Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1006/02.0TMBRG.G1
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: MEDIDAS DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
RESIDÊNCIA HABITUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/21/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1. Ainda que nunca tenha sido revista ou declarada cessada a medida de acolhimento familiar aplicada a uma menor pelos tribunais portugueses ao abrigo do art.º 35º, nº 1, al. e) da Lei nº 147/99, de 1 de setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo), a sua transferência para Paris, França, logo após a entrega àquela família, onde esta a criança passaram a residir há mais de 12 anos e permanecem numa situação de emigração, leva a concluir que é ali e não em Portugal que a menor tem residência habitual, ainda que venha de férias a Portugal.
2. Sendo em Paris a nova residência habitual da menor (a única conhecida, aliás, há mais de 12 anos), por força do disposto no art.º 8º da Constituição da República, do art.º 59º, do Código de Processo Civil e do art.º 8º do Regulamento (CE) nº n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro, deve entender-se que os tribunais portugueses perderam a competência (absoluta) para a revisão da medida aplicada à menor, tendo passado a ser os tribunais franceses internacionalmente competentes para apreciar a alegada situação de perigo em que aquela se encontra.
3. Com efeito, este nosso processo judicial deve continuar arquivado.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I.
Nestes autos de promoção e proteção instaurados pelo Ministério Público, em que são visadas três irmãs menores --- M.., L.. e V.. --- filhas de S.. e de C.., foi a V.. (depois de ter sido anteriormente confiada a casal diferente[1]), no dia 5 de julho de 2002, confiada provisoriamente a M.. e marido, L.., ao abrigo das disposições conjugadas dos art.ºs 35º, al. c), 37º e 43º da Lei nº 147/99, de 1 de setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo[2]).
Por decisão homologatória de acordo, proferida no dia 22.04.2003, foi o referido casal condenado a cumprir o seguinte acordo em que foi interveniente, por expressa aplicação das disposições conjugadas dos art.ºs 2°, 3°, 4° 5°, 35°, n° l al. e) e 46°, 100°, 113°, n° 2 e 62° da Lei 147/99 de 01/09, e art.ºs 293°, n° 2, 294° e 299°, n° l, a contrario, e 300°, n° 4, do Código de Processo Civil:
«1- V.. fica confiada e entregue aos cuidados do casal L.. e M.. em situação de medida de acolhimento familiar;
2- O casal obriga-se a pelo menos uma vez e sempre que estiverem de férias em Portugal a promover o contacto da menor com os pais.
3- A presente medida tem a duração de 18 meses.
4- O casal fica desde já autorizado a viajar com a menor para o estrangeiro, designadamente para França onde se encontram a viver.»
Foi ali determinado que “o C.D.S.S.S. através da Associação Portuguesa para o Serviço Social e Internacional acompanhará a execução da medida de promoção e protecção devendo enviar relatório no prazo de 6 meses dando conta da situação e integração da menor V.., art.º 62º, nº 1, da Lei 147/99 de 01/09”.
Por sentença datada de 11.07.2005, proferida no apenso A, os progenitores da menor foram inibidos do exercício do podere paternal, tendo sido ali atribuídas tais responsabilidades a L.. e M...
Na sequência de promoção do Ministério Público, no dia 18.11.2009, foi ordenado o arquivamento destes autos, com referência expressa ao art.º 111º da LPCJP.
Por requerimento de 2.12.2014, vieram M.. e marido, L.., alegar que, mantendo à sua guarda a V.., então com 16 anos de idade, desde o início do verão daquele ano que têm surgido grandes e progressivas dificuldades no seu relacionamento em virtude dos comportamentos que ela tem vindo a assumir. Não cumpre regras e não aceita as ordens ou instrução que os requerentes lhe transmitem. Usa linguagem inapropriada, falta às aulas e, por isso, internaram-na num colégio, insulta-os, não colabora nas tarefas domésticas, diz que vai fugir para bem longe deles e ameaça-os com agressões, apesar do carinho e simpatia com que tentam cativá-la.
Por causa de tais condutas, os requerentes estão muito perturbados. Para além das preocupações acrescidas que têm, surgiram graves problemas e afetação do seu estado de saúde, sentindo-se sem condições pessoais e de saúde para continuar a zelar e a ter à sua guarda e cuidados a menor que lhes foi confiada, temendo até pela manutenção da integridade física de todos.
