Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
243/18.0T8VNF. G1
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: DELIBERAÇÃO SOCIAL
IMPUGNAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Em sede de deliberações sociais, não se estando perante uma violação do conteúdo que caiba nulidade, por ser uma questão privada e não do interesse público, rege o artº 58º, nº 1, al. a), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), sendo a deliberação anulável por vícios de procedimento de formação da maioria.

II - Tratando-se de deliberações anuláveis, à luz do disposto no artº 58º, nº 1, al. a), do CSC, o prazo para intentar uma eventual acção de anulação de deliberação social, nos termos do artº 59.º do CSC é de trinta dias .
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório;

Recorrente: - (…) (autora);
Recorrida: - (..) Lda. (ré);
*****
Pedido:

A autora instaurou a presente acção de impugnação de deliberações sociais contra X, Battery Solutins, Lda., A. J. e M. F., pedindo que fossem declaradas nulas as seguintes deliberações tomadas na assembleia geral da Ré tomadas em 5/9/2013:

a) Deliberação de aquisição de quotas da sociedade X Baterias Lda;
b) Deliberação de aquisição de quotas próprias;
c) Deliberação de aquisição de imóvel.

Invocou, para o efeito, o disposto no artigo 56.º, n.º 1, al. d) do CSC e o previsto no artigo 397.º, n.º 2 do mesmo diploma legal e o artigo 251.º do CSC
Citados, os Réus pessoas singulares contestaram, por excepção e por impugnação, prosseguindo a acção apenas contra a ré sociedade comercial.

De seguida, foi proferida sentença em se decidiu julgar a acção improcedente e, consequentemente, absolver a Ré sociedade do pedido de declaração de nulidade das deliberações tomadas na assembleia geral de 5/9/2013.

Inconformada com tal decisão, dela interpôs recurso a autora, de cujas alegações se extraem, em súmula, as seguintes conclusões:

a) As deliberações em causa violaram artigo 251.º do CSC.
b) Foram tomadas contra um preceito de natureza imperativa, e como tal, enfermam de nulidade ao abrigo do artigo 56.º n.º 1 al. d) CSC.
c) O artigo 251.º do Código das Sociedades Comercias, visa neutralizar o perigo de os sócios tomarem deliberações.
d) o Caso concreto não cai na alçada do artigo 58 n.º 1 al. a), na medida em que foram desrespeitadas normas de natureza imperativa;
e) Sempre se dirá são nulas por ofensivas dos bons costumes;
f) As deliberações tomadas são totalmente alheias ao escopo da sociedade e apenas pretenderam beneficiar o sócios ou interposta pessoa.
g) As deliberações em causa são ofensivas dos bons costumes, na medida em que delas resultam vantagens para os sócios e familiares destes que importam concomitantemente um prejuízo severo para a sociedade;

Pede que se decrete a nulidade das referidas deliberações sociais.

Não houve contra alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso; questões a apreciar;

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos dos artigos 639º, todos do Código de Processo Civil (doravante CPC).

A questão suscitada pela recorrente é seguinte:

a) Verificam-se os requisitos de nulidade das deliberações sociais em causa por o seu conteúdo ser ofensivo de preceitos legais imperativos e dos bons costumes?

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade dada como assente na sentença recorrida é a seguinte:

FACTOS PROVADOS

a) A Autora é gerente da sociedade X – Battery Solutions, Lda, pessoa colectiva número …, com sede na Rua …, freguesia de Braga (…), do concelho de Braga, aqui Ré, por deliberação tomada em 28/09/2017 e registada em 20/11/2017;
b) A Ré é uma sociedade por quotas que, até meados do ano de 2013, actuava com a firma Y – Acessórios Auto Lda;
c) O seu capital social era constituído por três quotas, assim divididas:
i. Uma quota no valor de € 9.000,00, pertencente a A. J.;
ii. Uma quota no valor de € 9.000,00, pertencente a M. F.;
iii. Uma quota no valor de € 12.000,00, pertencente a C. M.;
d) O 2º e 3ª Réus são casados entre si no regime da comunhão geral;
e) A sociedade tinha a sua sede na Rua …, na freguesia da ..., concelho de Braga;
f) Até 17/09/2013 tinha como único gerente A. J.;
g) Nas mesmas instalações da Ré funcionava uma outra sociedade de nome X, Baterias Lda. cujas quotas eram pertença de A. J. e de M. F., as quais se dividiam nos seguintes termos:
i. uma quota no valor nominal de € 49.879,79 pertencente a A. J.;
ii. uma quota no valor nominal de € 49.879,79, pertencente a M. F.;
h) Era também Gerente A. J.;
i) A 5/09/2013, estiveram presentes em Assembleia Geral todos os três sócios à data da sociedade: C. M., A. J. e M. F.
j) A referida Assembleia Geral foi presidida pelo sócio gerente A. J. e nela foi discutida a seguinte ordem de trabalhos:
Ponto 1 - Deliberar sobre o consentimento a dar pela sociedade à realização de doações de quotas;
Ponto 2 - Deliberar sobre a aquisição de quotas da sociedade X – Baterias, Lda-, pela Y;
Ponto 3 - Deliberar sobre a aquisição de duas quotas da sociedade Y – Acessórios Auto, Lda, pela própria sociedade;
Ponto 4 – Deliberar sobre a aquisição de um imóvel;
Ponto 5 – Deliberar sobre a aprovação do balanço especial da sociedade reportado à data de 31 de Julho;
Ponto 6 – Deliberar sobre a concessão de poderes ao gerente para praticar actos sujeitos a deliberação.
k) A. J. pediu a palavra e disse que ele próprio e a mulher M. F. pretendiam doar as quotas que detinham sobre a Ré, respectivamente aos filhos A. F. e E. A., propondo à sociedade dar consentimento.
l) Este ponto foi à votação pelos três sócios presentes e foi aceite por unanimidade.
m) A. J. voltou a pedir a palavra e, ainda no seguimento da doação das suas quotas e das quotas da Ré, propôs à sociedade que a mesma adquirisse as duas referidas quotas, cada uma pelo valor de €136.101,00, a liquidar através do pagamento de oito prestações anuais, iguais e sucessivas, a cada um dos donatários, no valor de €17.012,63 cada, vencendo-se a primeira no dia da formalização da escritura.
n) Este ponto também foi à votação pelos três sócios presentes e foi aceite por unanimidade, tendo a empresa deliberado proceder à aquisição das referidas quotas nas condições propostas.
o) A. J. pediu a palavra e disse que ele próprio e a mulher eram sócios da empresa X – Baterias Lda., com sede social na Rua ... Braga e declarou que ele próprio e a 3ª Ré pretendiam ceder as duas quotas que cada um detém na referida sociedade, no valor nominal de €49.879,79 cada, pelo valor de € 136.101,00, propondo à 1ª Ré a aquisição das referidas quotas, a liquidar através do pagamento de oito prestações anuais, iguais e sucessivas, no valor de €17.012,63 cada, vencendo-se a primeira no dia da formalização da escritura.
p) Este ponto foi à votação pelos três sócios presentes e foi aceite por unanimidade, tendo a empresa deliberado proceder à aquisição das referidas quotas nas condições propostas.
q) A. J. pediu a palavra para declarar que era de todo o interesse da sociedade, por constituir o local ideal para a instalação da sede da empresa e pelo preço ser atractivo, adquirir um imóvel sito na cidade de Braga, pelo montante global de €122.260,00.
r) O referido imóvel tinha como proprietários de raiz C. M. e a aqui Autora, A. F. e mulher M. J. e E. A. e mulher I. M. e como usufrutuários A. J. e mulher.
s) O fruto desta compra teria de ser pago em oito prestações anuais e sucessivas de €3.820,63 a cada um dos proprietários, vencendo-se a primeira no dia da formalização da escritura e o restante €26744,37 seria pago em sete prestações anuais, iguais e sucessivas a primeira vencendo-se no dia 30/6/2014;
t) Este ponto foi à votação pelos três sócios presentes e foi aceite por unanimidade, tendo a empresa deliberado proceder à aquisição do imóvel nas condições propostas.
u) Os negócios em causa importaram para a sociedade a assunção de uma obrigação de pagamento de € 512.270,00 a favor dos sócios e dos seus filhos.
*****
2. De direito;

a) Verificam-se os requisitos de nulidade das deliberações sociais em causa por o seu conteúdo ser ofensivo de preceitos legais imperativos e dos bons costumes?

