Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4846/16.OT8GMR.G1
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: INVENTÁRIO
NOTARIADO
REMOÇÃO DO CABEÇA DE CASAL
ADMINISTRAÇÃO DA HERANÇA
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I-Tendo a autora sido nomeada e mantida no cargo de cabeça de casal, por decisão proferida no incidente de remoção no processo de inventário, que corre termos no competente cartório notarial, não é legalmente admissível proferir-se decisão contrária sobre essa questão, a qual deve ser definitivamente resolvida naquele processo de inventário.

II- Uma das funções do cabeça de casal consiste precisamente na administração da herança, ou no caso em apreço, dos bens comuns do casal face ao disposto nos arts. 2079.º e 2087.º, n.º 1 do C.Civil, razão pela qual a cabeça de casal, nomeada no processo de inventário, tem legitimidade para, no âmbito dos respectivos poderes de administração ordinária, pedir a condenação das arrendatárias a pagarem-lhe as rendas devidas.”
Decisão Texto Integral:
Sumário

I-Tendo a autora sido nomeada e mantida no cargo de cabeça de casal, por decisão proferida no incidente de remoção no processo de inventário, que corre termos no competente cartório notarial, não é legalmente admissível proferir-se decisão contrária sobre essa questão, a qual deve ser definitivamente resolvida naquele processo de inventário.
II- Uma das funções do cabeça de casal consiste precisamente na administração da herança, ou no caso em apreço, dos bens comuns do casal face ao disposto nos arts. 2079.º e 2087.º, n.º 1 do C.Civil, razão pela qual a cabeça de casal, nomeada no processo de inventário, tem legitimidade para, no âmbito dos respectivos poderes de administração ordinária, pedir a condenação das arrendatárias a pagarem-lhe as rendas devidas.
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Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- RELATÓRIO

Manuela intentou a presente acção declarativa, com processo comum, contra “X Tinturaria Têxtil, Lda.”, pedindo que se reconheça que o prédio de que faz parte o locado constitui património comum do casal formado por José e Maria, pais da Autora, e que esta é cabeça de casal no processo de inventário para separação judicial de bens dos referidos José e Maria, condenando-se a Ré a proceder ao pagamento à A., na qualidade de cabeça de casal, das rendas devidas pelo arrendamento de parte do prédio dado de arrendamento à R.: cave, rés-do-chão e anexo, destinado a armazéns e atividade industrial, situado na Rua …, descrito na CRP sob o nº 2…, onde se encontra registado a favor dos identificados José e Maria, artigo 501 da respetiva matriz, da freguesia de …, do concelho de Guimarães.

Alega, para tanto e em síntese, que após a morte do pai, a 28 de março de 2013, a R. passou a proceder ao pagamento das rendas devidas a Fernanda, filha do falecido José, que se arroga de cabeça de casal da herança deste, quando deveria ser paga à Autora, cabeça de casal no processo de inventário para separação judicial de bens de seus pais, por tal imóvel ser bem comum do casal, ainda não partilhado.
A Ré contestou, alegando que continua a pagar, como antes pagava a Fernanda, que emitia recibo em nome da herança de José, seu senhorio, entretanto falecido, e que se arroga do direito de as continuar a receber. A questão deveria ser resolvida entre as duas partes, sendo a Ré parte ilegítima, ou pelo menos, deveria também ser a outra parte chamada à ação, havendo preterição de litisconsórcio necessário.
Foi determinada a apensação a estes autos de duas ações com o mesmo pedido, dirigido contra duas outras sociedades:

-no apenso A, contra “Y–Confecções Unipessoal, Lda.”, relativo a prédio dado de arrendamento, uma das frações do prédio com cave, rés-do-chão e anexo, destinado a armazéns e atividade industrial, situado na Rua …, descrito na CRP sob o nº …, onde se encontra registado a favor dos identificados José e Maria, artigo … da respetiva matriz, da freguesia de …, do concelho de Guimarães.
Foi apresentada contestação, alegando a Ré que celebrou com o falecido José um contrato de arrendamento da referida fração, tendo, depois da sua morte, celebrado um novo contrato de arrendamento com a filha Fernanda, na qualidade de cabeça de casal, concluindo, nos mesmos termos do primeiro processo.
- no apenso B, contra “M., Lda.”, relativo a uma das frações do prédio dado de arrendamento, com cave, rés-do-chão e anexo, destinado a armazéns e atividade industrial, situado na Rua …, descrito na CRP sob o nº …, onde se encontra registado a favor dos identificados José e Maria, artigo … da respetiva matriz, da freguesia de …, do concelho de Guimarães.
Foi apresentada contestação, impugnando a legitimidade da Autora, alegando que foi requerida a destituição da Autora das funções de cabeça de casal no processo de separação de meações e que, pelos membros do falecido casal, foi acordada uma partilha provisória de rendas e rendimentos de prédios, sendo que as rendas deste prédio foram adjudicadas ao José, recebendo-as agora a sua filha Fernanda, na qualidade de cabeça de casal da sua herança (sendo que a Autora foi aqui deserdada). Pediu a absolvição da Ré e a condenação da Autora como litigante de má-fé.
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Proferiu-se sentença que julgou a presente acção totalmente improcedente, e absolveu as Rés do peticionado.
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Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso, terminando com as seguintes
Conclusões