Concluíram assim:
“Atento o alegado supra, requer a Vª Exc. se digne proceder à marcação de uma diligência em período de férias judiciais para a tomada de declarações à menor e aos requerentes a fim de, em conformidade, se adoptarem as medidas concretas e urgentes mais adequadas ao interesse da menor e dos requerentes.”
Acompanhando a promoção do Ministério Público, o tribunal decidiu que, encontrando-se o processo arquivado há vários anos e residindo a menor em França, a competência para aplicação de medidas de promoção e proteção é das autoridades francesas, junto das quais os requerentes se devem deslocar.
Voltaram os requerentes ao processo, agora formalizando um pedido de revisão da medida e promoção e proteção da menor, com os fundamentos do pedido anterior, reconhecendo a existência da decisão pela qual os pais da menor ficaram inibidos do exercício do poder paternal, tendo o mesmo sido atribuído aos requerentes, enquanto família de acolhimento. Mais alegaram que na decisão definitiva a medida aplicada foi fixada pelo prazo de 18 meses e nunca mais foi revista, como competia, devendo sê-lo agora.
O tribunal, no essencial, reafirmou o anteriormente decidido, proferindo o seguinte despacho:
«O requerimento não tem fundamento legal, pelos motivos que já referimos em anterior despacho, que não foi objecto de qualquer recurso, e que aqui reproduzimos:
Os presentes autos de promoção e protecção encontram-se arquivados por despacho de 18.11.2009.
Por sentença proferida no apenso A foram os progenitores da menor V.. inibidos do exercício do poder paternal ( fls. 63 a 68) tendo o mesmo sido atribuído a L.. e M...
Os requerentes solicitam uma diligência no âmbito deste processo.
Contudo, como se assinalou, o mesmo está arquivado há vários anos.
Por outro lado, a menor reside em França, pelo que a competência para medidas de promoção e protecção compete às autoridades Francesas, onde se deverão deslocar, descrever a situação, e existindo perigo, as mesmas devem iniciar um processo.
No entanto, e porque os requerentes referem que se vão deslocar a Portugal em 20 de Dezembro de 2014, onde estarão um curto período de tempo, e receiam que a menor se ponha em fuga, referindo que não conseguem controlar os seus ímpetos e vontade, o que poderá, eventualmente, vir a colocá-la em situação de perigo em território nacional, proceda-se como se promove, remetendo ainda certidão da promoção e do presente despacho.”
Face ao exposto, como refere o MP, não se pode rever uma medida que está cessada (art. 63.º, n.º 1, al. e) da LPCJP), num processo que já foi arquivado.
Indefere-se o requerido, sendo certo que requerimentos similares serão tidos por anómalos para efeitos de custas.
…» (sic).

Inconformado com o decidido, os requerentes interpuseram apelação, onde alegaram com as seguintes CONCLUSÕES:
«A. O presente recurso é interposto do douto despacho que indeferiu o incidente (a autuar por apenso) de revisão da medida de promoção e protecção, decisão de que se discorda e cuja revogação se pro pugna.
B. Os recorrentes apresentaram por apenso aos autos de processo principal o incidente de revisão da medida de promoção e protecção aplicada à menor V.., de confiança judicial aos mesmos, durante o período de 18 meses, sendo que, tal medida nunca foi revista.
C. Ouvido o Digníssimo Magistrado o M.P. o mesmo veio declarar que os autos se encontravam arquivados por despacho de 18.11.2009 acrescentando que os progenitores da menor foram inibidos do exercício do poder paternal, tendo o mesmo sido atribuído aos requerentes e que nada havia a rever porquanto desde 11.07.2005 foi decidido o exercício do poder paternal.
D. O despacho recorrido do Mmo Juiz pugnou por igual entendimento.
E. Não podem os recorrentes conformar-se com tal decisão, uma vez que estamos perante um processo de promoção e protecção, em que se discute a revisão da medida de confiança judicial do menor à família de acolhimento e atribuição do exercício da responsabilidades parentais a estes, processo este de jurisdição voluntária.
F. O juiz dispõe de amplos poderes de investigação para além das provas oferecidas pelas partes, e oriente-se por critérios de oportunidade ou conveniência, que prevalecem sobre a legalidade estrita, podendo as suas decisões ser alteradas em função de novas circunstâncias.
G. A jurisprudência é unânime quanto a essa matéria, veja-se a título de exemplo o Acórdão do STJ (processo 865/05.0TMLSB. L1.S 1) e o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06-03-2012.