A questão recursiva cinge-se a matéria de direito.
Esgrime, então, a recorrente que nas deliberações sociais tomadas na assembleia geral de 5/9/2013 (relativas à aquisição de quotas próprias dos sócios A. J. e M. F. e de aquisição de quotas a eles pertencentes de sociedade terceira, quando estavam impedidos de votar) foram desrespeitadas normas de natureza imperativa e, como tal, enfermam de nulidade.
Mais defende que padecem desse mesmo vício por constituírem ofensa aos bons costumes.
Pugna, assim, pela aplicação ao caso concreto do disposto no artº 58º, nº 1, al. d), do Código das Sociedades Comerciais (CSC).

Cremos que não lhe assiste razão.
Os arts. 56.º e 58.º do CSC enunciam, respectivamente, os casos de nulidade e anulabilidade das deliberações.

Assim, temos que:
“Artigo 56.º
Deliberações nulas
1 - São nulas as deliberações dos sócios:
(…)
d) Cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”.

“Artigo 58.º
Deliberações anuláveis
1 - São anuláveis as deliberações que:
a) Violem disposições quer da lei, quando ao caso não caiba a nulidade, nos termos do artigo 56.º,quer do contrato de sociedade”;
(…)”.

Transpondo a nulidade para o universo das sociedades comerciais, para que a deliberação produza efeitos, é necessário que preencha todas as exigências impostas pelas normas legais e contratuais.
No domínio das sociedades, a regra é a anulabilidade e há lugar a esta sempre que a lei não determine a nulidade, quer isto dizer, que só ocorrem nulidades nas situações expressamente taxadas no CSC.
É doutrina e jurisprudência pacíficas, como defendido no Acórdão do STJ de 13-05-2004, Proc. 04A1519 (Rel. Cons. Lopes Pinto), que “o regime-regra sobre a invalidade das deliberações sociais é a sua anulabilidade”. De um modo amplo, poder-se-á dizer que as deliberações sociais nulas estão sujeitas ao princípio da tipicidade, encontrando-se enumerados no artigo 56.º nº 1 do CSC.
A nulidade a que se reporta a citada al. d), do nº 1, do artº 56º, é uma nulidade resultante de vícios de conteúdo.
Nesta alínea estabelece-se que são nulas por vício de substância as deliberações “cujo conteúdo, diretamente ou por atos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes ou de preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”.
Na 1ª parte da al. d) estão em causa as “deliberações dos sócios cujo conteúdo, diretamente ou por actos de outros órgãos que determine ou permita, seja ofensivo dos bons costumes (...)” - e a 2ª parte da mesma alínea refere-se a “preceitos legais que não possam ser derrogados, nem sequer por vontade unânime dos sócios”.
Em síntese, pode-se afirmar que a totalidade da alínea consagra as normas que procuram proteger interesses de terceiros, credores e do público em geral (1).
Neste sentido, será de se ter em conta o disposto nos artºs 69.º nº 3, 27.º nº 1 e 318.º, todos do CSC, ou seja, enquadram-se na al. d) do artigo 56.º do CSC as disposições legais relativas à constituição, reforço ou utilização da reserva legal, ou as deliberações que liberem total ou parcialmente os sócios de realizarem as suas entradas, ou aprovem a aquisição de ações próprias não liberadas ou que elegem para os órgãos sociais pessoas em situações de incompatibilidades – o que não se verifica no caso em apreço.
A 1ª parte da alínea d) do artº 56º, do CSC, afecta de nulidade as deliberações dos sócios cujo conteúdo ofende os bons costumes, entendendo-se estes como um conjunto de regras morais e de conduta social, generalizadamente reconhecidas em dado momento, numa sociedade.
Assim, o negócio ofensivo dos bons costumes é, essencialmente, o que tem por objecto actos imorais, que choca com a consciência social, mesmo quando considerada apenas no âmbito mais restrito da ética dos negócios.
Já a 2ª parte da assinalada alínea d) reporta-se a um interesse de ordem pública, respeitante ao conteúdo de deliberações que atentam contra preceitos imperativos e que visam acautelar interesses de terceiros (v.g. arts. 25.º, 26.º, 28.º, 29.º n.º 3, 32.º, 33.º, 218.º e 295 n.º 1); interesses de sócios futuros (salvaguardam os direitos de quem possa vir a adquirir a qualidade de sócio ao longo da vida da sociedade); interesses indisponíveis de quaisquer sócios (art.º 246.º n.º 1); e interesse público stricto sensu (art.º 384.º, in fine).

Como sintetiza o Prof. António Menezes Cordeiro, poder-se-á dizer que a imperatividade das normas verifica-se quando integre a ordem pública, concretize princípios injuntivos e institua ou defenda posições de terceiros (2).
Ora, na situação sub judice não se vislumbra que as concretas deliberações em causa configurem uma conduta passível de nulidade, nos termos do mencionado artº 56º, nº 1, al. d), como pretende a apelante.