1.ª_O Tribunal a quo não julgou adequadamente, face às posições das partes nos seus arrazoados e documentos juntos, a primordial questão em discussão nos autos, obrigação das RR./recorridas de pagarem as rendas dos locados que ocupam à cabeça de casal nomeada no processo de Inventário para separação de bens que corre termos no Cartório Notarial do Notário CT sob o n° …, desde o ano de 2015.
2a_A douta sentença deu como provado no ponto 6. que, "Em 2015 foi instaurado no Cartório Notarial do Dr. CT processo de inventário para separação judicial de bens dos pais da A, tendo sido indicada como cabeça de casal a A ... ";
3a_O tribunal a quo não aplicou corretamente o direito à matéria dada como provada, nem fez uma correta apreciação da prova produzida;
4a_Na verdade, dando como provado a matéria dos pontos 1 a 5, com particular relevância para o facto de o Processo de Inventário que correu termos sob o n° 217/1996 no Tribunal de Família e Menores de Braga ter sido declarado extinto por inutilidade superveniente da lide, por sentença proferida a 19 de setembro de 2013, depois de verificado o óbito de ambos os interessados.
5a_À data em que foram instaurados esses autos, 1996, era a forma processualmente correta e legal para se efetivar a partilha dos bens do casal, contudo, a mesma não se chegou a efetivar em virtude de ter sido declarada a inutilidade superveniente da lide.
6a_Ora, é absolutamente irrelevante e ficou sem efeito a adjudicação provisória de determinados bens a cada um dos cônjuges até à partilha, partilha essa que iria ser efetuada nos sobreditos autos mas que, pela constatação da morte de ambos os interessados, respetivamente mãe e pai da A/recorrente, a lide foi julgada extinta.
7a_Voltou-se, assim, ab inicio, passando a haver um património comum do casal, constituído por todos os bens que integram o acervo comum do casal.
8.º_Conforme resulta provado no ponto 6 da matéria dada como provada, "em 2015 foi instaurado no Cartório Notarial do Dr. CT processo de inventário para separação judicial de bens dos pais da A, tendo sido indicada como cabeça de casal a A, tendo sido requerida a destituição da mesma de tais funções".
9.ª_Ora, à data da prolação da douta sentença à quo, é verdade que o tribunal ainda não tinha conhecimento do despacho do Digníssimo Notário quanto ao pedido de deferimento do cabeçalato para a interessada Maria Fernanda, contudo, a Mma Juiz deu como provado na sentença que existiu um "pedido de destituição" de funções de cabeça de casal da recorrente, o que não corresponde à verdade.
10a_Para o caso em análise é indiferente a qualificação atribuída pela Mma Juiz a quo pois, salvo o devido respeito, mesmo aceitando-se que efetivamente estava pendente um pedido de destituição efetuado no Processo de Inventário que corre termos no Cartório Notarial, o que é facto é que, estando designada a A/recorrente como cabeça de casal e não havendo decisão, sempre a A/recorrente manteria essa qualidade até à decisão final do incidente.
11.ª_ Na data em que foi proferida a douta sentença em recurso a única cabeça de casal designada em processo próprio e adequado, o tal que corre desde 2015 no Cartório Notarial do Notário CT era a A/recorrente e continua a ser presentemente após despacho proferido pelo Notário.
12a_Efetivamente, por douto despacho proferido no dia 4 de Julho de 2017, o qual não foi impugnado nem mereceu qualquer reclamação, encontrando-se, por isso, transitado em julgado, o Sr Notário decidiu que a cabeça de casal naquele processo é a A/recorrente.
13a_ A douta sentença em recurso foi notificada à aqui recorrente no dia 6 de Julho de 2017, não tendo sido possível juntar aos autos, em tempo útil antes de ser proferida a sentença sub judice.
14a_À data da prolação da sentença em recurso a A/recorrente era cabeça de casal no Inventário para separação judicial de pessoas e bens, após a prolação do despacho do Sr. Notário que ora se juntou, mantem essa qualidade.