H. De igual prorrogativo goza o processo de regulação do exercício das responsabilidades parentais (Ac. Trib. de Relação de Coimbra de 20-06-2012 in www.dgsi.pt).
l. Não pode o processo considerar-se extinto sem mais, podendo estar sujeito a constantes mutações e alterações, através dos vários incidentes previstos na OTM e na LPCJP, em função de novos factos acarreados ao processo e que se traduzem numa alteração das circunstâncias concretas que rodeiam o menor e que implicam a aplicação de medidas diferentes.
J. A medida de protecção adoptada e as responsabilidades parentais tem naturalmente de ser adaptada às necessidades do menor, que não são imutáveis ao longo dos anos.
K. Tendo os recorrentes conhecimento da situação perigo, em que a menor V.. se encontra por adoptar comportamentos que afectam a sua saúde, formação, educação, desenvolvimento e integridade física e metal (art. 3° da LPCJP), comunicaram esses mesmos factos aos autos em que tal medida foi decretada.
L. Os recorrentes, ao darem conhecimento dos factos ao processo em que a medida foi decretada, cumpriram o dever legal que se lhes impunha pelo art. 66°, nO.2 da IPCJP.
M. Decorre do art. 81° da LPCJP que quando forem instaurados sucessivamente processos de promoção e protecção, devem os mesmos correr por apenso, sendo competente para deles conhecer o juiz do processo instaurado em primeiro lugar, pelo que, os recorrentes agiram de acordo com a lei.
N. O Tribunal recorrido devia sim ter requisitado o processo ao arquivo e, uma vez reaberto, autuar o incidente como apenso, já que consta do processo que foi atribuída a confiança a título provisório aos recorrentes da menor, enquanto pessoas idóneas.
O. Mais tarde Digna Magistrada do MP promoveu para que a título definitivo fosse aplicada à menor V.. a medida prevista no art. 35°, nº.1 al. e) da lei nº. 147/99 de 01.09. e ficou, então, a constar do acordo de promoção e protecção "que a menor V.. fica confiada e entregue aos cuidados do casal L.. e M.. em situação de acolhimento familiar" e que a "A presente medida tem a duração de 18 meses", tendo passado a vigorar tal acordo de promoção.
P. Posteriormente ficaram os pais biológicos inibidos do exercício do poder paternal, tendo este também sido atribuído aos recorrentes.
Q. Apesar do prazo fixado para a sua revisão (18 meses), a medida de protecção proferida não mais foi revista, tendo a menor V.. sido confiada e entregue aos cuidados dos recorrentes em situação de família de acolhimento familiar, indefinidamente, sendo que tal medida nunca foi revogada ou revista, motivo pelo qual não podia tal processo considerar-se arquivado.
R. Nos termos do art. 59°, n°. 2 da LPCJP a execução da medida aplicada em processo judicial é dirigida e controlada pelo tribunal que a aplicou, acrescentando o ort, 62°, nO.l que "A medida aplicada é obrigatoriamente revista findo o prazo fixado ( ... ) e decorridos períodos nunca superiores a seis meses", o que não sucedeu.
S. A medida não cessou nos termos do art. 63, n°. l al. e) da (LPCJP), pois uma vez que a medida foi aplicada apenas pelo período de 18 meses.
T. Embora de legalmente obrigado, o Tribunal não mais acompanhou a integração da menor V.. na família de acolhimento, bem como nunca procedeu à revisão da medida aplicada.
U. Os recorrentes têm sentido grandes dificuldades no relacionamento e na educação da menor, facto que os recorrentes participaram nos termos do citado ort. 66° da lei n", 147/99 de 01.09 (LPCJP)
V. A menor V.. conta (com 16 anos de idade) reclama uma independência e auto-determinação em relação aos requerentes que estes - por instinto de protecção - não concedem, vivendo a menor permanentemente revoltada e angustiada, ameaçando fugir de casa e não mais dar notícias.
W. Os recorrentes relataram que a menor tem dificuldades em aceitar ordens, regras e as instruções dadas pelos requerentes, não lhes reconhecendo autoridade para tal, por não se tratarem dos seus pais biológicos, e que tal comportamento a repercutir-se no âmbito escolar, com queixas várias por parte dos docentes.
X. Referiram temer que a menor possa infligir agressões a si própria, situação com que os ameaça diariamente e que o ambiente familiar tornou-se insustentável e prejudicial para a menor - porque a menor se recusa a colaborar nas tarefas domésticas, na assiduidade às aulas e realização dos trabalhos escolares, na linguagem utilizada e no seu comportamento desviante.
