pode ser ressarcido é o que a autora tenha sofrido por necessidade de auxílio de terceira pessoa.
Na vertente de dano não patrimonial, ou seja, enquanto direito da autora a ter uma vida autónoma, sem necessidade de se socorrer do auxílio de terceiros, tal dano já foi ressarcido posto que se teve em conta, na fixação dos danos não patrimoniais, a circunstância de a autora ter estado em situação de incapacidade funcional temporária, ter ficado condicionada a uma cama durante 4 meses e ter necessitado do auxílio do seu companheiro para a realização das tarefas pessoais e domésticas.
Para que esse dano pudesse ser ressarcido na vertente patrimonial necessário seria que se tivesse provado que a autora despendeu algum valor pecuniário para remunerar o auxílio que lhe foi prestado, ou que deixou de receber algum valor pecuniário por o companheiro ter canalizado o seu tempo nesse auxílio em vez de o destinar a outra atividade, ou que o auxílio prestado teve alguma espécie de repercussão negativa na esfera patrimonial da autora.
Porém, nada se provou nesse sentido. Ao invés, da factualidade assente resulta que o auxílio do companheiro foi prestado gratuitamente e não há qualquer elemento que permita concluir que a esfera patrimonial da autora foi afetada negativamente mercê do auxílio que o companheiro lhe prestou.

No sentido do entendimento ora perfilhado, veja-se o acórdão do STJ, de 19.6.2014 (in www.dgsi.pt), o qual considerou que “não há lugar a indemnização por danos patrimoniais a favor da autora por assistência que lhe foi prestada por familiares de forma gratuita.

Também o Acórdão do STJ, de 28.3.2019, (in www.dgsi.pt) recusou arbitrar indemnização à autora vítima de acidente pelo auxílio que lhe foi prestado pelo seu marido, tendo unicamente reconhecido tal direito de indemnização ao próprio marido, também autor nessa ação, pelo facto de o mesmo, durante o período de convalescença da esposa, não poder continuar a exercer a sua atividade profissional, tendo considerado que “a perda salarial que o A. suportou para prestar tal acompanhamento e assistência à A., sua mulher, constitui a frustração de um benefício patrimonial que ele não teria sofrido, não fora a necessidade de cumprir o seu dever conjugal de auxílio” o que justificou que lhe fosse por isso fixada uma indemnização.
Em conclusão, não estando demonstrado que a autora tenha sofrido qualquer efeito negativo na sua esfera patrimonial decorrente do auxílio que lhe foi prestado gratuitamente pelo seu companheiro no período em que a mesma não pôde desempenhar as suas atividades pessoais e domésticas, resta concluir pela inexistência de qualquer dano patrimonial a ressarcir, razão pela qual a autora não tem direito a receber qualquer indemnização a esse título.
Assim sendo, a decisão recorrida deve ser revogada na parte em que atribuiu à autora a indemnização no valor de € 3 600 pelo auxílio de terceira pessoa.
Como decorrência desta decisão, o ponto i) do dispositivo que incluía a condenação na quantia de € 3 600 tem de ser alterado, passando tal condenação a referir-se unicamente à quantia de € 409,81.

V – Data a partir da qual são devidos juros

A recorrente não concorda com a aplicação de juros desde a citação alegando que “tais quantias ainda não se encontravam fixadas (liquidas e certas de forma a torná-las exigíveis – veio o Tribunal fixá-las através da sentença), pelo que a citação não poderá consubstanciar o acto de interpelação para pagamento das mesmas”.

A sentença condenou a ré no pagamento de juros moratórios desde a citação até integral pagamento, à taxa legal aplicável aos juros civis, relativamente à indemnização arbitrada a título de danos patrimoniais.
Mercê do que anteriormente se decidiu, apenas subsiste a condenação no pagamento de despesas médicas, tratamentos e deslocações, no valor de € 409,81.
Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora (art. 806º, nº 1, do CC).
Em princípio, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido interpelado para cumprir. Porém, há mora do devedor independentemente de interpelação se a obrigação provier de facto ilícito (art. 805º, nº s 1 e 2, al. b), do CC).
Nos termos do art. 805º, nº 3, do CC, tratando-se de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação.
Tratando-se precisamente na presente ação de responsabilidade por facto ilícito e estando em causa unicamente os danos patrimoniais decorrentes de despesas médicas, tratamentos e deslocações, resulta evidente das normas citadas que são devidos juros desde a citação, e não desde a decisão, como pretende a recorrente.
Assim, improcede, nesta parte, a apelação.
*
Tendo a ré obtido unicamente procedência parcial do recurso, a mesma deve suportar as custas respetivas, na proporção do decaimento, nos termos do art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, e, em consequência, alteram nos termos seguintes o dispositivo da sentença recorrida, condenando a ré a pagar à autora:

i) A quantia indemnizatória de € 409,81 (quatrocentos e nove euros e oitenta e um cêntimos), com vista à reparação dos danos patrimoniais, sobre a qual incidem juros moratórios desde a citação até integral pagamento, à taxa legal aplicável aos juros civis;
iv) A quantia indemnizatória a fixar em ulterior incidente de liquidação pelas despesas com medicação analgésica em SOS e com consultas médicas, exames e tratamentos de fisioterapia/balneoterapia de que venha a carecer para tratamento das sequelas.

No mais, mantêm a decisão recorrida.
Custas da apelação pela ré, na proporção do seu decaimento.
Notifique.
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Guimarães, 18 de junho de 2020

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Jorge Santos