15a-_Só há e sempre houve uma cabeça de casal legalmente designado, a aqui recorrente.
16a_A auto invocada qualidade de cabeça de casal da interessada no Inventário Fernanda não tem qualquer relevância jurídica nem base legal, nem foi junto qualquer documento que o prove tal qualidade.
17a_Havendo cabeça de casal designada em processo de inventário, como há, é essa pessoa que deve desempenhar o cargo e não qualquer outra que o invoque.
18a_Nestes autos, ao contrário do que afirma a Mma Juiz a quo, não há cabeçalato bicéfalo, outrossim uma cabeça de casal designada nos termos da lei e por entidade com poderes para tal, o Notário, no âmbito do processo de Inventário existente.
19a_É cabeça de casal quem é designado por quem tem competência legal para o fazer, in casu, o Notário, por ser a entidade a quem a lei atribui a competência legal para tramitar os Inventários e designar quem exerce o cargo de cabeça de casal.
20a_Preceitua o art° 2079° do CC que a Administração da herança, até à sua liquidação e partilha, pertence ao cabeça de casal;
21a_E, nos termos do n° 1 do art° 2087° do CC, o cabeça de casal administra os bens próprios do falecido e, tendo este sido casado em regime de comunhão, os bens comuns do casal;
22a_Incumbe, por isso, à A./recorrente, enquanto cabeça de casal, a administração dos bens comuns de seus pais, a inventariada Maria e o inventariado José, ainda que, tenha sido deserdada pelo seu pai.
23a_O cabeça de casal pode pedir aos herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder, e usar contra eles as ações possessórias a fim de ser mantido na posse das coisas sujeitas à sua gestão ou a ela restituído, conforme preceitua o n° 1 do art° 2088° do CC;
24a_Na sentença em apreço resultou provado, no ponto 10 que as RR./recorridas, depois da morte de José passaram a pagar as rendas que pagavam a este, à Fernanda, mesmo depois de interpeladas pela A/recorrente para o fazerem a si na invocada qualidade de cabeça de casal.
25a_Ora, a menos que as RR. tenham algum interesse dissimulado, não se compreende nem aceita que não paguem as rendas a quem é real, legal e efetivamente cabeça de casal do património comum a partilhar.
26a_Mesmo que o tenham, sempre terão que seguir os cânones legais e pagar as rendas não a quem querem mas sim a quem nos termos da lei tem direito a recebê-las.
27a_A douta sentença a quo fez incorreta apreciação da prova documental produzida nos autos, ao dar como provado no ponto 9 e o final do ponto 6. a partir de "tendo sido requerida a destituição da mesma de tais funções".
28a_A A/recorrente intentou as presentes ações declarativas de condenação, pedindo o reconhecimento (a) de que os locados se integram em prédio que constituí património comum dos pais da A/recorrente, (b) que a A é cabeça de casal no processo de inventário para separação dos bens comuns dos seus pais e, (c) nessa qualidade, que as RR./recorridas lhe passassem a pagar as rendas para o IBAN indicado.
29a_Ora, por via dos documentos juntos aos autos, certidão da indicação de cabeça de casal no processo de Inventário n° 540/15 e admitido em todas as contestações que ocupam os locados situados em prédio pertença do património comum do dissolvido casal, outra solução jurídica não poderia ter sido alcançada que não a condenação das RR/recorridas nos pedidos formulados.
30a_Salvo o devido respeito e melhor opinião contrária, a Mma Sra Juiz não fez correta aplicação do direito aos factos dados como provados e deu como provados factos que não resultam dos documentos juntos.
31.ª_O direito invocado pela A./recorrente emerge de diploma legal, concretamente da Lei 23/2013 de 5 de Março e o invocado pela tal Fernanda e considerado pela Mma Juiz a quo não tem emergência estabelecida, ou seja, provem do NADA!
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A Ré “X Tinturaria Têxtil, Lda.” contra-alegou e subsidiariamente, ampliou o objecto do recurso, formulando as seguintes conclusões:

PRIMEIRA: A recorrente fundamenta o recurso em dois argumentos:

a) O acordo provisório alcançado em sede do processo de inventário n.º 217/96 entre a autora e o respetivo cabeça de casal José, é irrelevante, uma vez que o processo foi extinto, por inutilidade superveniente da lide, fundada na morte de ambos os interessados;
b) Não há cabecelato bicéfalo, sendo que a recorrente é única cabeça de casal do processo de inventário instaurado no Cartório Notarial do Dr. CT, em 2015, para separação judicial de bens dos pais da recorrente. Por outro lado, apesar de ter sido requerida destituição da mesma de tais funções, sempre manteria essa qualidade até à decisão final do incidente, bem como, para além do mais, foi proferido despacho, a 4 de Julho de 2017, a indeferir o requerimento de destituição [documento junto com o recurso].
SEGUNDA: Entre a autora e o falecido José, no processo de inventário n.º 217/96, foi celebrada transação nos termos da qual foram adjudicadas, «a título provisório e até à partilha definitiva» as rendas correspondentes ao património a partilhar, em termos que as rendas agora reivindicadas pela recorrente foram adjudicadas ao falecido José.
TERCEIRA: Salvo melhor opinião, tal transação é válida até à verificação da condição resolutiva que lhe foi aposta, isto é, a realização da «partilha definitiva».
QUARTA: Mesmo após o óbito de José e da extinção do Proc. de Inventário n.º 217/96, a própria autora continuou - e continua - a respeitar tal transação, como resulta do facto de receber, em nome próprio, as rendas de uma das frações arrendadas à ré Y, Lda.
QUINTA: As frações que compõem o imóvel arrendado pertencem, neste momento, em comunhão e sem determinação de parte ou direito, a duas heranças indivisas: a aberta por óbito da Sr.ª Maria que tem como cabeça de casal a autora, e a aberta por óbito do Sr.º José que tem como cabeça de casal a Fernanda. Assim, para efeito de recebimento de rendas, é irrelevante o facto de autora ter sido nomeada cabeça de casal no inventário para partilha de bens entre os cônjuges entretanto falecidos.
SEXTA: Tendo em conta que a autora foi deserdada, da herança aberta por óbito de José, na sequência de declaração de indignidade, seria atentatório dos mais elementares princípios jurídicos de certeza e de confiança, admitir a possibilidade de um herdeiro declarado indigno administrar os bens do autor da sucessão.

AMPLIAÇÃO DO OBJETO DE RECURSO

SÉTIMA: Na hipótese de proceder a apelação da autora no que respeita ao pagamento das rendas, assiste à recorrida o direito de solicitar a ampliação do recurso, pedindo que o Tribunal ad quem conheça a invocada ilegitimidade e, subsidiariamente, da preterição de litisconsórcio necessário.
OITAVA: A ré é parte ilegítima por não ter interesse direto em contradizer a pretensão (cf. n.º 1, do artigo 30.º, do Código de Processo Civil), pois que nenhum prejuízo tem em pagar a renda a uma pessoa em lugar de outra (cf. n.º 2, do artigo 30.º, do Código de Processo Civil). Quem tem interesse direto em contradizer a pretensão da autora não é a ré, mas sim, antes a referida D. Fernanda, que, na procedência da pretensão da autora, deixará de receber as rendas.

SEM PRESCINDIR, NA HIPÓTESE DE ASSIM NÃO SE ENTENDER:

NONA: Atento o disposto no n.º 3, do art.º 33.º do C.P.C. «a decisão produz o seu efeito útil normal sempre que,não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado."
DÉCIMA: Resulta dos autos que existem duas pessoas que se arrogam do direito de receber rendas de um património indiviso. Estando nos presentes autos apenas uma dessas pessoas, nada impede que a outra venha, posteriormente, a intentar uma nova ação contra a recorrida, reclamando, também o direito de receber as mesmas rendas. Assim, uma eventual decisão que seja proferida nos presentes autos, a condenar a ré a pagar as rendas à autora nunca irá regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.