Y. O Tribunal simplesmente deixar de conhecer estas questões.
Z. São trazidos à colação factos que comprovam estar posto em causa o bem estar de uma jovem, e sendo este um processo de jurisdição voluntária, o juiz tem o dever legal de conhecer todas as questões suscitadas.
AA. As resoluções proferidas em Processo de Jurisdição Voluntária podem ser livremente alteradas sem prejuízo dos efeitos entretanto produzidos.
BB. Não possui o caso julgado nos processos de jurisdição voluntária a característica da irrevogabilidade, sendo que qualquer resolução pode ser livremente alterada, mesmo que já tiver havido trânsito em julgado.
CC. Nos processos de jurisdição voluntária, proferida sentença o poder jurisdicional não se esgota, motivo pelo qual o presente incidente de revisão da medida de promoção e protecção adoptada deve ser admitido e autuado por apenso aos presentes autos.
DD. Também não procede o argumento utilizado de competia às autoridades francesas aplicar medidas de promoção e protecção, até porque a menor tanto reside em Portugal como em França.
EE. A medida de confiança judicial foi aplicada pelo Tribunal de família e Menores de Braga no âmbito deste processo, não fazendo qualquer sentido que a mesma seja aplicada ou revista pelos tribunais franceses.
FF. Ademais refira-se que nos termos do art.155° da OTM é competente o tribunal da residência do menor no momento em que foi instaurado e as menores residiam em Braga, acrescentando o n°. 6 do mesmo artigo que "são irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente".
GG. As regras de direito internacional remetem também o competência para o Tribunal Português.
HH. Nos termos do disposto no art. 25° e 31° do Código Civil (C.C.) as relações de família, bem como a tutelo e institutos análogos de protecção de incapazes são reguladas pela lei pessoal, correspondendo à lei da nacionalidade. (art. 31° do CC.).
II. Cabe ao Tribunal da Comarca de Braga, Primeira Instância de Família e Menores, J1, e por apenso ao Processo de Promoção e Protecção instaurado em 2002, conhecer do presente incidente.
JJ. Não pode o Tribunal abster-se de conhecer e decidir as questões suscitadas e muito menos, dar prevalência a questões formais, em detrimento das questões materiais, num processo de jurisdição voluntária.
KK. Confrontado com a informação de que está em risco a saúde, formação e educação e integridade física e psíquica da menor Vanda, estava o Tribunal obrigado a conhecer de tais factos e providenciar pela aplicação de medida de promoção e protecção que melhor se adequem a esta.
LL Esta omissão de pronuncia que culminou com o indeferimento do presente incidente é lesiva dos direitos fundamentais da menor.
MM. O despacho proferido deve ser revogado e promover-se pelo recebimento do presente incidente e proceder. se à revisão da medida aplicada no acordo de promoção e protecção, o que já devia ter ocorrido findo o prazo de 18 meses, adoptando-se uma medida adequada e conveniente à protecção da menor, nos termos do art. 35° da LPCJP.» (sic)
Termina no sentido de que se revogue a decisão recorrida e se abra o incidente de revisão da medida de proteção e promoção aplicada.

O Ministério Público respondeu ao recurso por contra-alegações, defendo a sua improcedência.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
II.
Nas questões a decidir, a Relação considerará a delimitação dada pelas conclusões da apelação dos requerentes, acima transcritas, sem prejuízo da apreciação da matéria que for do conhecimento oficioso (art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).
Assim, está para decidir:
1. Se os tribunais portugueses são competentes para rever a medida de promoção e proteção aplicada à menor; e, na afirmativa,
2. Se há fundamento legal para que o Tribunal da Comarca de Braga proceda à pretendida revisão, apesar dos presentes autos terem sido arquivados.
III.
Relevam aqui os factos constantes do relatório que antecede, e ainda:
1. Os requerentes M.. e marido, L.., residem em Paris, França, onde são emigrantes desde data muito anterior a junho de 2002;
2. Dali, deslocam-se a Portugal para passar férias;
3. A M.. exerce a profissão de porteira e também se ocupa como ama de crianças, e o L.. tem a profissão de pedreiro, na construção civil;
4. A V.. vive com aquele casal, naquele país desde que lhes foi entregue pelo Tribunal de família e Menores.

Estes factos resultam, sobretudo, dos requerimentos formulados pelos requerentes e dos elementos de prova juntos a fl.s 270, 275, 305, 346, 352 e 367 dos autos.
*
A capite incipiendum.
