Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1749/19.0T8BCL.G1
Relator: ALDA MARTINS
Descritores: REPRESENTAÇÃO DA SOCIEDADE COMERCIAL
REPRESENTAÇÃO AD LITEM
CONFLITO DE INTERESSES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Sumário (elaborado pela Relatora):

I. Tal como a nomeação de representante ad litem de sociedade ré pode ser necessária apenas numa fase ulterior do processo por falta superveniente do respectivo representante (por morte, cessação de funções, etc.), o mesmo pode suceder por motivo de conflito de interesses entre a ré e o seu representante que só supervenientemente se evidencie, não resultando da letra ou espírito do n.º 2 do art. 25 do Código de Processo Civil qualquer distinção a fazer.
II. Tratando-se dum conflito de interesses atinente à relação processual, o mesmo verifica-se quando, relativamente ao exercício dos direitos e faculdades conferidos pela lei adjectiva a quem no processo ocupa a posição de réu, o representante assume uma posição oposta à prossecução do «interesse directo em contradizer», expresso pelo prejuízo que advenha da procedência da acção, nos dizeres utilizados no art. 30.º do Código de Processo Civil a propósito da «legitimidade».
III. Aquele art. 25.º, n.º 2 visa assegurar a representação em juízo de sociedade ré através de representante especial quando e enquanto aquela não tem quem a represente, ou quando e enquanto ocorra conflito de interesses entre a ré e o seu representante, pelo que a actividade do juiz com vista a providenciar pelo suprimento da falta do pressuposto processual em causa é prejudicial relativamente à tramitação processual que depende necessariamente da sua conclusão, designadamente o exercício dos direitos e faculdades processuais que assistiam à sociedade ré no momento em que ocorreu a falta de representante ou o conflito de interesses entre a ré e o seu representante.

Alda Martins
Decisão Texto Integral:
1. Relatório

M. M. intentou acção declarativa de condenação, com processo comum, contra IRMÃOS M., LDA., alegando a existência de um contrato de trabalho verbal sem termo celebrado com a R. e pedindo a condenação desta a pagar-lhe retribuições em falta relativas aos meses de Março a Julho de 2019, no montante total de € 4.670,20, bem como, em sede de articulado superveniente, a quantia global de € 8.169,81 a título de retribuições de Agosto a Novembro de 2019, indemnização por resolução com justa causa, compensação por formação profissional não prestada e férias e subsídios de férias e de Natal proporcionais ao trabalho prestado.
Em 9/09/2019, F. M. apresentou requerimento nos autos, dizendo, em síntese, que ele e o seu irmão M. F. são os únicos sócios e gerentes da R., a qual se obriga com a intervenção conjunta de ambos, e que o requerente pretende que a R. conteste a acção mas o seu irmão não se mostra disponível para o efeito, nem para outorgar a necessária procuração a advogado, pelo facto de a A. ser sua filha.