Nestes termos e nos demais de direito, que V:s Ex:s Senhores Juízes Desembargadores se dignarão suprir, deve ser negado provimento à apelação interposta, mantendo-se a decisão recorrida, ou, subsidiariamente, na eventual procedência da mesma, deve ser conhecida a ampliação do objeto de recurso formulado pela recorrida, e nestes termos:

1. ser julgada procedente a exceção da ilegitimidade da ré, por falta de interesse em contradizer a pretensão da autora, e as ré ser absolvida da instância, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 576.º, do Código de Processo Civil;
2. ou, caso assim não se entenda, ser julgada procedente a exceção da preterição do litisconsórcio necessário, e a ré absolvida da instância, nos termos do disposto no n.º 2, do artigo 576.º, do Código de Processo Civil.
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A Ré “M. Estamparia e Acabamentos, Lda.” apresentou contra-alegações, suscitando, além do mais, a questão de não admissão do recurso sobre a matéria de facto, por não se mostrarem cumpridos os pressupostos indispensáveis que o artigo 640° do C.P.C.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II—Delimitação do Objecto do Recurso

As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes :

-Da alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto;
-Da qualidade de cabeça-de-casal;
-Da ilegitimidade da Ré;
-Do litisconsórcio passivo.
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-Da modificabilidade da decisão de facto, admissibilidade do recurso, nesta parte, e do documento junto pela Recorrente
Nos termos do artº. 662º. do Código de Processo Civil a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. (negrito nosso)
Quando seja impugnada a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

-os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (al.a));
-os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (al.b))
-e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al.c))—v. art. 640.º, n.º 1 do C.P.Civil.
Discorda a Recorrente da decisão que julgou demonstrada, nos pontos 6 e 9, que foi requerido, no processo de inventário, a destituição da Autora do cargo de cabeça de casal, por não estar em conformidade com os documentos juntos.
O recurso, nesta parte, deve ser admitido uma vez que a Recorrente concretizou a factualidade que entende que foi incorrectamente julgada, indicando a documentação dos autos, ou seja, a certidão extraída do processo de inventário.
Igualmente deve ser admitido o documento, junto agora nesta fase de recurso, referente à decisão proferida pelo Exmo. Notário sobre o pedido de deferimento do cabeçalato à interessada Fernanda, face ao preceituado nos artigos 423.º, n.º 3 e 425.º do C.P.Civil.
Neste particular, este Tribunal solicitou certidão do processo de inventário n.º 540/15 que corre termos no Cartório Notarial de CT, em Guimarães.
No apenso B) foi junto o documento 2 pela Ré “M.-Estamparia e Acabamentos, Lda.”, com a contestação, que consiste no requerimento apresentado, em 18/05/2016, no processo de inventário n.º 540/15, pelos interessados Fernanda, Joaquina e Miguel, requerendo que o cabeçalato fosse deferido a Fernanda.
Da consulta da certidão relativa ao processo de inventário, resulta que sobre este pedido foi proferida decisão, pelo Exmo. Notário, em 04 de Julho de 2017, no sentido de manter a interessada Manuela, aqui Autora, no exercício das funções de cabeça de casal, por ser a herdeira mais velha e ter sido ultrapassado o prazo legal que os interessados dispunham para impugnarem a competência da cabeça de casal nomeada.

Assim sendo, impõe-se manter a factualidade dada como demonstrada e acrescentar aquela decisão, por ter interesse para a decisão da causa.
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III- FUNDAMENTAÇÃO
FACTOS

1. A Autora está registada como filha única nascida do casamento em primeiras e únicas núpcias entre José e Maria, casados no regime da comunhão geral de bens.
2. A mãe da Autora faleceu no dia 6 de Julho de 1995, sendo a Autora única e universal herdeira.
3. O pai da Autora faleceu, no estado de viúvo de Maria, no dia 28 de março de 2013, sendo seus herdeiros: quatro filhos, Fernanda, Joaquina, Miguel e Marina, e dois netos em representação da Autora, filha deserdada na sequência de declaração de indignidade.
4. Os pais da Autora encontravam-se separados judicialmente de pessoas e bens, por sentença transitada em julgado em 9 de Julho de 1990.
5. Foi instaurado processo de inventário subsequente a separação judicial de bens, que correu termos no processo n.º 217/1996 do Tribunal de Família e Menores de Braga, que tinha como cabeça de casal José, e que foi extinto por inutilidade superveniente da lide, depois de verificado o óbito de ambos os interessados, por sentença proferida a 19 de setembro de 2013.
6. Em 2015 foi instaurado no Cartório Notarial do Dr. CT processo de inventário para separação judicial de bens dos pais da Autora, tendo sido indicada como cabeça de casal a Autora, tendo sido requerida a destituição da mesma de tais funções.
7. O prédio urbano inscrito na matriz sob o artigo …, da freguesia de …, do concelho de Guimarães, composto por cave, rés-do-chão e anexo, destinado a armazéns e atividade industrial, situado na Rua …, descrito na CRP sob o nº …, encontra-se registado a favor dos identificados José e Maria, através da ap. 18 de 1980/01/02 e inscrito nas Finanças em nome de Cabeça de Casal da Herança de José.
8. Este edifício está dividido em frações, sendo as aqui Rés arrendatárias de partes independentes, e cuja renda vinha sendo paga ao referido José:

- a Ré X, Lda. desde, pelo menos, 1997;
- a Ré Y, Lda. desde, pelo menos, 1984, tendo em 2014, aquando de constituição de sociedade com outra denominação, sido celebrado um contrato de arrendamento com Fernanda na qualidade de cabeça de casal da herança; esta Ré tem outra fração arrendada à aqui Autora (já desde 2006 e com novo contrato em 2014);
- a Ré M., Lda., desde data não concretamente apurada.
9. No referido processo de inventário n.º 217/96, já pela aqui autora e pelo cabeça de casal, José, foi acordada a adjudicação, com efeitos a partir de 1 de agosto de 1998, de parte dos bens e rendimentos, devidamente homologada, nomeadamente, e para o que aqui interessa nos seguintes termos: “À interessada Manuela (…) são adjudicadas a título provisório e até à partilha definitiva, as rendas correspondentes aos imóveis que integram o património a partilhar e que se encontram descritas sob a verba n.º 4 da descrição de bens (e de que é atual arrendatária a sociedade F., Lda.), e sob as verbas n.os 11, 12 e parte da 7 (e de que é arrendatária a sociedade CG., Lda.), (…) Ao interessado José são adjudicados, a título provisório e até à partilha definitiva, todas as demais rendas geradas pelos restantes imóveis (…).”, nos termos da certidão junta e que aqui se dá como reproduzida.
10. Após a morte do pai da Autora, as Rés passaram a proceder ao pagamento das rendas antes pagas ao falecido José, a Fernanda, na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de seu pai e assim continuaram, mesmo depois de interpeladas pela Autora.
11.Em 20 de Fevereiro de 2015, a Recorrente foi nomeada cabeça de casal do referido inventário, tendo prestado compromisso de honra e declarações em 11 de Março de 2015, não tendo sido impugnada a competência da cabeça de casal no prazo legal.
12.Nos referidos autos de processo de inventário os interessados Fernanda, Joaquina e Miguel requereram, em 18/05/2016, ao notário que deferisse o cargo de cabeça de casal à interessada Fernanda.
13.Sobre esse pedido foi proferida decisão pelo Notário, em 04 de Julho de 2017, no sentido de manter a interessada Manuela no exercício das funções de cabeça de casal, por ser a herdeira mais velha e ter sido ultrapassado o prazo legal que os interessados dispunham para impugnarem a competência da cabeça de casal nomeada.
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IV- DIREITO

A questão suscitada no recurso consiste em saber se a Autora detém a qualidade de cabeça-de casal, da qual depende a necessária legitimidade para pedir a condenação das Rés no pagamento das rendas devidas pelos arrendamentos dos prédios que constituem o património comum dos falecidos pais.

A Autora alegou que, após a morte do pai, a 28 de março de 2013, as Rés passaram a pagar as rendas devidas a Fernanda, filha do falecido José, que se arroga de cabeça de casal da herança deste, quando deveriam ser entregues à Autora, cabeça de casal no processo de inventário para separação judicial de bens de seus pais, uma vez que os arrendados fazem parte do património comum de seus pais, ainda não partilhado.

A primeira nota que podemos salientar, em face da alegação da Autora, comprovada pela documentação junta aos autos, é que a presente acção foi interposta na pendência de um processo de inventário, que corre termos no cartório notarial, no âmbito do qual foi nomeada para exercer o cargo de cabeça de casal.

Com fundamento na sua nomeação para exercer essas funções, insurge-se a Autora pelo facto de as rendas dos prédios que constituem património comum dos pais, falecidos, estarem a ser pagas pelas arrendatárias a outra herdeira, Fernanda, que se arroga cabeça de casal da herança.

O regime jurídico do processo de inventário, com a entrada em vigor da Lei n.º 23/2013 de 5 de Março, passou a ser da competência dos cartórios notariais sediados no município do lugar da abertura da sucessão (cfr. arts. 1.º e 3.º).