Como refere o António Pereira de Almeida, in Sociedades Comerciais – Valores Mobiliários e Mercados, Coimbra Editora, 20º8, 5ª ed. P. 202, “não basta, aliás, que a deliberação ofenda uma disposição imperativa da lei para ficar ferida de nulidade – aqui o regime é a anulabilidade, como vimos – é necessário que essa disposição seja de ordem pública ou que não possa sequer ser afastada, nem sequer, por vontade unânime dos sócios. Estão neste último caso as normas que visam proteger interesses de terceiros, credores e do público em geral”.

Casos de violação de disposições legais relativas à constituição, reforço ou utilização da reserva legal ou as deliberações que liberem total ou parcialmente os sócios de realizarem as suas entradas ou aprovem a aquisição de acções próprias não liberadas ou aprovem a aquisição de acções próprias não liberadas ou que elegem para órgãos sociais pessoas em situações de incompatibilidade.

In casu, sendo certo que, como bem salienta o tribunal a quo, “ os sócios pessoas singulares, inicialmente Réus, ora absolvidos da instância, não podiam votar as duas primeiras deliberações, a primeira relativa à aquisição de quotas suas pertença de sociedade terceira, dado figurarem aí como vendedores e a segunda, à aquisição pela Ré sociedade de quotas que cuja doação a seus filhos acabara de ser autorizada” (“já quanto à deliberação de compra de imóvel aos Réus e aos outros sócios - proprietários ou usufrutuários -, dado que os únicos sócios da sociedade estavam todos eles em situações de igual conflito de interesses com a sociedade, a deliberação não deveria ser impedida, dado que todos eles poderiam votar”), a consequência de os sócios A. J. e M. F. terem votado nas deliberações relativas à aquisição de quotas próprias e de aquisição de quotas a eles pertencentes de sociedade terceira, quando estavam impedidos de votar, é a de nulidade desse acto de voto – artº 251º, do CSC.

E a nulidade de um voto fere de anulabilidade as deliberações tomadas com esse voto, quando este for decisivo para a sua aprovação.
Neste sentido, vide o Acórdão do TRC de 10.2.2009, proc. 9/08.6TBSCD.C1, in dgsi.pt, e, na doutrina, Vasco Lobo Xavier, em Anulação de deliberação social e deliberações conexas, pág. 594-595, da ed. de 1975, da Atlântida Editora e Raul Ventura, Sociedades por Quotas, vol. II, pág. 308, da ed. de 1989, da Almedina, pág. 259-270.
Perfilha-se, pois, a argumentação plasmada na sentença de que “não estamos perante uma violação do conteúdo que caiba nulidade, é uma questão privada e não do interesse público. A melhor solução, no nosso entendimento, é o art.58º/1/a), por violar uma lei imperativa que, no entanto, não caiba no art. 56º. Assim, a deliberação é anulável por vícios de procedimento de formação da maioria,
Também Vasco da Gama Lobo Xavier, in Anulação de Deliberação Social e Deliberações Conexas, Colecção Teses, Almedina, defende que, quando houver de ter lugar, a invalidade da deliberação tomada pelo voto de sócio impedido de votar assumirá a forma de anulabilidade e não de nulidade – cfr. pág. 51, nota 20”.

Em resumo, no caso em análise, tratando-se de deliberações anuláveis, à luz do disposto no artº 58º, nº 1, al. a), do CSC, já se esgotou há muito o prazo para intentar uma eventual acção de anulação de deliberação social, nos termos do artigo 59.º do CSC.

Não procede, pois, a apelação.

IV – Decisão:

Em face do exposto, acordam os Juizes da 1ª Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela apelante.
Guimarães, 24.10.2019

António Sobrinho
Ramos Lopes
Jorge Teixeira


1. Neste sentido: Vasconcelos, Pedro Pais de - A Participação Social nas Sociedades Comerciais. 2ª ed. Coimbra: Edições Almedina, SA, 2006, p. 182 e Almeida, António Pereira de – Sociedades Comerciais – Valores Mobiliários e Mercados. Coimbra: Coimbra Editora, 2011, p. 223
2. Cordeiro, António Menezes – SA: Assembleia Geral e Deliberações Sociais. Coimbra: Edições Almedina, SA, 2009, p. 195