Ainda em 9/09/2019, realizou-se audiência de partes, com a presença da A., da sua advogada e dos identificados sócios-gerentes da R., ficando a constar da respectiva acta, além do mais:
«De seguida, foi pedida a palavra pelos Legais Representantes da Ré e, sendo-lhe concedida pela Mm.ª Juíza de Direito, no seu uso disse: A Ré não se concilia com a Autora pelos motivos que melhor explicitará em sede de contestação.
*
Após, pela Mm.ª Juíza de Direito foi proferido o seguinte:
DESPACHO
Atenta a não conciliação das partes, ordeno a notificação da Ré para contestar a presente ação, querendo, no prazo de 10 dias, sob pena de se considerarem confessados os factos articulados pela Autora e ser logo proferida sentença a julgar a causa conforme for de direito (art.º 57.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).»
Em 19/09/2019, foi apresentado requerimento em nome da R. e de F. M., em que, além do mais, é deduzido incidente de nomeação de representante ad litem da R., ao abrigo do art. 25.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, requerendo-se a nomeação de terceira pessoa, alheia à referida sociedade, e alegando-se, em síntese: que a gerência desta pertence aos seus dois únicos sócios (M. F. e F. M.), sendo indispensável, para obrigar a sociedade, a assinatura dos dois; que estes se encontram incompatibilizados, não estando de acordo, nem quanto ao propósito de se oporem à acção, nem quanto à constituição de mandatário forense, impossível se tornando, por força disso, que a sociedade constitua mandatário e apresente a sua defesa, como é desejo do sócio-gerente requerente; que a A. é filha do sócio-gerente M. F., estando em causa nestes autos um contrato de trabalho alegadamente celebrado com a sociedade R..
A tal requerimento foram juntas duas procurações a favor do advogado subscritor do mesmo, uma outorgada por F. M. e outra por F. M. na qualidade de sócio-gerente da R..
Notificado para exercer o contraditório e para, querendo, indicar pessoa idónea para o cargo de representante especial da R., o requerido M. F. veio deduzir oposição, alegando, em síntese: que não deu o seu aval na constituição de mandatário em representação da R., nem diligenciou por apresentar contestação, a fim de a R. não ser condenada em custas ou como litigante de má-fé; que não reconhece qualquer mandato ao pretenso mandatário da R. para contestar a acção, devendo esta ser julgada procedente por falta de contestação dos factos alegados pela A., que o oponente reputa como verdadeiros.
Foi ainda o requerido M. F. notificado para exercer o contraditório quanto à única pessoa indicada nos autos pelo requerente F. M. para exercer o cargo de representante especial da R., opondo-se aquele a tal nomeação, alegando que a pessoa indicada não é idónea nem imparcial por ter sido indicada como testemunha do sócio requerente, no requerimento por este apresentado.
Por seu turno, a pessoa indicada nos autos pelo requerente não invocou qualquer impedimento para o exercício do cargo.
Foi junta certidão comprovativa de que M. F. e F. M. são sócios e gerentes da R. IRMÃOS M., Lda., obrigando-se a sociedade mediante a assinatura conjunta dos dois gerentes (documento de fls. 31-33).
Foi junta certidão comprovativa de que a A. M. M. é filha do gerente M. F. (documento de fls. 35).

Seguidamente, em 2/12/2019, foi proferido despacho que terminou com o seguinte dispositivo:
«Por tudo o exposto, na procedência do incidente, julga-se verificada a irregularidade da representação em juízo da sociedade IRMÃOS M., Lda e verificada a existência de uma situação de conflito de interesses, na presente lide, entre a ré sociedade e o seu gerente M. F., pelo que, ao abrigo das disposições conjugadas dos artºs 25º, nº 2 e 1054º do Código de Processo Civil e artº 1º, nº 2, al. a) do CPT, nomeio J. S. como representante especial da sociedade IRMÃOS M., Lda, para assegurar a representação da referida sociedade em juízo, na presente acção e eventuais apensos.
Custas do incidente a cargo do requerido M. F. (artº 539º, 1 do CPC)»