Ao notário, nos termos do n.º 4 do citado artigo 3.º, compete dirigir todas as diligências do processo de inventário, sem prejuízo dos casos em que os interessados são remetidos para os meios comuns.
Assim, o notário deve, para além de outros actos, nomear o cabeça de casal e decidir os incidentes relativos à sua substituição, escusa ou remoção (art. 22.º).

Para designar o cabeça de casal, o notário pode colher as informações necessárias e se, pelas declarações da pessoa designada, verificar que o encargo compete a outrem, defere-o a quem couber (cfr. art. 22.º, n.º 1).
Em 2015 foi instaurado, no Cartório Notarial do Dr. CT, processo de inventário para separação judicial de bens dos pais da Autora, já ambos falecidos.

Em 20 de Fevereiro de 2015, a Recorrente foi nomeada cabeça de casal do referido inventário, tendo prestado compromisso de honra e declarações em 11 de Março de 2015, não tendo sido impugnada a competência da cabeça de casal, no prazo legal.

Segundo o disposto no art. 17.º, n.º 1 do RJPI consideram-se definitivamente resolvidas as questões que, no inventário, sejam decididas no confronto do cabeça de casal ou dos demais interessados desde que tenham sido regularmente admitidos a intervir no procedimento que precede a decisão, salvo se for expressamente ressalvado o direito às acções competentes.
Apesar dos termos da lei (definitivamente) indiciarem que a decisão notarial, proferida no confronto entre os interessados, tem efeito de caso julgado formal, Tomé Ramião (1) esclarece que terá de admitir-se a sua reapreciação pelo juiz da comarca competente, pela via da impugnação da decisão, no prazo geral de 30 dias, contados da data da sua notificação, nos termos do art. 638.º/1 do Cód.Proc.Civil, ex vi art.º 82.º. E que só depois de esgotado esse prazo ou decidida definitivamente a questão pelo juiz, pela via recursiva, podemos falar do caso julgado.
Acresce que a discussão da questão em acção judicial, anteriormente resolvida no processo de inventário, só será admissível se for salvaguardado o direito às acções competentes nos termos da parte final do n.º 1 do art.º 17.º.
Não obstante não ter sido impugnada a nomeação da Autora como cabeça de casal, no prazo legal, os interessados Fernanda, Joaquina e Miguel requereram ao Notário que deferisse o cargo de cabeça de casal à interessada Fernanda.
Sendo impugnada a legitimidade do cabeça-de-casal, ou requerida a escusa ou a remoção deste, prossegue o inventário com o cabeça de casal designado até ser decidido o incidente (cfr. art. 22.º, n.º 4).

Por conseguinte, estando em causa no presente processo judicial saber se a Autora detém a qualidade de cabeça de casal, e perante a pendência do processo de inventário, cumpria averiguar se essa questão já tinha sido aí definitivamente resolvida.

Trata-se de uma questão que deve ser decidida no processo de inventário pendente, desde que não seja ressalvado, como não foi, o direito à acção competente.

Sobre esse pedido foi proferida decisão pelo Exmo. Notário, em 04 de Julho de 2017, no sentido de manter a interessada, Manuela, aqui Autora, no exercício das funções de cabeça de casal, por ser a herdeira mais velha e ter sido ultrapassado o prazo legal que os interessados dispunham para impugnarem a competência da cabeça de casal nomeada.

Tendo a Autora sido nomeada e mantida no cargo de cabeça de casal, por decisão proferida no suscitado incidente de remoção no processo de inventário, onde foram relacionados os imóveis arrendados às Rés, não é legalmente admissível proferir-se decisão contrária sobre essa questão, que deve ser definitivamente resolvida na sede própria, pese embora ainda pudesse ser impugnada, com o recurso final por se tratar de decisão interlocutória (cfr. 644.º, n.º 3 e 4 do CPCivil ex vi art. 82.º do RJPI.