1. Competência dos tribunais portugueses para rever a medida de promoção e proteção aplicada à menor
Dispõe o art.º 79º, nº 1, da LPCJP que “é competente para a aplicação das medidas de promoção e protecção a comissão de protecção ou o tribunal da área da residência da criança ou do jovem no momento em que é recebida a comunicação da situação ou instaurado o processo judicial”.
Ao tempo da aplicação da medida de promoção e proteção de acolhimento familiar da menor V.., ela residia em Portugal. Foi, por isso, fixada a competência de um tribunal de família e menores português para os termos do processo de promoção e proteção que decretou aquela medida.
Segundo o nº 4 daquele mesmo normativo legal, “se, após a aplicação da medida, a criança ou o jovem mudar de residência por período superior a três meses, o processo é remetido à comissão de protecção ou ao tribunal da área da nova residência”. Não sendo assim, “são irrelevantes as modificações de facto que ocorrerem posteriormente ao momento da instauração do processo” (nº 5 do mesmo artigo).
Desde o ano de 2002, provisoriamente, e desde o ano de 2003, definitivamente, que a menor reside com o casal de acolhimento em Paris, França, portanto, no estrangeiro e num país que é parte integrante da União Europeia.
Os pais da V.. ficaram ainda inibidos do exercício das responsabilidades parentais, que transitaram para aquele casal, assim se reforçando os laços que os unem à V.. em detrimento da parentalidade biológica cuja efetividade, não fosse essa inibição, a distância se encarregaria, só por si, de fazer desvanecer.
Estaríamos a falar de uma modificação da competência territorial (competência interna) se a menor tivesse mudado de residência dentro do território nacional (art.ºs 64º e seg.s do Código de Processo Civil e citado nº 4 do art.º 79º). Mas, internacionalizada que está a situação da V.., por a sua residência ter transitado para França, entrando em contacto com mais do que uma ordem jurídica nacional, é de competência internacional que se trata.
O art.º 59º do Código de Processo Civil determina que “sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus [3] e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.° e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º”.
Este dispositivo está em consonância com o disposto no art.º 8º da Lei Fundamental (regime de receção automática[4]).
O Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro de 2003,[5] relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e de responsabilidade parental, respeita, designadamente, a questões em matéria de responsabilidade parental na União Europeia, reunindo num único texto as disposições em matéria matrimonial e de responsabilidade parental.
No capítulo I, sob o art.º 1º, determina-se a sua aplicação, independentemente da natureza do tribunal, entre outras, a situações de aplicação da medida de “colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição” (al. d)).
O Regulamento prevê ainda normas relativas à competência (capítulo II), ao reconhecimento, à execução (capítulo III) e à cooperação entre autoridades centrais (capítulo IV) em matéria de responsabilidade parental, sendo aplicável a todas as matérias civis relativas "à atribuição, ao exercício, à delegação, à limitação ou à cessação da responsabilidade parental".
A expressão "responsabilidade parental" é, aliás, definida em termos amplos pelo nº 7 do art.º 2º comoabrangendo o conjunto dos direitos e deveres do titular da responsabilidade parental em relação à pessoa ou aos bens da criança. Tal compreende não só o direito de guarda e o direito de visita, mas igualmente matérias como a tutela e a colocação da criança ao cuidado de uma família de acolhimento ou de uma instituição. É titular ia responsabilidade parental, qualquer pessoa que exerça a responsabilidade parental em relação a uma criança (nº 8 do mesmo art.º 2º).
Não há, pois, qualquer dúvida de que o referido Regulamento prevê para situações como a dos autos, em que uma criança portuguesa foi, na legalidade, judicialmente entregue em Portugal à guarda e cuidado de uma família de acolhimento, nos termos do art.º 35º, nº 1, al. e), da LPCJP, residente em França, para onde deslocou a menor com conhecimento e anuência do tribunal.
Nos termos do nº 1 do art.º 8º do Regulamento, que estabelece a regra geral em matéria de competência, “os tribunais de um Estado-Membro são competentes em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança que resida habitualmente nesse Estado-Membro à data em que o processo seja instaurado no tribunal”.
O subsequente art.º 9º, a propósito do direito de visita após a mudança de residência da criança, acentua também a importância da sua residência habitual, estabelecendo um prolongamento da competência do Estado-membro anterior apenas por três meses após a deslocação para Estado-membro onde ela passou a residir habitualmente. E é tão importante a situação da criança face ao território que o art.º 13º do mesmo Regulamento determina, sob, o nº 1, que “se não puder ser determinada a residência habitual da criança nem for possível determinar a competência com base no artigo 12.°, são competentes os tribunais do Estado-Membro onde a criança se encontra”.