O requerido M. F., inconformado, veio interpor recurso do despacho, formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«1. Diz-nos o artigo 631º CPC, subsidiariamente aplicável que “As pessoas direta e efetivamente prejudicadas pela decisão podem recorrer dela, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias”. Sendo o requerido parte principal do incidente, terá como tal legitimidade e interesse em recorrer da decisão proferida.
2. Por outro lado e quanto ao valor da causa, com o articulado superveniente apresentado pela A. antes da decisão do presente incidente, foi ampliado o pedido inicialmente formulado. O que determinou um valor de acção superior, e portanto acresceu em €8.116,81 (oito mil, cento e dezasseis euros e oitenta e um cêntimos), valor esse para o qual já foi pela autora paga a taxa de justiça complementar. Atendendo ser o valor da ação € 12.787,01 (doze mil, setecentos e oitenta e sete euros e um cêntimos), deverá ser esse o valor do incidente.
3. Vem o presente recurso interposto da decisão que julga verificada a irregularidade da representação em juízo da sociedade IRMÃOS M., Lda e a existência de uma situação de conflito de interesses entre a ré sociedade e o seu gerente M. F. nomeando representante em juízo.
4. Ora, no dia 09 de Setembro de 2019 houve audiência de partes, na qual não foi levantada a qualquer objeção quanto à representação da sociedade, não obstante estarem presentes ambos os sócios.
5. Assim, e antes do incidente que se recorre, existiram actos no processo pelos sócios gerentes que foram tidos como válidos.
6.Ora, se por um lado se entende que o incidente é intempestivo e que a sociedade já foi representada em ato anterior ao incidente, por outro entendemos que nos presentes não há fundamento legal para representação ad litem.
7.Conforme acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Julho de 2016 “O mecanismo da representação, previsto no artigo 25 CPC, só será de aplicar em caso de verificação de uma de duas situações: i) a sociedade não tenha quem a represente; ii) ocorrendo conflito de interesses entre a sociedade e o seu representante, que se pretende demandar ou é demandante.”, não estando nós perante qualquer uma dessas situações fáticas.
8. O artigo 25º do código de processo civil terá quer ser avaliado casuisticamente, e sempre em respeito pelas regras do código das sociedades comerciais.
9. Para tanto, e antes do presente incidente, seria necessário designar desde logo uma assembleia geral entre os sócios, deliberando-se, nomeadamente mandatário para a Ré.
10. Ultrapassando e atropelando o estatuído no artigo 189º do código das sociedades Comerciais, o requerente compareceu em diligência, enviou diversos requerimentos ao processo e levanta o incidente sem sequer marcar assembleia geral.
11. Por outro lado, diz-nos o artigo 192º do CSC “A sociedade não pode impugnar negócios celebrados em seu nome, mas com falta de poderes, pelos gerentes, no caso de tais negócios terem sido confirmados, expressa ou tacitamente, por deliberação unânime dos sócios.”, não permitindo ser invocada a falta de representação quando a sociedade já foi representada em acto anterior por ambos os sócios gerentes.
12. Por último, não podemos deixar de destacar que prevê o 251º do código das sociedades comerciais casos em que a lei determina haver conflito de interesses, não sendo subsumível ao alegado conflito existente.
13. Assim a sociedade Ré continua ativa e diariamente firma negócios, não se levantando falta de representação.
14. Termos pelos quais, deverá ser revogada a sentença que nomeia representante especial à Ré.
15. Quanto à condenação do recorrente em custas diz-nos ao artigo 539º do código do processo civil que “1 - A taxa de justiça dos procedimentos cautelares e dos incidentes é paga pelo requerente e, havendo oposição, pelo requerido.”
16. Ora, o presente incidente teve início com requerimento do requerente F. M..
17. O legislador no artigo 539º do CPC usou propositadamente a conjunção simples coordenativa “e” em detrimento da conjunção simples coordenativa alternativa “ou” querendo por assim dizer que as custas ou ficariam a cargo do requerente ou de requerente e requerido mas nunca e apenas do requerido.
18. Assim, e havendo oposição, não se entendendo que as custas serão pela parte que teve impulso processual, sempre teriam que ser a meias.
19. Termos pelos quais, e também nessa parte deverá a sentença revogada e substituída por decisão que condene o requerente por custas, ou assim não se entendendo, hipótese que se coloca de forma meramente académica, deverão ser requerente e requerido condenados em partes iguais.»

Também a A. veio interpor recurso do despacho, formulando as seguintes conclusões:
«1. É a recorrente nos termos do artigo 631º do CPC parte legítima uma vez que fica prejudicada com a decisão que determina que após trânsito deverá ser o representante da Ré notificado para contestar.
2. Por outro lado, e tendo em conta o articulado superveniente junto aos autos, deverá ser o valor da acção de 12.787,01 (doze mil, setecentos e oitenta e sete euros e um cêntimos), sendo esse também o valor do incidente.
3. No dia 09 de Setembro de 2019 houve audiência de partes, na qual não foi levantada qualquer objeção quanto à representação da sociedade estando a recorrida representada por ambos os sócios.
4. Nos termos do artigo 192º do código das sociedades comerciais, “A sociedade não pode impugnar negócios celebrados em seu nome, mas com falta de poderes, pelos gerentes, no caso de tais negócios terem sido confirmados, expressa ou tacitamente, por deliberação unânime dos sócios.”
5. Assim, entende-se que não poderá invocar falta de representação já tendo havido diligência válida anterior em que os dois sócios se encontram presentes.
6. O código das sociedades comerciais especifica no que tange à sociedade por quotas os casos em que se entende haver conflito de interesses, nomeadamente para regular o direito a voto no seu artigo 251º. Nenhuma das situações é a que ora se coloca.
7. Por outro lado, e conforme referido, foi a Ré, devidamente representada, notificada para contestar em dez dias dia 09 de Setembro de 2019.
8. No dia 30 de Setembro, já decorrido prazo para contestação, declarou-se a instância suspensa pelo período de vinte dias.
9. Sucede que, na data em que foi suspensa a instância, já há muito havia passado o prazo de contestação.
10. A suspensão de instância não tem efeito retroativo, nem tal efeito foi determinado no despacho.
11. Pelo que, salvo o devido e merecido respeito não há fundamento legal que suporte o novo prazo de dez dias para contestação.
12. Diz-nos o artigo 57º do código de processo do trabalho que “ Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se regularmente citado na sua própria pessoa, ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor e é logo proferida sentença a julgar a causa conforme for de direito”.
13. Pelo que deverão ser os factos alegados na petição inicial tidos por confessados.»
O requerente F. M. veio apresentar resposta aos recursos, pugnando pela sua improcedência.
O recurso foi admitido como apelação, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto foi emitido parecer no sentido da improcedência dos recursos.
Vistos os autos pelas Exmas. Adjuntas, cumpre decidir.