No entanto, no caso em apreço, os interessados, como referiu o Exmo. Notário, não deduziram, no prazo de 20 dias, incidente de impugnação da competência do cabeça de casal, nos termos do artigo 30.º do RJPI, pelo que, uma decisão contrária, no presente processo, violava o caso julgado sobre essa questão, que se deve considerar definitivamente resolvida.
Uma das funções do cabeça de casal consiste precisamente na administração da herança, ou no caso em apreço, dos bens comuns do casal, face ao disposto nos arts. 2079.º e 2087.º, n.º 1 do C.Civil.
Clovis Bevilaqua, citado por Lopes Cardoso (2), escreveu que em Código Civil Comentado, vol. VI-22 : “como administrador da herança o cabeça-de-casal ou inventariante dirige o inventário, percebe os frutos e rendimentos dos bens comuns, satisfaz os encargos ordinários, cobra e paga dívidas, aliena as coisas destinadas à alienação.”
Por estar devidamente comprovada a qualidade de cabeça de casal, assiste à Autora, em conformidade com os poderes de administração ordinária que lhe competem, como sucede com a possibilidade de celebrar arrendamentos (cfr. art. 1024.º, n.º 1 do CC) e consequentemente, receber as respectivas rendas dos novos contratos ou daqueles que estão em vigor, o direito de exigir dos arrendatários as rendas a que estão vinculados a pagar.
A tal não obsta que o contrato de arrendamento tenha sido celebrado por outra interessada que, à data, entendia que lhe competia esse encargo.
Como refere Oliveira Ascensão (3) “o exercício das funções de cabeça-de-casal não é pessoal”. Ou seja, ocorre uma mera substituição da pessoa que exerce as funções de cabeça-de-casal, não se justificando a declaração de caducidade do contrato de locação (cfr. art. 1051.º, al.c) do CC) por ser prejudicial à arrendatária e ainda se manter a situação do cabeçalato, embora exercido por outro herdeiro.

Relativamente ao acordo provisório de adjudicação de bens e de rendas alcançado no processo de inventário n.º 217/96, pela aqui Autora e pelo cabeça-de-casal, José, seu pai, até à partilha definitiva, o mesmo foi extinto, por inutilidade superveniente da lide, depois de verificado o óbito de ambos os interessados, pai e mãe da Autora, por sentença proferida a 19 de setembro de 2013, razão pela qual tal acordo ficou sem efeito.

Em suma, mostrando-se comprovado o exercício do cargo de cabeça de casal pela Autora, assiste-lhe, no âmbito dos respectivos poderes de administração ordinária, receber as rendas dos prédios que constituem o património comum dos falecidos pais.
A Ré “X Tinturaria Têxtil, Lda.” arguiu a sua ilegitimidade pois afirma não ter nenhum prejuízo em pagar a renda a uma pessoa em lugar de outra.
O réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, o qual se exprime pelo prejuízo que lhe advenha da procedência da utilidade pretendida pelo autor (cfr. art. 30.º, n.º 1 e 2 do CPCivil).
Na falta de indicação da lei em contrário, o n.º 3 do mencionado art. 30.º, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Ora, tendo a Autora alegado que, apesar de interpeladas para lhe passarem a pagar as rendas, por ter sido nomeada cabeça-de-casal, as Rés não cumpriram, continuando a entregar essas quantias à interessada Fernanda, é manifesto que são partes legítimas, atendendo à relação controvertida configurada pela Autora.

Finalmente, a Ré é de opinião que estamos perante um caso em que se exige litisconsórcio necessário passivo por forma a que a decisão a proferir sobre a quem compete exercer o cabeçalato produza o seu efeito útil normal.
Consideramos que esta questão ficou prejudicada com as explicações acima aduzidas sobre a sede própria onde deverá ser definitivamente resolvida a questão do cabeçalato, como foi, e no confronto entre os interessados intervenientes no processo de inventário.

Concluindo, o recurso da Autora deverá ser julgado procedente, e em consequência, serem as Rés condenadas a pagar-lhe as rendas, improcedendo o recurso ampliado da Ré.
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V- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso da Autora, e improcedente o recurso da Ré “X Tinturaria Têxtil, Lda.”, e em consequência, revogam a sentença, condenando as Rés a procederem ao pagamento à Autora, na qualidade de cabeça de casal, as rendas devidas pelo arrendamento dos prédios identificados nos autos.
Custas, em ambas as instâncias, pelas Recorridas.
Notifique e registe.
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Guimarães, 22 de Fevereiro de 2018


(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)
(Fernando Fernandes Freitas)
Alexandra Rolim Mendes)


1. O Novo Regime do Processo de Inventário, 2.ª edição, Quid Juris, pág. 67.
2. Partilhas Judiciais, vol. I, 6.ª edição, pág. 478, nota 1317.
3. Direito Civil, Sucessões, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 491.