O princípio fundamental do Regulamento é que o foro mais apropriado em matéria de responsabilidade parental é o tribunal competente do Estado-Membro da residência habitual da criança.
Todavia, o citado Regulamento não define o que se entende por residência habitual, limitando-se o legislador comunitário, na 12ª Consideração ali tecida, a determinar que “as regras de competência em matéria de responsabilidade parental do presente regulamento são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério de proximidade. Por conseguinte, a competência deverá ser, em primeiro lugar, atribuída aos tribunais do Estado-Membro da residência habitual ou na sequência de um acordo entre os titulares da responsabilidade parental”.
Como se tem entendido, não se trata de um conceito de residência habitual com base na legislação nacional, mas de uma noção “autónoma” da legislação comunitária. Se uma criança se deslocar de um Estado-Membro para outro, a aquisição da residência habitual no novo Estado-Membro deveria, em princípio, coincidir com a perda da residência habitual no anterior Estado-Membro. A determinação caso a caso pelo juiz implica que, enquanto o adjetivo “habitual” tende a indicar uma certa duração, não se pode excluir que uma criança possa adquirir a residência habitual num Estado-Membro no próprio dia da sua chegada, dependendo de elementos de facto do caso concreto. [6]
Da análise de várias disposições do Regulamento --- entre elas, os art.ºs 9º, nº 1, 10º, al. b) e 15º, nºs 1e 3 --- que se referem a modificações da situação da criança determinantes para a fixação da competência --- resulta a conclusão de que, para o legislador comunitário, como de resto, o refere expressamente na referida 12ª consideração, as regras de competência em matéria de responsabilidade parental são definidas em função do superior interesse da criança e, em particular, do critério de proximidade, justificando-se que o mérito de um processo seja julgado por tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular, pois que, prima, facie, estará ele melhor colocado/preparado para conhecer do processo.
Como se expõe no acórdão da Relação do Porto de 29.04.2013 [7], “em sede de aferição da competência internacional do tribunal de um Estado-Membro para conhecer de uma acção de regulação do exercício do poder paternal, as regras comunitárias não devem ser aplicadas de uma forma mecânica, simplista, antes se impõe que a regra geral do nº 1 do artº 8º seja aplicada sob reserva (como o refere o nº 2 do artº 8º), não olvidando nunca o superior interesse da criança e o critério da proximidade (ou como refere o artº 15º, o tribunal do Estado-Membro com o qual a criança tenha uma ligação particular)”.
No acórdão da mesma Relação de 18.03.2004 [8] considerou-se que a residência de um menor em processo de promoção e proteção é o local onde efetivamente o menor está radicado e desenvolve habitualmente a sua vida, onde ele vive com estabilidade. A expressão residência inculca a permanência, mais ou menos prolongada, de certa pessoa, num lugar, por oposição a uma estada ocasional, ou durante um período limitado [9], ….onde ela tem o centro da sua vida e onde, normalmente, vive e permanece, a ela regressa após uma eventual ausência breve ou mesmo mais prolongada[10].
No acórdão da 1ª Secção do Tribunal de Justiça da EU, de 22.12.2010 [11] decidiu-se também que o conceito de "residência habitual", na aceção aqui em causa, deve ser interpretado no sentido de que essa residência corresponde ao lugar que traduz uma certa integração da criança num ambiente social e familiar.
O significado da expressão deve ser interpretado em conformidade com os objetivos e as finalidades do Regulamento.
A título comparativo, o artigo 1.º da Convenção de Haia de 1961 faz depender a competência do tribunal da circunstância do menor residir habitualmente no país abrangido pela mesma.
O conceito “residência habitual” ali empregue tem sido entendido, para efeitos de aplicação da Convenção, também como o local onde se encontra organizada a vida do menor, em termos de maior estabilidade e permanência, onde desenvolve habitualmente a sua vida, em suma, onde está radicado.[12]
Para as situações em que a residência habitual se desloca para outro Estado-Membro da União Europeia, o Regulamento prevê, nas normas supra citadas, a derrogação da competência do tribunal do Estado-Membro da anterior residência habitual.