2. Objecto dos recursos

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil –, as questões que se colocam a este Tribunal são as seguintes:

1 – suscitada em ambos os recursos: se se verificava irregularidade de representação em juízo da R. que demandava a nomeação de representante especial da mesma;
2 – suscitada no recurso interposto por M. F.: se as custas do incidente deviam ter ficado a cargo deste;
3 – suscitada no recurso interposto pela A.: se devia ter sido concedido à R. um novo prazo para contestar a acção.

3. Fundamentação de facto

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do Relatório supra.

4. Apreciação dos recursos

Estabelece o art. 25.º do Código de Processo Civil:

Representação das outras pessoas colectivas e das sociedades

1 - As demais pessoas colectivas e as sociedades são representadas por quem a lei, os estatutos ou o pacto social designarem.
2 - Sendo demandada pessoa colectiva ou sociedade que não tenha quem a represente, ou ocorrendo conflito de interesses entre a ré e o seu representante, o juiz da causa designa representante especial, salvo se a lei estabelecer outra forma de assegurar a respectiva representação em juízo.
3 - As funções do representante a que se refere o número anterior cessam logo que a representação seja assumida por quem deva, nos termos da lei, assegurá-la.
No caso em apreço, a R. é uma sociedade por quotas que, nos termos do respectivo pacto social, tem como únicos sócios e gerentes M. F. e F. M. e se obriga mediante a assinatura conjunta dos dois. Assim, inexistindo disposição especial sobre a quem compete a representação em juízo da R., a mesma cabe conjuntamente àqueles sócios-gerentes, nos termos dos arts. 252.º, 260.º e 261.º do Código das Sociedades Comerciais e do art. 996.º, n.º 1 do Código Civil.
Conforme decorre do Relatório supra, não obstante o requerimento apresentado pelo gerente F. M. em 9/09/2019, a dar conta de desacordo com o outro gerente quanto à posição a assumir pela R. no processo, o certo é que, na audiência de partes realizada na mesma data, com a presença da A., da sua advogada e dos identificados sócios-gerentes da R., ficou a constar da respectiva acta, além do mais, que estes pediram a palavra e disseram: «A Ré não se concilia com a Autora pelos motivos que melhor explicitará em sede de contestação.»
Assim, tendo a R. feito saber aos demais presentes qual a sua posição no processo através de declaração emitida em conformidade com as exigências do pacto social, nenhuma razão existia para, nesse momento, o tribunal providenciar pelo que quer que fosse no que respeita à representação da mesma em juízo. Em consonância, a R. foi notificada para contestar no prazo de 10 dias, o qual terminava em 19/09/2019.
Sucede que, como também resulta do Relatório, no último dia do prazo o gerente F. M. apresentou requerimento em que, além do mais, requereu a nomeação de terceira pessoa como representante da sociedade, nos termos do art. 25.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, na medida em que pretendia que esta constituísse mandatário e apresentasse a sua defesa, o mesmo não sucedendo com o gerente M. F., pai da A.. E sucede ainda que este, no exercício do contraditório, não obstante se tenha oposto ao requerido, reconheceu que efectivamente não deu o seu aval à constituição de mandatário em representação da R., nem diligenciou por apresentar contestação, concluindo que a acção deve ser julgada procedente por falta de contestação dos factos alegados pela A., que reputa como verdadeiros.
Ora, o facto de o recurso ao disposto no n.º 2 do art. 25.º em análise não se ter afigurado necessário aquando da realização da audiência de partes, em virtude de os gerentes da R. terem conjuntamente afirmado que esta não se conciliava com a A. pelos fundamentos que constariam da contestação, não impede que tal ocorra subsequentemente, quando se demonstra que, ao contrário do que declarou perante o tribunal, o gerente M. F. não actuou no sentido da constituição de advogado e apresentação de contestação pela R., pretendendo que, em resultado de tal omissão, a acção fosse julgada procedente.
Na verdade, tal como a nomeação de representante ad litem de sociedade ré pode ser necessária apenas numa fase ulterior do processo por falta superveniente do respectivo representante (por morte, cessação de funções, etc.), o mesmo pode suceder por motivo de conflito de interesses entre a ré e o seu representante que só supervenientemente se evidencie, não resultando da letra ou espírito da norma em apreço qualquer distinção a fazer. Está em causa uma representação provisória(1), que deve ser assegurada apenas quando e enquanto se verificarem os respectivos pressupostos (cfr. o seu n.º 3).

No que respeita à noção de conflito de interesses entre a ré e o seu representante, relevante para os efeitos em apreço, afigura-se insuficiente o recurso ao disposto no art. 251.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, invocado pelos Recorrentes, não só porque o mesmo respeita especificamente ao impedimento de voto de sócio que, relativamente à matéria de deliberação, se encontre em situação de conflito de interesses com a sociedade, como também porque nem sequer fornece qualquer definição do que deva entender-se como tal, apenas enunciando situações que aí cabem, de modo meramente exemplificativo, como decorre do emprego da expressão «designadamente».
Estando em causa a regularidade dum pressuposto processual, concretamente da representação em juízo duma sociedade ré, a forma mais extrema de conflito de interesses entre esta e o seu representante ocorre obviamente quando este tenha no processo a qualidade de autor, mas, como já dizia Alberto dos Reis (2), “[n]ão é necessário que o conflito revista a forma aguda que acabamos de descrever; basta que seja potencial, isto é, que o representante, embora não figure na causa como parte, seja titular dum interesse oposto ao da pessoa colectiva e paralelo ao da parte contrária a esta pessoa.”
Tratando-se dum conflito de interesses atinente à relação processual, o mesmo verifica-se quando, relativamente ao exercício dos direitos e faculdades conferidos pela lei adjectiva a quem no processo ocupa a posição de réu, o representante assume uma posição oposta à prossecução do «interesse directo em contradizer», expresso pelo prejuízo que advenha da procedência da acção, nos dizeres utilizados no art. 30.º do Código de Processo Civil a propósito da «legitimidade».
Seguramente que o réu pode entender não contestar uma acção, por diversas razões, desde logo a de não ter fundamentos válidos para oposição à pretensão do autor, posto que o assuma através de actuação conjunta dos respectivos gerentes, se for esse o caso, ou do representante especial nomeado nos termos do art. 25.º, n.º 2 do Código de Processo Civil, cuja ratio, em tal situação concreta, é precisamente a de evitar que um dos gerentes possa impor, designadamente através da sua inércia, uma actuação da sociedade ré contrária ao interesse processual da mesma.