Volvendo aos factos, não pode relevar uma eventual intenção do casal de acolhimento regressar num qualquer dia futuro definitivamente a Portugal. O que marca indelevelmente a situação é o facto de o casal de acolhimento residir em Paris, França, onde é emigrante, desde muito tempo antes de, em 2002, ter acolhido a menor no seu meio familiar e de a ter conduzido àquele país, onde ela reside desde então, ao longo de mais de 12 anos, ali tendo recebido a sua educação, por certo, também a sua formação escolar, e onde vive a sua infância e juventude, em sociedade. Ainda que, numa ou noutra ocasião, tenha vindo de férias a Portugal, como poderá deslocar-se a outro lado qualquer, está, claramente, em Paris o centro da sua vida, seja ela familiar, social e cultural; é lá que permanece, no seio da família de acolhimento, não se podendo colocar sequer, com o mínimo de honestidade, a possibilidade de o casal, e menos ainda a V.., terem residência habitual em Portugal.
Sendo em Paris que a V.. desenvolve toda a sua vida social e familiar, e estando em causa o seu comportamento habitual, o modo como se insere em sociedade e se relaciona com os outros em comunidade, designadamente na família, não seria prático nem adequado, nem profícuo ou proveitoso, discutir a pretendida alteração da medida de promoção e proteção em Portugal só porque foi aplicada neste país, quando a visada daqui se ausentou numa fase muito precoce e imatura da sua vida. É em Paris que muito melhor será observável a menor e podem ser recolhidas outras provas, designadamente em família, e estudado e ponderado o seu caso concreto. É ali o local dos factos e onde se concluirá, ou não, pela eventual modificação da sua situação, ante a respetiva realidade e para essa mesma realidade social, onde decorre o circunstancialismo da sua vida e da vida do casal que a acolheu.
Os recorrentes referem que o processo foi indevidamente arquivado e que a medida aplicada pelo tribunal português deveria ter sido revista periodicamente, e não foi.
O art.º 59º, nº 2, da LPCJP, prevê que a medida aplicada em processo judicial seja dirigida e controlada pelo tribunal que a aplicou.
É verdade que o art.º 62º, nº 1, da LPCJP prevê a revisão obrigatória das medidas aplicadas “findo o prazo fixado no acordo ou na decisão judicial, e, em qualquer caso, decorridos períodos nunca superiores a seis meses”. Também se estabeleceu no acordo da medida aplicada que esta teria a duração de 18 meses, tempo este largamente decorrido, sem qualquer revisão.
Segundo o art.º 63º, nº 1, al. a), da mesma lei, a medida cessa quando decorra respetivo prazo de duração ou eventual prorrogação.
O processo foi arquivado a 18.11.2009, sem que o tribunal, ao menos diretamente, voltasse a averiguar a situação da V.. e a avaliar a medida aplicada, designadamente para efeitos da sua prorrogação/alteração/cessação [13]. Nas não terá sido alheia a essa inércia a situação de emigração do casal e da menor, o distanciamento que isso acarretou e a centralização noutro país da sua vida familiar, social e profissional.
É precisamente este afastamento do país de origem, onde a medida foi aplicada, e a proximidade habitual da menor a outro Estado-membro que justifica plenamente a retirada da competência do Estado-membro anterior em favor daquele, o Estado francês, por ser ele --- no caso, há muitos anos e ao longo da vida da menor --- o que mais bem (senão mesmo o único) esteve e continua a estar colocado em ordem à realização do superior interesse da V...
Pouco importa agora saber se o processo foi bem, menos bem ou mesmo mal arquivado, atenta a idade da V.., o decurso do prazo da medida aplicada e ausência de despacho que lhe ponha termo; o que releva é, antes de mais, saber se os tribunais portugueses continuam a ser competentes para conhecer da situação da menor.
São as autoridades francesas, não as portuguesas, que, à luz do regulamento (CE) nº 2201/2003, desde logo pela sua proximidade, se encontram há longa data na posição de poder e dever intervir no caso, verificando a existência do alegado perigo e decidir sobre a aplicação de medida de proteção, verificando, qualificando e controlando a sua conduta.
Só muito dificilmente --- se é que seria possível assim acautelar devidamente o interesse da menor --- os tribunais portugueses se colocariam em condições para rever a media aplicada. E não se encontrando a criança em Portugal, designadamente em férias, nem a natureza de jurisdição voluntária própria deste processo, orientada mais por critérios de oportunidade e conveniência, justifica a intervenção urgente dos tribunais nacionais. A situação descrita demanda uma intervenção célere no caso, que só as autoridades francesas conseguem prosseguir, na realização do superior interesse da menor.