Ora, resulta dos autos que, ao contrário do que declarou perante o tribunal em sede de audiência de partes, o gerente M. F. não actuou de modo a providenciar pela constituição de advogado e apresentação de contestação por parte da R., de forma a que, em resultado da omissão, fossem dados como provados os factos alegados pela A. sua filha e a acção fosse julgada procedente. Isto é claramente demonstrativo dum conflito entre aquele gerente e a R. quanto ao interesse processual que na acção deve ser prosseguido por esta, pois, na óptica daquele, o interesse processual a prosseguir pela R. deve ser o da A. e não o da própria R. (3).
Verificam-se, pois, os pressupostos para a nomeação de representante ad litem à R., improcedendo os recursos nessa parte, sendo certo que nenhuma questão ali se suscita quanto à pessoa que foi nomeada pelo tribunal recorrido para tal função.
No que respeita à questão das custas, suscitada pelo Recorrente M. F., decorre dos n.ºs 1 e 2 do art. 527.º do Código de Processo Civil que a decisão que julgue algum dos incidentes da acção condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se como tal a parte vencida, na proporção em que o for.
O invocado n.º 1 do art. 539.º do mesmo diploma, ao dispor que a taxa de justiça dos incidentes é paga pelo requerente e, havendo oposição, pelo requerido, refere-se apenas a uma das componentes das custas processuais – a taxa de justiça, correspondente ao montante devido pelo impulso processual de cada interveniente, fixado em função do valor e complexidade da causa, nos termos do Regulamento das Custas Processuais (art. 529.º, n.ºs 1 e 2 do mesmo código) –, para esclarecer que é devida em função da apresentação de articulados respeitantes ao incidente, pelos respectivos intervenientes.
Assim, no caso em apreço, por um lado, era devida taxa de justiça pela apresentação do requerimento de incidente de nomeação de representante especial e pela apresentação de oposição ao mesmo, pelos intervenientes F. M. e M. F., respectivamente, nos termos do citado art. 539.º, n.º 1, e, por outro lado, tendo sido proferida decisão que julgou tal incidente procedente, deviam as respectivas custas ficar exclusivamente a cargo do interveniente vencido, ou seja, o requerido M. F., nos termos do também citado art. 527.º, n.ºs 1 e 2.
Improcede, pois, o recurso do Apelante também nesta parte.
Finalmente, cumpre decidir se devia ter sido concedido à R. um novo prazo para contestar a acção, questão suscitada no recurso interposto pela A..
O n.º 2 do art. 25.º do Código de Processo Civil, ao dispor que, sendo demandada pessoa colectiva ou sociedade que não tenha quem a represente, ou ocorrendo conflito de interesses entre a ré e o seu representante, o juiz da causa designa representante especial, constitui emanação do princípio geral constante do n.º 2 do art. 6.º do mesmo diploma, intitulado «Dever de gestão processual», segundo o qual o juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de acto que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.
Por outro lado, como resulta do supra exposto, aquele art. 25.º, n.º 2 visa assegurar a representação em juízo de sociedade ré através de representante especial quando e enquanto aquela não tem quem a represente, ou quando e enquanto ocorra conflito de interesses entre a ré e o seu representante.
Assim, como é por demais evidente, a actividade do juiz com vista a providenciar pelo suprimento da falta do pressuposto processual em causa, assim como de outros, é prejudicial relativamente à tramitação processual que depende necessariamente da sua conclusão, designadamente o exercício dos direitos e faculdades processuais que assistiam à sociedade ré no momento em que ocorreu a falta de representante ou o conflito de interesses entre a ré e o seu representante.
Mal seria que a lei impusesse ao juiz que providenciasse, inclusive oficiosamente, pelo suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação, determinando a realização dos actos necessários à regularização da instância, e a maior ou menor demora no início ou termo de tal actividade tivesse qualquer influência na extinção de direitos ou faculdades existentes no momento em que se deu a falta.
Ora, resulta das intervenções do gerente M. F. nos autos, quer em 1.ª instância, quer em sede de recurso, que, ao contrário da posição assumida perante o tribunal na audiência de partes, aquele não providenciou pela constituição de advogado e apresentação de contestação por parte da R., pretendendo que, em resultado da omissão, sejam dados como provados os factos alegados pela A. sua filha e a acção seja julgada procedente, o que demonstra que o conflito de interesses entre aquele gerente e a R. remonta ao início do prazo legal para o referido efeito.
Em face do exposto, a prossecução da ratio inerente às disposições legais citadas impunha que ao representante especial nomeado fosse concedido o prazo de 10 dias para contestar, como efectivamente foi.
Improcede, pois, o recurso da A. também nesta parte.

5. Decisão

Nestes termos, acorda-se em julgar as apelações improcedentes, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas de cada recurso pelos respectivos Apelantes.
Em 5 de Novembro de 2020

Alda Martins
Vera Sottomayor
Maria Leonor Barroso



1. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. 1.º, Coimbra Editora, 3.ª edição, p. 63.
2. Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 3.ª edição – reimpressão, p. 62.
3. Sobre situação similar, veja-se o Acórdão da Relação do Porto de 16 de Abril de 2012, proferido no processo n.º 909/10.3TTVCT.P1.