É conclusiva e irrelevante em face dos elementos de facto constantes dos autos, a afirmação feita pelos recorrentes de que “tanto residem em França como em Portugal”. Igualmente, deve-se desconsiderar a defesa que os recorrentes fazem da aplicação ao caso da lei pessoal da menor, a lei da sua nacionalidade, nos termos dos art.ºs 25º e 31º do Código Civil para justificar a competência dos tribunais portugueses. O que está aqui em causa não é a determinação da lei substantiva aplicável, mas o afastamento da competência dos tribunais portugueses e, sobre esta questão, já vimos que são outras as normas aplicáveis.
Nesta decorrência, atenta o disposto nos art.ºs 59º e 97º do Código de Processo Civil e a aplicação do Regulamento (CE) nº n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro, designadamente o respetivo art.º 8º, nº 1, há que considerar os tribunais portugueses absolutamente incompetentes para conhecer do requerimento apresentado por M.. e marido, L.., sendo competentes as autoridades francesas, por em França se situar a residência habitual da menor, onde poderá ser requerido adequado e novo procedimento, considerando-se, para o efeito, o presente processo como arquivado.

Atento o decidido, fica, obviamente, prejudicado o conhecimento da segunda questão do recurso.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
1. Ainda que nunca tenha sido revista ou declarada cessada a medida de acolhimento familiar aplicada a uma menor pelos tribunais portugueses ao abrigo do art.º 35º, nº 1, al. e) da Lei nº 147/99, de 1 de setembro (Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo), a sua transferência para Paris, França, logo após a entrega àquela família, onde esta a criança passaram a residir há mais de 12 anos e permanecem numa situação de emigração, leva a concluir que é ali e não em Portugal que a menor tem residência habitual, ainda que venha de férias a Portugal.
2. Sendo em Paris a nova residência habitual da menor (a única conhecida, aliás, há mais de 12 anos), por força do disposto no art.º 8º da Constituição da República, do art.º 59º, do Código de Processo Civil e do art.º 8º do Regulamento (CE) nº n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de novembro, deve entender-se que os tribunais portugueses perderam a competência (absoluta) para a revisão da medida aplicada à menor, tendo passado a ser os tribunais franceses internacionalmente competentes para apreciar a alegada situação de perigo em que aquela se encontra.
3. Com efeito, este nosso processo judicial deve continuar arquivado.
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IV.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação de Guimarães em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida, agora no sentido de que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para apreciar e decidir a questão trazida por M.. e marido, L.., a família de acolhimento da menor V.., devendo, para o efeito, considerar-se o processo como arquivado.
Custas da apelação pelos recorrentes.
Guimarães, 21 de maio de 2015
Filipe Caroço
António Santos
Figueiredo de Almeida
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[1] Cf. fls. 263 dos autos.
[2] Adiante “LPCJP”.
[3] O sublinhado é nosso.
[4] Tais normas, dentro de certas condições, vigoram na ordem interna e são passíveis de imediata e direta aplicação pelos tribunais.
[5] Que revogou o Regulamento (CE) nº 1347/2000) e foi alterado pelo Regulamento (CE) nº 2116/2004, do Conselho de 2 de dezembro de 2004.
[6] Cf. acórdão da Relação do Porto de 12.04.2012, proc. 5554/11.3TBVNG-A.P1, in www.dgsi.pt, subscrito, na qualidade de adjunto, pelo aqui relator.
[7] Proc. 1083/12.6TBSJM.P1; também acórdão da mesma Relação de 31.03.2011, proc. 2254/09.8TMPRT-B.P1, ambos in www.dgsi.pt.
[8] Proc. nº 0430361, in www.dgsi.pt.
[9] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.6.77, in BMJ 268-162, ali citado.
[10] Acórdão da Relação de Évora de 01.06.88, BMJ 378-809.
[11] Proc. C-497/10 PPU: Barbara Mercredi/Richard Chaffe.
[12] Acórdão Relação do Porto de 26.02.2004, proc. n.º 0430548 e acórdão da Relação de Coimbra de 27.05.2008, proc. n.º 668-F2002.C1, in www.dgsi.pt.
[13] Note-se, no entanto, que o tribunal determinou que os serviços do C.D.S.S.S., através da Associação Portuguesa para o Serviço Social e Internacional, acompanharia a execução da medida de promoção e proteção devendo enviar relatório no prazo de 6 meses dando conta da situação e integração da menor V, ao abrigo do artigo 62.º, n.º 1 da Lei 147/99 de 01.09.